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A nordestinidade como mais um elemento de identidade

No documento Liliane Pereira Braga.pdf (páginas 129-135)

e chegar à afrodescendência

7.7 A nordestinidade como mais um elemento de identidade

Quando perguntado a respeito da “veia artística”, Ilícito aponta a herança paterna:

Tem a ver com o meu pai sim. Porque sempre quando eu era pequeno ele tocava, né? Sempre ele tocou, fez forró, fez... e eu ia nos forró aqui quase todos com ele. Então eu lembro muito disso... Lembro das Diretas Já, 84/85, meu pai tocava nas campanhas do PSDB, a sanfona que meu pai tem é do Serra, o Serra é que deu pra ele. Eu lembro tudo disso. Das Diretas Já, dessas paradas. Eu era pequeno, mas eu lembro. E ia nos todo os forró com meu pai. Só que jogava bola, né? Jogava futebol. Depois nem o futebol, era uma ilusão... aí comecei a fazer, já escrevia umas letras...

Minha família, meu pai é sanfoneiro, eu cresci no forró, conheço bastante forró, Bezerra da Silva, mas foi do Rap, fazendo uma coisa norte- americana-jamaicana, que eu fui voltando às origens. Hoje eu posso cantar um forrozinho. É loco.

Foi muito nessa ligação, que a gente sempre tá fazendo e dizendo, da ligação nordestina, porque é isso que..., principalmente pra mim, né, me deu mais identidade dentro do hip-hop, pra mim falar da coisa nordestina, e um dia o Museu da Pessoa tava fazendo um seminário e convidou eu pra participar da mesa, pra falar sobre a questão indígena, a questão negra quilombola, e sobre o lance da periferia. Aí eu toquei no que fala da questão indígena eu fui falar sobre periferia. Lá, a gente, o grupo tocou e eles convidaram o Verdelins e Pardal e o Sebastião Marinho. E isso aí resultou em muitas outras coisas assim, uma visibilidade importante também nessa ligação do hip-hop e o rap com a embolada e o repente, né, o cordel, todo esse universo, porque eu faço o que o meu pai fazia antes, só que agora com a tecnologia, mas é o mesmo canto-falado, é isso que eu to fazendo. Se o cara tocar um pandeiro, eu faço uma embolada em forma de rap, se tocar a sanfona, eu canto e se o DJ soltar uma batida de bumbo-e-caixa, eu rimo, se o cara soltar um drum’n’bass111 eu rimo, se o cara tocar um grime eu rimo, se vim um tambor do Espírito de Zumbi eu faço um som, tá ligado? Fui no Maranhão, fiz um som ao vivo com os cara, fui em Teresina também fiz, então... na Bahia, dá pra fazer com o Olodum. É infinito, é um universo...

Minha vida era regrada tudo pelo inverso. Era tudo o ”contrapunto” de tudo. Desde o som que eu faço é o inverso. Os caras quer fazer um som mais pesado, gangsta, o meu é “cangsta”, do cangaço. Eu “inverto” tudo. Né, essa idéia de não fazer a mesmice do que já existe, que era tudo era cópia duma cópia, então eu mesmo não ser uma cópia duma cópia. Com essas idéia, tá ligado?, inverter todas as parada. E confundir a mente. A mesmice é tipo você vê um pensamento radical e não querer abrir o leque, tá ligado? E ficar vivendo num universo fechado, numa mesmice, num ego, tal, sendo que a parada não é desse jeito. Tem muita coisa lá acontecendo e você tá fechado num canto achando que é o dono, que tem o dom da razão, aí depois morre na dúvida, tá

111 Drum´n´Bass (também abreviado como D&B ou DNB) é um estilo de música eletrônica que

surgiu na metade dos anos 90 na Inglaterra. O gênero é caracterizado por batidas rápidas, próximas a 170 BPM (http://pt.wikipedia.org/wiki/Drum_and_Bass, acesso em 17 de agosto de 2007).

ligado? É abrir o leque, sabe?, assumir os erro, não ter medo, não ter vergonha, medo de pedir perdão, nem dó. Tem muita gente numa mesmice, fechado.

Ao falar de sua fuga da “mesmice”, Ilícito nos remete ao uso que Ciampa faz do termo, quando define que a mesmice ocorreria da re-posição da identidade que pode se dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão a repetição. O que sustenta a mesmice é o impedimento da emancipação (Lima, 2005, p. 85). Ao fugir da mesmice, no conceito formulado por Ciampa, Ilícito estaria desimpedido a emancipar-se.

Ao conceito de “mesmice” se contrapõe a “mesmidade”, pela qual se expressaria a alterização, que se refere à superação da personagem vivida pelo indivíduo e que se torna possível a partir da possibilidade de formular projetos de identidade, cujos conteúdos não estejam prévia e autoritariamente definidos (Ibid., p. 86).

