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LILIANE PEREIRA BRAGA

De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”:

Xangô e o patrimônio civilizatório nagô na identidade de um rapper afrodescendente

Mestrado em Psicologia Social

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PUC-SP

LILIANE PEREIRA BRAGA

De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”:

Xangô e o patrimônio civilizatório nagô na identidade de um rapper afrodescendente

Mestrado em Psicologia Social

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social, sob a orientação do Prof. Doutor Antonio da Costa Ciampa.

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... A dona Jeraci. Mulher negra que criou seus filhos e filhas como catadora de papel – a exemplo de Carolina de Jesus – e que agora ajuda a criar os netos e as netas. Que a luta da avó pela sua emancipação inspire suas netas a buscarem suas próprias emancipações.

...Às crianças da Vila Primavera, periferia da zona leste paulistana – onde nasci e cresci e onde esta dissertação foi concebida, onde se estabeleceram meu avô mineiro e minha avó baiana, após algumas migrações. Onde meu pai e minha mãe constituíram família. O som da rua, das crianças brincando, alimentou esta pesquisa: crianças negras-brancas-pardas misturadas, crianças que moram em cortiços, em casas pequenas, médias e grandes, mas que têm a rua por quintal.

...Ao hip-hop, às hip-hoppers e aos hip-hoppers, ao candomblé e ao povo-de-santo, que me ajudaram a conhecer quem sou, de onde eu sou e o caminho que quero seguir.

... Ao “Neguinho” e ao “Baiano”, amigos da Escola Estadual Beatriz do Rosário. Onde quer que estejam, que tenham buscado suas emancipações

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À minha querida avó Tuta (Olídia), madrinha do primeiro batismo que recebi À minha família nuclear (Oswaldo e Maria Aparecida, Ligia e Luciana), pelo suporte material e emocional necessários à realização desta pesquisa

À minha família estendida tios-avôs, tias-avós, tios e tias, primos e primas, amigos e amigas cujos nomes não estão aqui

A Alexandre Linguanotes e Fernando Vieira (dizem que cunhado não é parente...rs)

A Alain Garcia Artola, pela troca

A Lina Gisela Artola Sola, Ramón García Repilado e a toda a família Artola Aos meninos do TNT, de Santiago de Cuba (Raulicer, Gerald, Hamlet) e ao coletivo “Zona Caliente”

A Julio Moracen Naranjo, irmão cubano

À minha amiga Cris Moscou, ao lado de quem tudo isto começou À Kátia Pavani Gomes, por todo o apoio

A Ingrid Veronesi, Valéria Gomes, Fernanda Castello Branco, Cris Batista, Elcimar Pereira, Viviane Ferreira, Patty Marinho, Maria Tereza, minhas amigas A Alessandro Campos, colega do núcleo de pesquisa, amigo em todo lugar À Margot Videcoq – os ventos que a trouxeram e a levaram são os mesmos que nos mantêm próximas

À Kátia Coelho que, a partir da PUC, tem me ajudado a continuar abrindo estradas

À Miriam Benedeti e à Lenita Zampieri

A Troy e à Sherie Brown, casal exemplar, irmãos na diáspora

Ao Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil e aos amigos que pude fazer lá Ao Professor Antonio da Costa Ciampa, pelo estímulo. Mas, principalmente, pelo conjunto de sua obra

Aos colegas do Núcleo de Pesquisa em Identidade José Roberto Malufe À secretária do programa, Marlene, pelo socorro dentro e fora de hora

À professora Josildeth Gomes Consorte e ao professor Juarez Xavier, por suas trajetórias. E por aceitarem compor a banca para avaliação desta pesquisa Ao Movimento Negro, pela formulação e aprovação da Lei 10.639. Que ela ajude a formar identidades com possibilidades emancipatórias em todo o território brasileiro

Ao YOWLI Brasil e às jovens mulheres negras que o compõem, pelo desafio À Cidinha da Silva, pelos muitos aprendizados e pelas portas para o caminho da cura

À Mãe Caçulinha (Olokum D´Oxum) e ao povo-de-santo da casa fundada por ela há cerca de 40 anos no bairro do Cangaíba (SP), o Abaçá Oxum Oxóssi. Ali fui acolhida em momentos de angústia, ali voltei para partilhar alegrias

A Ian Kamau, poesia diaspórica

À família de Ilícito, família nuclear e família estendida, de coração

Por último, e principalmente, ao Ilícito. Pela pessoa que é, pela sua obra e pela disposição – não sem contra-sensos – em participar desta pesquisa

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BRAGA, Liliane Pereira. De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”: Xangô e o patrimônio civilizatório nagô na identidade de um rapper afrodescendente. São Paulo, 213 p. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A presente pesquisa procura compreender como o patrimônio civilizatório dos iorubás - conhecidos como nagôs no Brasil - possibilita que identidades afrodescendentes se constituam com um sentido emancipatório ao respeitarem a liberdade das diferenças com a valorização da igualdade social.

O respeito à alteridade é valor fundamental entre os nagôs e o candomblé, um dos grandes depositários da sua tradição, dissemina esse valor principalmente por meio da mitologia iorubana. Retratada aqui como parte desse patrimônio civilizatório, tal mitologia traz na figura dos orixás a busca de uma sociedade em que haja espaço para a diversidade dos tipos humanos, de forma igualitária.

Para compreender como a herança originária de um pedaço de África possibilita que identidades afrodescendentes se constituam com um sentido emancipatório, foi realizado um estudo de caso envolvendo a história de vida de Ilícito - um rapper que, em suas músicas, demonstra compartilhar muitos dos aspectos presentes no legado africano em questão. Entre eles, está a identificação com as figuras dos orixás, especialmente com Xangô. O enredo em torno desse orixá permite-nos explorar um pouco mais a questão do respeito à alteridade presente entre os nagôs.

Como suporte teórico desta pesquisa, é utilizada a abordagem teórico-metodológica de Antonio da Costa Ciampa, para quem identidade é o processo de metamorfose em busca da emancipação humana.

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BRAGA, Liliane Pereira. From the Oyó-Ilé to the “Ilé-Yo": Xangô and the civilizatory nagô patrimony in the identity of an afrodescendent rapper. São Paulo, 213 p. (Master's degree thesis). Pontifícia Universidade Católica at São Paulo.

This research tried to understand how the civilizatory patrimony of the yorubas -known as "nagôs" in Brazil – make it possible to constitute the afrodescendent identities with an emancipatory sense as they respect the freedom of the differences with the valorization of the social equality.

The respect to diverseness is a fundamental value among the nagôs and the candomblé, one of the main receivers of its tradition, disseminates that value mainly through the yoruba mythology. This mythology is portrayed here as part of that civilizatory patrimony and encompasses, in persona of the orixás, the search for a society in which there is space for the diversity of human types, in an equalitarian way.

To understand how the original inheritance of a piece of Africa makes it possible to constitute the afrodescendent identities with a emancipatory sense, a case study was done which involves the life history of Ilícito - a rapper who demonstrates in his music to share many of the present aspects of the African legacy being studied. Among them, it is the identification with the persona of the orixás, especially with Xangô. The plot around that orixá allows us to explore a little more the subject of the respect to alteration among the nagôs.

We used the theoretical-methodological approach of Antonio da Costa Ciampa as the theoretical support for this research, in whose opinion identity is a metamorphosis process in search of human emancipation.

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1 Introdução: hip-hop, candomblé e a questão identitáriaErro! Indicador não definido.

2 Metodologia...Erro! Indicador não definido. 2.1 A pertença identitária no Rap e o uso de história de vida como técnica de

pesquisa...Erro! Indicador não definido.

2.2 Identidade como metamorfose...Erro! Indicador não definido.

2.3 A pesquisa qualitativa e a escolha pelo estudo de casoErro! Indicador não definido.

2.4 Do contato da pesquisadora com o tema...Erro! Indicador não definido.

3 Identidade...Erro! Indicador não definido. 3.1 Identidade-metamorfose...Erro! Indicador não definido.

3.2 Identidade afrodescendente...Erro! Indicador não definido.

4 Candomblé como herança dos patrimônios civilizatórios africanosErro! Indicador não definido.

4.1 Ilícito e o candomblé...Erro! Indicador não definido.

4.2 O império nagô e o candomblé...Erro! Indicador não definido.

4.2.1 A oralidade, o gestual e a roda sagrada: transmissores de axé fora da esfera do terreiro...Erro! Indicador não definido. 4.2.2 A importância dos mitos...Erro! Indicador não definido. 4.2.2.1 O mito do ori: os seres humanos como autores do seu destinoErro! Indicador não definido.

