Universidade Federal do Ceará
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
Faculdade de Medicina
Programa de Pós-Graduação
Doutorado em Saúde Coletiva
Angela Cardoso Andrade Timóteo da Silva
EXCESSO DE PESO E OBESIDADE EM CRIANÇAS QUE NASCERAM COM MUITO BAIXO PESO: VICISSITUDES DAS PRÁTICAS ALIMENTARES NA
INFÂNCIA A PARTIR DA SUBJETIVIDADE MATERNA
Angela Cardoso Andrade Timóteo da Silva
EXCESSO DE PESO E OBESIDADE EM CRIANÇAS QUE NASCERAM COM BAIXO PESO: VICISSITUDES DAS PRÁTICAS ALIMENTARES NA INFÂNCIA
A PARTIR DA SUBJETIVIDADE MATERNA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – Associação Ampla: UECE/UFC/UNIFOR – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor. Linha de pesquisa: Avaliação de Programas e Serviços de Saúde. Campo temático: Saúde Materno-Infantil.
Orientação: Prof.a Dr.a Márcia Maria Tavares
Machado
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
S578e Silva, Angela Cardoso Andrade Timóteo.
Excesso de peso e obesidade em crianças que nasceram com muito baixo peso : vicissitudes das práticas alimentares na infância a partir da subjetividade materna / Angela Cardoso Andrade Timóteo Silva. – 2015.
213 f.
Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Medicina, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Fortaleza, 2015.
Orientação: Profa. Dra. Márcia Maria Tavares Machado.
1. Prematuro. 2. Obesidade. 3. Violência Doméstica. 4. Sobrepeso. 5. Saúde da Criança. I. Título.
EXCESSO DE PESO E OBESIDADE EM CRIANÇAS QUE NASCERAM COM MUITO BAIXO PESO: VICISSITUDES DAS PRÁTICAS ALIMENTARES NA INFÂNCIA A PARTIR DA SUBJETIVIDADE MATERNA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, como requisito final para a obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva.
Defesa em: 11 de junho de 2015.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Prof.a Dr.a Márcia Maria Tavares Machado – UFC (orientadora)
_______________________________________________________ Prof. Dr. Álvaro Madeiro Leite - UFC
__________________________________________________________
Prof.a. Dr.a Ana Cristina Lindsay - University of Massachusetts Boston e
Harvard School of Public Health
__________________________________________________________
Prof.a Dr.a Mª de Fátima Rebouças Antunes - UNIFOR
__________________________________________________________
Nascemos, por assim dizer,
provisoriamente, em algum lugar;
pouco a pouco é que compomos em nós o lugar da nossa origem, para lá nascer mais tarde e, a cada dia, mais definitivamente.
DEDICATÓRIA
À doce Esther, minha filha amada, que suportou esperançosamente minhas
ausências, em momentos cruciais de seu desenvolvimento. Sua alegria
contagiante e incentivo constante possibilitaram a finalização deste trabalho.
A todas as mães prematuras, especialmente as
envolvidas nesse estudo, pelo compartilhamento
sensível de suas histórias e pela mensagem de
AGRADECIMENTOS
À Prof.a Dr.a Márcia Machado, querida mestra que, para além da sua posição
como orientadora no incentivo expresso à valorização deste trabalho, revelou
ser uma grandiosa amiga. Agradeço por sua sensibilidade e cumplicidade na
construção desta Tese.
À Prof.a Dr.a Ana Lindsay, pelo incentivo e coautoria em artigos que contém
parte da elaboração teórica desta Tese.
À coordenação do Programa de Pós-Graduação em Associação Ampla
UECE/UFC/UNIFOR por me proporcionar o espaço para essa discussão.
Ao Prof. Vianney Mesquita pelo seu entusiasmo e seu carinhoso cuidado na
revisão da gramática e do estilo.
A Zenaide e Dominique, secretárias da Pós-Graduação em Saúde Coletiva,
pela competência com que gerenciam as atividades de secretariado, sendo
sempre amáveis e solícitas aos meus pedidos.
À Aryadna Ribeiro, pessoa de longas “estradas” e “travessias”, pelo seu
companheirismo, bondade, doçura e fortaleza. O carinho que tenho pela nossa
história faz deste trabalho, inevitavelmente, ser seu também.
Aos queridos amigos do Instituto de Psicologia Clínica Sawabona – Lúcia
Montenegro, Conceição Barbosa, Solange Diniz e Edmundo Morais – obrigada
pelo incentivo constante e pelo nosso amor interhumano.
À Margareth Oliveira, amiga de todas as horas, pelo seu apoio e firme
presença no campo de pesquisa. Agradeço-lhe a tolerância pela minha
ausência em momentos necessários de compartilhamento de suas
Aos amigos, alunos e estagiários da Clínica-Escola do Serviço de Psicologia
Aplicada da Universidade de Fortaleza, pela cumplicidade no meu percurso,
especialmente à Marselle Fernandes, Patrícia Passos e Rosita Paraguassú.
Ao Langley, irmão e amigo, agradeço por sua confiança e pelo zelo que
dispensou em minha formação pessoal.
À tia Rosa e irmã Francisca, pessoas queridas que, com dedicação e amor,
cuida do meu lar e da minha família, zelando pelas minhas necessidades
RESUMO
Objetivou compreender, com origem na subjetividade materna, as práticas
alimentares de crianças entre dois a cinco anos com excesso de peso e
obesidade que nasceram prematuras com muito baixo peso. Para tanto,
buscou, com base nas vivências e percepções maternas, pôr em evidência o
processo multidimensional e sinérgico que envolve a associação entre
nascimento prematuro de muito baixo peso, cuidados maternos, práticas
alimentares e o excesso de peso na infância. Este estudo fundamenta-se na
Fenomenologia Hermenêutica como arcabouço teórico-metodológico de
natureza qualitativa. O grupo investigado foi composto por 12 mães que
frequentavam serviços públicos especializados no follow-up da criança
prematura, em Fortaleza-CE. As técnicas utilizadas foram: entrevista aberta e
registro em diário de campo derivado da observação direta da realidade de
pesquisa. Com suporte no exercício analítico-hermenêutico do material
empírico, destacaram-se três temáticas centrais nos achados: 1- Revivendo a
marca simbólica do nascimento prematuro; 2- Práticas alimentares da
criança de dois a cinco anos nascida prematura com muito baixo peso; 3-
Contextos de vulnerabilidade socioafetiva familiar e os excessos
alimentares. A discussão dos resultados se alicerça nas recordações, pelas
mães, das vicissitudes do nascimento prematuro de muito baixo peso, que
representou para a díade mãe-filho uma marca simbólica traumática, cujo
impacto alicerçou as dificuldades vividas pelas mães na provisão dos cuidados
ao bebê de risco com a chegada no domicílio, sobretudo no que se refere ao
microcosmo das práticas alimentares adotadas. Essas experiências adversas
vão desde a permanência da criança em UTIN, atravessaram os primeiros
anos de vida, e tem nos sentimentos de culpa e medo em perder o filho o
panorama que consubstanciou as práticas alimentares, com o firme objetivo
materno em fortalecer o corpo do bebê frágil e, assim, compensar o passado
difícil na luta pela sobrevivência e reparar os prejuízos à parentalidade em
curso. Foram observadas evidências de sintomas de estresse pós-traumático
após o intervalo de dois a cinco anos do nascimento prematuro, com tendência
à superproteção da criança. O que mais impactou as mães à época da
foi a alimentação dispensada na unidade intensiva. A angústia perante o
intenso volume de leite materno produzido e as poucas “gotas” de leite
administradas pela seringa ao bebê, revelaram-se aversivas, aumentando a
ansiedade e impactando negativamente a confiança materna. Contrapostas a
essa experiência, porém, somam-se as práticas alimentares “obesogênicas” na
infância, com alimentação pouco diversificada, excesso na oferta de alimentos
lácteos e a utilização de espessantes e farináceos, além do baixo consumo de
frutas, verduras e legumes. Em adição, não percebiam adequadamente o
estado nutricional do filho para excesso de peso ou obesidade, considerando
que seus filhos são fortes e saudáveis em relação o quadro anterior de
caquexia, com o baixo peso ao nascer. As mães relataram a experiência de
estresse crônico como resultante da violência doméstica pelo parceiro íntimo,
indicando que a atratividade e a impulsividade por comida de seu filho, assim
como a hiperalimentação no ambiente familiar, podem estar envolvidas em
necessidades simbólicas em que subjaz a salvaguarda do eu e o
apaziguamento do mal-estar e da inquietação infantil. Sintomas de estresse
pós-traumático, como ansiedade e depressão materna, medeiam os cuidados
com os filhos que, geralmente, são superprotegidos e superalimentados. Esses
achados indicam a necessidade de reformulação teórico-metodológica da
assistência nutricional ao prematuro em seus primeiros cinco anos de vida e,
simultaneamente, o incremento de políticas públicas que focalizem a
pluralidade de necessidades da família do bebê e da criança pequena nascida
prematura, numa mutação do olhar que alcance além dos esforços
empreendidos na sobrevivência do bebê de risco, centrada no corpo
anatomofisiológico, mas, sobretudo, na produção do cuidado integral numa
perspectiva bioecológica.
