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Alteridade como valor do legado “nagô”

No documento Liliane Pereira Braga.pdf (páginas 59-63)

4 Candomblé como herança dos patrimônios civilizatórios africanos

4.3 Alteridade como valor do legado “nagô”

Para iniciar este subcapítulo, comecemos com a definição de alteridade: Substantivo feminino. Natureza ou condição do que é outro, do que é distinto (Houaiss, 2006).

O respeito à alteridade é uma das marcas da cultura iorubá. Alteridade que foi e continua sendo, no contexto mundial atual, uma questão que nos custa caro. No Brasil, o não-respeito à alteridade tem início com a chegada dos portugueses, com os valores presentes no cristianismo, cuja característica é a

55 Na tradição dos orixás, denominação da cabeça humana como sede do conhecimento e do espírito.

Também, forma de consciência presente em toda a natureza, inclusive em animais e plantas, guiada por uma força específica que é o orixá (Nei LOPES, 2004, p. 498).

de se proclamar detentor da única verdade absoluta “revelada por Deus” (Cf. Luz, 2000, p. 191).

Em sua tese de doutorado, Luz chama a atenção para a atuação dos portugueses no Brasil e para os valores civilizatórios opostos ao dos europeus presentes, originariamente, na África e na América.

Segundo o autor, uma característica marcante da política implementada tanto pela Igreja – que compunha o governo colonial - como pelas instituições constituintes de tal governo é a identificação dela “pelos valores de uma cultura de imposição e redução da alteridade à desigualdade”.

Esse impulso à imposição, característico da cultura ocidental, se distingue completamente do impulso à aceitação da alteridade presente nas culturas dos diferentes povos da África e da América. Aqui, o outro é qualificado de estrangeiro, respeitado em sua diferença, merecedor de modo geral das honras de hospitalidade. Esta forma de lidar com a alteridade, por outro lado, realça a identidade própria do hospedeiro, que valoriza a diferença e assim destaca a sua pertinência grupal. (Luz, 2000, p. 189)

A respeito da concepção dos iorubás, Sodré aponta que os poderes decorrentes do axé (a autoridade) também dependem de um consenso comunitário: “são poderes sutis, que implicam energias poderosas, umas mais velhas que as outras, como também acontece na ontologia banto” (1988, p. 89).

Quem tem autoridade, nas sociedades iorubás, é o mais velho. Não pelo fator biológico exclusivamente, mas por causa de sua antiguidade iniciática56 ou de sabedoria. Um conceito fundamental iorubá (inalterado mesmo após os fatores históricos com europeus) é o conceito presente no aforismo “Ogbon ju agbara” (“a sabedoria é maior que a força física”). A sabedoria do iorubano, no entanto, não é a mesma do saber das letras – já (re)conhecidas por eles durante o período colonial –, mas a sabedoria ética, presente nos valores, mitos, liturgia, conhecimentos práticos e aforísticos, inseridos no “quadro da antiguidade ou da tradição”. Essa sabedoria, nos diz Sodré, “implica sempre (grifo nosso) em axé, pois saber é ser atravessado pela força – a absorção do axé é requisito indispensável à aquisição do conhecimento real” (Ibid., p. 90- 91).

O mesmo autor (Ibid., p. 164) aponta que a “comunidade-terreiro” nos tem oferecido um antídoto para essa “dificuldade visceral do Ocidente em face da aproximação do real, territorial, das diferenças”. Para ele,

...não se trata de nenhuma comunidade fundada em ‘raça’ ou em ‘autenticidade nacional’, mas de afirmação de um espaço de alacridade, de jogo do cosmos com o mundo. Através dele, os negros [ou os que partilhem, por identificação, desse repertório] instauram ritmicamente lugares de acerto entre os homens, de

56 Iniciação, para os iorubás e os nagôs, está relacionado ao conceito de que o conhecimento é “prático”.

Conhecer, saber, é experimentar, sentir, vivenciar. O conhecimento “alcança planos de elaboração e de poder inerente à lida com forças que dinamizam o mundo que são, de certa forma, indizíveis ou inefáveis; a palavra escrita é, portanto, incapaz de relatar” (Luz, 2000, p. 458). No Brasil, “iniciar-se” pode referir- se ao ciclo relativo à raspagem da cabeça por parte de um filho-de-santo de uma casa de candomblé. Este termo é mais usado entre antropólogos. Entre o povo-de-santo, usa-se “fazer o santo”, como referido por Vanda Machado durante palestra no IV Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, em Salvador (BA), em novembro de 2006. Esse uso possivelmente se deva ao fato de que, ao fazer parte de um egbé, o período iniciático de um filho-de-santo compreende estágios anteriores e posteriores à feitura do santo e o conjunto dessas etapas é que integra o período total da iniciação.

reversibilidade entre os entes e assim expõem a ambivalência de toda identidade (que o Ocidente quer, no entanto, estável, universal, hegemônica) (Sodré, 1988, p. 164)

O aspecto social do candomblé também é um ponto que gostaríamos de ressaltar. A esse respeito, Hofbauer nos diz que

...As concepções iorubanas do sagrado e das relações de poder (princípio àse/axé) não apenas podiam servir [no pós-abolição] aos desprivilegiados de base de interpretação de sua realidade social, mas podiam também orientar e incentivar ações sociais eficazes que, dentro das regras impostas, proporcionassem os resultados ansiados. Além disso, não se deve esquecer de que as casas de candomblé constituíram, certamente, desde sempre, comunidades de solidariedade nas quais os adeptos podem também encontrar conforto e criar forças para enfrentar as discriminações e frustrações do dia-a-dia. E até hoje funcionam, nos bairros das periferias urbanas, freqüentemente como espaços de acolhimento que atendem pessoas à procura de conselho e ajuda para os mais diversos problemas pessoais. (Hofbauer, 2006, p. 327)

Sendo uma religião “aberta a todos” (Bernardo, 2003, p. 150) – um dia visto como religião étnica57 como reverso do racismo do qual foi e ainda é vítima e que afasta(va) os “não-negros” do terreiro –, o candomblé traz, em si, o respeito ao homem enquanto ser universal, no qual o respeito às diferenças é essencial.

57 Ou pela denominação homogeneizante que os europeus atribuíram aos descendentes de africanos no

Uma nota antes de finalizar este capítulo, a partir dos escritos da educadora baiana Vanda Machado: no candomblé, “a crença e a observância dos ‘fundamentos’ (segredos da religião) não invalidam o espírito de insurgência característico do povo negro [ou afrodescendente, na denominação adotada nesta pesquisa]”. Aspectos culturais que podem parecer estáticos e conformistas, nos lembra a autora, “recriam-se a si mesmos, sempre que as relações que determinam a condição da existência sofrem interferência inadequada” (2002, p. 129).

No documento Liliane Pereira Braga.pdf (páginas 59-63)