4.3 Alteridade como valor do legado “nagô”...Erro! Indicador não definido.

5 Análise da entrevista da perspectiva étnica...Erro! Indicador não definido.

5.1 Etnicidade...Erro! Indicador não definido.

5.2 O Brasil e a “cordialidade transracial”...Erro! Indicador não definido.

5.3 Mestiçagem e afrodescendência...Erro! Indicador não definido.

5.4 Pensando a questão da religiosidade...Erro! Indicador não definido.

5.5 Latinidade versus Negritude...Erro! Indicador não definido.

5.6 Índices e critérios de pertença étnica...Erro! Indicador não definido.

6 Análise da entrevista da perspectiva da pobreza...Erro! Indicador não definido.

6.1 Pobreza versus qualidade de vida...Erro! Indicador não definido.

6.2 Pobreza versus racismo...Erro! Indicador não definido.

7 Análise da entrevista da perspectiva da identidade..Erro! Indicador não definido.

7.1 Por uma espiritualidade de muitas verdades....Erro! Indicador não definido.

7.2 Hip-hop como mecanismo para conhecer as diferenças e chegar à

afrodescendência...Erro! Indicador não definido.

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7.5 Identidade como processo...Erro! Indicador não definido.

7.6 Do nome ao futebol, do futebol ao rap, do rap à pluralidade musicalErro! Indicador não definido.

7.7 A nordestinidade como mais um elemento de identidadeErro! Indicador não definido.

7.8 Hip-hop como uma das expressões da “roda sagrada”Erro! Indicador não

definido.

7.9 Ser ilícito em lugar de estar em um manicômioErro! Indicador não definido.

7.10 A questão do negro e do branco...Erro! Indicador não definido.

7.11 De como o candomblé apareceu nas entrevistasErro! Indicador não definido.

7.12 Xangô: de como a figura do orixá se “descola” do panteão para possibilitar afirmação de identidades...Erro! Indicador não definido.

7.13 Dos mitos iorubanos para o contexto histórico da escravidãoErro! Indicador não definido.

7.14 O extermínio do iorubá no Brasil: a repulsa de Ilícito pela imposição de um padrão particular como padrão universal...Erro! Indicador não definido.

7.15 Chuta que é macumba: a diferença entre o homem livre, o doente e o

inconsciente...Erro! Indicador não definido.

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- É pena você ser preta. (...) ... Um dia, um branco disse-me: - Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam protestar com razão. Mas, nem o branco nem o preto conhece a sua origem. O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguem. (Carolina de Jesus. Trecho do livro “O quarto de despejo”)

...Murallas de negras y blancas manos protegen mi identidad (...) Arde en mi pecho, vive en mi techo, El derecho de andar con esta fusion a cuestas Que al final es la verdadera fuerza de mi respuesta al futuro (....) En este ajiaco1, somos todos condimientos del mismo sabor En cuestiones de raíces, somos mas parientes de sangre que de sol... (TNT, grupo de Santiago de Cuba. Trechos do rap “Raíces”)

1 Molho que se usa em várias partes do continente americano e cujo principal ingrediente é a pimenta. Como produto de arte culinária, é universal: é o cozido da Espanha, o “pot pourri” francês, o

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1

Introdução:

hip-hop

, candomblé e a questão

identitária

No dia 22 de janeiro de 2007, estive em um debate do qual participaram as rappers do filme “Antônia” e a diretora Tata Amaral. Eu tinha uma pergunta a fazer, que saiu mais ou menos assim: “Na matéria publicada na revista Raça1 deste mês, consta que Tata Amaral buscou em uma deusa grega o arquétipo de mulher jovem para as quatro personagens femininas do filme. Além de guerreira, essa deusa se relacionava livremente com os homens. Na mitologia africana a correspondente dela é Iansã. No filme, Quelinah e Leilah Moreno cantam um rap que fala de orixás2 e que cita Iansã. Levando-se em

consideração que uma das facetas do racismo brasileiro é a desqualificação das culturas trazidas pelos africanos e a demonização do universo espiritual dos povos que vieram escravizados para o Brasil, eu queria saber de quem partiu a referência a orixás no filme”. Meu interesse era falar da herança positiva da valorização feminina presente no candomblé, uma vez que o filme encerra uma trilogia de Tata Amaral sobre a mulher. Mas fui cortada pelo moderador do debate e não pude fazer esta indagação.

Quando comecei a aprender a respeito dos orixás, em um curso de pós-graduação3, me causou enorme alívio saber que as divindades existentes na costa ocidental da África (e que possivelmente algum ancestral meu tenha cultuado) não eram aquilo que eu ouvia dizer, que a “religião” da qual essas divindades fazem parte não correspondia às reduções e aos xingamentos

1 Neusa Barbosa, Revista Raça, Ano 11, nº 106.

2 Divindades do panteão iorubá, grupo étnico que vive na costa ocidental da África, e de cujo império Oyó foi o maior e mais poderoso dos reinos. A cidade de Oyó, ou Oyó-Ilé, foi a maior cidade dessa parte do continente africano e seu apogeu foi no século XVIII (Cf. Adékóyà, 1999, p. 30).

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ofensivos que eu já havia ouvido tanto contra pessoas de minha família como de familiares meus (afrodescendentes4) contra outras pessoas. Mas, em contrapartida, também me trouxe um questionamento: entender de onde vinha tal distorção em relação às religiões (e também às culturas) de matriz africana.

Talvez Tata Amaral soubesse da existência de uma deusa africana análoga à deusa grega citada por ela na entrevista... Talvez sim, talvez não. Fiquei sem saber, porque ela não fez comentário algum a respeito. Um ou outro detalhe me levaram a pensar que a menção à Iansã no filme havia sido idéia da diretora (também autora do roteiro). Juntando a entrevista que li, o nome da personagem de Leilah (Bárbara, nome da santa do catolicismo relacionada com a orixá citada), a imagem de São Jorge-Ogum que aparece ao lado de um vaso com espadas-de-são-jorge, a pintura de uma mulher negra, aparentemente usando o adê (coroa) de Oxum – orixá do amor e da fecundidade –, na casa da personagem que engravida, pressupus que as referências ao universo afro-cultural-religioso no filme eram intencionais, no sentido de mostrar que o hip-hop valoriza essa herança, tanto por conviver com ela (mesmo que indiretamente, à medida em que os terreiros de candomblé estão espalhados pelas periferias das cidades do Brasil) como por combater o racismo em suas diferentes vertentes.

O filme também traz a presença das religiões protestantes na Brasilândia, bairro periférico da zona norte de São Paulo: assim como candomblé, umbanda, catolicismo, as religiões protestantes também estão lá. E é relativo a esse ponto que a pergunta que eu fiz no debate vem se relacionar com a minha dissertação de mestrado, como será explicitado a seguir.

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Três das quatro rappers quiseram fazer considerações a respeito de minha pergunta. Primeiro, Quelinah, a qual pontuou que a referência aos orixás vinha depois da referência a Deus, mas que era, sim, uma forma de falar da cultura afro-brasileira. Em seguida, Leilah, que fez menção à minha curiosidade-não-revelada, ao dizer que o nome de sua personagem foi escolhido por ela mesma, mas quando o fez não sabia da relação da santa com a orixá do candomblé. Uma das duas cantoras afirmou que mencionar orixás naquele rap havia sido idéia delas, que escreveram todos os raps cantados no filme sem interferência da diretora. Em terceiro, Cindy, cuja fala foi mais ou menos assim: “eu cresci na periferia, no meio de candomblé, umbanda, esses folclores todos. Mas eu sou evangélica. Queria pontuar isso porque eu também participei do filme, mas sou evangélica. E a música (que o grupo cantou no filme) falou de orixá, mas falou de Deus em primeiro lugar. Porque, quer vocês queiram, quer não, ele é o criador”.

