E n z o D e l C a r r a t o r e
1 . T e m sido freqüentemente a f i r m a d a a impossibilidade de dissociar r a d i c a l m e n t e a c u l t u r a grega da l a t i n a , e numerosas têm sido as t e n t a t i v a s daqueles que p r o c u r a m estabelecer as relações históricas, sociais, lingüísticas, c u l t u r a i s e n f i m , entre os povos grego e romano. Empreendemos, há a l g u m tempo, u m a pesquisa voltada p a r a o campo das relações e n t r e as l i t e r a t u r a s grega e l a t i n a , e mais p a r t i c u l a r m e n t e , p a r a o estudo das influências helénicas no t e a t r o de P l a u t o , reveladas
pelo vocabulário de suas peças.1
A escolha deste autor decorre f u n d a m e n t a l m e n t e da nossa indisfarçada s i m p a t i a e da preferência m a r c a d a que temos p a r a com ele, a quem reputamos u m dos grandes escritores da latinidade. Além disso, a sua obra é caracterizada p o r f o r t e s influências helénicas, decorrentes quer do gênero literário versado, que injunções de o r d e m social forçavam à imitação e ao decalque das obras gregas, quer das condições históricas da época, que assinalam a intensificação dos contactos diretos entre Roma e o m u n d o grego, com as conseqüências que serão apontadas. P l a u t o situa-se, pois, como que a cavaleiro sobre a ponte lançada entre dois povos, p o r onde se escoa a maciça invasão do helenismo em direção a R o m a : este f a t o é suficiente para dar a medida da sua importância p a r a u m t r a b a l h o da natureza do nosso.
Procedemos então ao levantamento, que acreditamos exaustivo, de todos os vocábulos de o r i g e m grega, e procuramos v e r i f i c a r se o seu uso por p a r t e de P l a u t o corresponderia a alguma exigência de ordem estética ou social, ou, em o u t r o s termos, quais t e r i a m sido os fatores c u l t u r a i s que d e t e r m i n a r a m seu emprego e as finalidades estilísticas que o i n s p i r a r a m .
(1) E s t a p e s q u i s a t e v e c o m o r e s u l t a d o a e l a b o r a ç ã o d e t e s e d e d o u t o r a m e n t o a p r e s e n t a d a n a e n t ã o C a d e i r a d e L í n g u a e L i t e r a t u r a L a t i n a d a F F C L d a U n i v e r s i d a d e de S ã o P a u l o , e m 1 9 6 5 , s o b o t í t u l o Heleniamoz Léxicos na Obra de Plauto.
2 . A c r e d i t a m o s , entretanto, ainda que à custa de c o r r e r m o s o risco de ser acusado de p r a g m a t i s m o , que, n a a t u a l c o n j u n t u r a do ensino em nossas escolas superiores, e par-t i c u l a r m e n par-t e do ensino das humanidades clássicas, hoje em franco e irrefreável declínio, m a i o r u t i l i d a d e terá u m t r a b a l h o consciente de divulgação do que u m e r u d i t o e ultra-especiali-zado ensaio destinado, na melhor das hipóteses, a ser lido p o r uns poucos e cada vez mais r a r o s cultores das antigüidades greco-latinas. A s s i m , pouparemos ao leitor a extensa l i s t a de palavras de o r i g e m grega, sua provável etimologia, as atesta-ções plautinas, as variaatesta-ções semânticas decorrentes da sua transposição p a r a o l a t i m , fornecendo-lhe em t r o c a algumas informações de o r d e m histórica, literária ou lingüística com que esperamos chamar-lhe a atenção e despertar-lhe o interesse p a r a u m a u t o r que, pela riqueza, pela vivacidade, pelo colorido de sua linguagem, pela variedade e pela comicidade das situações dramáticas de suas peças, merece ser lido, apreciado e admirado.
3 . T i t o Macio Plauto nasceu em Sársina, na Úmbria, por v o l t a de 254 a . C . e m o r r e u em 184 a . C . O que sabemos de sua v i d a t e m m u i t o de lendário: o mistério envolve as poucas notícias que nos restam. Parece, entretanto, seguro que Plauto chegou a Roma m u i t o j o v e m (o domínio absoluto da língua l a t i n a , de uma correção e pureza ímpares, atesta o
f a t o ) . Conta a tradição2 que t r a b a l h o u a l g u m tempo n u m a
companhia t e a t r a l ; depois, seu gosto pela a v e n t u r a o levou a e x p l o r a r o comércio marítimo, atividade que o levou à ruína; viu-se então obrigado a t r a b a l h a r como verdadeiro escravo n u m moinho. Nos intervalos do seu rude ofício teve a força de escrever três comédias, que alcançaram imediato êxito e lhe a b r i r a m as portas da f a m a e da prosperidade. Tão grande f o i seu sucesso que depois da sua m o r t e lhe f o i atribuída a a u t o r i a de dezenas de peças, provavelmente compostas p o r autores desconhecidos e sem escrúpulos que não h e s i t a r a m em u t i l i z a r o nome do famoso comediógrafo pela g a r a n t i a plena de aceita-ção popular e de conseqüente l u c r o que ele representava. F i n a l m e n t e , o gramático e e r u d i t o homem de letras M . Terêncio Varrão, no séc. I a . C , separou das 130 comédias atribuídas a Plauto u m núcleo de 2 1 cuja a u t o r i a não podia ser contestada — e que constituem até hoje o corpus p l a u t i n o d e f i n i t i v o — , e mais 19 de a u t o r i a duvidosa, declarando as demais espúrias. Chegaram até nós completas ou com pequenas lacunas 20
a Vidularia, cujos títulos são os seguintes, de acordo com a ordem t r a d i c i o n a l : Amphitruo, Asinaria, Aulularia, Captivi,
Curculio, Casina, Cistellaria, Epidicus, Bacchides, Mostellaria, Menaechmi, Miles Gloriosus, Mercator, Pseudolus, Poenulus Persa, Rudens, Stichus, Trinummus, Truculentus.
Assunto bastante c o n t r o v e r t i d o é o da cronologia das peças p l a u t i n a s ; mostraremos oportunamente que o exame dos helenismos nelas encontrados poderá fornecer alguns critérios válidos ou plausíveis p a r a a elucidação do i m p o r t a n t e p r o -blema.
4 . O a r g u m e n t o das peças de P l a u t o é extraído da v i d a diária, de acordo com a inovação i n t r o d u z i d a pela Néa — a "Comédia N o v a " grega. Sabe-se, com efeito, que P l a u t o usou como fontes de inspiração p a r a as suas peças as obras da Co-média Nova, pois não era p e r m i t i d o colocar em cena perso-nagens, usos e costumes romanos, donde a necessidade de os autores dramáticos i r e m buscar os modelos de suas obras n a l i t e r a t u r a grega, que fornecia vasto m a t e r i a l de escolha. Sobre a m a n e i r a pela qual Plauto a p r o v e i t o u esse m a t e r i a l , várias opiniões se têm sucedido, e das mais contraditórias. Há os que vêem e m Plauto u m simples t r a d u t o r , até mesmo u m m a u t r a d u t o r , às vezes, dos modelos gregos; p a r a os mais e x t r e -mados defensores desta t e o r i a , a i n a b i l i d a d e de P l a u t o chegou ao ponto de não t o m a r conhecimento do público, t r a d u z i n d o
coisas que este não poderia sequer e n t e n d e r .3 Com L e o4
inicia-se uma corrente de estudos que coloca o problema das relações entre a obra p l a u t i n a e os seus modelos gregos em bases rigorosamente científicas, focalizando e p r o c u r a n d o ex-p l i c a r à luz de dados concretos e objetivos as técnicas de utilização do m a t e r i a l de que o nosso poeta se s e r y i u ; e este problema se resume, em última análise, no processo da "con-taminação", que é, ela própria, u m t i p o de imitação. Centenas de trabalhos têm sido elaborados p a r a e x p l i c a r a " c o n t a m i n a -ção", que podemos r e s u m i r como sendo u m processo complexo
de aproveitamento de várias fontes que concorrem p a r a a
composição de uma única peça; este processo pode ter-se desen-volvido de várias m a n e i r a s : ou representa a fusão t o t a l de duas ou mais peças n u m a só, ou apenas a inserção de elemen-tos acessórios — cenas, personagens, episódios isolados — no
( 3 ) C f . a a f i r m a ç ã o d e S c h u s t e r , c i t a d o p o r R . P e r n a e m L ' o r i g i n a l i t à di flauto, B a r i , 1 9 5 5 , p . 1 2 : " t r a n s t u l i t ( P l a u t u s ) i n p a l l i a t a m e t i a m q u a e s p e c t a t o r e s m i n i m e p o s s e n t p e r s e n t i s c e r e * ' .
