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Percepções de índio e caboclo sob a memória e trajetória musical de artistas paraenses ( ) Jessica Maria de Queiroz Costa

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Academic year: 2021

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Percepções de “índio” e “caboclo” sob a memória e trajetória musical de artistas paraenses (1980-2017)

Jessica Maria de Queiroz Costa

Resumo: O objetivo do artigo é analisar como o “índio” e o “caboclo são pensados por artistas da região amazônica e perceber em seus trabalhos musicais como são projetadas imagem(s) desses amazônida(s). A partir da trajetória e memória de dois músicos paraenses, Nilson Chaves e Paulo André Barata, pretende-se discutir perspectivas traçadas sobre os referidos sujeitos amazônidas, os quais por sua vez, estão inseridos em suas músicas e fortificam uma relação de identidade com a região. Para tanto, foram utilizadas entrevistas realizadas por mim com ambos os cantores, bem como os LPs (no inglês long play) “Amazon River” (1980) e “Dança de Tudo” (1981) entre outros trabalhos musicais e buscas de informações complementares em periódicos e na produção historiográfica sobre a música produzida na Amazônia, mais especificamente no estado do Pará. O estudo mostra que por meio dos trajetos pessoais e o contexto social e político em que os músicos estavam inseridos e atuantes, enxerga-se os sujeitos da região amazônica, principalmente o indígena e o caboclo, como aqueles que muitas vezes exercem papeis centrais e ou complementares em suas canções. O intuito também é discutir que papeis são esses que lhes são direcionados e como estes se reafirmam ou não na sociedade.

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Percepções de “índio” e “caboclo” sob a memória e trajetória musical de artistas paraenses (1980-2017)

Jessica Maria de Queiroz Costa

1.INTRODUÇÃO

Através das entrevistas realizadas com Nilson Chaves e Paulo André Barata, se busca entender ideias sobre quem são o “índio”1 e o “caboclo” da Amazônia pensados por esses artistas, uma vez que, estes sujeitos estão presentes nas canções e trajetórias musicais destes cantores. Ambos nascidos na cidade de Belém, no estado do Pará, Nilson Chaves e Paulo André Barata, apresentam em seus trabalhos diversos temas que incitam debates sociais e políticos, como a exploração desenfreada da floresta amazônica, questões e demandas dos povos amazônidas, temas que vigoram até os dias atuais em suas músicas. Na década de 1980, eles já eram conhecidos pelos seus trabalhos musicais tanto na cidade de Belém, como no Rio de Janeiro, esta última escolhida no final da década de 1960, para elevarem nacionalmente suas respectivas carreiras musicais. Atualmente continuam trabalhando em novos projetos musicais.

A música paraense, de modo geral, é composta por inúmeros gêneros como o brega, o carimbó, o tecnobrega, o siriá, isto é, uma variedade de ritmos musicais. Nilson Chaves e Paulo André Barata, se aventuraram, na intitulada Música Popular Paraense ou MPP, gênero musical que foi disseminado na cidade de Belém, nas décadas de 1970 e 1980. Sobre a Música Popular Paraense ou Regional2 deve se considerar que é a tendência à incorporação de elementos musicais da cultura popular, sobretudo, elementos interioranos e/ou suburbanos. Tanto no caso do carimbó como no caso do brega, tem-se um processo que vai do subúrbio para o centro da indústria cultural local ou, simplesmente, da periferia para o centro (COSTA, 2011: 166).

Mestranda em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará. Bolsista da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Membra do Grupo de Pesquisa de História Indígena e do Indigenismo na Amazônia (GP HINDIA) da mesma universidade. E-mail: jessicamqcosta@gmail.com.

1 Estou ciente da limitação que a palavra “índio” indica às etnias indígenas, entretanto, este termo é utilizado ao

longo do texto de acordo com a recorrência de seu aparecimento nas fontes.