Ferreira (2000) comenta que apresentar as culturas africanas como folclóricas, primitivas e inferiores - se comparadas às culturas branco-européias - integra o processo de construção e manutenção do racismo e que “o africano tem sido considerado até como construtor de cultura, mesmo vista como folclórica, porém dificilmente como construtor de civilização” (pp. 52-53). Por esse motivo, a maioria das pessoas deixaria de incluir, na construção de sua identidade, “matrizes culturais africanas que, historicamente, são referências participantes da cultura de todo brasileiro (Ibid., p. 73).

Cindy afirma pertencer a uma religião de matriz cristão-européia que há séculos se coloca como “superior” às demais religiões do planeta. E que, do

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século XVI aos dias atuais, inferioriza e demoniza as heranças culturais africanas, fazendo desse um pensamento presente na subjetividade de cidadãos praticantes e não-praticantes do protestantismo na Europa, na América e na própria África.

Na pesquisa que segue, esse universo simbólico de matriz africana presente no candomblé é olhado para além dos limites da religiosidade. Por essa razão, cabe a pergunta: por que um afrodescendente (ou alguém que queira valorizar a ascendência africana) se referencia em deuses gregos para pensar em “arquétipos5” relacionados a jovens negras brasileiras, se existem

os orixás, inquices6 e outras divindades africanas oriundas de elaborações culturais tão sofisticadas quanto as de gregos, nórdicos e romanos?

Cindy é negra de pele preta. Negra Li talvez seja um pouco mais clara. Quelinah e Leilah Moreno têm pele parda, como a autora desta pesquisa. Leilah usa cabelos tingidos de loiro. Por informações apresentadas no filme e na série homônima a ele exibida na TV, elas – assim como esta pesquisadora – se reconhecem como negras. E cantam rap - apesar de Leilah ter declarado que, antes do filme, não era familiarizada com o estilo, e sim com o “primo” dele, o R&B, cujo canto é melódico e não falado.

O movimento hip-hop, do qual o rap faz parte, nasceu nos guetos de Nova York, feito por jamaicanos, afro-norte-americanos e latinos, na década de 70. Música, dança e arte visual são suas expressões, surgidas das “block parties”, ou festas de quarteirão, em que diversão e protesto, reivindicações anti-racistas e pró-direitos-civis tinham lugar.

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Cerca de 30 anos depois, o rap que predomina nos Estados Unidos não é mais o rap de protesto e, sim, a música comercial que fala de e/ou feita por “mulheres-objeto” e nas quais impera a ostentação capitalista, temas sensuais, etc... O protesto, lá, ficou para alguns poucos resistentes7... No restante da

América Latina, ao contrário, o rap continua sendo a expressão dos que se sentem excluídos do processo político-econômico-social. E o rap vem sendo grande aliado das conquistas dos movimentos negros contemporâneos nessa região do planeta, por fortalecer a auto-estima de jovens afrodescendentes, ao falar de uma história que foi diminuída, ocultada e, quando dita, foi, propositadamente, distorcida.

De 1996 a 2004, foram realizadas no Brasil 49 pesquisas acadêmicas envolvendo hip-hop8. Dessas, cinco se relacionam com o tema “identidade” (uma delas, na Psicologia Social, fazendo “um estudo psicossocial a partir de depoimentos”, focalizando em uma rapper mulher). Das 49 pesquisas, há duas apenas que trazem como foco questões relacionadas à “cultura negra” e uma delas fala em “questões raciais” no título. No portal da Capes, não constam pesquisas que relacionem hip-hop (ou rap), identidade afrodescendente e o patrimônio nagô, temas relacionados na pesquisa que aqui é apresentada e na qual figura um estudo de caso a partir da história de vida de Ilícito – que não pertence a nenhuma “comunidade-terreiro”, mas freqüentou toques para orixás e já tiraram os búzios para ele.

6 Divindades do povo bantu, complexo étnico africano que será melhor referenciado mais adiante.

7 Como exemplos temos nomes como os rappers Mos Def e Talib Kweli e o grupo Dead Prez. 8 Levantamento realizado no portal da Capes - a fundação do Ministério da Educação que investe no desenvolvimento de pós-graduação no Brasil - com resumos de teses e dissertações defendidas de 1987 a 2004. De 1987 a 1995 não há registros de pesquisas sobre o tema em questão. Endereço:

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Ilícito não é preto e nem a pele parda tem. A mãe descende de italianos, cabelo loiro, olhos claros. O pai descende de índios e de negros e, possivelmente, de brancos também. Na cultura hip-hop, Ilícito tem o seu “ilé”9: faz versos, cria as bases musicais a partir da “batida universal do bumbo-e-caixa10”, sobre as quais faz caber as métricas de suas rimas. Empunha o microfone em shows - para fazer o seu “canto-falado” - e em palestras, oficinas, debates, para falar de negritude, anti-racismo e valorização das raízes negras, brancas e indígenas brasileiras ao lado de pretos, brancos, indígenas, japoneses, ciganos, árabes, judeus e de quem mais vier...

“Yo”, no hip-hop, é um “grito de guerra”. E de “Oyó-Ilé a ‘Ilé-Yo’” procura compreender um percurso cheio de embates, que possibilitou a um rapper reconhecer a afrodescendência na construção de sua identidade a partir de um conjunto de significados herdados do patrimônio civilizatório nagô11 na sociedade brasileira e em sua história de vida.

9 Do iorubá, “casa” (Nei LOPES, 2004, p. 337). 10 Usando as palavras de Ilícito.

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Metodologia

Sobre o uso do termo “metodologia”, cabe aqui uma explicação. Como nos diz Queiroz (1983), trata-se de um termo usado nas ciências sociais para designar a totalidade dos procedimentos de investigação e das técnicas utilizadas em uma pesquisa, assim como o conjunto de instrumentos empregados para se resolver um problema. Traz, também, como nos diz a autora, outra acepção, relacionada com a apreensão do sentido íntimo do que se pretende efetuar, assim como das operações a serem realizadas no decorrer do trabalho. Para essa finalidade, implica também a busca de um desvendamento do significado profundo existente nos objetivos da pesquisa e nos procedimentos dela, incluindo aí a própria linguagem utilizada. Seria, então, a reflexão sobre o(s) caminho(s) seguido(s) pelo cientista em seu trabalho orientado pela práxis (e não por normas ou valores ideais), pela ação do cientista sobre a realidade (Queiroz, 1983, pp. 11-12). Este capítulo apresenta a metodologia deste trabalho nas acepções do termo aqui mencionadas.

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2.1

A pertença identitária no

rap

e o uso de história de vida

como técnica de pesquisa

O rapper, enquanto representante da música rap (que integra o movimento hip-hop) que surgiu como movimento cultural de resistência e contestação social e que tem possibilitado a revitalização de reivindicações do movimento negro contemporâneo12, costuma falar de sua pertença identitária nas letras. A questão racial é uma constante nessa pertença, ao lado do lugar de origem – que pode ser expresso pelo nome do bairro, da cidade, do estado e/ou do país. No geral, as letras de rap revelam conflitos diários enfrentados pelas camadas menos privilegiadas da população: repressão policial, a realidade das favelas e subúrbios, precariedade e ineficiência dos meios de transporte coletivo, racismo, etc13. Por vezes, aparece também a questão da

opção religiosa. O Rap Gospel é um estilo de rap já consagrado. E, dos rappers que não são protestantes, há os que falam de Jesus, há os que falam dos orixás, há os que falam de ambos.

Um grupo de rap em especial chamou minha atenção, por causa das letras que procuram retratar uma parte da história que não costumava ser contada nas escolas brasileiras14 - falando da contribuição de negros e índios para a nossa sociedade - e por ter entre os seus interlocutores, ao lado de rappers pretos e pardos, um MC de pele branca que se vê como afrodescendente e se apresenta como um contumaz ativista anti-racismo e um crítico debatedor das questões referentes à miscigenação no País.

12 Micael HERSCHMANN, 2000, p. 192. 13Ibid., p. 188.

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O encontro com o rapper desta pesquisa possibilitou o trabalho com um estudo de caso. E o procedimento que se mostrou mais adequado para este trabalho foi a história de vida. Chamada de “técnica da liberdade” por Roger Bastide, essa técnica “revela muito mais a realidade, mesmo que sob a aparente desordem, do que entrevistas muito dirigidas ou questionários” (Bastide apud Queiroz, 1983, p. 148).

