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A condição feminina em o Regresso do morto de Suleiman Cassamo

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Agradecimentos Agradeço em primeiro lugar a minha orientadora que tornou possível a concretização deste trabalho;

Em seguida, à minha esposa e aos meus filhos que souberam compreender as minhas constantes ausências e algumas restrições financeiras para dar vazão ao curso que está a terminar;

Ao meu sobrinho Ntumua que proporcionou condições morais e financeiras para a realização desta dissertação;

A todos os professores do curso de Mestrado em Línguas, Literaturas e Culturas que contribuíram para o sucesso do curso;

Finalmente, a todos os amigos e colegas, em especial ao Gaita, por toda ajuda e encorajamento que me proporcionaram para que eu pudesse chegar ao fim.

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Resumo

Sociedade patriarcal, conjugalidade, autonomia masculina, silenciamento feminino

Durante séculos a mulher Moçambicana viveu uma situação de subalternização social e económica em relação ao homem que se impõe como o chefe, o patriarca e proprietário dos bens familiares, tanto nas sociedades patriarcais como nas matrilineares. A literatura que se dedica à problemática das diferenças socioeconómicas de género tem assumido, na sua maioria, partido na crítica à situação subalterna da mulher e, por conseguinte, na luta pela emancipação feminina e na defesa de mulher. Em O Regresso do Morto, Suleiman Cassamo mostra e denuncia a complexa situação social e económica da mulher, procurando reflectir sobre como se constroem as diferenças sociais, chamando a atenção para os determinantes sociais desse processo, tais como o poderio económico do homem, especialmente nas sociedades matrilineares. O autor de O Regresso do Morto repensa o devir do poder masculino e representa, tanto de forma trágica como satírica disfarçando uma crítica social dessa mundividência patriarcal.

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keywords

Abstract:

Patriarchal society, Conjugal, Masculine Autonomy, Famine Silence

During century Mozambican woman lived social and economical sub alternazation toward men that is considered as the chief, the patriarch and the owner of family wealth both in patriarch society as well as matrilineal (female line). The literature that has to do with socio-economical differences of gender has assured (accepted) the major part, criticizing the subordinate situation of women and, and therefore fighting for the empowerment and the defence of women in “O regresso do morto” (The Coming Back of the death) by Suleiman Cassamo shows and announces the complex social and economical situation of women seeking to reflect about how social differences are built, taking into account the social determination of the process such as the economical power of men ,especially in father line societies. The author of the coming back of death rethinks the must of masculine power and represents, even tragically as well as satirical disguising of social disapprove of this global view of the Word (society).

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Índice

Introdução ... 15

I... 17

O panorama da Literatura Moçambicana do ... 17

Pós-independência ... 17

1.1. O alvorecer da independência e a literatura moçambicana do pós-independência ... 19

1.2. A obra de Suleiman Cassamo e a nova geração de escritores ... 23

1.3. O universo Feminino nos textos da nova geração ... 25

1.4.A conjugalidade na sociedade patriarcal moçambicana e as relações de descendência em Moçambique ... 33

1.5. A conjugalidade e o estatuto da mulher nas sociedades patrilineares ... 35

Capítulo II – A condição feminina em O Regresso do Morto ... 39

2.1. Breve análise dos elementos paratextuais ... 41

2.2. A conjugalidade e estatuto da mulher em O Regresso do Morto ... 45

2.2.A hegemonia masculina e o silenciamento do feminino ... 55

Conclusão ... 69

Anexos ... 71

Bibliografia ... 75

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Introdução

Durante séculos a mulher moçambicana viveu uma situação de subalternização social e económica em relação ao homem que se impõe como chefe, patriarca e proprietário dos bens familiares, tanto nas sociedades patriarcais como nas matrilineares.

As diferenças socioeconómicas entre géneros remontam desde a antiguidade. Em geral, na sociedade africana, os papéis e funções sociais atribuídos à mulher eram, grosso modo, os de esposa, de mãe e de doméstica, submetendo-se esta, assim, ao poder masculino. Neste contexto, a literatura que se dedica à problemática das diferenças sociais de género em Moçambique tem assumido, na sua maioria, a denúncia da situação de subalternidade da mulher e, por conseguinte, tem-se posicionado ao lado da luta pela emancipação e libertação femininas e pela defesa dos direitos da mulher.