enredo de u m o r i g i n a l com a f i n a l i d a d e de enriquecê-lo.5 Os
autores que a d m i t e m a "contaminação" p a r t e m geralmente de u m postulado comum, o da "insuficiência técnica" de P l a u t o : os críticos mais severos, como Leo, F r a n k e l , Jachmann, acei-tando o pressuposto da absoluta perfeição da Néa , a f i r m a m que Plauto i m i t o u m a l seus modelos. Outros críticos, como P r e h n , Prescott, Cooper e outros, lançando a dúvida sobre a suposta perfeição da Néa , a f i r m a m que P l a u t o i m i t o u modelos i m p e r f e i t o s . M a i s recentemente ainda, a crítica t e m procurado fazer justiça ao grande comediógrafo l a t i n o : autores como Sedgwick, L i t t l e , H o u g h têm reconhecido em Plauto o verdadeiro criador, o descobridor de novos rumos p a r a a comédia, o a r t i s t a genial que r e t r a t a fielmente u m a época com seus gostos e suas exigências. Ora, se a imitação repre-senta uma espécie de estágio intermediário, a transição entre o plágio p u r o e simples e a criação i n t e g r a l , devemos concordar pelo menos com que o t r a b a l h o de remanejamento p r a t i c a d o por Plauto, o seu esforço de renovação da comédia grega no sentido da m a i o r vivacidade, já são uma p r o v a de o r i g i n a l i
-dade. 6
P o r o u t r o lado, até há pouco tempo, qualquer t e n t a t i v a de elucidação dos processos de "contaminação" era d i f i c u l t a d a , ou mesmo f r u s t r a d a , porque baseada em g r a n d e p a r t e na compa-ração entre u m c o n j u n t o conhecido de obras — as de Plauto e de Terêncio p r i n c i p a l m e n t e — e o u t r o conjunto praticamente desconhecido, a não ser através de f r a g m e n t o s ; atualmente, com a descoberta da até agora única peça íntegra da Comédia N o v a , o h.vakoXos de Menandro, é possível f u n d a m e n t a r os estudos neste sentido sobre bases mais sólidas: e o que de novo s u r g i u ? Quase nada, a não ser aquilo que já se s u p u n h a : entre Plauto e M e n a n d r o m u i t o pouco há em c o m u m ; certa-mente Plauto conheceu e u t i l i z o u a obra de M e n a n d r o , mas o que salta aos olhos é a l i v r e reelaboração do m a t e r i a l utilizado,
ma verdadeira recriação, a absoluta liberdade e indepen-ência, salvo em pormenores sem m a i o r importância, diante do modelo.
P o r t u d o isso, e pela grande desenvoltura que Plauto m o s t r a nos diálogos, cheios de calor e graça, pela e x t r a o r d i -nária variedade de metros líricos empregada nos cantica —
( 6 ) V e j a m - s e a r e s p e i t o a s o b r a s d e B . A . T a l a d o i r e , Essai sur le comique de Plaute, M o n a c o , 1 9 5 6 , p . 57 e s e e s , , e d e G . E . D u c k w o r t h , The nature of roman comedy. P r i n c e t o n , 1 9 5 2 , p . 2 0 2 e s e g s .
( 6 ) C o n s u l t e - s e a r e s p e i t o a j á c i t a d a o b r a d e R . P e r n a , q u e c o n t é m u m c o m p l e t o e s e g u r o a p a n h a d o c r i t i c o d o status qiuiestionis.
certamente inexistentes nos exemplares gregos — , podemos a f i r m a r que Plauto está longe de t e r sido m e r o t r a d u t o r de peças gregas, devendo antes ser considerado escritor plena-mente o r i g i n a l , de uma o r i g i n a l i d a d e sem dúvida sui generis, mas reveladora de u m estilo e de u m a arte próprios e inimitáveis.
5. O u t r o ponto de controvérsia no qual os críticos se debatem é o da natureza do público a que se destinavam as comédias de Plauto e a a t i t u d e do poeta e m face do seu auditório. A s discussões sobre a matéria se têm sucedido e os resultados atuais dos estudos parecem inclinar-se p a r a uma revisão da communis opinio de que o público p l a u t i n o era totalmente i g n o r a n t e e grosseiro. F o r a m desta opinião, entre outros, Ribbeck, M a r t h a , Fábia, M i c h a u t , especialmente este último, que se compraz em salientar a grosseria, a obtusidade
e o baixo nível m e n t a l do público r o m a n o .7
Cremos que ninguém chegará ao e x t r e m o de a t r i b u i r ao auditório romano da época de Plauto uma inteligência e, principalmente, uma c u l t u r a artística que estava ainda longe de possuir; mas também não parece possível concordar com os autores supracitados quando defendem a idéia de u m a t o t a l incapacidade do público em perceber e apreciar as sutilezas de uma obra de arte que estivesse apenas acima do plano das vulgaridades e das obscenidades.
A q u i , como alhures, o meio t e r m o se impõe. Não se pretende negar a heterogeneidade da população de Roma e, p o r t a n t o , do público que assistia às representações teatrais, constituído de elementos de todas as camadas sociais e de todos os níveis culturais. Mas, desde que é impossível dissociar uma o b r a literária, especialmente de caráter dramático, do auditório a quem se destina e a cujo j u l g a m e n t o se submete, a obra de Plauto, pelo êxito que obteve j u n t o ao público, mostra-nos bem que era compreendida por este na sua t o t a l i d a d e ; e se isto aconteceu, f o i porque não era ele tão i g n o r a n t e e grosseiro como se t e m comumente a d m i t i d o .
Gostaríamos de c i t a r a este respeito, a b r i n d o u m pequeno parêntesis, a atitude de Terêncio perante o seu auditório: os prólogos das suas peças nos apresentam uma v e r d a d e i r a polêmica literária, i n t r o d u z e m os espectadores e os modernos
( 7 ) G . M i c h a u t , Histoire de la Comédie Romaine. Plante; 2 v o l . , P a r i s , 1 9 2 0 , V e j a - s e . p o r e x . , a a f i r m a ç ã o q u e o a u t o r f a z à p . 2 8 8 d o v o l . I I , d e q u e o d e s e q u i l í b r i o q u e se n o t a n a s p e ç a s d e P l a u t o é c o n s c i e n t e , p r o p o s i t a l , e c o n s t i t u i u m p r o c e s s o q u e se d e s t i n a a " a d a p t a r as c o m é d i a s g r ^ K a s a o K o s t o i m p e r f e i t o d o a u d i t ó r i o r o m a n o " .
leitores n u m ambiente c u l t u r a l m e n t e evoluído, submetendo-lhes questões que envolvem problemas estéticos e critérios de o r i g i n a l i d a d e p a r a serem julgados e resolvidos pela inteligência, pelo gosto artístico, pelas experiências e pelos conhecimentos das técnicas t e a t r a i s que estes espectadores certamente possuíam. E tudo isto somente seria possível se os romanos estivessem há longo tempo f a m i l i a r i z a d o s com u m gênero literário que lhes atingisse d i r e t a m e n t e a sensibilidade e a inteligência. Poder-se-ia o b j e t a r que entre Plauto e Terêncio decorreu uma geração, e que em t r i n t a anos, m a i s ou menos, m u i t a coisa pode ser a l t e r a d a : e também isto é verdade, mas não devemos esquecer que mesmo após a m o r t e de Plauto as suas peças c o n t i n u a r a m sendo representadas nos palcos romanos, e que m u i t o s dos espectadores e dos apreciadores do t e a t r o p l a u t i n o v i v e r a m o suficiente p a r a assistirem às peças de Terêncio; o r a , exatamente esta parte do auditório, composta dos que chamaríamos de "veteranos do espetáculo", é que melhor possuía aquela f a m i l i a r i d a d e e aquela experiência de que falamos.
6. V o l t a n d o ao auditório p l a u t i n o , podemos a v a l i a r facilmente quais t e r i a m sido os fatores que l e v a r a m m u i t o s críticos a julgá-lo grosseiro e obtuso; o p r i n c i p a l deles reside nos prólogos.
A m a i o r i a das comédias de Plauto apresenta u m prólogo, destinado geralmente a antecipar ao público certos pormenores da ação que se irá desenrolar, ou até mesmo o desenvolvimento, em linhas gerais, da própria ação, no caso de esta parecer
demasiadamente c o m p l i c a d a .8 Pode parecer então, à p r i m e i r a
vista, que a necessidade de fornecer explicações, às vezes abundantes e minuciosas, ao público, postula a incapacidade deste de acompanhar e de compreender a i n t r i g a de uma peça; estaria provada, pois, a grosseria do público romano. Cita-se sempre em desabono do auditório o prólogo do Poenulus, em sua p a r t e i n i c i a l , onde P l a u t o nos dá uma visão pitoresca da babélica aglomeração de povo n u m d i a de espetáculos: velhas p r o s t i t u t a s que t e n t a m sentar-se no palco, gente que v a i e vem, escravos que ocupam os lugares dos livres, amas secas que
( 8 ) N ã o e n t r a r e m o s e m c o n s i d e r a ç õ e s s o b r e a a u t e n t i c i d a d e o u n ã o d o s p r ó l o g o s p l a u t i n o s , q u e m u i t o s c r í t i c o s t ê m p o s t o e m d ú v i d a ; é o p i n i ã o c o r r e n t e , m o d e r n a -m e n t e . Q u e se d e v a -m a c e i t a r c o -m o a u t ê n t i c o s , e n ã o f r u t o d e p o s t e r i o r retractatio, t o d o s o s p r ó l o g o s , s a l v o o d a Casina, q u e j á L e o , Plaut. Forsch., p . 1 7 1 , c o n s i d e r o u i n t e r p o l a d o , a o m e n o s p a r c i a l m e n t e , a l é m d e a l g u n s v e r s o s i s o l a d o s e m v á r i o s o u t r o s p r ó l o g o s , e q u e t a m b é m p a r e c e m d u v i d o s o s . E m r e s u m o , c o n c o r d a m o s c o m a p o s i ç ã o m o d e r a d a a s s u m i d a p o r C . M a r c h e s i , Storia delia letteratura latina, 2 v o l s . M i l a n o , 1 9 5 9 , q u e a f i r m a à p . 5 0 d o v o l . I : ' ' O s p r ó l o g o s f o r a m e s c r i t o s p o r P l a u t o | . . . [ m a s n e m t o d o s p e r m a n e c e r a m n a f o r m a g e n u í n a " .
trazem ao teatro crianças que b e r r a m como cabritos, mulheres que conversam com suas vizinhas — u m a a l g a z a r r a m e d o n h a . . . Seria este o público que pretendemos s u b t r a i r à visão t r a d i c i o n a l que dele se f o r m o u ? N ã o seria esta visão t r a d i c i o n a l a correta, se levarmos em conta alusões como e s t a :
D o r m i e n t i s spectatores metuis ne ex somno excites? ( M e r c . 160)
("Tens medo de acordar os espectadores que estão d o r m i n d o ? " ) que depõem c o n t r a a atenção que os espectadores prestavam à representação? E que dizer dos apelos reiterados do poeta ao público, expressos pelas palavras silete, tacete,
adeste cum silentio, animam advortite, operam date e
seme-lhantes, e que são comuns nos prólogos plautinos?