ABSTRACT
This study aimed at understanding the food habits of overweight and obese
children aged 2 to 5 who were born premature and with low weight, based on
maternal subjectivity. In order to do so, based on the mothers’ experiences and
perceptions, we attempted to highlight the multidimensional and synergic
process which involves the association between very low weight premature
birth, maternal care, food habits and excess weight in infancy. This study is
grounded in hermeneutic phenomenology as a theoretical-methodological
framework of a qualitative nature. The studied group consisted of 12 mothers
who received care at specialized public services providing follow-up to
premature children in Fortaleza-CE. The techniques we used were: open-ended
interview and daily field journals recording direct observations made at the
research location. Based on a analytical-hermeneutical review of the empirical
material, we uncovered three central themes in our findings: 1 – Reliving the
symbolic mark of premature birth; 2 – Eating habits of children aged 2 to 5
who were born prematurely with very low weight 3 – Social-emotional
vulnerability contexts within their families and excess food intake. The
discussion of results is grounded in the mothers’ recollections of the ups and
downs of a very low weight, premature birth. For the mother-child pair, it
represented a traumatic symbolic mark whose impact provided the foundations
of troubles experienced by mothers when providing care to a risk newborn upon
returning home, with respect to the micro-universe of adopted eating habits.
Those negative experiences range from the child remaining in an NICU and
growing up during their first years of life. Feelings of guilt and fear of losing
one’s child form the scenario which provides the basis for eating habits, with the
firm purpose on the mother’s part of strengthening the fragile baby’s body and
therefore making up for the difficult past struggling for survival and repairing the
ongoing damage to parenthood. We observed evidence of symptoms of
post-traumatic stress 2 to 5 years after the premature infant was born, with child
overprotection tendencies. The greatest impact on the mothers at the time when
their babies were hospitalized, in addition to clinical instability and the eminent
risk of death of their child, was the food given at the intensive care unit. Their
“drops” of breast milk given to their child using a syringe caused aversion,
increased anxiety and had a negative impact on maternal confidence. On the
other hand, there are “obesity-causing” eating habits in infancy, with little
diversity of foods and excess offer of milk products and use of thickening and
wheat products, in addition to low consumption of fruit and vegetables. In
addition, they did not properly realize their child’s nutritional status as
overweight or obese, since their children were strong and healthy considering
their previous state of cachexia with low weight at birth. Mothers reported their
chronic stress experience as resulting from domestic violence perpetrated by
their partners, indicating that the attractiveness and impulse for food shown by
their child, in addition to overeating in the family environment, could be involved
with symbolic needs that underlie safeguarding themselves and appeasing the
children’s discomfort and restlessness. Symptoms of post-traumatic stress,
such as anxiety and maternal depression, mediate the care given to children
who are usually overprotected and overfed. This establishes an important
scenario of “obesity-generating” eating habits for the child, who was born with
very low weight, and seriously harming their health at later stages of
development. Those findings indicate the need for a theoretical-methodological
reform of nutritional care given to premature children in their first 5 years, while
simultaneously improving Public Policies that focus on the multiple needs of the
baby’s family and of the premature child, changing the perspective to reach
beyond the efforts undertaken to ensure the survival of babies under risk, which
focus on the anatomy and physiology of bodies, favoring instead providing
comprehensive care under a bioecological perspective.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 01
Matriz existencial 01
1INTRODUÇÃO
1.1 Prematuridade e baixo peso ao nascer
06
06
1.1.1 Definição, correlações e epidemiologia 06
1.1.2 Os reveses entre o biológico, a cultura alimentar e o
ambiente socioafetivo 11
1.2 Alimentação contemporânea e o desenvolvimento do
comportamento alimentar infantil 14
1.2.1 O peso infantil em excesso: compreensão bioecológica 35
1.2.2 Epidemiologia 56
1.2.3 Obesidade infantil e vínculo mãe-filho 62
1.3 Questões norteadoras e pergunta condutora da pesquisa 67
2 OBJETIVOS 70
2.1 Objetivo geral
2.2 Objetivos específicos
70
70
3 METODOLOGIA 71
3.1 Natureza do estudo 71
3.2 Desenho da pesquisa 80
3.3 Organização do material e procedimentos para análise 83
3.4 Análise do material qualitativo 85
3.5 Aspectos éticos da pesquisa 86
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1 Revivendo a marca simbólica do nascimento prematuro
88
4.1.1 Dificuldades na pós-alta hospitalar
4.2 Práticas alimentares da criança de dois a cinco anos com excesso de peso e nascida com muito baixo peso
4.2.1 Percepções maternas acerca do estado nutricional do filho
4.3 Contextos de vulnerabilidade socioafetiva familiar
109
119
150
156
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 168
REFERÊNCIAS
ANEXO
172
195
1
APRESENTAÇÃO
O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam a sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha.
Merleau-Ponty
Matriz existencial
Em 1995, principiava a minha trajetória como psicoterapeuta, facilitando
grupos de obesos em uma clínica de emagrecimento e em consultório
particular. Até então, imaginava que estava lidando somente com os aspectos
psicológicos da obesidade, aliados às questões do empobrecimento na
autoestima e imagem corporal, circunscritos à história de vida do sujeito.