Ao ouvir a história de vida desse rapper, procuramos compreender as metamorfoses presentes na formação de sua identidade – metamorfose que, segundo a teoria aqui adotada, está presente em todos os seres humanos. “O singular materializa o universal”, a exemplo da pesquisa de Ciampa (1987-2004), autor da referida teoria, que será melhor explicada no próximo capítulo.

A partir da fala do rapper escolhido, são buscados os elementos que respondam à pergunta formulada nesta pesquisa. Pela opção da técnica de história de vida, o que se procura é dar importância tanto ao que o sujeito pesquisado relata quanto ao ritmo de seus pensamentos e de suas recordações. Nas palavras de Queiroz, esta é uma técnica apropriada para a coleta de narrativas longas, com encadeamento de ações, de acontecimentos, de circunstâncias, no tempo; em que também se pretende conhecer de maneira profunda o modo de pensar do informante e, por meio dele, sua visão de mundo (Queiroz, 1983, p. 48). Além disso, essa técnica assegura ao informante falar sua própria linguagem e abordar seus próprios problemas, em contraposição ao uso da técnica de questionário fechado (Ibid., p. 71).

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O método da abordagem da identidade como metamorfose é o materialismo histórico formulado por Karl Marx, na perspectiva do filósofo alemão Jürgen Habermas (Ciampa, 1987-2004, p. 149), cuja análise sobre a individuação advinda de sua Teoria da Sociedade, explicitada no próximo capítulo, distingue ação comunicativa (orientada para o entendimento) e ação estratégica (voltada para fins).

“Estar localizado em um determinado paradigma implica ver o mundo a partir de uma ótica específica”, como já disseram Burrel & Morgan (1979, p. 20). A ótica adotada nesta pesquisa, na divisão estabelecida pelos autores, é a do paradigma humanista radical, que se distingue por “sua preocupação em desenvolver uma sociologia da mudança radical a partir de uma perspectiva subjetivista” (Ibid., p. 25) e comprometida com uma visão de sociedade que enfatiza a necessidade de superar ou transcender as limitações impostas pelos arranjos sociais atuais. É uma teoria social desenvolvida para a crítica ao status quo15 e que se preocupa em articular formas que nos permitam transcender os “grilhões espirituais” que nos amarram à ordem social atual e, dessa forma, desenvolver o seu pleno potencial (Ibid., pp. 25-26).

É nesse contexto que se enquadra o conceito de identidade de Ciampa, definido no sintagma identidade-metamorfose-emancipação. A proposta desta pesquisa sobre como o patrimônio civilizatório nagô pode contribuir na construção de identidade positivamente afirmada para um afrodescendente é identificar fragmentos emancipatórios presentes na construção da identidade desse rapper que se relacionem com o seu contato com a cultura nagô e com o

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candomblé de matriz iorubá, aqui visto não apenas como religião, mas como “universo simbólico” – na expressão de Berger & Luckman (2005).

2.3

A pesquisa qualitativa e a escolha pelo estudo de caso

As identidades constituem a sociedade, ao mesmo tempo em que as identidades são, cada uma, constituídas por ela (Ciampa, 1987-2004, p. 127). Com esta observação, justificamos também a escolha pelo estudo de caso. Um único sujeito terá sua identidade analisada nesta pesquisa, levando-se em consideração que “cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida (...) Uma identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia” (Ibid.).

A proposta presente nesta pesquisa é dialogar com uma Psicologia Social que parta da materialidade histórica produzida por e produtora de homens. Nas palavras de Silvia Lane, “é dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que vamos encontrar os pressupostos epistemológicos para a reconstrução de um conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano de cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva na rede de relações sociais que define cada indivíduo - objeto da Psicologia Social” (2004, pp. 15-16).

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natureza histórico-social do indivíduo, pela qual não se concebe conhecer o ser humano isolando-o ou fragmentando-o, como se existisse de si e por si. A proposta da Psicologia Social que nos propomos a realizar nesta pesquisa é a de procurar conhecer o indivíduo no conjunto de suas relações sociais, tanto naquilo que lhe é específico como naquilo em que ele é manifestação grupal e social (Ibid., p. 19).

Trata-se, portanto, de um estudo qualitativo: não nos interessam os dados estatísticos. Interessa-nos analisar o processo de formação da identidade de um rapper. Esse processo nos permitirá um mergulho na forma de pensar de um ser humano que, nesse processo, singulariza o universal – como mencionado anteriormente.

2.4

Do contato da pesquisadora com o tema

Achamos relevante trazer algumas informações sobre a experiência desta pesquisadora referente ao tópico da presente pesquisa: o meu contato com o hip-hop começou nos bailes da adolescência, no bairro de periferia no qual nasci e cresci. Os “passinhos” dançados no baile eram chamados de hip-hop, a música “falada” (em inglês) era chamada de hip-hop. Diante dos meus olhos essa cultura foi crescendo, se “abrasileirando”... As pichações foram passando a elaborados grafites, as coreografias diversificavam-se... E o meu contato com o hip-hop se fez mais intenso a partir 2001, como espectadora de shows e eventos relacionados ao assunto e como co-proponente16 de um projeto para o Ministério da Cultura do Brasil com a finalidade de promover um

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intercâmbio entre hip-hop cubano17 e hip-hop brasileiro. Como jornalista, o contato com o tema havia se iniciado alguns anos antes, quando do meu trabalho na rádio paulista Musical FM (105,7) e, posteriormente, rádio on-line Musical MPB. O meu trabalho com jornalismo e hip-hop se estendeu a veículos impressos e a outros meios de comunicação eletrônicos18.

O sujeito escolhido para a presente pesquisa (de pseudônimo Ilícito) foi alguém com quem o primeiro contato se fez a partir de janeiro de 2004, por ocasião do início do projeto de intercâmbio mencionado anteriormente. De lá para cá, o contato foi preservado. Shows de rap e de estilos musicais variados e eventos como lançamentos de livros e debates foram espaços de encontros casuais que permitiram a esta pesquisadora acompanhar um pouco das andanças e das idéias de Ilícito, que poderão ser melhor conhecidas por meio das entrevistas realizadas e apresentadas na íntegra ao fim desta dissertação.

Entre os pontos que marcam a trajetória de Ilícito (presentes em suas letras e nas entrevistas), estão a questão étnica e a questão da pobreza no Brasil – considerando-se também que essas questões estão presentes entre a parcela da população da qual ele provém. Daí a existência de dois capítulos que analisam as entrevistas realizadas a partir de tais perspectivas.

17 O contato desta pesquisadora com o hip-hop cubano serviu de ponto de partida para a elaboração do problema desta pesquisa, pela constatação de que a presença da religiosidade afro-cubana em letras de

rap naquele país provinha da vivência dos jovens cubanos junto a esse universo. O meu questionamento sobre essa questão no Brasil acabou por me trazer ao tema presente.

(24)

3

Identidade

3.1 Identidade-metamorfose

Quando chegamos ao mundo, acontecem transformações por meio das quais deixamos de ser criança e nos tornamos adultos. Com a progressiva socialização e individuação, nos formamos enquanto seres humanos: nascemos humanizáveis e só mediante a interação com o outro nos tornamos humanos. Enquanto seres históricos e sociais, a metamorfose é um processo inescapável de constituição da identidade social da pessoa humana. Assim, a identidade pessoal não pode ser entendida como fenômeno meramente individual, mas, acima de tudo, relacional. Ela se constitui a partir de nossas relações sociais, definindo, conseqüentemente, nossa localização na sociedade. É o que nos diz a teoria de identidade de Ciampa (1987-2004).

Um rapper de pele branca que improvisava versos em um evento outro dia dizia “não é questão de cor, é questão de alma”. Ele se referia, possivelmente, a fazer rap sendo branco – rap, sendo “música de preto”, teoricamente, seria feito com mais “autenticidade” por pretos. Ele poderia estar querendo dizer algo como “pra fazer rap, não precisa ser preto” ou “se eu sinto ‘na alma’ o que o preto sente, eu posso fazer rap também”. Por que tirar a cor da questão? Pretos pensam em sua cor. Quando? Brancos pensam? Mestiços pensam?