2 A Música Popular Paraense (MPP) refere-se ao período da década de 1970 e 1980, a qual passou a ser difundida

pelo país por vários artistas paraenses como Nilson Chaves e Fafá de Belém, ao explorar o ethos dos habitantes da região amazônica. Tony Leão da Costa (COSTA, 2008) diz que o nome do primeiro festival de música popular que ocorreu em Belém, no ano de 1967, foi “1º Festival de Música Popular Brasileira no Pará”, entretanto, em seguida, esse nome mudou para “1º Festival de Música Popular Paraense”, ou seja, a canção popular feita no Pará já surge com sua nomenclatura definida. Contudo é importante destacar que este termo, abreviado como MPP, ainda continua sendo debatido por pesquisadores.

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Ainda que a música paraense tenha conseguido formar um organismo próprio, deve-se lembrar que ela também representa a música da Amazônia, em maiores panoramas. Aspecto semelhante à artistas de outros estados nortistas como Eliakin Rufino, do estado de Roraima, e o Grupo Raízes Caboclas, do Amazonas, que moldaram trajetórias musicais que objetivaram enaltecer seu lugar e que também tinham a Amazônia como tema em comum, o que acabou gerando um diálogo temático entre estes artistas, principalmente porque era um momento em que o ambientalismo3, estava em voga, portanto, era importante falar de suas origens e de sua gente que vivia em um espaço tão fundamental para o meio ambiente como a Amazônia. Sendo que mais adiante, Eliakin Rufino (RR) e Nilson Chaves (PA) fariam parcerias, entre elas, a música “Tudo índio” e “Memória da Tribo”, composição de Rufino e gravada por Nilson Chaves no seu CD Tudo índio em 1996.

Sobre as fontes deste trabalho, deve-se notar que as conversas com cada cantor foram realizadas em espaços que os mesmos julgaram confortáveis. Ademais, através de telefonemas, houve intercomunicação breve anterior ao dia da realização da entrevista com cada um dos entrevistados, para informar sobre o que se tratava a pesquisa e acertar as etapas da mesma. Chantal Tourtier-Bonazzi explica que é indispensável a criação de uma relação de confiança entre informante e entrevistador (TOURTIER-BONAZZI, 2006: 234). Durante as entrevistas, além de indagar mais sobre a trajetória musical e de vida de cada cantor, minhas questões principais aos entrevistados se delinearam em saber sobre suas inspirações musicais e vivências, além de rememorar o contexto social e histórico que eles viviam para entender melhor como se construiu a imagem de “índio” e o “caboclo” nas suas visões.

Para se alcançar o “estilo do analista completo” (LOZANO, 2006: 23), precisou sistematizar e analisar as fontes orais em si mesmas, não as tendo somente como mero apoio factual e ilustrativo, mas também interpretá-las e condiciona-las em seu tempo histórico, além de cruzá-las com outras fontes documentais, como fontes jornalísticas, pesquisadas no site da Hemeroteca Nacional, além de consultar trabalhos sobre a produção musical paraense na Amazônia de autores como Tony Leão da Costa (2008), Nélio Moreira (2014) e Edilson Silva (2010). Logo, foi possível tecer um entendimento mais abrangente para a análise das fontes e consequentemente da discussão proposta aqui.

3 Ver mais em: DINIZ, Larissa Raposo Diniz. Identidade e engajamento político de ativistas do movimento

ambientalista do norte e nordeste do Brasil. Tese de doutorado. Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Recife, 2017.

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O período proposto para estudo se dá devido o interesse de percorrer a trajetória de ambos os artistas e perceber como algumas percepções seguem em contínuas mudança e permanência sobre questões importantes como a floresta, seus habitantes, seus costumes. De modo que as entrevistas contribuem bastante nesse aspecto, uma vez que, o objetivo é justamente entender as percepções atribuídas aos que ocupam a região Amazônia, mais especificamente, o índio e o caboclo, na visão de artistas nascidos em sua própria região e que, indiretamente ou não, recebem informações como também contribuem em moldar imagens.