Foi verificada, ao longo da prática clínica, a heterogeneidade de pessoas
e suas respectivas demandas focadas na disfuncionalidade das suas relações
com o alimento, o que as impulsionava à procura de um tratamento psicológico
nesta área. Observava pessoas com sobrepeso à procura de psicoterapia,
portadoras de pensamentos fixos e obsessivos em relação ao peso,
autoimagem corporal e comida; outras, com o peso dentro da faixa de
normalidade, mas com a autopercepção distorcida e se achando gordas; havia
ainda as que ignoravam suas determinações genéticas/ hereditárias, e que se
obrigavam a viver sob dietas restritivas a fim de se manter dentro de um peso
idealizado; as que comiam compulsivamente e purgavam o alimento por meio
de vômitos autoinduzidos ou utilizando outros métodos compensatórios e/ou
purgativos para se livrar da comida em razão do medo de engordar; outras
comiam compulsivamente mas não se utilizavam destas práticas inadequadas
de controle de peso. Enfim, um corolário de sintomatologias alimentares
acompanhadas de intenso sofrimento psíquico e significativo prejuízo na vida
global das pessoas, que extrapolava o excesso de peso em si e que, de certa
2
alimentar e seus desvios, culminando no Mestrado em Saúde Pública, com a
dissertação intitulada Para Além dos Sintomas: a trilogia do desamparo no
vivido de mulheres com transtornos do comportamento alimentar, e na
Especialização em Saúde Mental, com a monografia Excesso de peso na
infância e estigma: as faces ocultas das desordens do comportamento
alimentar. Ao longo dessa trajetória, foi concedida a oportunidade de realizar
dois cursos de aperfeiçoamento: o primeiro no Ambulatório de Bulimia do
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, e o segundo no Ambulatório de Transtornos
Alimentares da Fundação Mário Martins, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Com a experiência adquirida nesses serviços especializados,
pioneiros no Brasil no cuidado desses agravos, foram reunidos os
conhecimentos necessários para o processo de implantação dos serviços
interdisciplinares de Fortaleza, Ceará.
Em 1997, como professora substituta do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal do Ceará (UFC), tive a oportunidade de participar da
implantação do CETRATA – Centro de Estudos e Tratamento em Transtornos
Alimentares do Serviço de Saúde Mental, do Hospital Walter Cantídio da
FAMED/UFC. Em 2002, na Universidade de Fortaleza, como docente do curso
de Nutrição, ministrando a disciplina Psicologia da Nutrição, participei da
implantação do PRONUTRA – Programa Interdisciplinar de Nutrição aos
Transtornos Alimentares e Obesidade do Núcleo de Assistência Médica
Integrada – NAMI/UNIFOR.
Consubstanciando essa trajetória, e, ao mesmo tempo, solidificando a
formação de futuros nutricionistas e psicólogos nessa área específica do
conhecimento, que alia saberes e práticas advindas da Psicologia e da
Nutrição, foi concedida a oportunidade, em 2010, de ser criado um grupo de
estudos e produção de pesquisa científica, sediado no Centro de Ciências da
Saúde da UNIFOR. O Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa sobre
Comportamento Alimentar: Corpo e Subjetividade – INTERFACES - integra
docentes e estudantes de graduação e pós-graduação com interesse em
pesquisar sobre objetos temáticos que tangenciam esse campo do
conhecimento: imagem corporal e seus desvios; sociedade do consumo; mídia
3
Ao recobrar esse percurso, que perfaz, em parte, a matriz existencial
que moveu o meu interesse acadêmico e assistencial de forma apaixonada,
procuro “tonalizar” o recorte que apresento nesta Tese, de natureza qualitativa.
Ao longo de dez anos dedicados à vida acadêmica e à clínica psicológica,
intervalo entre o mestrado e o doutorado, outra questão de pesquisa foi se
modelando. Alguns pacientes do ambulatório universitário e de minha prática
privada procuravam acompanhamento para a realização da cirurgia bariátrica e
metabólica. Após sucessivos investimentos para a perda de peso, e com uma
considerável coleção de insucessos e sentimentos de desesperança, seguiam
para o último recurso de tratamento, a fim de cuidar das morbidades
associadas ao severo excesso de peso. De forma bem frequente, anunciavam
em seus discursos que sempre foram “gordinhos”, que eram crianças que
comiam muito. Cito um depoimento, que revelou a vivência de muitos outros
pacientes: “Dra. eu tomava três mamadeiras de mingau de uma vez”. Com
tantos outros depoimentos referindo-se à infância com excesso de peso, a
questão que sobrevinha era: “como uma criança, que depende diretamente do
adulto para alimentar-se, consegue ingerir essa quantidade de alimento?” Será
que é uma questão de apetite verdadeiramente maior do que a maioria das
outras crianças? Quais são as dimensões que poderiam mediar às práticas
alimentares na infância?
Em entrevista com familiares, houve algumas experiências exitosas.
Mães e pacientes levavam frequentemente as fotos de quando eram
recém-nascidos, e alguns desses pacientes nasceram prematuros. As fotos
mostravam o antes e o depois, ainda na maternidade e no pós-alta hospitalar, e
de alguns meses adiante, com o peso recuperado. Os familiares falavam da
“aflição” de cuidar de uma criança tão frágil, do medo de “não vingar” e, ao
mesmo tempo, do orgulho em ter um bebê livre do risco de morte, “gordinho”.
O significado apreendido era de alívio, como se aquele bebê “gordinho”, ou
com excesso de peso, representasse a vitória conquistada pela mãe em seus
cuidados com o filho, com vistas ao distanciamento do risco de morte. Os
familiares não reconheciam que o excesso de peso “conquistado” se revelava
como importante problema de saúde, sobretudo em crianças que nasceram
4
À época, em 2009, coordenava um projeto de pesquisa sobre as
percepções maternas da obesidade infantil com mães de crianças em
tratamento ambulatorial especializado, trabalho publicado em capítulo de livro -
Saúde da Mulher: a diversidade no cuidado (ANDRADE, et al., 2011). Os
principais achados foram: alteração da percepção acerca do estado nutricional
do filho, não reconhecendo seu excesso de peso inicial; a preocupação com as
doenças associadas; e o sofrimento pelo preconceito.
Com apoio na articulação dessas experiências e o contato com a
produção de estudos e pesquisas do grupo de Saúde Materno-infantil do
Departamento de Saúde Comunitária da UFC, em 2010, inicia-se a elaboração
da questão de pesquisa que me direcionou ao Doutorado em Saúde Coletiva,
com a entrada no programa em 2011.
Cheguei em 2015, transcorridos 20 anos do início de minha atuação
nesse campo de estudos, apresentando a Tese como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutorado em Saúde Coletiva. Destarte, mais um
“alinhavo” desse percurso e concluí provisoriamente as evidências, pois creio
que a dialética sem síntese que me impulsiona subsidiará a emergência de
novas hipóteses de pesquisa, que relativizará, possivelmente, meu
empreendimento até aqui, abrindo outras perguntas e possibilidades de
compreensão.