(25)

vez que podemos entender “alma” como construída pela socialização e pela individuação.

Cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade

pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida. Uma

vida-que-nem-sempre-é-vivida, no emaranhado das relações sociais. Uma identidade concretiza uma política,

dá corpo a uma ideologia. No seu conjunto, as identidades constituem a sociedade, ao

mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. A questão da identidade,

assim, deve ser vista não como questão apenas científica, nem meramente

acadêmica: é sobretudo uma questão social, uma questão política.

(Ciampa, 1987-2004, p. 127)

No processo de compreensão da identidade de Ilícito, sua história de vida é analisada partindo do pressuposto de que “a identidade, individual ou coletiva, é sempre a história da metamorfose em busca de emancipação que nos humanize” e que a concretização desse processo emancipatório se dá como ação política - explícita ou não (Ciampa, 2003).

Essas idéias serão elucidadas para que seja possível prosseguir nesse intuito.

(26)

integração de todos os aspectos do desenvolvimento humano: a subjetividade do indivíduo é articulada com a objetividade da natureza, a normatividade da sociedade e a intersubjetividade da linguagem (Ciampa, 1987-2004).

No pesquisar sobre identidade, a questão é de compreensão, de entendimento. “Precisamos captar os significados implícitos, considerar o jogo das aparências. A preocupação é com o que se oculta, fundamentalmente com o desvelamento do que se mostra velado” (Ibid.,, p. 139).

Como expõe o autor,

Ao estudar a identidade de alguém, (...) estuda-se uma determinada formação

material, na sua atividade, com sua consciência, não como três coisas justapostas

[identidade, atividade e consciência], mas presença de todas em cada uma delas,

como uma unidade. Com isto, o que se está querendo afirmar é a materialidade da

identidade.

(Ibid., p.151)

Uma identidade-metamorfose, portanto, seria a unidade da atividade, da consciência e da identidade – as três categorias científicas eleitas por Ciampa, com especial atenção para esta última (Ibid., p. 146 e p.151).

(27)

Ser rapper e ter tom de pele, cabelo e olhos que denotam ascendência européia trazem para Ilícito implicações relativas à ambigüidade vivida por ele ao transitar entre esses “dois mundos”, como poderá ser verificado na fala do próprio em outros capítulos desta dissertação. É preciso, então, captar os sentidos da metamorfose para o sujeito em questão para compreender a formação de sua identidade social. Reproduzo, aqui, a formulação de Ciampa (2003): quando pensamos na identidade de afrodescendentes, “a abolição da escravidão foi um momento importante de emancipação para seus ancestrais. Se numa sociedade escravocrata aparecia como utopia a libertação dos escravos, qual a utopia hoje em nossas sociedades para esses descendentes que, em sua maioria, se tornaram ‘homens livres e pobres’?”. A questão que se faz presente é ouvir as respostas de Ilícito.

Outra questão é compreender como se dá a emancipação de um afrodescendente em contato com o patrimônio civilizatório nagô presente na cultura brasileira. A emancipação é o que dá sentido ético à metamorfose e pode ser impedida ou prejudicada pela violência, pela coerção, invertendo a metamorfose como desumanização (Ciampa, 2003). A possibilidade de desobstrução do caminho da emancipação é um dos aspectos que a história de vida de Ilícito nos ajuda a compreender, iluminada pela teoria de identidade de Ciampa – que dialoga estreitamente com o trabalho de dois outros autores: o alemão Jürgen Habermas (1929-) e o norte-americano George Herbert Mead (1864-1931).

(28)

entendimento “intra-subjetivo-histórico-vital” consigo mesmo (apud Habermas, 1990, p. 187).

En la conversación ocurren cambios definidos, de los que nadie tiene

conciencia. Es necesaria la investigación de los hombres de ciência, para descubrir

que tales procesos se han llevado a cabo. Esto rige también para otras fases de la

organización humana.”

(Mead, 1972, p.218)

O conceito meadiano de identidade delineada intersubjetivamente foi utilizado por Habermas para o desenvolvimento de sua Teoria da Ação Comunicativa, pela qual o autor apresenta as condições sociais que devem estar presentes na formação da identidade para que o indivíduo seja autônomo e emancipado.

Na leitura de Habermas sobre o processo de individuação social na visão dos indivíduos atingidos por ele, exige-se dele tanto a autonomia como uma conduta consciente de vida (grifos do autor). Paralelamente à diferenciação de identidades singulares, o crescimento da autonomia pessoal é o que torna possível medir o que ele chama de “uma individuação crescente”. (Habermas, 1990, p. 219).

(29)

Uma identidade é a articulação de várias personagens, articulação de igualdades e diferenças, constituindo e constituída por uma história pessoal. “Identidade é história (...). Não há personagens fora de uma história, assim como não há história (ao menos história humana) sem personagens” (Ibid., p. 157). Como nos explicita Ciampa,

... personagens são momentos da identidade, degraus que se sucedem,

círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e

de regressão. (...) O que determina o desenvolvimento da identidade de alguém são

as condições históricas, sociais, materiais dadas, incluídas as condições do próprio

indivíduo.

(Ibid., p. 198)

Na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, em que o agir está voltado para o entendimento (esfera que ele chama de “mundo da vida”), o falante pretende, enquanto ator, ser reconhecido simultaneamente como vontade autônoma e como ser individual. “No agir comunicativo, cada um reconhece a própria autonomia no outro” (Habermas, 1990, p. 224).

Na visão dos indivíduos socializados, a dissolução dos mundos vitais tradicionais (“mundo da vida”) que se reflete na decomposição das cosmovisões religiosas, das ordens estratificadas de dominação e das instituições aglutinadoras de funções que ainda cunham a sociedade em seu todo na sociedade individualizada19, seria um processo que caminha junto com

(30)

a perda de apoios convencionais e junto com a emancipação frente a dependências naturais (Ibid., pp. 227-228).

Encarar a des-tradicionalização do mundo da vida (uma das formas como é descrito o processo de modernização social pela sociologia) como “conseqüência do destino” impõe aos indivíduos uma diferenciação de situações de vida multiplicadas e expectativas de comportamento conflitantes, sobrecarregando-os com novas realizações de coordenação e de integração. O número crescente de decisões que o indivíduo precisa tomar o sobrecarrega: qual é a escola a ser freqüentada? A profissão escolhida? (Ibid., p. 229).

Na sociedade individualizada o indivíduo precisa aprender (...) a se

compreender a si mesmo como um centro de ação, como uma secretaria de

planejamento em relação ao seu currículo, suas capacidades, parcerias, etc. A

‘sociedade’ precisa ser manipulada individualmente como uma variável sob condições

de uma história de vida a ser construída.

(Beck20apud Habermas, 1990, pp. 229-230 )

Nas palavras de Habermas, “soltura social não é sinônimo de emancipação bem-sucedida”, mesmo que o indivíduo singular se torne cada vez mais uma “unidade de reprodução social”. A inclusão crescente num número cada vez maior de sistemas de funções não significa, para ele, um crescimento da autonomia – quando muito, significaria uma modificação no modo do controle social (Ibid., p. 230).

(31)

participantes criem suas formas de vida integradas socialmente reconhecendo-se reciprocamente como sujeitos capazes de agir autonomamente, como sujeitos que são responsáveis pela continuidade de sua vida, assumida de maneira responsável. A referida “produção de um novo tipo de ligação social”, posterior ao processo de individuação que ocorre intersubjetivamente (e, portanto, impossível sem o outro) é o que proporcionará a emancipação do indivíduo em relação ao controle social.

Esse novo tipo de ligação social teria que ser pensado como realização própria

dos indivíduos [grifos do autor]. Mead já mostrou, no entanto, que para isso não basta

uma formação convencional de identidade (...). Este indivíduo, ao mesmo tempo

liberado e só, não dispõe, para a elaboração racional de uma necessidade crescente

de decisão, de nenhum critério a não ser as preferências próprias, reguladas pelo

imperativo natural da auto-afirmação. Uma instância-eu destituída de todas as

dimensões normativas e reduzida a realizações de adaptação cognitiva forma, é

verdade, um complemento funcional aos subsistemas comandados por meios; não

pode, porém, substituir as realizações próprias da integração social, que um mundo da

vida racionalizado exige dos indivíduos. Somente uma identidade-eu

pós-convencional [grifo nosso] poderia satisfazer a essas exigências. E esta somente

pode formar-se no bojo de uma individuação progressiva.