Sabemos que a criação de novas normas, novos valores e projetos na esfera universal encontram grandes dificuldades de concretização e superação no nível coletivo, entretanto, no nível individual essa transformação torna-se mais facilmente possível, ainda que, muitas vezes, de forma parcial ou fragmentada. (Ibid., p. 86)

A cada minuto, o hip-hop dá vazão à criação de novas normas na esfera universal. A cada minuto, um jovem, em algum lugar do planeta, procura esses novos valores no nível individual. A cada vez que um deles conquiste esse objetivo, mesmo que parcialmente, a humanidade tem uma chance a mais de

caminhar rumo à emancipação. Daí o fato de cada identidade configurar-se enquanto um projeto político.

7.8

Hip-hop como uma das expressões da “roda sagrada”

É isso que é o rap, entendeu, que eu falo pros moleque. O rap não é uma musiquinha prucê... não é uma musiquinha, cara. Rap é revolução, é transformação, entendeu? E... Não tem como, pelo menos, você, na minha concepção, né?, é não tem como o cara querer fazer rap se ele não foi oprimido. Só quem sofreu alguma opressão que vai pegar essa indignação e transformá-la. Eu costumo falar assim “mano, cê não sofreu, não tem como você cantar rap. Vai cantar reggae então, tá ligado? Mesmo que o reggae seja uma música de resistência, entendeu? Só que o reggae teve uma característica que dentro dessa música de resistência eles plantaram o amor. E hoje o reggae é paz, entendeu? O rap não, ficou tachado como uma música marginalizada, e pesada que bate contra as regras universais em termos de sociedade no mundo, então o rap é a quebra da sociedade, entendeu? Então quem faz rap é esses excluídos, cara que sofreu, que já foi preso, pobres, então assim, é... quando eu conheci o rap, foi nesse processo de transformação, e de injustiças que a minha família sofreu e... se não eu teria cantado o forró do meu pai, entendeu? Tem muitas letras de conteúdo [no forró], entendeu? Mas o rap foi o que abriu o portal, entendeu? Foi quando eu entendi toda a manipulação governamental, a história que não era contada, os heróis que não eram nossos, entendeu?

O hip-hop foi e tem sido o mecanismo para Ilícito, a ferramenta. E ele devolve para o hip-hop aquilo que ele lhe tem proporcionado, com suas oficinas, a organização das festas na quebrada (revertendo lazer, entretenimento, o jogo lúdico nas palavras de Muniz Sodré (1988), a população de onde ele provém. A circularidade está presente na vida de Ilícito. A “roda sagrada” do candomblé está presente no hip-hop112, assim como na capoeira, no samba113... Não só na circularidade, na continuidade, no ciclo vida-e-morte- morte-e-vida da metamorfose-emancipação, mas também na sacralidade de que o hip-hop é parte: ele é revitalização a quem o acompanha, ele é fonte de

112 Não me refiro, aqui, exclusivamente à dança original de rua e todos os seus estilos, mas a algo

relacionado ao hip-hop na sua integridade, relacionado a todos os seus cinco elementos – DJ, MC, grafite,

um outro “axé114”, do “axé” simbólico que re(tro)alimenta o ciclo diário de milhares de jovens espalhados pelas periferias de todo o Brasil e por todas as periferias do mundo. E entre as “forças intelectuais” de ação do hip-hop encontra-se o candomblé115 que, em sua estrutura, permite esse “acionamento” por parte mesmo dos que não são filhos-de-santo de um egbé.

Cabe a lembrança de que, no candomblé, não é o indivíduo quem decide ser ou não ser filho-de-santo de uma casa. Pelo menos no que diz respeito a fazer o santo116, é preciso que haja uma necessidade para isso, revelada pelo oráculo. Já ouvi de mães-de-santo diferentes comentários a esse respeito.

Na contrapartida disso, Ilícito não quer se iniciar. Mas preserva para si o direito de professar parte da sua fé na direção do candomblé, a partir de um caminho pessoal, sem partilhar de ensinamentos junto a um sacerdote, junto a alguém portador de ogbon117. E nesse caminho pessoal, é na direção de Xangô que ele sente uma vibração maior – que, no candomblé, poderia ser explicada de muitas formas que não necessariamente ser filho desse orixá ou ter a sua cabeça em disputa por esse orixá.

O MC é uma evolução do canto falado, por isso que o rapper é o erudito, como que é o repentista que toca viola, entendeu? É o erudito, aquele 113 Ver capítulo referente aos patrimônios civilizatórios dos povos iorubás e candomblé.

114 A definição de axé para os iorubás e para o povo-de-santo também pode ser encontrada no capítulo já

mencionado.

115 Utilizando a definição da professora Josildeth Gomes Consorte por ocasião do exame de qualificação

desta pesquisa, realizado no dia 08 de abril de 2007.