2. TRAJETÓRIA MUSICAL E VIVÊNCIAS

Nilson Chaves nasceu em Belém do Pará em 8 de novembro de 1951 e se tornou um dos músicos mais conhecidos na música regional amazônica, pois conseguiu externa-la para dentro e fora do país com uma voz peculiar, compôs diversas canções, mas também cantou canções de diversos compositores como Saint Clair do baixo4 e Joãozinho Gomes5. Cantava sobre sua

cidade, Belém do Pará, bem como validando reflexões sobre questões da floresta Amazônica e seus povos. Ainda com 17 anos, em 1968, Nilson Chaves decide viver de música e morar no Rio de Janeiro, desde então, sua carreira seria construída entre Rio de Janeiro e Belém.6

Antes do lançamento de seu primeiro LP Dança de Tudo (1981), Nilson Chaves já tinha uma carreira consistente, gravava músicas em parcerias e fazia sua contribuição em outros projetos. E, em um destes, juntamente com o músico e compositor Walbert Monteiro ganharam a colocação de terceiro lugar, com a música “Minha Namorada Belém”7 no Festival de Samba do Rio de Janeiro, realizado em 1977, tal música depois viria a ser samba enredo do Rancho, escola de samba da pedreira, bairro tradicional de Belém.

Nilson Chaves conta que após uma apresentação musical para um grupo de conhecidos e para o coreógrafo Alwin Nicolais8, a qual tinha como tema a música da Amazônia, percebeu que as músicas que ele criava sobre a região deveriam ser cantadas permanentemente, e, escolheu enveredar-se por este caminho, pois até então não tinha certeza9.

4 Claudioval Saint Clair da Silva Costa nasceu em Almeirim, no Baixo Amazonas em 1941. Ainda com

poucos meses de vida foi trazido a Belém, onde sua família passou a morar definitivamente. Ele foi ator, compositor e contrabaixista. Dono de uma grande carreira musical, compôs juntamente com Nilson Chaves a música “Amocariu”. Informações disponíveis em http://saintclairdubaixo.blogspot.com.br/.

5 Joãozinho Gomes é poeta, cantor e compositor. Nasceu em Belém do Pará e foi radicado em Macapá. 6 Op.cit. 2008. P.47.

7 Esta música está presente no LP (long-play) 5º Encontro Nacional do Compositor de Samba, 1976.

8 Alwin Nicolais foi um importante coreógrafo estadunidense que conseguiu combinar em suas danças abstratas

movimentos com vários efeitos técnicos aliados a liberdade técnica e padrões estabelecidos.

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Sobre a confluência de Paulo André Barata e Nilson Chaves, Tony Leão da Costa lembra que por volta de 1965, Nilson Chaves já se enveredava pelo ambiente musical, porém a aproximação de Nilson Chaves e Paulo André Barata não foi imediata, devido Nilson Chaves ser um “compositor de periferia” e por conseguinte, dialogar mais com compositores da periferia (COSTA, 2008: 47-48). Já em entrevista, Paulo André Barata aponta que Nilson Chaves viria “depois dele”, isto é, uma outra geração de músicos paraenses, porém, ambos apresentam semelhanças nas trajetórias musicais, tanto Nilson Chaves, como Paulo André viajaram para Rio de Janeiro, por volta de 1968/1969, para tentarem expandir suas respectivas carreiras musicais.10 Ambos foram escolhidos para esta discussão por conta de suas contribuições na expansão do conhecimento do cotidiano e de temas ligados a região amazônica e seus povos.

