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Dos mitos iorubanos para o contexto histórico da escravidão

No documento Liliane Pereira Braga.pdf (páginas 150-154)

e chegar à afrodescendência

7.13 Dos mitos iorubanos para o contexto histórico da escravidão

A referência de Ilícito em ter passado a querer conhecer mais sobre os orixás a partir dos “resquícios” da história da República de Palmares nos remete ao processo que resultou no “filtro” pelo qual, no Brasil, reduziu-se o número de orixás em relação à quantidade de divindades presentes no território iorubano em África.

Como nos informa Tavares (2002), de um modo geral, durante a escravidão, os africanos concentraram suas “preferências” nos orixás guerreiros e nos orixás de fundamento de sua vida, cultura, raiz e coesão, pois

... o culto, no cativeiro, mais do que uma necessidade existencial, como na África, era um imperativo visceral de sobrevivência, estabelecendo íntimos laços culturais entre escravos que, às vezes, nem tinham esse culto em África, mas agruparam-se coesamente em torno dele na diáspora Brasil/Caribe. (Tavares, 2002, p. 62-63)

A divisão familiar e étnica aplicada pelos senhores de escravos portugueses aos africanos com a técnica de “dividir para conquistar” também limitou o panteão do candomblé. Como nos informa Zacharias (1998), na “Iorubalândia” (África Ocidental), fala-se na existência de cerca de 600 orixás. Ao Brasil, chegaram algo em torno de 50 orixás; desses, 16 são os mais cultuados no candomblé. “Muitos deles são reis e rainhas divinizados, o que confere uma dimensão mítica ao ser humano histórico” (p. 89).

Ser um homem livre é a preocupação de Ilícito. Por isso ele entende que não tem que ser do candomblé para “cultivar” os orixás.

Chegam em mim e falam que eu tenho que ser do candomblé ou da umbanda, pra mim poder cultivar os orixás, sabe? Eu, eu não tenho religião, eu sou rasta como estilo de vida, entendeu?, pra amenizar as carne, comer mais fruta, e o cabelo, como forma de resistência, eu sou um homem livre, que é essa coisa do rastafári, né? Cê é um homem livre, nada te atinge, cê anda no ônibus, dane-se o povo olhar pro seu cabelo, se você é tatuado, se eu sou preto, se eu sou branco, tô ali, eu tô imune a qualquer coisa, nada me atinge. Andar na babilônia de São Paulo sem deixar as coisas atingirem você, entendeu? Cê aceita as coisa errada da Babilônia, não, você combate também.

Essa preocupação em ser um homem livre não o impede de se aproximar da religião. Um dos aspectos do candomblé é o acolhimento: os que queiram/necessitem de conforto espiritual ou mesmo que procurem pelo terreiro por se sentirem bem naquele ambiente, são bem-vindos. Essa forma de contato com a religião é bastante freqüente.

Ao que as entrevistas demonstraram, sua concepção de convivência em sociedade dialoga com a organização social dos nagôs. Nessas sociedades, a organização hierárquica “obedece à regra que pressupõe a cooperação e complementaridade entre as pessoas”. Mas também exige uma especialização do conhecimento que cerca as atividades do trabalho, o que só se adquire com a experiência cotidiana e, portanto, só é possível acumular conhecimento com a idade (Salami, 1997, p. 86).

Quando Ilícito se referiu ao fato de que os orixás, na vida dele, “são resquícios” que, ao reeducar-se, eles viriam na lembrança, ele se referiu ao fato de que

Já tá no DNA, né? Tá no inconsciente, já tá no nosso perispírito137, já tá no meu ectoplasma. Perispírito é a transição entre a alma e o espírito, entendeu? Já tá no meu ectoplasma, já tá entendeu? Agora só precisa trazer as lembranças. Isso aí já veio um preto-velho e falou, já tá no meu sangue, eu nasci pra ser isso mesmo, eu só venho trazendo através do conhecimento, da tradição oral, você vem trazendo, mas isso aí já tá em mim138. A não ser que eu não me preocupe com isso e não vá atrás, entendeu, me preocupe mais com o MP3. Aí eu não vou trazer isso. É justamente, eu não gosto de ser doutrinado numa religião, num papel que tá escrito e você tem que fazer aquilo se não cê não serve, que nem os maçon, sabe? Rasta é isso, não é religião, rastafarismo.