Se não chega a acontecer exatamente o contrário, pelo menos bem diferente é a interpretação que se faz m i s t e r t e n t a r .
M l l e . G u i l l e m i n percebeu claramente o perigo de t o m a r ao pé da l e t r a certas passagens de Plauto, e especialmente a r e l a t i v a à paisagem h u m a n a t a l como se nos apresenta no
prólogo do Poenulus:9 na realidade, aquele quadro, u m t a n t o
p e r t u r b a d o r , não deve ser levado m u i t o a sério, porque P l a u t o quis evidentemente fazer não o r e t r a t o f i e l , mas a c a r i c a t u r a da realidade, o que é até certo ponto n a t u r a l e até desejável n u m poeta cômico. A mesma cautela se deve usar p a r a com as repetidas advertências que P l a u t o d i r i g e aos espectadores: é u m dos m u i t o s processos que o a u t o r emprega para, de certa f o r m a , a g r a d a r ao público, tornando-o p a r t i c i p a n t e da própria ação. Seria desnecessário t e n t a r t r a n s c r e v e r todos os trechos em que este processo é empregado p o r P l a u t o em função de uma técnica dramática destinada a u m a captatio benevolentiae que l e v a r i a n a t u r a l m e n t e os espectadores a se i n t e g r a r e m na ação e a se i d e n t i f i c a r e m com as personagens; citaremos apenas u m caso típico e que nos pareceu o mais s i g n i f i c a t i v o entre todos: são os versos 715-720 da Aulularia, e m que Euclião, no desespero que lhe v i n h a da perda do seu tesouro, dirige-se ao auditório solicitando-lhe que o a u x i l i e na busca:
" E t u , que me dizes? E m t i e u c o n f i o : t e n s c a r a de h o n e s t o . Q u e é que há? P o r que e s t a i s a r i r ? E u vos conheço u m p o r u m : sei que a q u i há m u i t o s ladrões disfarçados d e b a i x o de r o u p a s b o n i t a s , e que f i c a m s e n t a d i n h o s e m seus l u g a r e s como se f o s s e m g e n t e h o n e s t a . E então? Q u e m está c o m o
m e u d i n h e i r o ? N i n g u é m . T u m e m a t a s . F a l a , v a m o s , c o m q u e m está? N ã o sabes? A h , p o b r e de m i m . . . "
Podemos i m a g i n a r facilmente o efeito que tais palavras exerciam sobre os espectadores, que não e r a m os receptores passivos dos gracejos do autor, mas t i n h a m a ilusão de p a r t i -c i p a r de alguma m a n e i r a da t r a m a , de serem os depositários de u m segredo a eles confiado pelo poeta e que o a t o r p r o c u r a v a desesperadamente desvendar.
Tais recursos e r a m seguramente apreciados por todos. Cèbe m o s t r o u com m u i t a razão que na Roma do tempo de Plauto não h a v i a u m público p a r a a tragédia e o u t r o p a r a a
comédia: 1 0 o público era o mesmo, os gostos e r a m comuns, e
a habilidade de Plauto consiste em a g r a d a r igualmente à massa e à e l i t e ; mesmo quando p a r o d i a v a as tragédias e i n -t r o d u z i a em suas peças referências mi-tológicas que hoje nos parecem obscuras, certamente o público, que não era tão ignorante, sabia reconhecer personagens e episódios, e apreciar o contraste proveniente do t r a t a m e n t o cômico de m a t e r i a l trágico.
7. Também é oportuno e l i m i n a r o preconceito de que o público, t r a d i c i o n a l m e n t e considerado t u m u l t u o s o , dispersivo e boçal, necessitava de contínuos esclarecimentos p a r a compreender as peças. H o u g h , n u m t r a b a l h o i n t e l i g e n t e e bem
d o c u m e n t a d o ,1 1 m o s t r o u i n i c i a l m e n t e que nem todas as peças
de Plauto apresentam explicações abundantes e até mesmo excessivas; e a p a r t i r da constatação e da análise deste f a t o , tentou elaborar u m esboço de cronologia bastante s i g n i f i c a -t i v o : as peças mais an-tigas são as que con-têm maiores e mais minuciosas explicações prévias e repetidas ao longo da i n t r i g a (ex.: Poenulus, v. 547 e segs.), enquanto as peças mais recentes são pobres em informações, ou carecem t o t a l m e n t e delas. O que ocorreu, na intepretação daquele autor, f o i que, à medida que se i a m sucedendo as representações, o auditório r o m a n o ia-se t o r n a n d o cada vez mais f a m i l i a r i z a d o com aquele gênero dramático, de e s t r u t u r a relativamente simples e constante, a ponto de não mais precisar, no f i n a l da c a r r e i r a de Plauto, de tantas explicações quantas e r a m necessárias no início da mesma.
De t u d o isto que aqui ficou d i t o , podemos e x t r a i r u m a conclusão substancialmante diversa da concepção t r a d i c i o n a l
( 1 0 ) J . P . C è b e , " L e n i v e a u c u l t u r e l d u p u b l i c p l a u t i n i e n " , R.B.L., X X X V I I I , p . 1 0 1 - 1 0 6 . ( 1 1 ) J . N . H o u g h . " T h e u n d e r s t a n d i n g o f i n t r i g u e : a s t u d y i n p l a u t i n e c h r o n o l o g y " ,
sobre o auditório romano da época de P l a u t o : o público, no fundo, não era absolutamente estúpido, de inteligência l i m i t a d a e de conhecimentos mais l i m i t a d o s a i n d a ; era, isto s i m , exigente, ou, como a f i r m a m u i t o bem o já citado T a l a d o i r e , "difícil de satisfazer, apegado ao seu prazer, e já r i c o em exigências dramáticas".
Tudo isto nos ajuda a compreender m e l h o r a comédia p l a u t i n a : devemos concluir que Plauto p a r t i u de modelos gregos para fazer u m a comédia que não é nem grega nem romana — é i n t e i r a m e n t e " p l a u t i n a " , no sentido em que modifica substancialmente o espírito, mais do que a e s t r u t u r a , da Néa .
8. Escaparia aos nossos propósitos fazer o estudo das numerosas inovações que Plauto i n t r o d u z i u na palliata (a comédia l a t i n a de a r g u m e n t o g r e g o ) , mas não podem f i c a r sem r e g i s t r o algumas conclusões, embora esquemáticas: com o genial sarsinate a palliata deu l a r g a acolhida à herança itálica das atelanas e das farsas fliácicas m e r i d i o n a i s , donde a exa-cerbação do caráter licencioso, grosseiro e farsesco das peças; os diálogos g a n h a r a m em extensão e em vivacidade, e a c o m i c i -dade v e r b a l adquire u m papel e x t r a o r d i n a r i a m e n t e i m p o r t a n t e ; a "contaminação" complicou a i n t r i g a e se t o r n o u f a t o r de comicidade na medida em que s e r v i u p a r a c r i a r situações i n t r i n c a d a s e ridículas; e f i n a l m e n t e , as partes líricas, i n c l u i n d o as duas modalidades — r e c i t a t i v o com acompanhamento musical e partes p r o p r i a m e n t e cantadas — , são ampliadas até a t i n g i r em certas peças os 3 / 4 do t o t a l dos versos, o que
a p r o x i m a a comédia p l a u t i n a da moderna o p e r e t a .1 2
F o r a m exatamente estas inovações que t o r n a r a m P l a u t o o a u t o r p r e f e r i d o do público da época, e a esta posição o ipoeta f o i levado pelo conhecimento p r o f u n d o que t i n h a do seu público: em função dele P l a u t o escreveu as suas peças, nelas inserindo todos os ingredientes cômicos que pudessem a g r a d a r a u m auditório experiente e exigente em matéria de riso. U m dos grandes valores de Plauto reside j u s t a m e n t e no a p r o v e i t a -mento dos recursos existentes e na sua adaptação às circuns-tâncias: esta conduta fez de Plauto, senão o m a i o r , u m dos maiores cômicos de todos os tempos.