Paulo André Barata, filho de Ruy Paranatinga Barata11, nasceu em Belém do Pará em 25 de setembro no ano de 1946. Começou a compor ainda na adolescência e teve seu talento aprimorado no Conservatório Carlos Gomes12, pelo professore Tó Teixeira13, em Belém, e no

Rio de Janeiro pela professora Wilma Graça14. Vicente Salles apontou Paulo André Barata

como um dos jovens que promovem a renovação da canção popular, que investigam o folclore regional e que naquele momento, seu nome deveria ser guardado por conta de sua importância (SALLES, 1970: 57). As músicas de Paulo André e Ruy Barata tornaram-se nacionalmente conhecidas na voz da cantora Fafá de Belém15 que incluiu, em seu primeiro LP Tamba-Tajá (1976), “Indauê Tupã”16 e “Esse Rio é Minha Rua”. Fafá de Belém gravou também, no seu segundo LP Água (1977), “Foi Assim” e “Pauapixuna”, essas duas últimas estão presentes,

10 Depoimentos de Nilson Chaves e Paulo André Barata em 24 agosto de 2016 e 09 de agosto de 2017,

respectivamente.

11 Ruy Guilherme Paranatinga Barata nasceu em Santarém em junho de 1920, foi um poeta, advogado, professor

e compositor brasileiro. Ainda criança, aos 10 anos, se muda para a cidade de Óbidos, localizada naquela mesma região. Ruy Barata, mais tarde, se muda para a capital do Estado para terminar seus estudos, quando mais tarde se tornaria advogado. Faleceu em 23 de abril de 1990.

12 Conservatório e escola de música criado em 1895, situado em Belém do Pará.

13 Antônio Teixeira do Nascimento (1895-1982), conhecido como Tó Teixeira, nasceu em Belém do Pará, foi um

violonista e compositor. Filho de ex-escravo músico, iniciou seus estudos de música com o pai, Antônio Teixeira. No livro Tó Teixeira: o poeta do violão de Salomão Habib (2013) há mais informações sobre a vida do músico.

14 Wilma Graça (1928 – 1988), nascida no Rio de Janeiro, foi uma pianista e professora de piano e teoria musical.

Teve alunos como Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento e Nanna Caymmi. Informações disponíveis em: < http://dicionariompb.com.br/wilma-graca/biografia> Acesso em 28 de outubro de 2020.

15 A cantora Fafá de Belém nasceu no dia 10 de agosto de 1956, em Belém do Pará, filha do advogado Joaguim

Figueiredo e de Eneide, cresceu em uma família classe média-alta. É considerada uma das grandes cantoras da música popular brasileira. É intérprete de várias músicas de Ruy Barata e Paulo André Barata como “Esse rio é minha rua” e “Pauapixuna”. Informações disponíveis em http://www.mpbnet.com.br/musicos/fafa.de.belem/ e http://www.fafadebelem.com.br/biografia.

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respectivamente, no LP Amazon River e Nativo de Paulo André Barata. Canções que imediatamente alcançaram sucesso em várias mídias.17

Tanto Nilson Chaves quanto Paulo André Barata se encontravam envolvidos no contexto da efervescência cultural (MOREIRA, 2014), que a cidade estava passando. Ademais, não se deve esquecer que o Estado brasileiro passava por mudanças políticas e estruturais devido ao processo de “abertura” da ditadura militar18, assim, era comum que nos pontos de

encontros da cidade, estes temas viessem a aparecer nas discussões de mesas de bares para debater sobre o que estava acontecendo social, cultural e politicamente, naquele período. Haja vista que, Ruy Barata, pai de Paulo André Barata, era um grande militante político e usava sua poesia e habilidade para criticar dilemas sociais e políticos da conjuntura que vivia. Sobre esta postura política de Barata, Edilson Mateus da Silva diz

Sua vida e sua obra foram norteadas de uma postura esquerdista. Suas temáticas e suas letras, bem como seus poemas, são carregados de questões sociais e políticas por essa experiência militante. É importante notar, por outro lado, que aliado a essa postura em sua arte também há uma proposta em tratar de elementos eminentes do Pará. O poeta/letrista é a convivência do Brasil com a Amazônia, do local e do universal(...) (SILVA, 2010: 64).