(Habermas, 1990, pp. 231-232)

(32)

julga e age moralmente tem de poder esperar o assentimento de uma comunidade de comunicação ilimitada e quem se realiza numa história de vida assumida responsavelmente tem de poder esperar o reconhecimento dessa mesma comunidade”. Para o autor, “minha identidade própria, minha autocompreensão como um ser individuado que age autonomamente, só pode estabilizar-se se eu for reconhecido como pessoa e como esta pessoa”. Sob o agir estratégico (em que, para Habermas, a “ordem sistêmica” – e não o “mundo da vida” - determina a ação do indivíduo), o Selbst (si mesmo) da autodeterminação e da auto-realização cai fora das relações intersubjetivas. Quem age estrategicamente não se alimentaria mais, segundo ele, de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente; “como que fora do mundo, ele se vê perante o mundo objetivo e decide somente conforme preferências subjetivas”. Neste caso, o indivíduo não dependeria de um reconhecimento por parte de outros. A autonomia se transformaria em livre-arbítrio e a individuação do sujeito socializado no isolamento de um sujeito libertado, “que se possui a si mesmo”, como expõe Habermas (1990, pp. 226-227). Para o filósofo alemão, “os pressupostos pragmáticos gerais do agir comunicativo formam reservas semânticas das quais as sociedades históricas extraem, cada uma à sua maneira, idéias acerca do espírito, da alma, concepções de pessoa, conceitos de ação, consciência moral, etc., passando a articulá-las” (Ibid., p. 225).

(33)

auto-realização, pelas trocas que se dão no “mundo da vida”, que essa superação – e, conseqüentemente, a formação de uma identidade-eu-pós-convencional – se faz possível.

Neste trabalho, o sagrado é um importante aspecto entre os observados na história de vida de Ilícito. A sua identidade se constrói em constante diálogo com a visão de mundo do sagrado que carrega consigo.

Para o psicólogo Ricardo Franklin Ferreira,

(...) a experiência psicológica encerra um caráter de construção permanente,

em que as especificidades das experiências pessoais determinam a maneira como o

indivíduo constrói suas referências de mundo, incluindo aquelas através das quais ele

pode reconhecer-se como um determinado indivíduo – sua identidade.

(Ferreira, 2000, pp. 45-46)

Como nos ensina Ferreira, a identidade não se reduz a uma representação do indivíduo a distingui-lo de outros. Em relação à identidade do afrodescendente em uma sociedade hegemônica de valores “brancos”, é preciso pensar que a identidade é uma referência em torno da qual a pessoa se constitui (Ibid., p. 47).

(34)

dificuldades para o desenvolvimento da identidade dos brasileiros afrodescendentes (Ibid., p. 47).

3.2 Identidade

afrodescendente

A respeito de teorias psicológicas e da relação dialética entre identidade subjetiva e atribuições sociais de identidade, Berger & Luckman (2005) apontam para uma questão que convém mencionar. Para eles, as teorias psicológicas fornecem a ligação teórica entre a identidade e o mundo, elas servem para “legitimar os procedimentos de conservação da identidade e da reparação da identidade estabelecidos na sociedade”.

Assim, as teorias psicológicas poderiam ser adequadas ou inadequadas empiricamente, no que se refere ao seu valor como “esquemas interpretativos aplicáveis pelo perito ou pelo leigo a fenômenos empíricos da vida cotidiana”.

Os autores entendem que uma das maneiras de dizer que uma determinada teoria psicológica é adequada consiste em dizer que ela “reflete a realidade psicológica que pretende explicar”.

Na medida em que as teorias psicológicas são elementos da definição social

da realidade, sua capacidade de gerar a realidade é uma característica, de que

participam com outras teorias legitimadoras. Contudo, seu poder realizador é

particularmente grande, porque é atualizado por processos de formação de identidade

emocionalmente carregados. Se uma teoria se torna socialmente estabelecida (isto é,

torna-se geralmente reconhecida como uma interpretação adequada da realidade

(35)

(Berger & Luckman, 2005, p. 234)

Dessa perspectiva, o grau de identificação de um sujeito com uma determinada psicologia varia com as condições de interiorização dessa psicologia por parte do sujeito; dependendo, segundo Berger & Luckman, de essa interiorização ter ocorrido durante a socialização primária ou a socialização secundária21.

A questão da adequação das teorias psicológicas se faz presente nesta pesquisa para que seja levado em consideração que, ao falarmos de afrodescendência em países de colonização européia, falamos da necessidade de se pensar a negação da perspectiva negro-africana e da sua humanidade. A intenção deste subcapítulo é nos introduzir a essa perspectiva.

Nos diversos ambientes freqüentados pelo brasileiro para a construção da identidade (seja ele doméstico, escolar, de trabalho ou de lazer), o único modelo disponível é o racista e capitalista, fundado na dupla opressão classe/cor22.

Segundo Ribeiro,

Souza (1983)23 aponta para o fato de que a construção de identidades

individuais nas sociedades em que vencedor é sinônimo de branco, a primeira regra

para os afrodescendentes é a negação, o expurgo de qualquer manchanegra, a

eliminação dos sinais de negritude.

(SOUZA apud RIBEIRO, 2004, p. 155)

21 Socialização primária é definida pelos autores como a primeira socialização que o indivíduo

experimenta na infância, em virtude da qual se torna membro da sociedade. Socialização secundária seria qualquer processo subseqüente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade (Berger & Luckman, 2005, p. 175).

(36)

Esses “sinais” estão tanto nas características físicas (cabelo crespo, nariz largo, tom de pele preto ou pardo) quanto nas práticas culturais/religiosas das quais afrodescendentes procuram se afastar, distanciando-se da dor causada pelo preconceito herdado, de brinde, junto com a ascendência negra.

A identidade afrodescendente24 traduz a luta do negro e seus descendentes para serem reconhecidos como gente25. Dentro dessa luta, está

o reconhecimento de que o candomblé é parte significativa do legado cultural dos povos africanos que vieram escravizados para o Brasil e grande depositário do patrimônio civilizatório “importado” pelo nosso país com a vinda de milhões de pessoas escravizadas, que aqui chegaram durante cerca de 350 anos.

A escravidão no Brasil fez com que as religiões de diferentes povos africanos entrassem em contato. A estratégia do colonizador de separar pessoas do mesmo grupo étnico a fim de evitar ou dificultar que se rebelassem contra os escravizadores e o sistema escravista levou à troca entre elementos culturais de diferentes povos fosse inevitável. Dessa maneira, sobrepuseram-se e fundiram-sobrepuseram-se ritos de origem distinta num amálgama comum de que surgiram as religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras – que recebem 23 Neusa SOUZA. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

24 A opção, neste trabalho, pelo uso de “identidade afrodescendente” em lugar de “identidade negra” decorre do ponto de vista de que o termo afrodescendente “tem a dimensão política de um projeto de identidade para um ‘segmento excluído’ do bem-estar social e que reivindica o exercício da cidadania” (Xavier, 2000, p. 9) e também diz respeito ao reconhecimento de uma etnia de descendência africana (Cunha Jr. apud Xavier, 2000, p. 10), em detrimento do termo “negro” que “homogeneíza” uma

população de culturas diversas ao referir-se a ela pelo termo criado por europeus para referir-se à sua cor de pele.

(37)

nomes distintos em função do lugar e do modelo de suas práticas rituais. O candomblé prevalece na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. O seu panteão é constituído por orixás, inquices e voduns – divindades dos povos iorubá, banto e jeje, respectivamente26. Permanências e transformações se

deram e continuam a acontecer nas religiões que possuem matrizes africanas e nas religiões que se formaram de heranças africanas com outras matrizes, formando o conjunto das religiões afro-brasileiras.

Uma religião que foi discriminada, numa tentativa de impedi-la de ser professada, deve compartilhar da premissa da liberdade religiosa – até mesmo pelos fatores históricos que condicionaram a sua existência no contexto brasileiro.