( 1 2 ) L e i a m - s e a r e s p e i t o as p á g i n a s d e d i c a d a s a o a s s u n t o p o r D u c k w o r t h , op. cit., p . 3 6 1 - 3 8 0 , q u e t r a z e m u m a a n á l i s e m i n u c i o s a e b e m d o c u m e n t a d a d a c o m p o s i ç ã o m é t r i c o - m u s i c a l d a s p e ç a s p l a u t i n a s , e o n d e v e m c i t a d a a t e o r i a d e S e d g w i c k q u e f a z c o i n c i d i r a p r o g r e s s ã o c r e s c e n t e d a s p a r t e s l í r i c a s c o m a d a c r o n o l o g i a p l a u t i n a . m o s t r a n d o a g r a d a t i v a l i b e r t a ç ã o , e m P l a u t o , d o s e s q u e m a s d a N é a , e o c o n s e q ü e n t e e n r i q u e c i m e n t o Ho c a n t o e m s u a s c o m é d i a s .
9 . P r a t i c a m e n t e desde a época de sua fundação, que a tradição coloca em meados do séc. V I I I a . C , e d u r a n t e longos séculos, Roma sofreu influências, d i r e t a s ou i n d i r e t a s , da c u l t u r a grega — diretas através das colônias que os gregos f u n d a r a m em profusão nas costas da M a g n a Grécia e da Sicília, e i n d i r e t a s através dos etruscos do n o r t e e do centro da península. Que essas influências e x i s t i r a m e f o r a m da máxima relevância não escapou à totalidade dos h i s t o r i a d o r e s e dos críticos literários que estudaram o assunto. Infelizmente, a escassez de fontes históricas e de documentos epigráficos, aliados à obscuridade e ao halo de lendas que cercam os p r i m e i r o s séculos de Roma, não nos p e r m i t e m a v a l i a r com segurança os l i m i t e s das contribuições estrangeiras — gregas, em p a r t i c u l a r — p a r a a c u l t u r a romana.
P o r o u t r o lado, esta insegurança é pelo menos atenuada pela existência de o u t r a espécie de documentos — documentos arqueológicos — , cuja natureza e quantidade c o n f i r m a m a influência helénica (quer p o r intermédio etrusco, quer i t a l i o t a ) nas artes f i g u r a t i v a s , na religião e na m i t o l o g i a , no d i r e i t o e, presumivelmente, na língua e na i n c i p i e n t e l i t e r a t u r a dos romanos. Vasos, afrescos, utensílios, esculturas, encontrados em abundância em território itálico atestam a penetração da c u l t u r a grega, sob as mais v a r i a d a s facetas, e a sua p r o n t a difusão desde as épocas mais remotas. E x e m p l o disto é o conjunto de estatuetas de cerâmica, datadas do séc. V a . C . e encontradas em Veios, representando Enéias carregando nos ombros o p a i Anquises d u r a n t e a sua fuga de Tróia: indício de que a lenda de Enéias e todo o ciclo épico l i g a d o à sua chegada à Itália estavam bastante a r r a i g a d o s e n t r e as populações indígenas m u i t o tempo antes de serem aproveitados pelos p r i m e i r o s escritores latinos, que assim se t e r i a m
ins-p i r a d o em m i t o s largamente conhecidos em solo itálico. , : i
10. Tentaremos esboçar u m quadro sucinto da penetra-ção da c u l t u r a grega em Roma, penetrapenetra-ção que se processou, lenta mas continuamente, nos vários setores da v i d a da cidade, desde os p r i m e i r o s contactos i n d i r e t o s e n t r e os dois mundos até a invasão maciça que se i n i c i a no séc. I I I a . C , n u m a
( 1 3 ) P a r a u l t e r i o r e s i n f o r m a ç õ e s d e o r d e m h i s t ó r i c a , l i t e r á r i a o u l i n g ü í s t i c a , c o n s u l -t e m - s e , e n -t r e o u -t r a s , a s o b r a s d e R . C o h e n , La Grèce c-t V helléniaa-tion du mondr antique. P a r i s , 1 9 4 8 ; P . G r i m a l , L e siècle dea Scipiona. Rome et Vhelléniame au temp» dea guerrea puniques. P a r i s , 1 9 5 3 ; G . D e v o t o , Storia delia língua di Roma, B o l o g n a , 1 9 4 4 ; A . M e i l l e t , Esquisae oVune hiatoire de la langue latine. P a r i s , 1 9 5 2 : L . P a r e t i , Storia di Roma e dei mondo romano, 5 v o l . , T o r i n o , 1 9 5 2 - 1 9 6 0 ; A. R o s t a g n i , Letteratura latina, 2 v o l . , T o r i n o , 1 9 5 4 .
progressão crescente que deu o r i g e m , e m última análise, à floração de u m a i m p o r t a n t e l i t e r a t u r a helenizante.
Parece aceitável que o f a t o r decisivo p a r a a penetração da c u l t u r a grega na Itália c e n t r a l e, conseqüentemente, em Roma, f o i a fundação da colônia calcídica de Cumas, no séc. V I I I a . C . Este fato a b r i u o caminho p a r a o intercâmbio, cada vez mais fecundo e intenso, e n t r e as colônias gregas fundadas a p a r t i r daquela d a t a e o m u n d o itálico. É tese universalmente aceita que a penetração comercial no domínio itálico se fez através da Etrúria m e r i d i o n a l . C o m relação a esta afirmação, cabe l e m b r a r que os etruscos h a b i t a v a m u m vasto território, que se estendia desde a planície padana até a Campânia. Às margens do Mediterrâneo ocidental, pois, os territórios latinos constituíam u m v e r d a d e i r o enclave e m território etrusco; e se p o r quaisquer circunstâncias os etruscos t i n h a m deixado de d o m i n a r aquelas t e r r a s , não i r i a m perder a oportunidade de i n f i l t r a r - s e em Roma, importantíssima, pela sua posição estratégica p r i v i l e g i a d a , p a r a as suas relações comerciais com os gregos que d o m i n a v a m o sul da península. E os etruscos p e n e t r a r a m realmente em R o m a : conta a tradição que os últimos reis de Roma f o r a m etruscos, o que não é difícil aceitar p o r várias razões de o r d e m histórica. M a s o que é i m p o r t a n t e ressaltar é que os próprios etruscos f o r a m p r o -fundamente influenciados pelos gregos. T a r q u i n i o o A n t i g o t e r i a sido de o r i g e m grega, sendo seu p a i n a t u r a l de C o r i n t o . Com os gregos do sul da Itália os etruscos m a n t i v e r a m con-tínuos contactos, quer comerciais, trocando com eles suas mercadorias, quer m i l i t a r e s , c o n t r a eles l u t a n d o em busca de uma talassocracia que lhes desse o domínio t o t a l do M e d i t e r -râneo, o que nunca o b t i v e r a m , barrados ao sul pelos gregos e ao ocidente pelos cartagineses.
F o r a m , p o r t a n t o , os etruscos os p r i m e i r o s intermediários e n t r e a M a g n a Grécia e Roma. Quando, a p a r t i r do séc. V a . C , os etruscos p e r d e r a m a sua importância política, m i l i t a r e comercial, em conseqüência das pressões e das d e r r o t a s sofridas ao norte p o r p a r t e dos gauleses invasores, e no c e n t r o às mãos dos romanos, os contactos e n t r e os dois mundos começaram a fazer-se de f o r m a d i r e t a . Tratava-se a i n d a de relações econômicas, e não políticas, como salienta C o h e n : mercadores gregos e t r a f i c a n t e s i t a l i a n o s e r a m "os únicos
agentes de ligação entre os dois mundos". 1 4
É preciso, no entanto, esclarecer melhor e c o m p l e m e n t a r essa afirmação: não se deve pensar que a a r i s t o c r a c i a r u r a l que d o m i n a v a então em R o m a estava interessada exclusiva-mente e m vender, c o m p r a r e t r o c a r artefatos e p r o d u t o s da t e r r a ; houve, certamente, intercâmbio de o r d e m c u l t u r a l (se por preocupação i n t e n c i o n a l ou se por conseqüência d i r e t a dos contactos, não saberíamos d i z e r ) . Sabe-se, por exemplo, da e x t r e m a f l e x i b i l i d a d e da religião romana, sempre p r o n t a a acolher no seu " P a n t h e o n " as divindades e s t r a n g e i r a s ; assim f o i , sem dúvida por intermédio dos etruscos, que parece t e r e m sido i n t r o d u z i d o s em Roma cultos gregos e, com eles, f a t a l -mente, todo o r i t u a l indispensável, desde o início do séc. V a . C : o dos Dióscuros em 484, os de Demetér, D i o n i s o e Cora em 493, o de Hermes em 495, o de Apolo em 496 ou mesmo antes, o que m o s t r a que os romanos não i m p o r t a v a m da M a g n a Grécia somente óleo ou v i n h o ou t r i g o , ou objetos de l u x o , mas i m p o r t a v a m c u l t u r a t a m b é m .1 5
E n t r e t a n t o , estes p r i m e i r o s contactos, ainda espaçados e restritos, constituem apenas os p r e l i m i n a r e s para a v e r d a d e i r a avalancha grega que se despejou sobre o m u n d o romano a p a r t i r mais ou menos do início do séc. I I I a . C , i s t o é, a p a r t i r do momento em que Roma, no seu afã de expansão e de con-quista, v o l t o u suas vistas p a r a o sul da Itália e p a r a a Sicília, p a r t i c u l a r m e n t e esta, que com suas t e r r a s férteis podia r e p r e -sentar uma excelente fonte de abastecimento de cereais p a r a os romanos.