Em O Regresso do Morto, embora este posicionamento esteja presente, prioriza-se uma reflexão sobre a origem da subalternidade do feminino, apontando-se para a própria natureza dos seres vivos, onde haveria uma natural tendência para subalternizar o género feminino em relação ao masculino. Esta submissão do feminino ao masculino ter-se-ia consolidado por via da organização social, a qual veio sublinhar a impossibilidade de se mudar uma organização milenar.

Neste trabalho vamos refletir sobre os fatores que perpetuam esta tendência social, baseando-nos nos contos da antologia O Regresso do Morto de Suleiman Cassamo, que veiculam os traumas que as personagens vão vivenciando no seu quotidiano.

Uma das caraterísticas das personagens femininas destes contos é o facto de elas serem apresentadas como estereótipos da mulher, onde encontramos, grosso modo, uma dupla discriminação, sendo a primeira o facto de serem silenciadas, sendo-lhes interdita a possibilidade de exteriorizarem os seus pensamentos e sentimentos, e a segunda a sua submissão ao homem, forçando-a a agir em função do arbítrio desse homem, sendo ele pai ou marido.

Entretanto, esta obra, apesar de abordar os traumas que caraterizam a condição feminina, ainda está aquém de ser considerada um mecanismo de rutura do silêncio feminino, bem como de denúncia de padrões impostos às mulheres pelo sistema patriarcal, mostrando já, todavia, embora de forma ténue, uma visão crítica acerca dos paradigmas sociais da mulher impostos pela cultura moçambicana, o que vai contribuir para o surgimento de novas conceções da mulher.

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razões da discriminação da mulher, apontando o poderio económico do homem nas sociedades patrilineares como constituindo o sentido da discriminação do género feminino. Para o efeito, basear-nos-emos na leitura de obras que abordam o sistema literário moçambicano, bem como de obras que refletem sobre a problemática da diferenciação social entre o feminino e o masculino.

Em termos estruturais, o trabalho compõe-se de duas partes: na primeira apresentam-se algumas reflexões sobre o sistema literário moçambicano, integrando as temáticas relativas à questão do estatuto da mulher nas sociedades patrilineares e, na segunda parte, proceder-se-á à análise dos contos da antologia O regresso do Morto, de Suleiman Cassamo.

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I

O panorama da Literatura Moçambicana do

Pós-independência

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1.1. O alvorecer da independência e a literatura moçambicana do

pós-independência

A problemática das literaturas africanas da pós-independência começa com a sua nomenclatura. O termo que era aplicado, muito concretamente, às literaturas africanas em língua portuguesa («lusofonia», segundo afirma Manuel Ferreira (Ferreira,1989:201)),já denunciava uma certa instabilidade, por «surgir carregada de suspeitosas contaminações ideológicas oriundas do discurso colonial» (Ibid.:201 ) Face a esta discussão, a expressão mais amplamente usada, de forma a englobar as cinco literaturas é “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa”. Ainda assim, esta expressão não deixa de ser polémica, visto que muitos escritores e críticos africanos se lhe opõem, “com o argumento de que a palavra „expressão‟ encerra em si mesma um conteúdo – e, neste caso um conteúdo „português, como se o lexema se diversificasse por semas como „portugalidade‟, ou „lusitanidade‟, „colonialidade‟. Daí a inadequação e a razão por que deverá ser evitada, segundo o ponto de vista africano” (Ibid.:202).

Aliado ao problema da nomenclatura, que parece de pendor internacional, estão os problemas idiossincráticos de cada uma dessas cinco literaturas. Neste caso vamos restringir-nos à literatura moçambicana da pós-independência.

A questão de fundo já não está ligada à designação da literatura moçambicana, visto que, apesar da existência de literaturas em línguas endógenas, a literatura canónica, ou seja, aquela sobre a qual a crítica literária se debruça é aquela que é escrita e publicada em língua portuguesa. A questão que se levantou mesmo durante o período da luta armada e que se arrastou até ao período da pós-independência é a questão que diz respeito ao sentido da literatura moçambicana ou, se quisermos, da moçambicanidade literária.