A demonização das religiões em questão nega a liberdade religiosa. Como afirma Ciampa (2003), “um fundamentalista convicto [contrário, portanto, à liberdade religiosa] não deve concordar com a noção de metamorfose e emancipação; pelo menos para a sua identidade, que seria a encarnação da Verdade Absoluta, conseqüentemente eterna”. O pensamento de Ciampa se alinha ao de Habermas (1990), para quem uma identidade pós-convencional caminha no sentido oposto ao de aprisionamento a dogmas, uma vez que se caracteriza por uma autonomia crescente.

Como um afrodescendente que luta pelo seu reconhecimento pode integrar criticamente a tradição de seu povo, de maneira a distinguir autonomia de heteronomia? Nesse sentido, seria possível dizer que metamorfose e

“gentio” e também para dizer-se do nome que designa a nação à qual se pertence. Outros povos possuem como “gentílicos” palavras que significam “ser humano”, como apontado mais adiante.

(38)

emancipação fazem parte dos significados partilhados pelo legado nagô presente no candomblé?

Para responder a essas perguntas, a “tradição”, no que se refere aos afro-brasileiros, precisa ser olhada por autores que valorizam as raízes africanas da identidade afrodescendente na diáspora.

Para a filosofia bantu, o sentido de pertencimento (the sense of belonging)27 constitui a essência da identidade (Mukuna, 2006, p. 159).

Pertencer, assim, pode aqui ser entendido como fazer parte. “Bantu”, no uso de Mukuna, diz respeito ao “conjunto das tribos que ocupavam o vale do rio Congo e, particularmente, a área que definimos como ‘zona de interação cultural’, que se estende pelos dois lados da fronteira Congo-Angola” (Ibid., p. 23). No verbete relativo ao termo no “Novo Dicionário Banto do Brasil”, Nei Lopes (2004) define “banto” (com variação na grafia) como sendo “cada um dos membros da grande família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os escravos no Brasil chamados angolas, congos, cabindas, benguelas, moçambiques, etc”. E que, hoje, englobariam “inúmeros idiomas falados na África Central, Centro-Ocidental, Austral e parte da África Oriental”.

Os bantus e os sudaneses28 são os dois grandes grupos africanos que foram trazidos como escravos ao Brasil. E a distinção entre eles, para Mukuna, é uma distinção essencialmente lingüística, uma vez que estudos têm demonstrado o princípio da unidade cultural em termos de conceitos fundamentais da concepção de mundo pelos africanos. Dessa perspectiva, ser

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“bantu-descendente” ou “sudanês-descendente” implicaria visões de mundo muito próximas – com exceção de diferenças menores específicas dentro desses espaços29. Mukuna nos diz que, “para o africano, o ser é concebido como um elemento constitutivo do cosmo criado por sua comunidade, sua tribo, seu clã, sua família e pelo conjunto de normas e valores próprios dessas instituições” 30. Em outras palavras, o “eu” africano só existe quando está enquadrado por outros elementos (sociedade, mito, terra, etc.) que o completam. Da perspectiva harbemasiana, pode-se dizer que o “eu” se completa pela socialização e pela individuação, uma vez que, como aponta Mukuna, o conjunto de valores vitais da tradição do ser humano africano completa sua identidade31. Essa “visão de mundo” está presente na fala de Ilícito, sujeito desta pesquisa. E está presente no candomblé, que muitos brasileiros conhecem por “macumba” – denominação inicial da religiosidade afro-carioca que ganhou forte conotação pejorativa32.

No Brasil e na América em geral, foram divulgadas idéias sobre a prática religiosa africana (e afro-brasileira) a partir de fatos resultantes de um processo de anomia, como cita Mourão no prefácio do livro de Mukuna (2006, pp.17-18). Entre tais idéias, está “o conceito de ‘feiticeiro’, que não é mais do que o desenvolvimento de uma faceta do adivinho ou do curandeiro tradicional, cujas práticas são uma resposta à situação de desestruturação social, quer estruturalmente, quer psicologicamente”. Esta é parte da idéia que muitos brasileiros têm e que os distancia de sua ancestralidade africana. Mesmo entre 28 Designação dada aos povos africanos localizados a oeste, entre o Saara e Camarões (Nei LOPES, 2004, p. 634). Mais detalhes em nota constante do capítulo 4.

29 Kazadi wa MUKUNA, 2006, pp. 17-18. 30Ibid., p. 167

(40)

os que valorizam as características físicas negro-africanas, uma grande parte quer distanciar-se de uma herança cultural tida como inferior e ligada a práticas “demoníacas”. Mourão alerta para a construção européia que também atuou na distorção em relação à cosmovisão dos povos africanos: o “surgimento” de um “conceito autônomo” de religião - quando, na verdade, para os africanos, a religião emerge “no plano do cotidiano em todos os momentos da vida”. A integração ser humano-natureza-sociedade constitui a prática do sagrado que se dá na vida cotidiana, segundo essa cosmovisão.

Como nos alerta Ronilda Iyakemi Ribeiro, um olhar “africano” para essa história nos possibilita estabelecer um contraponto com o olhar europeu:

Construído com base na antropologia, na lingüística e na história oral, tal olhar

[africano] questionou a imagem de uma África bárbara e inculta, sem história e sem

passado, ao expor evidências do florescimento no continente africano de grandes

civilizações e culturas, entre as quais a egípcia, a etíope, a ioruba e a haussa33.

(Ribeiro, 2004, p. 149)

Se a ética é o que dá sentido à emancipação na teoria de Identidade formulada por Ciampa, para a “tradição” afrodescendente é ela que faz com que os direitos e as obrigações vinculados ao estatuto do indivíduo e da comunidade sejam rigorosamente observados. “O homem de axé, o muntu34 e congêneres têm de se manter nos limites de seus direitos e deveres. O descumprimento das obrigações afeta ao mesmo tempo o indivíduo e o grupo”

32 Termo usado para designar todas as práticas de magia popular e tradicional, com ou sem cerimônias religiosas (Ronilda RIBEIRO, 2004, p. 151).

33 Dessas, a escravidão trouxe para o Brasil as culturas iorubás e a haussa.

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(Sodré, 1988, p. 88). Muntu, ser humano. Ao ter consciência de sua humanidade desde o étimo da palavra que o nomeia, esse “ser humano” aprende, desde muito cedo, que sem a comunidade ele não existe. O singular (indivíduo) depende do particular (comunidade) para ser universal (humano).

O contexto histórico de ter sido feito escravo e ter sofrido com a desumanização por gerações seguidas fez nascer a luta pelo reconhecimento de sua identidade, a fim de manter a humanidade que lhe foi negada.

No pós-abolição, a busca de manter uma identidade por parte de afrodescendentes nas Américas implicou a configuração de uma forma de ser e viver, de um convívio social que pode ser visto hoje nas periferias de diferentes partes do Brasil. Essa identidade passa por uma sociabilidade voltada para o espaço da rua e de organizações associativas em torno do que costumamos ver como “atividades de lazer” (para os africanos, as relações entre “trabalho” e “lazer” teriam outras perspectivas, diferentes das dos europeus trazidas ao Brasil com a colonização). Sodré tece um quadro rememorativo da construção dessa identidade:

(...) Era esse o drama da identidade na diáspora que informava as festas, as

danças, os cultos (...). Os lugares criados pelo ritmo eram pequenos espaços de

‘acerto’ ou transação, onde as classes e etnias subalternas tanto se esforçavam pela

apropriação de alguma parte do produto social (empregos, pequenos negócios) como

por uma apropriação polimorfa do espaço social (ou seja, aproveitar por mil ‘jeitinhos’

os interstícios das relações sociais de produção), em busca de um lugar próprio, de

uma identidade, em suma. O carnaval, o futebol, as festas religiosas foram jogos que

os negros tomaram aos portugueses para constituir lugares de identidade e transação

(42)

(Sodré, 1988, p. 139)

O padrão do “indivíduo total” é o que regula a ação na cosmovisão negra, segundo Sodré, quando, em seu livro, ele nos fala dos “lugares da alegria” para o negro-brasileiro. Trata-se da visão de um sujeito articulado consigo mesmo e com os outros em comunidade. “O que diz a esse sujeito a intuição de mundo negra é que o jogo, mesmo fora do poder, tem a força de promover uma certa integração da existência [grifo meu], a exemplo de uma instância, quase orgânica, da vida” (Ibid., p. 143). Nessa concepção, o “jogo” não é sinônimo de descompromisso, informalidade. O “jogo” é outra forma de relacionar-se35.