A s guerras saníticas, que entre outras conseqüências t i v e r a m a de pôr t e r m o às pretensões e ao poderio bélico dos povos itálicos, a d e r r o t a das forças de P i r r o e a conquista de T a r e n t o em 272 a . C , representam p a r a Roma a possibilidade de uma tomada de contacto d i r e t o — e isto é m u i t o i m p o r t a n t e — com os centros de irradiação e de difusão da c u l t u r a grega. O caminho para a invasão, em sentido contrário e de ordem não m i l i t a r mas c u l t u r a l , estava aberto, e l a r g a m e n t e a b e r t o : por ele precipitou-se o helenismo à conquista de Roma.
A p a r t i r desta data, os dados constituídos pelas fontes históricas e literárias de que dispomos são numerosos; a i n -fluência grega, até então l i m i t a d a , diríamos quase imponderá-vel se comparada com o período que ora se i n i c i a , torna-se a q u i imponente, poderosa, tangível.
1 1 . Dissemos que o processo de helenização da c u l t u r a romana acelerou-se e x t r a o r d i n a r i a m e n t e d u r a n t e os séculos I I I
e I I a . C . — época da conquista da Grécia, quer da M a g n a Grécia e da Sicília, quer da própria Hélade e da Ásia helenizada.
Focalizaremos aqui, de m a n e i r a sucinta, os p r i n c i p a i s acontecimentos históricos que p r o p i c i a r a m o enriquecimento c u l t u r a l dos romanos, f r u t o do conhecimento de u m novo mundo, rico em tesouros de arte, de filosofia, de l i t e r a t u r a , centro e s p i r i t u a l de m u n d o a n t i g o .
Iniciamos nossa breve resenha com a t o m a d a de T a r e n t o , em 272 a . C : e n t r a m em Roma como p r i s i o n e i r o s do exército vencedor os soldados derrotados, de várias nacionalidades, Molossos, Macedônios, Tessálios, italianos do sul, todos profundamente helenizados; obras de a r t e gregas são trazidas a Roma, ornando a parada t r i u n f a l do vencedor, L . Papírio Cursor. Várias e i m p o r t a n t e s f o r a m as conseqüências deste fato*: artistas gregos passaram a executar suas obras de a r t e na própria Itália r o m a n a e a ensinar suas técnicas; escravos gregos helenizados provenientes das t e r r a s conquistadas e r a m encarregados, na qualidade de "pedagogos", da educação — em moldes gregos — dos filhos das famílias aristocráticas de R o m a ; Espúrio Carvílio, u m l i b e r t o , a b r i u em Roma a p r i m e i r a escola pública, na segunda metade do séc. I I I a . C , onde os jovens romanos estudavam as obras dos autores gregos; e finalmente, em 240 a . C , o grego t a r e n t i n o Lívio Andrônico apresenta uma peça t e a t r a l de sua a u t o r i a , t r a d u z i d a livremente de o r i g i n a l grego, sendo por isso considerado o i n i c i a d o r da l i t e r a t u r a l a t i n a helenizada.
Depois da g u e r r a t a r e n t i n a , o f a t o histórico de m a i o r ressonância na p r i m e i r a metade do séc. I I I a . C . f o i a P r i m e i r a Guerra Púnica: o i m p e r i a l i s m o crescente dos romanos teve a oportunidade de e x p e r i m e n t a r suas forças f o r a da península, e após uma g u e r r a prolongada e sangrenta, de 264 a 241 a . C , pôs o pé na Sicília, que a r r a n c o u a Cartago com exceção do território de Siracusa. O resultado f o i que, " t e r m i n a d a a guerra, a população, quer romana, quer aliada, era | . . . consciente de ser m u i t o diversa do que f o r a uma geração antes I . . . I A grande massa dos soldados e dos m a r i n h e i r o s , que por longos anos t i n h a m v i v i d o f o r a da península, em contacto
com as gentes refinadas da Sicília e da M a g n a Grécia, j . . . I
t i n h a regressado à pátria com uma nova bagagem de experiên-cias, de conhecimentos, de t e r m i n o l o g i a , com o espírito refinado
Apenas umas palavras mais sobre a significação da proclamação de F l a m i n i n o . Deve ela ser encarada menos como a reação humanitária e até certo ponto i m p u l s i v a de u m filo-helênico convicto, do que como a caracterização e a exte-riorização de uma nova mentalidade com relação ao helenismo, que já t o m a r a conta do própria Senado romano.
E diante das premissas apresentadas, parecenos p e r f e i t a -mente lógico o desfecho: Roma v a i helenizando-se paula-tinamente, e os p r i m e r i o s movimentos neste sentido p a r t i r a m da plebe, mais permeável às influências inovadoras de qualquer espécie; com o passar do tempo, e à medida que os novos contactos, comerciais ou m i l i t a r e s , p r o p o r c i o n a v a m a infiltração de u m número cada vez m a i o r de elementos helenizados em Roma, a causa do helenismo começa a exercer pressão sobre os círculos conservadores, a a r i s t o c r a c i a e o Senado, até que estes, vencidos pelo descortínio de u m m u n d o rico em valores estéticos, literários, filosóficos, p r o d u t o de quase u m milênio de fecunda civilização, deixaramse p e n e t r a r p o r u m s e n t i -mento novo de admiração e respeito, a princípio, de f r a n c a e incondicional adesão posteriormente, à causa, já ganha, do helenismo.
A resistência de Catão, o Censor, e as suas investidas contra o helenismo invasor, em f a v o r das legítimas tradições ancestrais, parecem t e r sido exemplo isolado, a " v o x c l a m a n t i s i n deserto", logo sufocada pela gigantesca onda das influências helénicas. E não f o i sem razão que, cerca de 150 anos mais tarde, e p o r t a n t o com suficiente perspectiva histórica p a r a discernir os fatos, o poeta Horácio escreveu:
Graecia capta f e r u m v i c t o r e m c e p i t , . . . (Epíst. I I , 1, 156)
" A Grécia dominada conquistou seu rude e i n c u l t o vencedor".
12. Passaremos agora a algumas ligeiras considerações acerca das influências que a civilização grega t r o u x e p a r a a língua l a t i n a . Já mencionamos a importância do intermediário etrusco na fase i n i c i a l do processo de helenização de R o m a : é n a t u r a l que a mediação etrusca se fizesse presente também no aspecto lingüístico desse processo. L e m b r a r e m o s i n i c i a l m e n t e que o alfabeto l a t i n o , assim como o de todos os demais dialetos itálicos, é o próprio alfabeto grego, i n t r o d u z i d o e m Roma possivelmente através do etrusco, adaptado às exigências da língua e consideravelmente a l t e r a d o ; em caracteres gregos —
mas em l a t i m , embora r u d i m e n t a r — são as p r i m e i r a s inscrições latinas conhecidas, datadas provavelmente do séc. V I I ou V I a . C , como a da Fíbula de Preneste e a do Vaso de Dueños.
Está f o r a de dúvida o f a t o de o l a t i m t e r recebido do grego numerosos empréstimos, de vocábulos e de expressões idiomá-ticas, que representam mais u m f a t o r de evolução e de enriquecimento da língua. M a i s adiante discursaremos sobre a antigüidade de certos empréstimos encontrados na o b r a de P l a u t o ; com efeito, embora seja difícil precisar a época da introdução de termos gregos na língua, é fácil v e r i f i c a r que muitos deles r e m o n t a m aos primórdios da civilização l a t i n a , estando perfeitamente incorporados ao vocabulário l a t i n o , enquanto outros são de introdução recente, revelada pela sua f o r m a próxima do o r i g i n a l , sem as alterações que atestam assimilação a n t i g a . M e i l l e t inclina-se a aceitar o séc. V I I a . C como ponto i n i c i a l da ação exercida pelo grego sobre o l a t i m , enquanto Devoto a f i r m a que o p r i m e i r o período em que palavras gregas chegaram a Roma pode ser compreendido
entre 550 e 475 a . C .1 7 Qualquer que tenha sido a data, porém,
o que i m p o r t a salientar é a possibilidade, e até mesmo a p r o babilidade, de t e r havido, como resultado dos contatos f r e -qüentes entre mercadores, m a r i n h e i r o s e viajantes latinos e de outros povos, u m a espécie de jargão i n t e r n a c i o n a l , de língua franca, m i s t u r a de diversos elementos, gregos, latinos, etruscos, fenícios, itálicos, celtas, útil à mútua compreensão. A i m p o r -tância deste f a t o é r e l a t i v a , evidentemente, porque r e s t r i t a e c i r c u n s c r i t a a u m a camada da população, a camada, porém, mais receptiva às influências exóticas, que é a plebe: a m a i o r importância do f a t o está, a nosso ver, em que os helenismos introduzidos por v i a popular c o n s t i t u e m u m lastro, u m a t r a d i ção lingüística e c u l t u r a l que p r e p a r a o caminho à r e c e p t i v i -dade concedida aos helenismos eruditos e, por conseqüência, à criação analógica d e n t r o do próprio l a t i m , que se processou posteriormente.