A questão foi despoletada, segundo Hamilton, nos anos sessenta, na sequência da publicação da antologia da CEI Poetas de Moçambique (1962), prefaciada por Alfredo Margarido, que denunciou a ausência de uma orientação «destinada a dar ímpeto à literatura de Moçambique» (Hamilton, 1984:17). Margarido sugeria que a poesia de Moçambique devia ter «uma função didáctica [… e para tal] terá de estruturar e radicalizar as necessidades das massas, para revelar com base em tais elementos os objectivos propriamente históricos para que deve tender a movimentação social» (Margarido, 1980:481). Por outras palavras, Margarido projetava uma poesia com raízes e caraterísticas próprias, numa perspetiva de construção daquilo que viria

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a ser a moçambicanidade literária, que refletiria os problemas próprios do homem negro, coisificado pelo sistema colonial - daí a menção a Noémia de Sousa e a José Craveirinha como mentores e precursores dessa poesia.

Esta afirmação fez eclodir uma polémica entre os intelectuais sitiados em Maputo encabeçados por Rui Knopfli, que defendiam a prevalência da função estética e universalista da poesia sobre todas as suas outras funções. Ainda assim, como afirma Hamilton, «apesar da argúcia de Knopfli e os argumentos com base no materialismo histórico proferidos por Margarido, nenhum dos dois deu uma resposta adequada a uma pergunta válida: o que se considera poesia Moçambicana?» (Ibid.:17).

Embora não tivessem respondido a esta questão, estava vislumbrada a resposta, no prefácio de Eugénio Lisboa a Mangas Verdes com Sal (1969), de Rui Knopfli, segundo o qual «a poesia de Moçambique devia ser vista em toda a sua diversidade» (Hamilton, 1980:17).Segundo este autor, esta implicava

Uma aceitação algo ambivalente e até relutante, reflexiva dos padrões de alienação política, social e cultural que caracterizavam o Moçambique colonial. Portanto, dizer que a poesia é o seu próprio fim era, para o intelectual euro-africano, uma reivindicação do seu lugar legítimo no contexto cultural universal. E o preço da sua negação do provincianismo do seu próprio meio era diminuir, deturpar ou evitar a problemática do homem negro. (Hamilton, 1984: 19)

Portanto, estava esboçado o perfil da moçambicanidade literária, que valorizaria, sem menosprezar a poesia propagadora “do bom gosto”, essencialmente a poesia que protagonizasse e representasse a voz do povo, que refletisse sobre os problemas sociais do negro, visto que havia «uma sequência histórica, política e social conduzindo a uma expressão reivindicatória e protestatória» (Ibid.:20).

Assim, a produção da poesia empenhada progrediu até no período pós-independência. Orlando Albuquerque e José Ferraz Motta referem-se à recolha e publicação da poesia de guerrilha da Frelimo em 1971, mas sem lhe conferirem nenhum valor artístico, sendo que, de entre os nomes que configuram essa poesia estão os de «Marcelino dos Santos, Sérgio Vieira, Fernando Ganhão, Armando Guebuza e Jorge Rebelo» (Albuquerque, 1998: 77).

Os autores apontam, aliás, para a continuidade da temática propagandista da poesia depois do 25 de Junho:

Depois de 25 de Junho de 1975 aparecem muitos poetas que até aí não tinham publicado nada, nem em páginas literárias nem em livro ou colectânea. Infelizmente a quase totalidade não tem aquele mínimo de qualidade literária para figurarem em qualquer

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publicação. É que muita da sua produção, para não dizer toda, não passava de meros panfletos políticos, inchados de chavões, slogans, palavras de ordem.(Ibid.: 83)

Isto significa que neste período ainda se continua a valorizar o papel sobretudo didático da literatura, numa perspetiva de educação política, o qual ainda «duraria na terceira fase do nacionalismo como um factor ancilar aos esforços de estabilizar o novo estado. Dadas as ameaças, tanto internas, como externas, à estabilidade de Moçambique, a fase da poesia de combate e de patriotismo retórico prolongou-se quase por necessidade» (Hamilton, 1984:71). Vejamos algumas das obras publicadas neste período e que espelham claramente a tendência panfletista da literatura:

Poesia revolucionária de Moçambique (1974). Armando Guebuza, Comodoro, Damião Cosme, Josina Machel, Rosália Tembe, Samora Machel, etc.

As Armas Estão Acesas nas Nossas Mãos (1976). Damião Cosme, Daniel Sebastião Maposse, Dési Mora, Rosália Tembe, etc.

Poesia de Combate Vol II e III (1977). Damião Cosme, Domingos Sávio, etc.

Como se pode depreender a partir dos títulos, trata-se de uma poesia especialmente destinada a cantar a vitória conquistada e à celebração dos heróis da revolução.