137 Para o espiritismo kardecista, trata-se do “laço” que une matéria e espírito. Envoltório sutil e perene da

alma, que possibilita sua interação com os meios espiritual e físico. Empregada pela primeira vez por Allan Kardec, no item 93 de “O Livro dos Espíritos”. Alma e perispírito constituem o espírito (Fonte: guia de estudos e pesquisas a respeito do Homem, Espírito e Universo:

http://www.guia.heu.nom.br/perispirito.htm. Acesso em 17/08/2007).

138 Em situação relatada após essa entrevista, mas que ele próprio associou a esse momento da pesquisa,

ele chegou à casa de um rapper em Salvador, Bahia, e sentiu que já havia estado ali antes. Ao comentar isso com o rapper que estava visitando, o comentário dele, que é filho-de-santo, teria sido: “é que somos filhos de orixás que chegam antes. Nossos espíritos chegam antes”.

É estilo de vida, é uma forma de ser, entendeu? E... que nem, os caras lêem o Antigo Testamente, lêem a Bíblia Sagrada.

O que Ilícito não quer para si é também o que a tradição iorubana não traz em si. Segundo Hofbauer (2006),

... na concepção de mundo iorubana as idéias morais, como o “bem” e o “mal”, são definidas pelos contextos específicos e não podem ser entendidas como princípios dogmáticos. (...) As “sociedades africanas tradicionais” não desenvolveram “doutrinas salvacionistas” nem políticas missionárias”. (Ibid., p.316)

Os textos sagrados que se baseiam em “princípios morais” necessitam da palavra escrita para existir. É por meio deles que pode haver uma divulgação da base “teológico-filosófica” de uma religião para além das fronteiras étnicas ou nacionais (Ibid., p. 317-318), configurando o que Goody139 (apud Hofbauer, 2006) chama de “religiões de conversão”.

Um dos aspectos apontados por Hofbauer em sua análise trata da incorporação de divindades de vizinhos (inimigos) entre os grupos étnicos da África Ocidental – da qual os iorubás fazem parte – com o objetivo de aumentar a força do próprio grupo. Segundo o autor, “para ‘concepções teológico- filosóficas’ que não se fundamentam numa verdade dogmática absoluta – caso do relativismo existente entre “bem” e “mal” –, esses processos não constituem uma contradição” (Hofbauer, 2006, p. 320-321).

Uma parada que a gente viaja no daime é isso. Passar várias entidades, de ter vários leques abertos, de ter várias linhagens, desde o mestre Irineu,

mestre Sebastião, da linhagem dos indígenas lá da Amazônia, manipular planta de poder, hinos, cânticos e todo o ritual de dança com os instrumentos, sabe?, toda uma coisa de busca interior e de limpar o espírito e o corpo também e passar todas as entidades com o respeito do sagrado a todas as entidades. E é loco isso.

Vários leques abertos. Várias linhagens. Uma democratização do acesso ao sagrado presente na não-prevalência do monopólio do acesso a esse sagrado por parte do sacerdote (a passagem das várias entidades se dá com o “suporte” oferecido por vários indivíduos e não por um sacerdote apenas). A recusa do fundamentalismo, necessária para a busca de uma sociedade mais igualitária e democrática, está presente também na democratização do acesso ao sagrado (Ciampa, 2004). Para tanto, também é necessário reconhecer a existência de uma grande variedade de experiências religiosas, inclusive singulares de cada indivíduo, as quais não podem ficar prisioneiras das instituições religiosas (Cf. James apud Ciampa, 2004[a]).

7.14 O extermínio do iorubá no Brasil: a repulsa de Ilícito

No documento Liliane Pereira Braga.pdf (páginas 150-154)