Portanto, apresento a Tese de defesa que responde à pergunta
condutora do estudo e os objetivos traçados para esse intento. Inicio nosso
texto com a revisão de literatura na qual é mostrada em forma de capítulos que
compõem o eixo teórico inicial e a lente através da qual possibilitará o
aprofundamento analítico, numa perspectiva interdisciplinar, das categorias
empíricas evidenciadas nos meus achados. Igualmente, a articulação desse
tecido teórico-conceitual estará na elaboração das considerações finais da
Tese, com perspectivas de ampliação do estado da arte acerca dos cuidados
maternos à criança nascida prematura de muito baixo peso. Desde a
INTRODUÇÃO, concebo o ponto de partida na caracterização conceitual da
prematuridade e do baixo peso ao nascer. Tratarei dos reveses entre o
biológico, a cultura alimentar e os aspectos socioafetivos nas decorrências para
o bebê prematuro, contendo a temática do peso em excesso na infância, que,
5
na área da Saúde da Criança no Brasil e no mundo. Caracterizarei a evolução
histórica da alimentação contemporânea, com especial destaque aos tópicos
sobre desenvolvimento do comportamento alimentar infantil e as implicações
para o bebê prematuro. Adiante, com base na Teoria Bioecológica do
Desenvolvimento Humano, conceituarei o excesso de peso na infância, a
Epidemiologia do agravo e a importância da compreensão do vínculo
mãe-filho-alimentação na obesidade infantil.
Posteriormente à mostra das questões norteadoras da pesquisa com o
recorte da pergunta condutora (1,3), e do OBJETIVO GERAL (2.1) e objetivos
específicos do estudo (2.2), apresentaremos o capítulo que compõe a
METODOLOGIA (3.0). Nessa sessão, serão indicados o escopo
epistemológico e a natureza do referencial teórico-metodológico de pesquisa
Fenomenológica Hermenêutica, assim como o desenho de pesquisa (3.2) que
possibilitou encontrar o grupo de mães que participaram do estudo e a
descrição das etapas de organização e análise do material qualitativo, bem
como os aspectos éticos da pesquisa, com o desvelamento das categorias
temáticas fundantes dos resultados e discussões.
Os RESULTADOS e DISCUSSÕES (4.0) serão delineados em três
seções: Revivendo a marca simbólica do nascimento prematuro (4.1) e as
dificuldades do pós-alta hospitalar (4.1.1); Práticas alimentares de crianças
de dois a cinco anos com excesso de peso e nascida prematura com
muito baixo peso (4.2) e a percepção materna acerca do estado nutricional do
filho (4.2.1); e, por fim, Contextos de vulnerabilidade socioafetiva familiar
(4.3). Nessa mesma seção, previamente à mostra dos capítulos supracitados,
serão descritas as variáveis socioeconômicas das mães que compõem o grupo
estudado, a identificação do peso ao nascer da criança, a indicação do
percentil que situa o diagnóstico nutricional para excesso de peso à época da
entrevista, assim como a faixa de idade de dois a cinco anos.
As CONSIDERAÇÕES FINAIS (5), REFERÊNCIAS, ANEXO e
6
1 INTRODUÇÃO
1.1 Prematuridade e baixo peso ao nascer
1.1.1 Definição, correlações e epidemiologia
A prematuridade é o problema perinatal atual mais importante, uma
questão preocupante no campo da Saúde Coletiva, não só pelos elevados
índices de morbimortalidade neonatal a ela associados, mas sobretudo pela
qualidade de vida adstrita das crianças que sobrevivem. Nascimentos
prematuros representam desafios difíceis para pais, médicos e a sociedade em
geral, já que bebês prematuros muitas vezes enfrentam um risco mais elevado
de comprometimento clínico, cognitivo e psicoafetivo, e, em alguns casos,
exigindo permanente assistência médica interdisciplinar. De acordo com o
relatório Born too soon (WHO, 2012), o elevado número de nascimentos
prematuros é uma preocupação de saúde global, com aumento expressivo em
quase todos os países, inclusive aqueles ditos desenvolvidos.
O bebê prematuro ou pré-termo é definido pela Organização Mundial de
Saúde (WHO, 1961) como aquele que nasce até 36 semanas e seis dias, ou
abaixo de 37 semanas. Crianças a termo são as que nascem entre 37 a 41
semanas, e pós-termo são as que nascem após 42 semanas.
O baixo peso ao nascer (BPN) é, geralmente, considerado na literatura
especializada, o fator isolado mais importante que afeta a morbimortalidade
neonatal e tem impacto sobre a morbimortalidade infantil. É um fenômeno
fortemente associado à prematuridade; um problema de grande importância
para a prática médica e para o campo do diagnóstico do desenvolvimento. Um
recém-nascido é considerado de baixo peso quando atinge um peso igual ou
menor que 2.500 g. Aqueles que nascem abaixo de 1.500g são denominados
de “muito baixo peso” e, os neonatos abaixo de 1000g, de “extremo baixo
peso” (WHO, 1961; 2012).
O peso baixo ao nascimento possui gênese multidimensional, sendo que
a duração da gestação e as características do crescimento intrauterino são
fatores preponderantes. O baixo peso ao nascer é decorrente do nascimento
7
Bebês com RCIU podem nascer com idade gestacional adequada ou a
termo, mas o crescimento fetal torna-se prejudicado devido a fatores adversos
na vida intrauterina e, com isso, a ocorrência de baixo peso ao nascer. Noutras
palavras, a incidência de neonatos com peso igual ou menor a 2.500g não
ocorre exclusivamente na prematuridade. A má nutrição fetal, de acordo com
Lima et al. (2011), predispõe a uma morbidade aumentada no primeiro ano de
vida e a um maior número de hospitalizações em regiões economicamente
desfavorecidas, principalmente devido a infecções respiratórias e diarreicas
com consequente aumento da mortalidade infantil.
Embora os avanços tecnológicos em UTIs Neonatais venham garantindo
a sobrevivência de bebês prematuros, com o foco eminentemente no
diagnóstico e na terapêutica, a qualidade de vida ao longo do desenvolvimento
na interface dos cuidados maternos, é uma questão pouco investigada e traz
uma lacuna importante no seguimento desses bebês ditos de risco. Com efeito,
o processo assistencial desde a hospitalização do bebê deve centrar-se numa
terapêutica sistêmica, que além dos esforços de manutenção da vida deve
investir na saúde dos laços afetivos da unidade familiar, ao promover a saúde
mental da díade mãe-bebê. Assim, além do risco biológico que a
prematuridade enseja, o risco elevado de desordens emocionais concorre
desfavoravelmente para a saúde global da criança e na sua vida adulta.
Recém-nascidos prematuros, principalmente aqueles com um período
prolongado de internação, tem risco aumentado de problemáticas referentes à
construção do apego e estabelecimento do vínculo afetivo mãe-bebê, de ser
abandonado por suas mães e, ainda, de ser vítima de maus tratos infantis
(MOREIRA, et al., 2003; ANDREANI et al., 2006, TAVARES et al., 2006).
Iniciativas no âmbito nacional vêm sendo desencadeadas para promover
mudanças nesse cenário. Como o crescimento das taxas de prematuridade
está diretamente ligado ao aumento das taxas de cesarianas, o Programa de
Atenção Integral à Saúde da Mulher e da Criança – Rede Cegonha (2011), tem
como proposta a mudança do modelo de atenção obstétrica no Brasil. Assim
como a implantação da Atenção Humanizada ao Recém-nascido de Baixo
Peso – Método Mãe-Canguru (2002), tem como desafio a implementação do
cuidado integral à díade mãe-bebê prematuro e sua família, inclusive no
8
De acordo com Gesell; Amatruda (2002), o peso de 2.500g no
nascimento e a idade gestacional de 37 semanas foram adotados como linhas
divisórias convencionais entre os bebês maduros e pré-termo, dadas a maior
mortalidade e morbidez e a necessidade de cuidados médicos e nutricionais
especiais dos bebês abaixo desse ponto de corte. Os índices mais baixos de
mortalidade ocorrem em bebês com peso superior a 2.500g e idade gestacional
acima de 36 semanas. O índice triplica quando a duração da gestação é
inferior a 37 semanas. Quando o peso no nascimento se situa entre 1500 e
2500g, com idade gestacional de 37 semanas ou mais, há um aumento de seis
vezes no índice de mortalidade; essa taxa é 20 vezes mais alta quando o
período de gestação é mais curto do que esse. Quando o peso ao nascimento
é inferior que 1500g, o índice de mortalidade é quase 100 vezes maior do que
o encontrado na população de referência madura, independentemente da
duração da gestação.