13. Parece lícito supor que, na época em que Plauto v i v e u e compôs suas obras, a língua grega tivesse u m a a m p l a difusão em Roma, a ponto de alguns estudiosos a considerarem uma segunda língua, como G r i m a l , que a f i r m a : "podemos l e g i t i m a m e n t e a d m i t i r que, pelos meados do séc. I I I antes da
( 1 7 ) A l é m d a s o b r a s j á c i t a d a s d e A . M e i l l e t e G . D e v o t o , c o n s u l t e m - s e a r e s p e i t o A . D a i n , " L e s r a p p o r t s g r é c o - l a t i n s " , Memorial des Etudes Latines, P a r i s , 1 9 4 3 , p . 1 4 9 - 1 6 1 ; J . M a r o u z e a u , Quelques aspects de la formation du latin littéraire, P a r i s , 1 9 4 9 .
nossa era, Roma era b i l í n g u e " .1 8 A c r e d i t a m o s que esta a f i r
-mação deva ser acolhida com a l g u m a r e s e r v a ; não temos dúvida, entretanto, de que o grego devia ser compreendido e falado, mesmo com as n a t u r a i s deformações próprias dos bilíngues, por uma extensa f a i x a da população da cidade.
Mas que modalidade de grego se f a l a v a em Roma, e p o r quem era falado?
É evidente que a resposta à segunda p e r g u n t a condiciona a p r i m e i r a , ou, na m e l h o r das hipóteses, ambas estão em estreita relação: cada camada da população, em qualquer socie-dade, determina a seleção, a escolha de u m t i p o de l i n g u a g e m adequado às suas necesssidades, aos seus gostos, à sua m a n e i r a de ser e às suas atividades.
Desta f o r m a , teremos que estabelecer i n i c i a l m e n t e u m a distinção entre a classe culta de Roma, geralmente coincidindo com a aristocracia, e a grande massa da população, a plebe, em que se podem i n c l u i r os escravos e os l i b e r t o s . Não há, evidentemente, l i m i t e s rígidos entre essas duas classes, a não ser os de ordem sócio-econômica; do ponto de v i s t a c u l t u r a l , os limites f l u t u a m e os extremos se tocam e se d i l u e m . M l l e . G u i l l e m i n distingue ainda uma t e r c e i r a classe, a dos semicultos, que representaria o agente de ligação, o estágio i n t e r -mediário entre as duas categorias extremas — a plebe
ignorante de u m lado e a aristocracia c u l t a do o u t r o .1 9 Difícil
parece caracterizar o gênero de pessoas que pertencem a esta classe intermediária, de a l g u m a importância como elemento componente do público literário de Roma. E m princípio, poderíamos i n c l u i r aqui uma parte dos componentes da plebe, e mais especificamente, aqueles escravos e l i b e r t o s gregos ou helenizados que desempenharam o papel dos p r i m e i r o s educa-dores da j u v e n t u d e romana. Com efeito, não se podem considerar verdadeiramente cultos os numerosos "pedagogos" a serviço das famílias abastadas: seus conhecimentos, a i n d a que indubitavelmente superiores à média dos romanos da época, não lhes c o n f e r i a m o dom da v e r d a d e i r a c u l t u r a , por não serem profundos nem sistemáticos. Aqueles escravos e libertos, oriundos de regiões helenizadas, apenas ensinavam o grego e comentavam as obras dos autores gregos p a r a os jovens romanos com a n a t u r a l i d a d e e a superficialidade de quem conhece sua língua de o r i g e m , mas também sem a segu-rança e a profundidade do verdadeiro mestre.
( 1 8 ) Op. cit., p . 2 7 . ( 1 9 ) Op. cit., p p . 5-6.
De qualquer f o r m a , é inegável que o contingente de i n d i -víduos englobados no que se conhece por plebe era a parcela da população numericamente mais representativa, e todos os estudiosos da matéria concordam em que a plebe estava, na época de Plauto, fortemente helenizada. Não parece difícil aceitar esta tese, se l e m b r a r m o s que, como conseqüência d i r e t a das guerras externas, a esmagadora m a i o r i a d a população escrava que f o i i n t r o d u z i d a em Roma era constituída de elementos procedentes de territórios sujeitos à influência g r e g a ; e seu número não era certamente desprezível como componente
da plebe r o m a n a .2 0 Considerando, pois, tais escravos que
provavelmente empregavam o grego como língua c o m u m de suas relações diárias, ou que, pelo menos, estavam aptos a compreendê-lo perfeitamente, e acrescentando-se os já numerosos libertos e os m i l h a r e s de veteranos das g u e r r a s e x t e r i o -res que h a v i a m passado m u i t o s anos em contacto com povos helenizados, teremos u m a visão bastante c l a r a de uma plebe que n u m a porcentagem m u i t o s i g n i f i c a t i v a , no mínimo pela metade, estava à a l t u r a de compreender r u d i m e n t o s de grego, senão mesmo a língua na sua totalidade.
Mas que grego era esse? Não certamente a língua evoluída, r i c a e bem e s t r u t u r a d a , em que estavam escritas as grandes obras clássicas, mas u m a língua s i m p l i f i c a d a , de vocabulário r e s t r i t o e l i m i t a d o às necessidades dos contactos diários, às relações comerciais e profissionais, u m a espécie de koinê despojada dos artifícios que c a r a c t e r i z a m a l i n g u a g e m das classes c u l t a s ; o grego era, e n f i m , na expressão de G r i m a l , "a língua das técnicas c o t i d i a n a s " .2 1
Quanto à aristocracia, a classe culta de Roma, sabe-se que representava, em números, a m i n o r i a absoluta da população, apesar de detentora do poder político e econômico; ela v i n h a sendo aos poucos conquistada pelo helenismo, a ponto de ser, na época de Plauto, i n t e i r a m e n t e favorável a tudo o que fosse grego. D i a n t e do esplendor de uma civilização superior e agora plenamente desvendada e conhecida, a reação de u m Catão ergue-se como u m solitário exemplo logo submergido pela onda de admiração e pelos anseios de assimilação e de e n r i -quecimento e s p i r i t u a l de uma elite consciente e ávida de saber. Não f o r a isto, não seria possível e x p l i c a r certos acontecimentos :
( 2 0 ) E n t r e o s a u t o r e s c o n s u l t a d o s . , F . R . C o w e l l , Everyday life in ancient Rome, L o n d o n , 1 9 6 1 ; M . G r a n t , The world of Rome, L o n d o n , 1 9 6 0 ; T h . W o o d y , Life and education in early societies, N e w Y o r k 1 9 4 9 : a p r o p o r ç ã o e n t r e e s c r a v o s e c i d a d ã o s l i v r e s d e v i a v a r i a r e n t r e 1:3 e 1 : 2 .
como poderia Postúmio, embaixador dos romanos j u n t o aos tarentinos, ter discursado p a r a estes em grego, já e m 282 a . C , e t e r sido compreendido, se bem que suscitando r i s o no a u d i -t o r i o ? É que, p a r a a aris-tocracia r o m a n a , o grego f o i desde o estabelecimento dos p r i m e i r o s contactos diretos, a língua i n t e r
-nacional, das relações diplomáticas;2 2 é que, "no começo do
séc. I I I , estuda-se em Roma a língua g r e g a " ,2 3 e as únicas
pessoas em condições de aprendê-la e r a m os nobres e seus filhos. O u t r a p r o v a i m p o r t a n t e p a r a m o s t r a r até que ponto o filo-helenismo estava espalhado e p r o f u n d a m e n t o a r r a i g a d o na aristocracia, parecenos o f a t o , já citado, da concessão da i n d e -pendência à Grécia por F l a m i n i n o , em 196 a . C . ; se o Senado, o órgão conservador por excelência d e n t r o da sociedade romana, exarou aquele senatus-consultum, f o i porque naquela época era franco simpatizante da c u l t u r a grega.
F i n a l m e n t e , acerca do p r o b l e m a da difusão do grego e m
Roma, citaremos o pensamento de M e i l l e t :2 4 " N a língua do
povo, esta influência ( i . é , do g r e g o ) se m a n i f e s t a sem reservas; e parece que v e m de longa data. N a língua da elite, ela é mais p r o f u n d a , mas menos antiga, e se d i s s i m u l a p o r trás de uma cuidadosa manutenção das aparências exteriores dos usos t r a d i c i o n a i s " , e o de Boyancé, que a f i r m a que o conheci-mento p r o f u n d o da língua grega, pelo estudo e pela aplicação
metódica, é apanágio das classes cultas, da aristocracia. 2 5
E m resumo, a plebe r o m a n a possuía, na época de Plauto, o conhecimento da língua grega necessário a suas relações diárias, de l i m i t a d a s exigências c u l t u r a i s , pobre e s u p e r f i c i a l . A aristocracia, por sua vez, detentora de u m quase monopólio da c u l t u r a , era a classe que realmente compreendia e f a l a v a o grego, não aquele grego que servia de meio de comunicação r o t i n e i r a , mas aquele, mais p e r f e i t o e rico, que era a v e r d a d e i r a
língua da c u l t u r a ocidental.
14. Acabamos de ver que uma p a r t e considerável da população r o m a n a era constituída de escravos, l i b e r t o s e pessoas que t i n h a m passado vários anos de sua v i d a em contacto com os povos refinados da M a g n a Grécia, da Sicília, do Oriente, onde a p r e n d e r a m a gostar j u n t o aos nativos de m u i t a s coisas para eles desconhecidas, estranhas e fascinantes: a religião, com seus complicados mistérios, e o t e a t r o estavam entre elas.
( 2 2 ) H . I . M a r r o u , Histoire de l'éducation dans l'antiquité, P a r i s , 1 9 5 8 , p . 3 3 2 . ( 2 3 ) G . C o l i n , Rome et la Grèce. De 200 à US avant Jésus-Christ, P a r i s , 1 9 0 5 , p . 1 8 .
( 2 4 ) o p . cit., p . 1 1 7 .