Tendo nós vindo a frisar o papel social que a literatura, no limiar da independência, assumiu, compreende-se que a mesma literatura tenha começado, nesse período, a romper as fronteiras dos privilegiados intelectuais e a ser objeto do usufruto das massas populares, desempenhando, neste contexto, uma dupla função, segundo afirma Hamilton: «a poesia de combate disseminada nas zonas sob domínio da FRELIMO, simultaneamente combatia o analfabetismo e ajudava a institucionalizar sentimentos nacionalistas» (Ibid.:54).

Para além deste aspeto, e situando-nos apenas no ângulo da valorização estética, a literatura queda-se no documentarismo histórico. Portanto, aquando do concurso literário lançado em fins de 1980, Maria Benedita Basto afirma o seguinte:

O júri deste concurso nacional, que visava a „espontaneidade criativa‟, viu-se confrontado com noventa e três trabalhos clonados: cópias de uma escrita aprendida como um

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exercício de reprodução de um conteúdo ideológico legitimado pelas orientações e modelos que se apresentavam como autênticos. (Apud Ribeiro e Meneses, 2008:80)

O que importa nesta citação não são os noventa trabalhos submetidos a concurso, mas os protótipos literários que deram azo à produção desses trabalhos, desenvolvidos por escritores de renome, e que, evidentemente, cumpriam uma agenda política, a de servir os objetivos da revolução. Assim, no limiar da independência, encontramos vários feixes de autores:

Os mais „experimentados‟, como Craveirinha, Rui Nogar, Jorge Rebelo e Armando Guebuza. Outros são ocasionais e alguns anónimos (aliás alguns dos poemas são assinados pela FRELIMO). A ideia da autoria anónima e colectiva corresponde à linha política visando suprimir o individualismo dentro de um esforço forçosamente dependente da mobilização massiva. (Ribeiro e Meneses, 2008:80)

Por outro lado havia os da linha oposta, ou seja, os que continuavam a defender uma literatura universalista. Importa neste contexto salientar a figura de Rui Knopfli, cuja obra, durante muito tempo, ficou excluída das antologias da literatura moçambicana pelo facto de não partilhar as mesmas ideologias que motivavam a produção literária deste período.

A literatura de cariz político começa a desvanecer-se paulatinamente a partir da década de oitenta, com a geração da Charrua, que “serviu para lançar os novíssimos: Pedro Chissano, Hélder Muteia, Juvenal Bucuane, Ungulane Ba ka khosa, Marcelo Panguana” (Laranjeira, 1995: 324), os quais defendem um alargamento do conceito de moçambicanidade literária. A este propósito, afirma Panguana:

No fundo um escritor é aquilo que é. Se a sua linguagem é hermeticamente fechada ou não é, ela é a medida exacta da sua dimensão. As fontes de inspiração podem ser as mesmas, mas nunca serão de igual modo que escreverão as realidades bebidas nessas fontes. Julgamos que seja por isso que existe uma única moçambicanidade poética– a do Craveirinha, que também é impar, a simplicidade de um Mutimati Barnabé e a maravilhosamente estonteante poesia do Sebastião Alba. Todos eles moçambicanos...mas cada um dono da sua própria linguagem (Apud Ibid.: 324).

O alargamento do conceito de moçambicanidade literária permitiu trazer àribalta obras de grande valor artístico, como Ualalapi de Ungulane Ba kakhosa que, segundo Laranjeira, constitui “uma narrativa que apresenta um pitoresco lendário, histórico e mágico, em que certos

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episódios parecem sonhados a infernos dantescos, monstrosou fantasmas surrealistas (acabando por se reverter no final o peso do ideário anti-colonialista)” (Ibid.: 328).

Como se pode depreender, a geração dos “novíssimos”já consegue, embora ainda de forma tímida, romper fronteiras outrora intransponíveis, permitindo indagar a autenticidade da revolução e profetizando as consequências advindas dessa revolução.

O outro livro produto da revista Charrua é a antologia de contos Vozes Anoitecidas de Mia Couto que, ainda na perspectiva de Laranjeira, «estava instaurada uma aceitabilidade para a livre criatividade da palavra, a abordagem de temas tabus como o da convivência de raças e mistura de culturas por vezes parecendo antagónicas e carregadas de disputas (indianos versos negros ou brancos)» (Laranjeira.1995: 262).