116 Alguém que queira fazer parte de uma família-de-santo, mesmo que não tenha necessidade de raspar a

cabeça para o orixá, tem espaço para essa “negociação” com o sacerdote da casa, o que significa dizer que isso varia de terreiro para terreiro.

117 Ogbon é “sabedoria” para os iorubás, a sabedoria que não se adquire junto aos livros, mas “da

experiência estética (valores, mitos, liturgia, conhecimentos práticos e aforísticos) que se insere no quadro da antiguidade e da tradição”. Repetindo o que já está registrado no capítulo referente ao candomblé, “essa sabedoria implica sempre em axé, pois saber é ser atravessado pela força – a absorção do axé é requisito indispensável à aquisição do conhecimento do real” (Sodré, 1988, p. 90).

cara que estudou pra produzir no computador, fazer as bases, escrever a letra, videoclip, é o rapper. Agora, o MC, ele além de ser um rapper, é o cara que se aprofundou nas técnicas base, nos trabalhos de respiração, nas métricas, nas orações, nos motes, nas formas dobradas e desdobradas de rimar, aprendeu sextilha, decassílabo, passou por vários universos. Eu tô falando da coisa regional. São vários ritmos, tá ligado? Que se for pegar um lundu, jongo, é, o coco, é... o maracatu, a própria mandinga da capoeira, é infinito. Se você for pegar só os toques de capoeira, são bento grande, tá ligado?, são bento pequeno, angola, cavalaria, é uma infinidade de ritmos, entendeu?

Nós faiz música, mano, e é universal. Faz [música] num tambor, o que você me der a gente [ele e os demais MC´s de rap] desempenha, chegô num nível musical que a gente é universal, mano. Uma ladainha, um berimbau, um tambor, uma batida do nagô118, no congado, sei lá, vam´bora, entendeu? Isso que é você chegar num nível musical num lance raiz e saber contar história, tipo o lance do griot119 de reproduzir os antepassados, coisa que foi passada de pai pra filho, entendeu? Só que o mundo muda, a tecnologia muda, é sempre uma nova roupagem pra se manter na parada, entendeu? E dentro dessa nova roupagem, por exemplo, bumbo e caixa universal120 hoje, que é essa parada do hip-hop. Então esse que é o grande lance de fazê arte, de fazê música, de podê levá um conforto e entretenimento pras pessoas, só que o hip- hop fala sério. É um movimento nacionalista-político-social-cultural- educacional, mais do que nunca, tá ligado?, e a coisa vai indo dessa forma.

Viajo nessa parada, o canto falado universal e da batida universal, que tipo, é o universo da batida quebrada e o universo do canto falado. Então pra mim vai do coco à embolada, do rojão ao ragga, tá ligado? É o universo do canto falado. Se eu falar só da cantoria do repentista, é mais de cem modalidade, tá ligado? Eu não sou roqueiro e depois faço rap e depois viro rap- hip-hop no samba, tá ligado? Tem uma linha de como você fazer uma embolada, um repente na viola, um... é tudo uma linha, tipo tem que ser respeitada essa linha.

O MC é uma evolução das tradições orais africanas. Assim como os contos litúrgicos, presentes no âmbito das comunidades-terreiro, o patrimônio oral das narrativas e gêneros da cultura negra também se desenvolveram no território da diáspora africana e no Brasil com os contadores de história, “seja

118 Entre os ritmos nagôs disseminados na música brasileira estão o afoxé e o ijexá. Ver Lopes, 2004. 119 “Termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor,

cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes às quais, em geral, está a serviço. Presente sobretudo na África Ocidental, notadamente onde se

desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali, Songai, etc.), recebe denominações variadas: dyéli ou diali, entre os bambaras e mandingas; guéssére, entre os saracolês;

wambabé, entre os peúles; aouloubé, entre os tucolores; e guéwel (do árabe qawwal), entre os uolofes” (LOPES, 2004, p. 310). A cultura dos griots tem aparecido nos trabalhos de diferentes rappers brasileiros. Um exemplo está em BRAGA (2006).

referente aos antigos reinos e dinastias africanas, como os contos de divertimento pedagógico” (Luz, 2000, p. 469).

A fonte estruturadora das cantorias nordestinas são a narrativa oral da tradição da arte poética dos orikis121 e das cantigas de sotaque ou demanda. Trata-se de um gênero “lítero-musical”, nas palavras de Luz.

No espaço da poética, ou da poesia, onde a tradição européia procurava caracterizar-se como “universal”, a cantoria é atravessada por uma verdadeira luta ideológica”, abrindo espaço na sociedade oficial, atuando em um terreno em que precisará afirmar seus princípios primordiais, característicos da tradição negra e dos valores africanos emergentes. (Ibid., p. 469)

Lundu, coco, jongo, maracatu, o samba, os vários ritmos da capoeira... Os exemplos dados por Ilícito integram os vários gêneros da música negra.

No documento Liliane Pereira Braga.pdf (páginas 129-135)