Essas correlações são expressas por um conjunto de termos
empregados nas tabelas de crescimento intrauterino e de risco de mortalidade
neonatal. As curvas dos percentis são elaboradas a partir da distribuição dos
pesos no nascimento em termos de determinadas idades gestacionais. O bebê
é classificado como adequado para a idade gestacional (AIG) quando o peso
ao nascimento se situa entre os percentis 10 e 90, grande para a idade
gestacional (GIG) quando fica acima do percentil 90 e pequeno para a idade
gestacional (PIG) quando se encontra abaixo do percentil 10. A mortalidade e a
morbidez dos recém-nascidos aumentam nos grupos PIG e GIG; o peso no
nascimento é extremamente importante: quanto menor o peso, maior o risco
(GESELL; AMATRUDA, 2002).
Segundo o informe do IBGE (2009) – Indicadores Sociodemográficos e
de Saúde no Brasil – em 2005, as regiões Sul e Sudeste alcançaram taxas de
9%. E, em 2007, o total de recém-nascidos de baixo peso no Brasil foi de 8,1%.
A publicação alerta para a necessidade de cautela na análise desses
resultados, indicando um possível aumento, tendo em vista a subnotificação da
ocorrência de BPN, especialmente nos casos de nascidos vivos que morrem
logo após o nascimento.
Através da análise das tendências atuais de nascimentos pré-termos,
9
das informações provenientes do Sistema de Informações sobre Nascidos
Vivos (SINASC) devido à baixa confiabilidade dos dados referentes à idade
gestacional. Sendo assim, recomendam a análise de estudos populacionais
para avaliar a sua prevalência e evolução ao longo do tempo. Os autores
destacam o crescimento da prematuridade nos Estados Unidos e Europa com
taxas de 13 e 9%, respectivamente. No Brasil, em regiões Sul e Sudeste
alcançam taxas de até 15%.
Silveira et al. (2008), em revisão de estudos de base populacional no
Brasil, avaliaram o aumento de nascimento pré-termo por meio de pesquisa na
base de dados Medline e Lilacs, desde 1950. Dos 71 estudos publicados em
periódicos, dissertações e teses foram analisados 12 trabalhos, por atenderem
integralmente os critérios de inclusão. Os pesquisadores encontraram taxas
que variam entre 3,4 a 15% nas regiões Sul e Sudeste, e 3,8 a 10,2% no Norte
e Nordeste, com tendências de aumento.
Silva et al. (2010) identificaram o paradoxo epidemiológico do BPN no
Brasil. Através de dados estimados do Sistema de Informações de Nascidos
Vivos e dados censitários, os pesquisadores encontraram taxas mais altas de
BPN e taxas mais baixas de mortalidade infantil nas regiões mais
desenvolvidas do que nas menos desenvolvidas; quanto mais alta as taxas de
baixa escolaridade materna, menor foi a taxa de BPN; Quanto maior o número
de leitos de terapia intensiva neonatal, mais elevada a taxa de BPN. A
contradição do BPN foi detectada no Brasil conjuntamente com o aumento da
prematuridade em algumas regiões brasileiras. Finalizam sugerindo que as
diferenças regionais na taxa de BPN parecem estar mais associadas à
disponibilidade de assistência perinatal do que às condições sociais.
Relatório divulgado pela Organização Mundial de Saúde – WHO –
(2012) analisa o panorama da prematuridade no mundo e revela que, a cada
ano, cerca de 15 milhões de bebês nascem prematuros no mundo; desses 1,1
milhão morrem a cada ano. Nascimentos prematuros representam quase
metade das mortes neonatais no mundo e a segunda causa principal de todas
as mortes de crianças menores de 5 anos. Mostra que o Brasil aparece na 10a
posição no ranking mundial em números absolutos, com 279,3 mil partos
prematuros por ano. Ou seja, para cada 100 nascimentos, o país tem 9,2% de
10
Ainda de acordo com o relatório da OMS, o crescimento no número de
nascimentos prematuros, em países mais desenvolvidos, está ligado ao
número de gestantes mais velhas que possivelmente se beneficiam das
técnicas de reprodução assistida e com o aumento no uso de medicamentos
para fertilidade, que consequentemente pode resultar em gravidezes múltiplas.
No revés deste cenário, em muitos países de baixa renda, as principais causas
de nascimentos prematuros incluem infecções, malária, HIV, e altas taxas de
adolescentes grávidas. Em adição a discussão das causas da prematuridade
no mundo, inclui também as induções médicas desnecessárias de cesarianas
antes do tempo, que têm contribuído para o aumento de nascimentos
pré-termo.
A etiologia do parto prematuro não é bem conhecida, mas de acordo
com Bettiol et al. (2010), os fatores de risco clássicos para prematuridade e
baixo peso ao nascer, incluem: baixo peso materno pré-gestacional; extremos
de idade materna; história prévia de natimorto e nascimento pré-termo;
tabagismo na gravidez e uso de drogas ilícitas; ganho de peso materno
insuficiente; cinco ou menos consultas no pré-natal; hipertensão arterial;
sangramento vaginal; infecção no tato genitourinário; baixa escolaridade;
trabalho extenuante; partos múltiplos; reprodução assistida; colo uterino curto;
intervalo interpartal curto; baixa qualidade da assistência pré-natal, falhando no
controle de infecções que levam a ruptura prematura das membranas. Esses
fatores, de acordo com o estudo, têm sido responsabilizados por apenas um
terço dos partos prematuros. Em contrapartida, dentre os fatores que atuam
sinergicamente na complexa teia de causas da prematuridade, existe, ainda, a
“epidemia” de cesarianas no Brasil que concorre sobremaneira para o aumento
de nascimentos pré-termo, alguns ocorrendo sem indicação médica aparente,
seja por agravo materno e/ou fetal. Os pesquisadores alertam para uma
parcela desconhecida de partos prematuros iatrogênicos, que ocorrem sem a
indicação médica correta.
Outro fator bem discutido pelos autores, ancorado pela escassez de
estudos no Brasil, é o estresse materno pré-natal e a violência doméstica que,
nas últimas décadas, têm surgido como potente fator de risco para desfechos
adversos do nascimento. A associação entre fatores sociais, psicológicos e
11
nascimento. Condições emocionais desfavoráveis fazem com que o sistema
nervoso autônomo libere certas substâncias químicas que podem favorecer o
parto pré-termo, na medida em que essas substâncias atravessam a barreira
placentária modificando a bioquímica do ambiente intrauterino.