A publicação de O Regresso do Morto enquadra-senesta perspetiva, ou seja, no entendimento de uma literatura não empenhada e que, por conseguinte, apresenta e reflete sobre os problemas que dilaceram a sociedade sem tomar partido acerca do colonialismo, ou melhor, sem apontar o colonialismo como sendo a causa desses problemas.

No ponto a seguir iremos refletir sobre o universo feminino na escrita da nova geração de escritores moçambicanos.

1.2. A obra de Suleiman Cassamo e a nova geração de escritores

São raras as críticas literárias que se debruçam sobre os escritos de Suleiman Cassamo. Natural de Maputo, Suleiman Cassamo nasceu em 1962, foi secretário-geral da associação dos escritores moçambicanos entre 1997 e1999 e é um dos escritores saídos da revista Charrua, tendo sido parte dos seus textos, tais como Contos e Crónicas, publicados nesta revista.

A conjuntura da sua obra visa a representação da moçambicanidade literária, mas não aquela moçambicanidade descrita anteriormente, centrada na preocupação ideológica, tal como o autor afirma numa entrevista com Mapengo,

A nossa literatura foi construída com base na poesia, com enfoque para os nacionalistas e mais tarde para os de poemas de combate. Mas também surge Suleiman e Ungulane com a ficção. Era para vocês e os outros – nos lembramos também de Mia Couto e, mais tarde, Paulina Chiziane – uma corrida em contra corrente?

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Não propriamente em contra corrente. Essa emergência da prosa fez-se à sombra do trabalho daquela geração de poetas. Essa geração tinha o grito de revolta na ponta da caneta. A nossa geração, no lugar de contrariar completou a anterior [... foi uma geração] que assistiu ao chamado boom da literatura angolana, a partir dos finais dos anos 70. [...] uma geração com preocupações estéticas muito altas que encontrou na prosa a força da sua expressão. Mais salutar ainda é que foi uma geração que teve a preocupação de ler. Alguns leram com entusiasmo os mestres do realismo mágico latino-americano. (Mapengo, em

http://revistaliteratas.blogspot.com/2011/05/o-regresso-do-morto.html20.08.012)

Como podemos ver, Suleiman Cassamo enquadra-se na geração da Charrua, uma geração que, como dissemos anteriormente, alargou o conceito de moçambicanidade literária e se permitiu refletir sobre os problemas sociais que assolam o País sem sucumbir a ofuscações ideológicas. Deste grupo, os autores mais representativos são: Mia Couto, que parece ter sido o primeiro a encarar a literatura sem compromissos políticos (recordamos os seus dois primeiros livros do modo narrativo, Vozes Anoitecidas (1986) e Terra Sonâmbula(1992)); Ungulane Ba Ka Khosa, com a obra Ualalapi (1987); Calane da Silva com Chicandarinha na Lenha do Mundo; Paulina Chiziane, cujas obras refletem os conflitos que envolvem a condição feminina.

Para além de O Regresso do Morto, Suleiman Cassamo conta também com uma série de crónicas publicadas na Revista Charrua (O Amor de Baobá, de 1998) e o romance Palestra para um Morto (1999). Nestas narrativas encontram-se representados os hábitos e comportamentos da sociedade moçambicana, numa linguagem que tipifica os falares populares que “aproximam a narrativa à linguagem do discurso oral trazendo assim uma originalidade ao seu discurso literário” (www.pluraleditores.com.mz,02.10.2013).

Importa referir que a oralidade é uma das marcas presentes nos escritos dos autores que apresentamos como representantes da geração da Charrua e parece também afirmar-se como uma das caraterísticas das literaturas africanas. A este propósito, Ana Mafalda Leite refere que “a predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais históricas e não uma resultante de „natureza‟ africana” (Leite, 1998: 17). A autora refere a existência de críticos que consideram, erradamente, o fenómeno da uma ligação ontológica entre a oralidade e os africanos: “muitos críticos partem do princípio de que há algo de ontologicamente oral em África e que a escrita é um acontecimento disjuntivo e alienígena para os africanos” (Ibid.:17).

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Apesar da pertinência deste aspeto, não iremos analisar profundamente o fenómeno da oralidade neste trabalho para evitar digressões que poderiam comprometer os nossos objetivos, que passam por refletir sobre a condição feminina na literatura moçambicana, em especial no que diz respeito aO Regresso do Morto.