O hip-hop, como expressão afrodescendente na diáspora, traz marcas da identidade que nos remete a esse “lugar da alegria”, “lugar do jogo” da sociabiliade negro-africana pontuada por Sodré. Na luta anti-racista que se manifesta com música, dança e artes visuais, o hip-hop tem se mostrado um importante meio de expressão desse movimento de configuração da identidade afrodescendente, tão complexo nas sociedades multirraciais – e nas quais a construção da identidade afrodescendente é fundamental, como nos aponta Xavier (2000, p. v).

No artigo intitulado “Psicoterapia e religiões brasileiras de matriz africana”, Ronilda Iyakemi Ribeiro apresenta aspectos da noção de pessoa da perspectiva do grupo iorubá, que se relacionam com o mu-ntu apresentado por Sodré, quando fala dos conceitos iorubá de saúde, doença e cura:

35 Sodré chama de “jogo” o conceito “de uma outra perspectiva quanto à consciência de si, em que viver e morrer, alegria e dor não estão radicalmente separados, pois fazem parte de uma mesma força de

(43)

(...) felicidade [para os iorubás] é ser forte. Ser forte é estar carregado de axé, a

força vital. Ser forte é ser saudável e isso inclui estar bem fisicamente, ou seja, com

saúde física, estar bem situado socialmente, dispor de recursos econômicos

satisfatórios, bons amigos, boa vida conjugal...(...) Considerando que a saúde

individual integra um sistema de trocas energéticas que inclui o entorno, qualquer

desequilíbrio é desequilíbrio energético.

(Ribeiro, 2005, p. 186)

Para restaurar esse equilíbrio, recorre-se à medicina tradicional iorubá que é indissociável da magia, definida como “arte e ciência de preservar ou restaurar a saúde através de recursos e forças naturais” (Dopamu apud Ribeiro, 2005, p. 187). O uso das folhas está entre esses recursos naturais, realizados por meio de rituais, uma vez que certas substâncias naturais possuem qualidades de significado oculto – para além de seus princípios ativos comprovados cientificamente (Ribeiro, 2005, p. 188).

Completando a noção de pessoa, para os iorubás, supõe-se saudável o indivíduo que, de modo solidário, realiza o próprio destino (Ribeiro, 2005, p. 188).

(44)

grupo de pertença, que “permite ao indivíduo a reorganização perceptual que lhe possibilita perceber-se novo num mundo igualmente novo” (Ribeiro, 1998, pp. 242-243).

Ao falar em identidade afrodescendente no Brasil (ou em outros países da diáspora africana), procurando o diálogo com a perspectiva de autores que olham da perspectiva negro-africana-brasileira, estamos trilhando o percurso que nos sugere a pergunta de Munanga: “qual seria o método científico capaz de captar o fenômeno da identidade em seus diversos aspectos e contextos e em sua dinâmica?” (1988, p. 146). A resposta a essa pergunta se dará durante esta pesquisa, que intenciona compreender o processo de construção de uma identidade afrodescendente “positivamente afirmada”36 – que se orgulhe tanto de suas características fenotípicas como das elaborações culturais legadas por essa ascendência.

todo jogo” (1988, p. 115-116).

(45)

4

Candomblé como herança dos patrimônios

civilizatórios africanos

Para além das marcas espalhadas pela sociedade, as religiões de matrizes africanas são os grandes depositários dos patrimônios civilizatórios das culturas que vieram com as populações escravizadas de África para a América. No Brasil, a religião de matriz iorubana mais conhecida é o candomblé37. Para chegar até ela, faremos um breve percurso histórico.

A história da civilização negra é a mais antiga do mundo. O homem, como o conhecemos hoje, surge na África, por volta de 150.000 a.C. O primeiro ser humano era, portanto, negro. Na Europa, o homem só foi aparecer por volta de 40.000 a.C, por motivo das correntes migratórias desde o centro sul da África em direção ao norte até o mar Mediterrâneo (Cf. Luz, 2000, p. 25).

A partir de imigrações e trocas culturais, o processo histórico resultou na formação das diferentes sociedades existentes nas diversas partes do planeta.

Há estudiosos que afirmam que, no século XV, quando os portugueses chegaram à

África, a civilização negra era muito mais avançada em valores e tecnologias que a

européia. Entre esses avanços, estavam técnicas metalúrgicas de plantio, colheita,

criação, comércio e navegação – os africanos teriam sido os primeiros a chegarem

à América, antes mesmo dos europeus –, além de suas elaborações religiosas,

filosóficas, científicas e estéticas, incluídas em um “processo civilizatório negro” que

as ideologias racistas e colonialistas tentaram historicamente apagar (Ibid., p. 27).

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Ao advento da escravidão de africanos para o Novo Mundo opõe-se a luta de indivíduos escravizados e portadores de culturas que lhes permitiram resistir à escravidão. Dessa resistência resulta a afirmação existencial do homem negro, que implica na “continuidade transatlântica de seus princípios e valores transcendentes” – no Brasil, vivemos hoje esses princípios e valores que, mesmo tendo passado por transformações, não tiveram alterada em sua totalidade “a dinâmica constituinte de um mesmo continuum(Ibid., p. 31).

Foi com as instituições religiosas e da irradiação a partir delas para a sociedade brasileira que o legado de valores africanos permitiu essa continuidade transatlântica.

Essa “trajetória” dialoga com a forma de organização social de diferentes grupos africanos, para os quais espiritualidade e vida cotidiana não se separam.

Desse patrimônio herdamos práticas sociais e culturais que são “extensão” das práticas dos terreiros de candomblé38.

[No terreiro de candomblé] guardavam-se conteúdos patrimoniais valiosos (o axé,

os princípios cósmicos, a ética dos ancestrais, mas também ensinamentos do xirê –

os ritmos e as formas dramáticas que se desdobram ludicamente na sociedade

abrangente.

Na verdade, os grupos de festa, os cordões e blocos carnavalescos, os

ranchos, sempre estiveram vinculados direta ou indiretamente (através dos músicos,

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compositores ou pessoas de influência) ao candomblé. (...) Cada casa de culto tinha o

seu bloco carnavalesco.

... Em quintais diversos realizavam-se reuniões de jongo (canto e dança de

linha mística com pontos e desafios, de onde se deriva o samba de partido alto),

caxambu (forma semelhante ao jongo, mas com diferenças rítmicas) e rodas de

samba39.

(Sodré, 1988, p. 135)

A oralidade, a gestualidade, as “rodas sagradas”, presentes na capoeira, no jongo, nas rodas de samba... Um grande número de marcas sociais oriundas dos patrimônios civilizatórios presentes na identidade nacional brasileira provém das culturas iorubá, fon e bantu – às quais pertenciam os maiores contingentes populacionais de africanos vindos para o Brasil durante os cerca de 350 anos em que perduraram o tráfico negreiro para o país.

Foi na dimensão da religiosidade que as identidades dessas diferentes culturas puderam se manter, mesmo que de forma reelaborada.

Quando se fala em candomblé, fala-se em pelo menos sete nações40

diferentes. O reconhecimento das diferentes nações está associado ao idioma que é usado para referir-se ao nome das divindades, alimentos e roupas, cânticos rituais e histórias (Cf. Ribeiro, 1996, p. 213-214). Segundo Lody41

(apud Ribeiro, 1996), as nações foram organizadas em: Kêtu-nagô (idioma iorubá); Jexá ou Ijexá (iorubá); Jeje (fon); Angola (banto); Angola-Congo [ou

39 Foi a partir das festas da mãe-de-santo conhecida como Tia Ciata, no Rio de Janeiro, que o mercado fonográfico conhece o primeiro samba de que se tem registro, “Pelo telefone”, de Donga. Os músicos que participaram dessa gravação foram “recrutados” entre os freqüentadores da casa: Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres e outros (Sodré, 1988 p. 136-137). A gravação data do ano de 1916 (Para mais detalhes, ver Enciclopédia da música brasileira, 1998, p. 616).

Referências

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