Com efeito, Bettiol et al. (2010), na observância das tendências atuais
sobre a etiologia da prematuridade, finalizam a problematização citando, em
acréscimo, outro fator adverso: a precária rede de apoio social à mulher
grávida na contemporaneidade predispondo-a a emergência de transtornos
afetivos e ansiosos. Portanto, a ausência de uma rede de suporte social
dificulta ou até mesmo impossibilita a ativação de mecanismos de resiliência ao
estresse, com impacto significativo na gestação e intercorrências perinatais
diversas, dentre elas, bebês com BPN .
Em estudo de revisão sistemática da literatura, Araújo et al. (2010)
buscaram associação entre depressão materna no período gestacional e
ocorrência de BPN. A busca de artigos abrangeu o período de 1996 a 2007,
nas bases de dados PubMed, SciELO e ISIWEB. A busca bibliográfica resultou,
segundo as estratégias estabelecidas, na análise final de 10 artigos com
desenhos quantitativos do tipo coorte, caso-controle e transversal. Os autores
discutem sobre os fatores que afetam o binômio materno-fetal a partir do
período pré-concepcional e, em adição, advertem que a depressão pré-natal
pode estar sendo negligenciada. Dessa forma, a depressão durante a gravidez
pode ser considerada questão importante para o campo da saúde pública
devido aos sérios agravos que este transtorno pode acarretar, tais como: baixo
peso ao nascer; prematuridade, além de afetar o desenvolvimento infantil.
1.1.2 Os reveses entre o biológico, a cultura alimentar e o ambiente
socioafetivo.
Alguns estudos vêm alertando para o fato da especificidade da
programação metabólica de crianças nascidas com baixo peso, decorrentes da
prematuridade ou RCIU e da associação entre eles. Esse fato predispõe ao
maior risco, de desenvolver doenças crônicas ao longo do ciclo de vida, em
12
(SILVEIRA; HORTA, 2008; SANTOS; OLIVEIRA, 2011). Em adição, estudos
epidemiológicos têm demonstrado uma relação direta entre o baixo peso ao
nascer e o índice de massa corpórea (IMC) alcançado na vida adulta (SARNI et
al., 2005; LIMA et al., 2011). Segundo evidências publicadas, a “programação”
ou imprinting nas principais vias metabólicas do organismo, decorre da
exposição do feto ao ambiente uterino adverso, ou seja, fatores ambientais que
atuam precocemente na vida embrionária ou fetal, ou até mesmo na infância
precoce, podem ter profundas influências na saúde durante toda a vida. O
metabolismo fetal passaria por mudanças a fim de se adaptar ao contexto
diferenciado. Esses processos de adaptação fetal, que podem ser benéficos
para o concepto, podem converter-se em alterações permanentes do
metabolismo e gerar doenças metabólicas no adulto (SANTOS; OLIVEIRA,
2011).
De acordo com Cerviño (2005), no período fetal, o eixo
hipotálamo-hipofisário-adrenal e a atividade da suprarrenal são mais susceptíveis a
mudanças bioquímicas, e a exposição a situações de desnutrição pode afetar a
sua regulação. Em Recém-nascidos que são pequenos para a idade
gestacional e em bebês prematuros são encontrados altos níveis de cortisol
plasmático, como efeito da má nutrição fetal. O “stress metabólico”, resultante
de circunstâncias que prejudicaram o fluxo de nutrientes para o feto, aumenta o
cortisol e produz o catabolismo proteico. Ou seja, o organismo para se proteger
do evento adverso, que é a queima de massa muscular como fonte de energia,
diminui a secreção insulínica, tornando-se um organismo poupador.
Nesse ínterim, a privação nutricional, no início da gestação, pode afetar
a diferenciação dos centros hipotalâmicos que controlam a ingesta alimentar e
o crescimento. Por conseguinte, a disponibilidade posterior de alimentos, no
período pós-natal, pode produzir um acúmulo maior de gordura como reserva
energética, sendo este um mecanismo compensatório à nutrição inadequada.
Esses achados sugerem que a ativação precoce intrauterina do eixo endócrino
que comanda a secreção do cortisol, conhecido como o “hormônio do
estresse”, é um fato que se relaciona com o baixo peso ao nascer e com o
risco aumentado para o desenvolvimento de doenças crônicas no adulto
13
Em complemento, Salgado et al. (2009) descrevem os mecanismos da
hipótese da programação fetal para a fundamentação teórica dos estudos
empíricos com crianças e adolescentes que nasceram com baixo peso e
apresentaram médias mais altas de pressão arterial e maior perda de albumina
na urina. Os pesquisadores asseveram que quando há uma baixa oferta de
nutrientes ao feto durante a gestação, seu organismo se adapta a esse
ambiente “pobre”, com a baixa da atividade metabólica para a preservação de
energia. Em contrapartida, quando o padrão nutricional melhora muito no
pós-parto, a criança pode, ao longo da vida, desenvolver problemas como
obesidade, dislipidemia, resistência à insulina, diabetes tipo II, doenças
cardiovasculares, ou até mesmo, a associação dessas morbidades na forma da
síndrome plurimetabólica.
Destarte, com a especificidade própria de seu funcionamento
metabólico, bebês prematuros de baixo peso não se beneficiam da
superalimentação. Essas características, conjugadas ao ambiente de oferta
constante de alimentos, podem configurar-se num descompasso entre as reais
necessidades calóricas e nutricionais do bebê em risco nutricional e a
percepção materna do estado nutricional da criança.
Estudos qualitativos com mães com filhos internados em Unidade de
Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) mostram a vulnerabilidade emocional da
maternidade prematura. Os sentimentos de insegurança, medo, culpa e
apreensão pelo prognóstico nem sempre estável tornam-se presentes e mais
frequentes na medida em que a internação se prolonga (PADOVANI, 2005; Sá
et al., 2012). Não obstante, essa condição se mantém após a alta hospitalar do
bebê, requerendo a continuidade dos cuidados da equipe de saúde, assim
como uma rede de apoio socioafetivo no compartilhamento do assistir a mãe e
o bebê (ANJOS et al., 2012). O ambiente da UTIN, conspícuo pela notoriedade
tecnológica, acentua a ruptura simbólica entre o bebê idealizado e o real. A
realidade desafiadora com o recém-nascido pré-termo pode ensejar para a
mãe condições de saúde mental adversa. Ou seja, vários estudos no campo da
Psicopatologia indicam a emergência de quadros psiquiátricos, potencializados
após o nascimento, que podem prejudicar o estabelecimento das bases
seguras do vínculo mãe-bebê e, consequentemente, a própria condição de
14
generalizada, com a presença de quadros fóbicos e de pânico, e os transtornos
afetivos são os mais prevalentes entre mães nas condições de nascimento
pré-termo (MORSCH;BRAGA, 2007).
Dentro desse contexto, a especificidade entre as necessidades
nutricionais do prematuro e a demanda excessiva de alimentos poderão gerar
quadros de obesidade infantil e morbidades associadas.
Estudos de coorte no Brasil vêm alertando para essa realidade. Crianças
prematuras tem o risco aumentado em 3,5 vezes de desenvolver excesso de
peso. Essa população específica encontra-se mais vulnerável às doenças de
base metabólica ao considerarmos a relação híbrida - natureza e práticas
alimentares na infância - que, inevitavelmente, é atravessada pela cultura
alimentar contemporânea e pelo estilo de vida sedentário (FARROW; BLISETT,
2005; BETTIOL et al., 2007; SILVEIRA et al., 2008;).