( 2 5 ) P . B o y a n c é , " L a c o n n a i s s a n c e d u g r e c à R o m e " , R . E . L . , X X X I V , p . 1 1 - 1 3 1 , e e s p e c i a l m e n t e p . 1 1 6 .
A m b a s as manifestações constituem autênticas válvulas p o r onde se escoavam as ansiedades, os temores, as preocupações de homens cansados e extenuados por longas g u e r r a s : buscava-se na religião o conforto através da crença, no t e a t r o o esqueci-mento através do d i v e r t i m e n t o catártico.
E m Roma, escravos e veteranos de g u e r r a p r o c u r a r a m logo e v i t a r a solução de continuidade naquilo a que estavam não somente habituados, mas que representava p a r a eles u m a necessidade e s p i r i t u a l : os romanos precisavam d i v e r t i r - s e , d i s t r a i r o seu espírito nos intervalos, curtos demais, entre u m a g u e r r a e o u t r a , com a sombra da m o r t e a p a i r a r sobre eles ameaçadora; os escravos estrangeiros precisavam esquecer as tristezas da sua condição, e u m passado de liberdade destruído.
Talvez resida aí o p r i n c i p a l m o t i v o do extraordinário florescimento, de u m lado, de cultos novos que p r o p o r c i o n a v a m a seus adeptos a libertação dos rígidos grilhões da religião o f i c i a l ; de o u t r o lado, do teatro, onde sobressaem, p o r influên-cia d i r e t a do d r a m a grego, a tragédia e a comédia.
E m b o r a pareça provável que o público da tragédia e o da comédia fosse substancialmente o mesmo, é lícito supor que houvesse uma discriminação na preferência p o r u m ou o u t r o gênero, de acordo com o nível sócio-cultural dos espectadores. Longas têm sido as controvérsias a respeito dessa preferência; de nossa parte, embora não concordando i n t e i r a m e n t e com alguns historiadores da l i t e r a t u r a l a t i n a , segundo os quais a tragédia não se a c l i m a t o u em Roma por não t e r a l i encontrado alimento no substrato c u l t u r a l — m i t o l o g i a e religião — romano, acreditamos que o público desta cidade, constituído em sua grande m a i o r i a de elementos incultos, manifestou sempre nítida preferência pela comédia. Tentaremos a seguir j u s t i f i c a r nosso ponto de v i s t a .
A hipótese de que o ambiente psicológico e a composição social do povo romano t e r i a m favorecido o m a i o r desenvolvi-mento de u m gênero literário destinado precipuamente a d i v e r t i r , enriquecido e j u s t i f i c a d o pelas experiências, no campo cômico-dramático, dos elementos itálicos como os fesceninos, a
satura, a atelana, as farsas fliácicas, parece fortalecer a idéia
de que o italum acetum, em todas as suas manifestações, era inerente ao gênio do povo e mais apreciado do que as sutilezas e a erudição trágicas.
Poder-se-ia ainda aduzir o f a t o de que as personagens da tragédia, envolvidas n u m a auréola quase sublime, não e r a m tão " h u m a n a s " quanto as personagens da palliata, onde os
romanos se c o m p r a z i a m em descobrir, p a r a usar as palavras de Cícero, "effictos nostros mores i n alienis personis expres-samque i m a g i n e m n o s t r a m vitae q u o t i d i a n a e "2 6 ("os nossos
costumes representados nas personagens e r e f l e t i d o nelas o r e t r a t o da nossa v i d a de cada d i a " ) .
O u t r o a r g u m e n t o de que se poderia lançar mão p a r a realçar a preferência do público romano pela comédia é o de que o número das tragédias de que se conhecem f r a g m e n t o s ou títulos eleva-se a cerca de 150; ora, sabemos que somente a Plauto f o r a m atribuídas por volta de 130 comédias, sem levarmos em conta as de Andrônico, de Névio, de Ênio, de Terêncio, as q u a t r o dezenas de Cecílio e a dos numerosos comediógrafos menores. Mas apesar do f a t o , aparentemente evidente, de que a produção cômica l a t i n a f o i q u a n t i t a t i v a -mente m u i t o superior à produção trágica, este a r g u m e n t o ainda pode ser contestado por não c o n f i g u r a r n i t i d a m e n t e p r o v a de preferência, mas especialmente por não levar em consideração as vicissitudes por que passaram as obras dos antigos ao longo dos séculos; e esta ação do tempo i n f e l i z m e n t e j a m a i s poderá ser avaliada, nem mesmo a p r o x i m a d a m e n t e .
Mas nada se poderia o b j e t a r c o n t r a o testemunho do próprio Plauto, que, pelo p r o f u n d o conhecimento que t i n h a do público, se d i v e r t e em provocar-lhe a reação, através de alguns versos que testemunham clara e inequivocamente quais e r a m os gostos e as reais preferências dos espectadores:
. . . . a r g u m e n t u m h u i u s e l o q u a r t r a g o e d i a e . Q u i d c o n t r a x i s t i s f r o n t e m ? q u i a t r a g o e d i a m d i x i f u t u r a m h a n c ? deus s u m , c o m m u t a v e r o . E a n d e m h a n c , si v u l t i s , f a c i a m ex t r a g o e d i a c o m o e d i a u t s i t o m n i b u s i s d e m v o r s i b u s . ( A m p h . 51-55)
( " . . . vou expor o assunto desta tragédia. P o r que f r a n z i r a m a testa? Só por que falei em tragédia? Sou u m deus, m u d a r e i imediatamente. Já que vocês insistem, t r a n s f o r m a r e i esta mesma peça de tragédia em comédia sem t r o c a r u m único v e r s o " ) .
Por estes argumentos, podemos deduzir sem receio de e r r a r que o público romano apreciava e x t r a o r d i n a r i a m e n t e a comédia, ditava-lhe as leis e d e t e r m i n a v a o êxito ou o m a l o g r o
de uma p e ç a .2 7 Plauto, então, apenas f o i ao encontro das
( 2 6 ) Pro Sexto Roacio Amerino oratio, X V I , 4 7 .
( 2 7 ) L e m b r e - s e o q u e a c o n t e c e u c o m a Hecyra d e T e r ê n c i o , q u e t e v e d u a s r e p r e s e n t a ç õ e s s u c e s s i v a s s u s p e n s a s p o r t e r e m os e s p e c t a d o r e s a b a n d o n a d o o t e a t r o , a t r a í d o s p o r u m a c o m p a n h i a d e s a l t i m b a n c o s e p o r u m e s p e t á c u l o d e g l a d i a d o r e s .
exigências e das necessidades de u m público, do "seu" público, de quem conhecia os gostos, com quem c o m p a r t i l h a v a os mes-mos ideais, p a r a quem se sentia i r r e s i s t i v e l m e n t e atraído por u m a " s y m p a t h e i a " que lhe v i n h a possivelmente da sua o r i g e m itálica propensa ao farsesco.
15. O levantamento que efetuamos dos termos de o r i g e m grega nas comédias de Plauto revelou que o nosso a u t o r empre-gou cerca de 1100 palavras e expressões gregas, incluídas as repetições, ou pouco menos de 400 sem repetição. A l g u m a s observações, ainda que ligeiras, se impõem.
Desse t o t a l , u m número razoável de vocábulos estava perfeitamente incorporado ao léxico l a t i n o na época de P l a u t o ; mais adiante examinaremos alguns e apontaremos as razões que nos p e r m i t e m postular-lhes a antiguidade. Outros f o r a m usados pela p r i m e i r a vez por Plauto, e desses, assim como dos anteriores, a sorte f o i v a r i a d a : alguns atravessaram a l a t i n i dade e f o r a m acolhidos, ora por v i a popular, ora por v i a e r u -d i t a ou semi-eru-dita, nas línguas n e o l a t i n a s ; é o caso, por exemplo, de termos cujos correspondentes vernáculos são: teatro, comédia, tragédia, cena, atleta, ginásio, hipódromo, palestra, símbolo, talento, tesouro, a r q u i t e t o , escudo, tímpano, t i r a n o , basílica, empório, praça, apólogo, cera, epístola, peda-gogo, filósofo, poema, poeta, sílaba, óleo, ostra, polvo, tóxico, úlcera, resina, baleia, elefante, ânfora, ampola, cesta, lâmpada, púrpura, tapete, o r g i a , bárbaro, parasita, t r i u n f o etc.; outros c o n t i n u a r a m sendo empregados, com m a i o r ou menor freqüên-cia, pelos autores latinos, mas não d e i x a r a m vestígio nas línguas românicas. E f i n a l m e n t e , cerca de 40 são hápax
legómena plautinos, isto é, f o r a m empregados apenas por P l a u t o
uma única vez, sem nenhuma o u t r a atestação nos escritores latinos das várias épocas; são p r i n c i p a l m e n t e estes que m e l h o r atendem às finalidades do poeta que adiante apontaremos.
Especial interesse desperta u m g r u p o de vocábulos de indubitável criação p l a u t i n a , estranhos e irredutíveis a u m modelo g r e g o : são os vocábulos que na boca do cozinheiro do
Pseudolus designam certas variedades de alimentos, que com
toda a probabilidade são imaginários e inventados por ele: e realmente, toda a cena em questão ( v . 790-904) t e m f i n a l i d a d e n i t i d a m e n t e cômica, bem ao gosto do auditório romano, o qual se comprazia com esses trechos acessórios, numerosos em Plauto, que assinalavam verdadeiras pausas d e n t r o da econo-m i a das peças e que, suscitando a h i l a r i d a d e dos espectadores, renovavam-lhes o interesse e despertavam neles a disposição favorável ao acompanhamento da seqüência do enredo.