A posição ideológica de Ruy Barata também influencia suas composições e como pai e filho trabalharam juntos por muito tempo, é importante também identificar quem foi o poeta Ruy Barata. Ruy Barata foi um artista paraense como poucos que expressaram as particularidades dessa identidade regional. Os dois compositores, Paulo André Barata e Ruy Barata, trabalharam juntos em várias canções, primeiramente no álbum Nativo (1978) e no álbum Amazon River (1980), ambos recebendo calorosas aceitações da crítica musical especializada. Paulo André Barata conta que para alguns amigos músicos, Nativo foi um disco

17 Informações disponíveis em http://www.last.fm/pt/music/Paulo+Andr%C3%A9+Barata/+wiki > acessado em

08 de setembro de 2016 <.

18 A Ditadura Militar no Brasil foi um período da política brasileira que durou quase vinte anos, no período de

1964 a 1985, a qual foi marcada pela a não escolha de seus governantes por parte da população, sendo que estes cargos foram predominantemente ocupados por militares. Para mais informações sobre a ditadura militar ver: FILHO, João Roberto Martins(org.). O golpe de 1964 e o regime militar Novas perspectivas. 2ed.São Carlos, São Paulo: EduFSCar; FICO, Carlos. Versões e Controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rev. Bras. Hist. Vol. 24 no. 47, São Paulo.2004. ROLLEMBERG, Denise. A ditadura civil-militar em tempo de radicalizações e barbárie. 1968-1974. Francisco Carlos Palomanes Martinho (org.). Democracia e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006, pp. 141-152.

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de marco divisório na música do Pará, enquanto que a música Amazon River (música que intitula e abre o disco de mesmo nome) chamou atenção pela narrativa crítica ao capital externo.

3. “ÍNDIO” E “CABOCLO” EM PERSPECTIVAS

A definição de “índio”, segundo o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) em seu artigo 3º, determina-o como: “todo individuo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”. Sabe-se que as etnias indígenas são múltiplas, portanto, carregam tradições e costumes bastante variáveis entre si. Já o “caboclo”, na perspectiva antropológica, Richard Pace (2006, p.79) sustenta que os caboclos da Amazônia brasileira são camponeses, extratores, povo rústico e descendentes miscigenados de europeus, índios e africanos e que, em quase todos os usos, se reconhece um tom pejorativo e raramente utilizado para chamar uma pessoa do mesmo nível social.

Para entender quem são os sujeitos “índio” e “caboclo” sob a memória e trajetória dos artistas, procurou-se nas entrevistas, buscar rememorar suas trajetórias musicais dentro do contexto vivido. Conforme Tony Leão da Costa (2008, p. 48), nesse momento em que se produz música paraense, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, os artistas que de alguma forma participaram do processo de criação artística, neste caso, musical, foram marcados pela ditadura militar. Além do contexto político-social é importante investigar as vivências dos artistas e como isso influencia em suas carreiras e composições. Ainda que os relatos de Nilson Chaves afirmem que todo o tema é importante para ser instigado na música, como a questão indígena ou a violência interminável que assola o país, não se pode esquecer que o contexto político e social que se vive, influencia diretamente ou indiretamente na sua esfera individual e grupal.

Há de se lembrar que ao mesmo tempo que a memória é individual, ela também é “coletiva”, como indicou Maurice Halbwachs. Henry Rousso explica que a memória, para prolongar essa definição lapidar, é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional (ROUSSO, 2006: 94).

Em entrevista concedida a mim, Nilson Chaves conta que apresenta raízes indígenas em seu seio familiar e que se identifica muito com as mesmas. Em sua percepção, a questão indígena e cabocla ribeirinha são praticamente indissociáveis, pois compartilham do mesmo espaço de vivência, a Amazônia. O autor Karl Arenz (2015: 31) explica sobre esse entendimento imbricado de ambos os termos que essa definição do caboclo, a exemplo do índio

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está associada às leituras naturalistas, representados como figurantes idealizados e inseridos em seu ambiente natural típicos do cotidiano rural e que essas definições contribuíram para propagar a ambivalência deste termo.