1.3. O universo Feminino nos textos da nova geração

O universo feminino sempre afirmou a sua presença nos escritos de quase todas as gerações de escritores moçambicanos, embora nas primeiras integrando, principalmente, o universo do colonizado. Nesta perspetiva, desde Portagem, de Orlando Mendes (o qual foi, durante muito tempo, considerado o romance inaugural do género romanesco na literatura moçambicana1), que observamos um universo feminino vítima dos problemas que, por um lado, atingem toda a sociedade e, por outro lado, caraterizam a condição frágil da mulher, desprotegida e exposta às aberrações machistas. Veja-se, por exemplo, em Portagem, as atitudes do branco coxo e dono de propriedades que se dedica a enganar mulheres: Beatriz, que vem a morrer por afogamento como concretização de um crime de uxoricídio; Luísa, mulher de João Xilim, vítima de agressão:

Ela junta forças e luta ferozmente. O branco, porém, não cede. - Assim, até gosto muito de ti...

Resiste cada vez mais. Sente o seu ventre abaulado a esborrachar-se contra o ventre do coxo. Deixar-se-á matar, mas não se deixará possuir. Crava as unhas no pescoço do branco. Quer gritar e apenas lhe saem da garganta gemidos surdos, soluços de raiva e de fraqueza. A energia começa a faltar-lhe, as mãos afrouxam, as pernas vergam e, exausta, vai estatelar-se na areia, ouve passos que se aproximam. A presença física do marido torna-a milagrosamente feliz. Ainda tem forças para gritar, antes de cair desmaiada:

- João! Jo…ão…! (Mendes, 1981:152)

Portanto, desde Portagem já se encontra a representação da condição frágil da mulher, mesmo que nessas gerações a mulher assuma a consciência dos perigos a que a sua situação de mulher a expõe e que, à medida das suas capacidades, ela vai tentar resolver.

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Lourenço do Rosário refere-se ao romance Raízes de Ohio (1963) de Guilherme de Melo, «praticamente nunca referido nos textos que versam sobre a literatura moçambicana " por pertencer a um sector político conservador (Laranjeira, 1995: 293) referido nos textos que versam sobre a literatura moçambicana», por pertencer a um sector político conservador (Laranjeira, 1995: 293).

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Todavia, a problemática da mulher não é acentuada nas velhas gerações pelo facto de essas se centralizarem, como vimos, na problemática da colonização no seu todo. Assim, os escritores da velha geração, representados por José Craveirinha, Noémia de Sousa, Luís Bernardo Honwana, entre outros, viram as atenções não para os problemas que atingem a mulher de forma específica, mas sim para os problemas que dilaceram a sociedade no seu geral.

Isto não significa que nos textos destes autores não apareçam temas que refletem os problemas concernentes à condição da mulher. Em Noémia de Sousa, por exemplo, o texto “Moça das Docas” e outros textos revelam essa preocupação, sublinhando a condição da mulher frágil e exposta a uma situação hostil. Porém, esta problemática constitui parte de uma conjuntura encarada como sequelas de um sistema que coisifica não apenas a mulher, mas toda uma sociedade.

É com os escritores da nova geração que a problemática da mulher ganha progressivamente terreno. A abordagem do universo feminino pela nova geração de escritores parte de uma visão generalista do problema como sendo consequência, ou imediata, ou a longo prazo, de sistemas hostis à sociedade no seu todo. Assim, vemos, por exemplo, em Ninguém Matou Suhura, de Lília Momplé, essa mesma visão. Quem matou Suhura é o administrador colonial, metaforizando, assim, o peso do sistema colonial sobre o colonizado; em Ualapi de Hungulani Ba ka kosa, por exemplo, vemos que a morte de Domia que não é consequência do facto de, sendo mulher, ter aviltado o imperador, de vários condicionamentos históricos.