1.2 Alimentação contemporânea e o desenvolvimento do comportamento
alimentar infantil
Em nossa sociedade “obesogênica”, um conflito simbólico na ordem
estético-social é instituído e condicionado na medida em que as pressões entre
manter um corpo magro como ícone de modelo ideal de beleza e saúde, com
ampla aceitação social, concorrem com a superabundância de alimentos
altamente calóricos, processados industrialmente e com porções cada vez
maiores a menores custos. Em adição a esse fato, a condição de vida concreta
anuncia na mesma ordem, sobretudo no plano clínico metabólico que esse
descompasso é incompatível com a gestão da saúde, adoecendo,
incapacitando, aumentando o risco de morte e elevando os custos em saúde
com a superlotação em serviços para o tratamento às morbidades associadas
ao excesso de peso e a má alimentação.
Esses desdobramentos no contemporâneo, ainda não estão
completamente elucidados, segundo Gottlieb et al. (2008). Os estudiosos
referenciam como exemplo a gênese da síndrome metabólica que, entre as
muitas hipóteses e teorias sendo postuladas, é que desde o Período Paleolítico
a humanidade continua basicamente com o mesmo genoma. Afirmam que o
15
Revolução Industrial alavancado pelas profundas mudanças socioeconômicas
envolvidas no processo de Globalização. O avanço tecnológico das últimas
cinco décadas possibilitou o crescimento da indústria alimentícia, como uma
importante dimensão do crescimento técnoindustrial mundial.
O homem pré-histórico, do Período Paleolítico, era essencialmente
coletor e nômade. Ou seja, coletava frutos e raízes para complementar a sua
dieta; andava longas distâncias a procura de alimentos. Alimentavam-se da
carne da caça que abatiam. A dieta rica em proteínas, aliada a um intenso
gasto energético, conferia resistência a doenças e intempéries. Contudo,
apesar da baixa expectativa de vida do homem pré-histórico, eles estavam
evolutivamente adaptados àquelas condições de sobrevivência (baixa ingestão
calórica e alto gasto energético).
Popkin, (2009) assevera que com essa alimentação variada – muito
mais diversificada que a atual – os seres humanos do Paleolítico eram mais
altos com ossos e musculatura mais robustos. A alimentação dos habitantes
das regiões costeiras baseava-se mais na pesca, enquanto a dos habitantes do
interior era na caça, que, com o tempo, progrediu dos animais de pequeno
porte para os animais de grande porte.
A dieta básica – que variava de acordo com a estação do ano – era composta de sementes, nozes, raízes e tubérculos, peixes e mamíferos aquáticos. As pessoas que viveram nessa época não consumiam grãos nem outros laticínios além do leite materno. Bebiam água. A carne dos animais terrestres tinham baixo conteúdo de gordura e uma proporção ainda menor de gordura saturada, além de cinco vezes a proporção de gordura poli-insaturada contida na carne dos animais domésticos que consumimos atualmente. A ingestão de fibras era altíssima –
parte composta de fibras insolúveis. Entre aqueles que
sobreviviam às doenças infecciosas e viviam até um pouco mais de idade, doenças crônicas como diabetes, obesidade, doença cardíaca, câncer, cáries e problemas ósseos como
osteoporose eram desconhecidas (POPKIN, 2009. p. 17).
De acordo com Gottlieb et al. (2008), em discussão que se perfila a de
Popkin (2009), o Período Neolítico aconteceram grandes transformações, como
o desenvolvimento da agricultura e da criação de animais, como bovinos,
16
Metais, a ação do homem sobre a natureza tornou-se mais intensa, e colheitas
mais abundantes propiciaram o aumento da população. A Revolução agrícola
incrementou a dieta humana com a entrada de uma enorme variedade de
alimentos, principalmente dos cereais (arroz, cevada e trigo). A introdução de
cereais no “cardápio” da humanidade, cujo consumo de alimentos de origem
vegetal correspondia em até 90% da dieta humana, subsidiou alterações na
forma como eles eram tratados. Esses alimentos precisaram ser processados e
cozidos antes de ingeridos, o que passou a alterar a sua estrutura química.
Com isso, através dos achados arqueológicos, passou a se evidenciar as
possíveis causas, em termos genético-evolutivos, do desencadeamento de
mecanismos fisiopatológicos, já que os nossos genes estão adaptados a outro
modelo de dieta e de gasto energético.
(...) alguns autores estimaram alta ingestão de proteínas, cálcio, potássio e ácido ascórbico, e baixa ingestão de sódio na dieta no período final do Paleolítico. Atualmente, o que se percebe é justamente o contrário: alta ingestão de gorduras saturadas, gorduras trans, gorduras ômega 6 e cereais; e baixa ingestão de gorduras ômega 3, carboidratos complexos, fibras, frutas, verduras, proteínas, antioxidantes e cálcio; além de baixa
atividade física (GOTTLIEB et al., 2008. p. 34).
A partir desse contexto, a “história moldou nossa vida nutricional por
meio do crescimento da agricultura”, adverte Popkin (2009, p. 29). No
transcorrer, o número de pessoas envolvidas em atividades agrícolas foi sendo
reduzido, à medida que aumentava a especialização nos trabalhos em metal,
madeira e outros ofícios dos povos primitivos. No momento da entrada na era
moderna, que decorre dos últimos 400 anos, a fome começou a declinar no
mundo com o comércio afluente de açúcar e especiarias proporcionada às
nações europeias. Somente nos últimos 200 anos, os bens manufaturados,
como produtos têxteis, ferramentas e alimentos processados, passaram a fazer
parte do comércio global. Entretanto, especificamente ao comércio de
alimentos, é, em grande parte, um fenômeno posterior à Segunda Guerra
Mundial, já que, somente na Idade Moderna (séculos XV ao XVIII), a agricultura
passa a ter fins comerciais, e antes desse período era marcadamente de
17
A Revolução Industrial difundiu-se pelo mundo, e o trabalho manual
realizado pelos trabalhadores passa a ser suplantado pelo contexto fabril.
Imerso a esse processo, com repercussões progressivamente mundiais, a
mudança no perfil produtivo da sociedade trouxe um impacto extensivo e
importante não somente na organização econômica e social, mas sobretudo na
saúde das pessoas. A “cultura de massa”1, alicerçada pelas novas relações do
trabalho e o capital entre as nações, vem transformando o estilo de vida das
pessoas. Anteriormente, o homem tinha contato com a fabricação própria de
seu alimento, e com o advento da industrialização esse afastamento foi se
tornando imperativo, movido pelas forças socioeconômicas hegemônicas que
impulsionam a produção em alta escala com maior lucratividade.
Incontestável foi o salto que a Humanidade obteve ao ultrapassar o
paradigma da cosmologia metafísica, quando o conhecimento era especulativo
e passava, particularmente, pelas essências do divino, para a física galileiana,
momento que se instaura a revelação da realidade pela relação entre os
objetos e não mais pelo objeto puro. Nesse cenário, demarca-se a entrada na
Modernidade, ancorada por uma concepção de homem e de mundo, que irá
atravessar a constituição de todos os ramos do conhecimento, formatando a
ótica de apreensão da natureza pelo rigor metodológico. O método científico e
todo o conceito de ciência, a partir daí, trarão positividade e legitimidade na
produção do conhecimento e estarão presentes no disciplinamento da ciência.