Na música “Exportação Brasileira”19, composição de Joãozinho Gomes e cantada por Nilson Chaves e Vital Lima20, discorre uma narrativa sobre um índio que é assassinado por estrangeiros, ou, mais precisamente, por uma companhia estrangeira, e, acaba virando “pele de animal”, de modo que, a pele termina sendo vestida por uma lady inglesa e só se percebe que “não era onça nem lontra”, depois que a lady estranhou o gélido frio que a pele transmitia. Segue a canção:

Exportação Brasileira21

Um índio da nossa tribo Arriscou entrar no mato Foi caçar alguma coisa Pra matar a sua fome E a companhia estrangeira Avistando o movimento Apagou sua memória Lhe caçou com um tiro só Só deram conta que o bicho Não era onça nem lontra Quando uma lady inglesa Se queixou da pele estranha Depois de muito cochicho E muito disse me disse Notaram que o tal casaco Gelava o corpo da dama Um índio da nossa tribo Que fareja longe um ardil Descuidou-se na caçada Virou casaco de frio

É uma história agressiva e, talvez, bizarra, que de acordo com Nilson Chaves, Joãozinho Gomes alerta para a expropriação não somente da terra, mas de tudo que na terra cresce e vive. Nilson Chaves sobre a música explica que

Simbolicamente dizendo que, na verdade, a gente ‘tá’ falando especificamente do índio, mas era um momento muito intenso em que o mundo vinha à Amazônia, pegar as coisas da Amazônia e levar pra lá. Poucas pessoas sabem que, por exemplo, os perfumes mais

19 Música presente no CD “Em Dez Anos II” (1991).

20 Euclides Vital Porto Lima nasceu em Belém do Pará em 1955. Neto de músico, envolveu-se com a música

através violão e muito cedo aprendeu a tocar o instrumento, até conhecer Nilson Chaves, com quem passou a partilhar o gosto nascente pela música, dando início a uma amizade sólida, e a partir dela ambos realizaram várias parcerias musicais que hoje goza do respeito e reconhecimento na terra natal. Informações disponíveis em: http://mpbnet.com.br/musicos/vital.lima/index.html

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famosos da França são todos feitos com ervas da Amazônia, mas todo mundo compra o perfume francês, não usa o nosso perfume de erva (CHAVES, 2016).

O perfume Chanel Nº 5 pode ser um exemplo da crítica acima, pois o mesmo utiliza o linalol, um componente do óleo extraído de uma espécie da flora amazônica, chamada “pau-rosa”. Lizzy Martins explica que na década de 1960, devido ao grande interesse que elevou seu valor comercial, surgiram produtos similares ao linalol, mas isso não evitou a busca de perfumarias pela substância autêntica. Tal procura fez com que na década de 1990, o Instituto Brasileiro de Meio ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA), proibisse o corte e a extração do pau-rosa.22

Além disso, as críticas na música “Exportação brasileira” incitam reflexões, ainda que o cantor me tenha, inicialmente, relatado sua visão da música de maneira descontraída, ao longo do diálogo, fica sinalizado a maneira em que se enxergava os povos da floresta e a Amazônia: Um lugar para ser explorado. Em Entre o Mito e a Fronteira, Fábio Fonseca de Castro menciona um texto do jornalista Lúcio Flávio Pinto falando da “internacionalização da Amazônia”, ele faz o recorte do trabalho do jornalista, mais especificamente, do fragmento que diz que a Amazônia está condenada a não ter vontade própria, a ser colônia, satélite de um poder central centralizador. E, finaliza dizendo que “a república não considera, não respeita e nem valoriza a nossa diversidade cultural. Estamos condenados a ser apenas brasileiros, sem podermos ser, antes e sempre, amazônidas” (PINTO apud CASTRO: 118).