É exatamente aqui que se manifesta a habilidade de Plauto, nesta renovação constante, nesta alternância de tons dramáti-cos, na quebra p r o p o s i t a l do r i t m o da ação p a r a nela i n s e r i r novos e variados elementos de v i t a l i d a d e e de interesse, no desejo sempre presente, e de que já falamos, de a g r a d a r a u m público exigente e folgazão.
N o caso em apreço, bem como em outros casos semelhantes, não vemos m o t i v o de dúvidas quanto à " p l a u t i n i d a d e " de certos recursos dramáticos; e a nosso ver, uma das melhores provas reside j u s t a m e n t e neste g r u p o de palavras, que, a r i g o r , não são gregas, e m u i t o menos romanas. Pode-se argüí-las, a q u i
como outras alhures, de "falsas", na medida em que desrespei-t a m normas mais ou menos rígidas de formação de p a l a v r a s no grego. Ora, o verdadeiro c r i a d o r , d e n t r o das circunstâncias, dos l i m i t e s e das finalidades em que Plauto o f o i , pode pres-c i n d i r da absoluta fidelidade a normas e modelos, pois é nessa liberdade que m e l h o r se manifesta o gênio c r i a d o r e a vis
cômica do poeta. Plauto, ao c r i a r certos nomes próprios e
certas palavras, propositadamente "falsos" em nosso entender, quis apenas ser coerente com sua a t i t u d e perante o seu público : quis i n t e g r a r o seu auditório no c l i m a da representação cômica, fazer a sua fantasia t r a b a l h a r , apelar p a r a a sua capacidade de compreensão e de j u l g a m e n t o , fazendo, e n f i m , de a p r o x i -madas e grosseiras imitações de nomes e termos gregos, fonte nova de comicidade e de v i g o r . Não é, pois, por simples acaso ou por desconhecimento dos seus recursos que Plauto coloca na boca do ridículo e orgulhoso cozinheiro do Pseudolus (se a tradição dos manuscritos é f i e l ) as palavras cataractria ( 8 3 6 ) ,
cepolendrum ( 8 3 1 ) , cicilendrum (831) e cicimandrum ( 8 3 5 ) , hapalopsis ( 8 3 6 ) , maceis (832) e secaptis ( 8 3 2 ) , que d e v i a m
parecer, aos olhos do incrédulo Balião e à espicaçada c u r i o s i -dade do auditório, alimentos requintados e divinos, ver-dadeiras armas secretas na bagagem de u m mestre na profissão. É vã e inútil a t e n t a t i v a de p r o c u r a r os possíveis o r i g i n a i s gregos para essas p a l a v r a s : elas apresentam aquele indubitável sabor grego que sozinho bastava p a r a deliciar os ouvidos dos espectadores, e devem ser levadas à conta de criações cômicas p u r a -mente plautinas.
N a mesma l i n h a de criações jocosas destinadas a p r o v o c a r o riso encontram-se dezenas de palavras, calcadas em corres-pondentes gregos, mas sempre empregadas em P l a u t o com nítido v a l o r cômico, proporcionado ora pelo vocábulo em si, como é o caso dos termos pithecium e spinturnicium ( M i l . 9 8 9 ) e de verbos tais como badizare ( A s i n . 7 0 6 ) , drachumissare
( P s e u d . 8 0 8 ) , moechissare ( C a s . 9 7 6 ) , thermopotare ( T r i n . 1014) ; ora pelo contexto, como no g r u p o composto pelos verbos
graecissare, atticissare e sicilicissitare ( M e n . 11-12), e na cena
onde desfilam, n u m a velada crítica ao l u x o f e m i n i n o , os nomes de 24 ultra-especializados profissionais, dez dos quais de o r i g e m grega ( A u l . 5 0 8 - 5 2 2 ) .
A i n d a nesta o r d e m de considerações, apontamos u m g r u p o de vocábulos híbridos, formações grecolatinas, e hápax p l a u -tinos evidentemente, que parecem atestar, além da perícia e do
talento criador do poeta, a f a m i l i a r i d a d e do auditório romano com a língua g r e g a : se assim não fosse, esses termos, carrega-dos de comicidade, não t e r i a m o menor sentido — nem Plauto os t e r i a c r i a d o ; são eles: ferrüribax ( M o s t . 3 5 6 ) , flagritriba
(Pseud.137), ulmitriba ( P e r . 2 7 8 b ) , plagiger ( P s e u d . 1 5 3 ) ,
plagigerulus ( M o s t . 8 7 5 ) , plagipatida ( C a p t . 4 7 2 ; M o s t . 3 5 6 ) e
o intraduzível sexcentoplago (Capt. 7 2 5 ) , todos epítetos jocosos assacados contra escravos, t r a d i c i o n a l m e n t e considerados "sa-cos de pancadas"; sandaligerula ( T r i n . 2 5 2 ) e scutigerulus
(Cas.262) ; o curioso pultifagus ( M o s t . 8 2 8 ) e o não menos ridículo Pultiphagonides ( P o e n . 5 4 ) ; e os sutis hamiota ( R u d . 310) e inanilogista ( P s e u d . 2 5 5 ) .
H a v e r i a a acrescentar ainda quatro nomes em que se reco-nhece patente o talento criador de P l a u t o ; são substantivos formados a p a r t i r de palavras latinas com o acréscimo do sufixo — íôrjs , sem nenhuma o u t r a finalidade a não ser a de fazer r i r os espectadores pela presença de u m patronímico insólito e exótico; neles, a comicidade ainda está presente na própria formação, que de per si sugeria aos ouvintes a e x t r a -vagância que suscita o riso. Glandionida e pernonida ( M e n . 2 1 0 ) , oculicrepida e cruricrepida ( T r i n . 1021) são as p a l a v r a s ; escusamo-nos de t e n t a r fornecer uma tradução, ainda que apro-x i m a d a — seria d e s t r u i r a graça neles contida.
16. M u i t o expressivos e sempre empregados com f i n a l i -dade cômica são os jogos de palavras ou trocadilhos encontra-dos em P l a u t o : .geralmente intraduzíveis, também sugerem pleno conhecimento, t a n t o do a u t o r quanto do público especta-dor, dos recursos do idioma de que d e r i v a m . Vejamos a l g u n s : — em Pseud.585a encontra-se a frase Ballionem exballistabo
lepide, envolvendo u m t r o c a d i l h o entre o nome próprio Bailio e o verbo exballistare;
— em T r i n . 9 7 7 , novamente u m j o g o de palavras envolvendo o nome próprio Charmides, f o r m a d o sobre o grego xáp¡J.r] " a l e g r i a " :
itidem ut charmidatus es, rursum recharmida,
que deveria soar aos ouvidos do público mais ou menos a s s i m : "do mesmo modo que ficaste alegre (à menção do d i n h e i r o ) , v o l t a a f i c a r t r i s t e (porque de m i m não terás u m n í q u e l ) " ;
— em B a c . 2 4 0 encontra-se a frase opus est chryso Chrysalo: mais u m t r o c a d i l h o baseado no t e r m o grego que designa "ouro, d i n h e i r o " e o nome da personagem; isto c r i a r i a u m efeito parecido com o de uma expressão como, por exemplo, "Tatá precisa do t u t u " ;
— em M i l . 4 3 8 , o nome próprio Dicaea "a J u s t a " presta-se ao jogo entre o correspondente fonético grego ôikaía e o adjetivo aòikos " i n j u s t o " :
Aôikos es tu, non òikaía
— duas passagens do Pseudolus apresentam trocadilhos i n t r a -duzíveis envolvendo o nome próprio Harpax; o r a d i c a l grego evoca a noção de " r o u b o " , o que sugere certa característica atribuída zombeteiramente à personagem:
Ps. Apage te, H a r p a x , hau places. Huc quidem hercle haud ibis i n t r o , ne q u i d apnaÇ feceris.
(653-654) B a l . T u n es is H a r p a x ?
Sim. Ego s u m : atque ipse apnaÇ quidem. ( 1 0 1 0 ) . A respeito da presença de tais expressões de o r i g e m grega, parece impossível decidir se estamos diante de criações p l a u -tinas ou de reminiscências dos o r i g i n a i s traduzidos ou adaptados. E m f a v o r da p r i m e i r a hipótese poderseia a d u z i r o i n d u -bitável conhecimento que Plauto possuía da língua grega e a sua perícia na tradução ou adaptação dos o r i g i n a i s , revelada na perfeição da sua l i n g u a g e m ; o cunho p l a u t i n o de tais expres-sões, que l e m b r a m muitos outros trocadilhos de que P l a u t o é pródigo com relação ao l a t i m ; e ainda o fato de que em Captivi
(v.880-883) aparece uma série de fórmulas de j u r a m e n t o em que, aproveitando a homonímia entre uma divindade grega e o nome de uma cidade volsca, Plauto i n t r o d u z jocosamente nomes de cidades itálicas, as barbáricas urbes do v. 884, na f o r m a g r e g a ; seria isto possível se o a u t o r fosse grego?
Aceitando-se a segunda hipótese, devemos a d m i t i r que Plauto manteve deliberadamente a f o r m a grega o r i g i n a l em alguns casos, ou adaptou os trocadilhos p a r a o l a t i m em outros, a f i m de dar certa cor exótica às passagens onde eles se