Segundo Guiddens (2007), o projeto da Modernidade, ancorado por este
paradigma - que também personifica os seus limites - alcançou uma velocidade
vertiginosa, adoecendo o meio ambiente e a humanidade por não conseguir
acompanhar o seu ritmo intenso e avassalador.
De acordo com Nascimento (2007), o contemporâneo ou
pós-modernidade tem seu marco inicial a partir da década de 50 e alcança o topo
nos anos 90 com o acelerado processo de modernização da vida ocidental,
resultante das transformações científicas, tecnológicas e socioeconômicas que
promovem uma ruptura de tendências e estilos que, simultaneamente, na
1
18
mesma ordem de ascendência, revelam os inúmeros impasses das sociedades
industrializadas.
Em continuidade, a travessia pela segunda década do século XXI, em
pleno início do terceiro milênio nos situa na onda da Terceira Revolução
Industrial - época de grandes e profundas transições - estruturalmente
vinculada à Globalização e que impulsiona os países emergentes, como o
Brasil, a aderir às regras ditadas pela comunidade internacional, garantindo sua
sobrevivência numa economia “globalizada”, na qual as regras do mercado são
estabelecidas pelos grandes conglomerados financeiros. Com efeito, a
Globalização não deve ser vista simplesmente como um fenômeno restrito ao
plano econômico, envolve as esferas políticas e culturais, que diluem as
fronteiras e enfraquecem o Estado Nacional. Assim sendo, é um fenômeno que
se manifesta no microcosmo social; abrange não somente espaços locais, mas
afeta até as intimidades da existência pessoal, já que atua de modo a
transformar as condições concretas da vida cotidiana (GUIDDENS, 2007).
Transladando essa discussão no plano macroestrutural para o padrão
alimentar das populações, verificam-se os efeitos deletérios dos hábitos
alimentares inadequados, fortemente influenciados por dispositivos
imagético-midiáticos que massificam a cultura dos fast-foods e de um estilo de vida
sedentário que, de forma paradoxal, revelando a crise axiológica inerente a
esse processo, elegem a magreza como um ideal de beleza e saúde. Como
exemplo dessa assertiva, contata-se a incidência elevada de transtornos
alimentares e quadros de compulsão alimentar representando a contestação
dos padrões alimentares em benefício da estética e em detrimento à saúde
(ANDRADE; BOSI, 2004).
Nesse contexto sobre a antinomia de nossa sociedade em relação à
alimentação, os alertas sobre o excesso de carboidratos, gorduras saturadas e
açucares tem sido frequentes na mídia, resultando no termo “gastroanomia”,
que caracteriza a avalanche de informações contraditórias acerca da
alimentação, exigindo renúncias, gerando conflitos e disseminando
insegurança.
Em acréscimo, a popularização dos alimentos transgênicos desde o final
do século passado, que contém produtos e subprodutos de organismos
19
sanitário, ecológico e econômico e que reforça um padrão alimentar
heteronômico. Com isso, Nascimento (2007, p. 163), que reflete sobre a
complexidade e efemeridade das informações na contemporaneidade, disserta
sobre a instalação de um “mal-estar da alimentação” com profundos reflexos
nos modos de produção da saúde e da doença na população. Nascimento
alerta que
(...) a industrialização produziu um resultado ambíguo: ampliou as capacidades de produção e tornou global o intercâmbio de produtos, mas retirou a autonomia que as sociedades agrárias tinham para produzir e identificar o alimento na sua gênese, no seu sentido. E como se não bastasse, a comida industrializada é responsável por distúrbios vários (...). A vida sedentária típica das grandes metrópoles é apontada como uma das maiores causas de problemas circulatórios e cardiovasculares. A condenação de alimentos engordativos caminha lado a lado com o incentivo à vida saudável e à estetização do corpo (NASCIMENTO, 2007, p. 163).
Ao longo das principais transformações do perfil alimentar das
populações, contata-se que uma boa parte de nossas preferências alimentares
foi moldada pela história da evolução, e que nos últimos 50 anos, a velocidade
dessas mudanças, acirrada pela revolução tecnológica e a mundialização dos
alimentos, caracteriza o fenômeno denominado de Transição Nutricional.
A desnutrição energético-proteica como base das doenças carenciais,
como as morbidades infectocontagiosas, ainda subsiste no mundo e no Brasil,
caracterizando um dos paradoxos epidemiológicos do país. Victora et al. (2011)
demonstra que na Região Nordeste as hospitalizações por diarreia
correspondiam a 57% do total das internações entre menores de um ano, em
1980. Esse percentual diminuiu para 30% em 1990 e para 6% em 2009.
No mesmo plano de análise, mas, como o a face oposta desse
fenômeno, tem-se o risco nutricional por excesso de ingestão calórica com
menor dispêndio de energia. O sobrepeso e a obesidade e todo o arsenal de
morbidades associadas compõem o cenário que nos alerta para mudanças
profundas na epidemiologia em saúde da criança e para a necessidade de
implementação de novas respostas sociais e sanitárias aos novos desafios
impostos pelo novo padrão de morbimortalidade infantil, que vem alcançando
20
(SILVA, 2010). Complementa Gomes (2010, p. 329) na mesma discussão
temática, “Padrões alimentares, instalados desde os primeiros meses de vida,
e o estilo de vida predominante nos ambientes urbanos contribuem para a
identificação do sobrepeso em populações cada vez mais jovens”.
De acordo com Moreira; Goldani (2010), o estado nutricional materno,
assim como o ganho de peso gestacional, vêm sendo foco de vários estudos
devido ao papel determinante sobre os desfechos gestacionais. As coortes de
nascimentos, realizados em Pelotas, Ribeirão Preto e São Luís, têm
demonstrado que muitas doenças e agravos não transmissíveis do adulto têm
origem na vida fetal ou na infância. Assim, o bebê com BPN deve ser
considerado como criança de risco nutricional, por apresentar crescimento
pós-natal compensatório, podendo chegar ao peso normal para a idade ainda
durante o primeiro ano de vida, o que caracteriza o catch-up growth e, por
conseguinte, crianças que nascem nessas condições estão mais expostas ao
risco de desenvolvimento da obesidade. Com efeito, esses estudos
contemporâneos desenvolvidos no Brasil (BARROS et al., 2008) ao serem
perfilados aos estudos internacionais desenvolvidos por Barker et al. (2003) e
Lobstein et al. (2004), demonstram o impacto da RCIU e do BPN no
desenvolvimento da síndrome plurimetabólica do adulto (hipercolesterolemia,
diabetes, hipertensão e obesidade) e doenças cardiovasculares (DCV).
Há indícios que, para além do risco biológico envolvido na programação
fetal que expõe as crianças com BPN à obesidade e doenças crônicas, é o
modo como acontece esse crescimento acelerado e compensatório na infância
aliado às práticas alimentares maternas. Assim, o que totaliza e consubstancia
o risco nutricional para o excesso de peso na infância e no adulto nessa
população específica, é o risco biológico acrescido do socioambiental, este se
compreendido de forma sistêmica que conjuga as transformações advindas da
Transição Nutricional e Epidemiológica em nosso país.
A alimentação ocupa um lugar central no desenvolvimento infantil, já que
é em torno dela que se organizam, desde o nascimento, os primeiros contatos
entre a mãe e o bebê. Além do papel inicial estruturante da personalidade,
equivalendo a uma espécie de veículo simbólico em que as primeiras
experiências do neonato demarcam processos subjetivos na constituição da