Apesar da situação de passividade que se coloca a região, este é um dos aspectos que demonstra como a Amazônia foi e muitas vezes ainda é enxergada com o passar dos anos: uma grande ausência demográfica. Assim como nos séculos coloniais, ela era considerada como um espaço “vazio”, lugar ausente de desenvolvimento em um âmbito econômico, social e cultural, além de ser uma fonte rica de matéria-prima e riqueza para o Estado e seus grandes investidores nacionais e internacionais. O “vazio demográfico” tende a ser uma visão equivocada, pois o território amazônico é ocupado por inúmeras comunidades tradicionais, indígenas e ribeirinhas.

Percebe-se também que a associação “índio” e “floresta” é recorrente nas letras de canções que criticam a exploração irresponsável da região amazônica. O índio como “guardião da natureza” é uma das noções que ficaram enraizadas socialmente, porém deve ser lembrado que essa não é a única função que os povos indígenas estão comprometidos, há um leque de

22 MARTINS, Lizzy. Substância usada no perfume Chanel Nº 5 vem da Amazônia. Site do G1. 2018. Disponível

em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/terra-da-gente/especiais/noticia/substancia-usada-no-perfume-chanel-n5-vem-da-amazonia.ghtml. < Acesso em 30 de outubro de 2020 >.

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possibilidades e demandas em que estes grupos podem e devem ser inseridos, se assim eles o desejarem.

O sentimento de expropriação e/ ou exploração da terra por estrangeiros também aparece nas composições de Ruy Barata, principalmente na canção Amazon River do álbum de mesmo nome, lançado no ano de 1980, em que um dos versos impera em um tom de ordem “(...)Mas não vai manchar meu nome e nem vai sujar meu rio. Goodbye, Mr. Bill, vai pra rima que pediu”. Conforme Paulo André Barata, essa música foi direcionada a um empresário milionário que veio trazer o megalômano projeto Jari para a Amazônia. A recepção do disco foi elogiosa, de modo que o crítico Tárik de Souza, do jornal do Brasil (RJ) afirma que Paulo André Barata e Ruy Barata partiram para um “disco autocrítico da colonização”23.

Paulo André Barata comenta das sonoridades indígenas presentes nas suas músicas “Pauapixuna” e Indauê Tupã”, do disco Nativo (1978). Isto é, as referências indígenas não precisam estar necessariamente letradas em versos, estão também presentes nas suas elaborações sonoras. O cantor mostra a sonoridade das músicas através da voz24, sendo que a

evidencia da seguinte maneira dizendo: “E essa música como Pauapixuna, como Indauê Tupã, ela tem uma característica índia, “pompomticompompompom... ei indauêêê tupã eeee ei indauê (...)Eu não sei quanto tempo eu vou durar, mas isso aí ainda ficar aí pra gente, ouvir demais”25.

O trecho cantado pelo compositor soa como se lembrasse marcações sonoras indígenas. Muitas das composições de Paulo André Barata permeiam o ethos caboclo e os rios que o circundam, como a música “esse rio é minha rua” também do álbum Nativo. Segundo Fábio Fonseca (2011: 24-25), nesta música, comunidades da floresta amazônica e suas rotinas do dia a dia são lembrados, mais especificamente o do povo cametaense que Ruy Barata traz para essa canção. Para muitas comunidades, o rio é o principal modo de locomoção dentro da floresta e esta música demonstra essa importância. Ainda sobre a referida música, Edilson Silva comenta que

Partindo do título já encontramos uma sugestão: o álbum está voltado para uma concepção local, a respeito de alguém “da terra”. Há vários elementos que sugerem regionalismo nos sons, dentro de um discurso de identidade plena: o sotaque de Paulo André acentuando os “s chiados”, ritmos locais como o carimbó, a presença marcante de instrumentos percussivos (incluindo “pau-de-chuva” que executa um som

23Souza, Tárik de. Regionalismo. Jornal do Brasil (RJ). 5 de abril de 1980 p.7. Disponível no site da Hemeroteca

Nacional.

24 Sugiro ouvir as músicas para acompanhar o raciocínio do compositor.

25 Nesse momento da transcrição, tentei expressar a sonoridade mais próxima possível das expressões sonoras que

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semelhante ao fenômeno que dá nome), flautas que sugerem cantos de pássaros, entre outros; em relação aos temas: natureza, termos indígenas, o homem amazônico (SILVA, 2010: 65).

A partir do comentário acima, percebe-se que a sonoridade na música é um importante fator para se entender de quem se fala na canção, de modo geral. Especificamente nas canções de Paulo André Barata, nota-se, que, desde os instrumentos utilizados, como o “pau-de-chuva”, até a maneira específica de se pronunciar as palavras é possível observar as nuances do ethos de quem vive na região. Silva afirma que a natureza, os termos indígenas, o homem amazônico, que segue desde o caboclo ao indígena são temas presentes na canção para delimitar identidade. É possível perceber que em apenas uma música conduzida por Paulo André Barata, ao lembrarmos de sua vivência como artista, é possível ter a dimensão de diversas referências locais que contribuíram na construção de visões sobre os diversos sujeitos amazônidas na música paraense que se torna também música amazônida.

4. CONCLUSÃO

Portanto, este trabalho evidencia que as percepções de “índio” e “caboclo” divergem e se encontram de diversas maneiras nas canções e perspectivas de Nilson Chaves e Paulo André Barata. Para Nilson Chaves, a imbricação dos ethos destes sujeitos são indissociáveis, pois compartilham do mesmo ambiente, que é a Amazônia, então, falar de “caboclo” e não falar de “índio” pode se tornar algo quase impossível. Porém, esta discussão deve ser ampliada já que existem inúmeras etnias indígenas, com demandas diferentes, habitando este país e, uma junção de definição de ambos os termos dificultaria pensar as especificidades de cada grupo. Obviamente, a canção e seus compositores não têm a obrigação de atender a qualquer compromisso social e político referente a este assunto, embora, seja importante ressaltar tal questão.

Ademais, é sintomático perceber como estes dois sujeitos, “índio” e o “caboclo”, estão contidos nas canções críticas ao meio ambiente, devido a conjuntura que se vive, com o debate sobre o ambientalismo em alta na década de 1980, e que, por sua vez, permanece até os dias atuais. A alusão que demarca a importância desses grupos para o espaço amazônico bem como à exaltação das florestas nas canções se faz presente. Através da letra de Joãozinho Gomes em “Exportação brasileira”, Nilson Chaves alerta sobre o perigo de deixar a Amazônia à deriva do capital estrangeiro e de como os índios e as suas formas de viver são um alvo recorrente das explorações. Situação que pouco se modificou se olharmos para os dias atuais, com o garimpo

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ilegal em voga, desmatamento crescente, vários projetos de construção de hidrelétricas em pauta no meio político.

E, Paulo André Barata, compositor de diversas canções junto ao seu pai, Ruy Barata, encaminha a mesma crítica aos grandes empresários que almejam explorar a Amazônia desenfreadamente. No meio disso, cabe também às suas sonoridades musicais nos apresentar a gente, o caboclo, o homem amazônico que vive e se locomove dos rios que deságua em “Esse rio é minha rua”. Esta música mostra que os indícios de ethos de grupos e comunidades da região amazônica estão presentes nas suas criações e no seu olhar de artistas. Por fim, juntamente às suas vivências, ambos os artistas conseguem nos apresentar suas perspectivas da gente amazônida que, entre eles estão os caboclos, ribeirinhos, indígenas de uma maneira que se pode refletir sobre como estes indivíduos têm sido (re)colocado mediante a sociedade e seus processos de mudanças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENZ, Karl Heinz. Anticaboclismo. Revista de Estudos de Cultura. Uberlândia nº3, set.dez./ 2015.

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Referências

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