Em Suleiman Cassamo e Paulina Chiziane, a problemática da mulher já não aparece vinculada a um sistema ideológico específico, mas sim a sistemas sociais pré-estabelecidos em que tanto os homens como as mulheres são vítimas. Vejamos a afirmação de Paulina Chiziane:

No mundo do poder masculino, a mulher é escrava do homem e o homem escravo da sociedade. A existência da mulher é insulto, insignificância. Mas antes a insignificância do que a existência penosa imposta ao homem pelos arquitectos do pensamento universal. (Chiziane, 2000: 34)

A autora ainda discorre em torno da problemática da referenciação social entre homem e mulher e assevera que:

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Em todas as famílias do mundo, marido e mulher digladiam nas quatro paredes. Não falam a mesma língua, desentendem-se. O que eles não entenderam ainda é que tanto o homem como a mulher são vítimas de um sistema milenar, arquitectado por cérebros astutos, tiranos, desumanos, vivendo em esferas inalcançáveis. (Ibid.:34)

É, no entanto, em Paulina Chiziane que o universo feminino encontra terreno e é retratado nas suas diversas facetas envolvendo toda diversidade cultural que caracteriza o País, visto que as diferenças não se confinam só às características físicas, mas, acima de tudo, à forma como cada grupo etnocultural dimensiona a vida, como se relaciona com os seus antepassados, como perspectiva o futuro (Cf. Ferraz, 2005:57).

Grande parte da produção literária de Chiziane é caraterizada por representar os traumas sociais, conjugais e amorosos do universo feminino, inserido num contexto actual do País «dividido entre a tradição e a modernidade, as culturas ancestrais e autóctones e aquelas que vieram posteriormente, por influência do Islão, do cristianismo, da Europa, da China, da Índia» (Ibid.:57)

No que se refere às diversas facetas do feminino presente nas obras de Chiziane, Ferraz afirma que:

As personagens de Paulina, principalmente as personagens femininas são dotadas de forte densidade psicológica, porque são entretecidas com os fios de várias redes de mundos e culturas diversas que convivem no Moçambique de hoje, onde a crueldade da vida se mistura com séculos de tradição e de costumes. (Ibid.:57)

Baladas de Amor ao Vento (2003), Sétimo Juramento (2000), Ventos do Apocalipse (1999) e Niketche, Uma História de Poligamia (2002), são as obras da autora representativas dessa problemática, nas quais se denuncia a situação de subalternidade e submissão da mulher.

De todas essas obras, Niketche, uma história de poligamia é a obra mais estudada, no que concerne a questões relacionadas com o género, talvez por apresentar a problemática de forma mais clarividente esboçando em toda a sua dimensão os problemas causados pela poligamia, pela prepotência machista, salientando a forma humilde encontrada pela mulher para transformar os fracassos em soluções viáveis para a vida.

Entretanto isto não parece caracterizar apenas as personagens de Niketche. Em quase toda a produção de Paulina Chiziane, a mulher, que aparece como vítima ao longo das histórias, consegue, no fim, suplantar os problemas impostos pela sua condição e definir-se como um ser, embora não atingindo a plena igualdade em relação ao homem.

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A confirmar isto, veja-se o modo como, em Balada de Amor ao vento, Sarnau vence a fragilidade de Mwando que, face a crises e influências externas, larga tudo de forma cobarde. Sarnau enfrenta todos os problemas causados pela cobardia da pessoa que ela ama até que esse amor triunfe sobre todas as inconsistências de Mwando.

Em O Sétimo Juramento Vera é obrigada a enveredar pelo caminho da feitiçaria, da chamada magia branca, para fazer face à ganância desmedida pelo poder e pelo dinheiro do marido, que não hesita em trocar a família pelas práticas de feitiçaria de modo a manter o dinheiro e o poder. Ao longo de todo o romance sente-se o quão é violenta a ganância de David pelo poder e pelo dinheiro (que o leva à prática de incesto), pretendendo matar a esposa e o filho. No fim, porém, Vera, com o auxílio do filho, vence, recuperando-se da loucura e David é fulminado pela lança de Makhulo Mamba, o feiticeiro.

Em Niketche, Rami vai seguindo a trajetória amorosa de Tony, seu marido, aguentando agressões das rivais, prisões, leviratos e saques de bens da sua casa pelos familiares do marido. Porém, no fim ela consegue unir todas as rivais e iniciar um negócio que lhes permitiria libertarem-se da dependência do marido e arranjarem relacionamentos amorosos que não fossem por necessidade financeira, mas por amor.

Como se pode ver em todas essas obras, existe um projeto bem claro, o de emancipar a mulher no sentido de não se conceberem as adversidades da vida impostas pela condição feminina como correspondendo a um destino irrevogável. Segundo Maria Geralda de Miranda, Paulina Chiziane “nutre as suas personagens femininas de muita força, sabedoria e determinação”(Miranda, 2010http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_2_6.php).

É aqui que reside a diferença entre a escritora e Suleiman Cassamo. As mulheres em Cassamo são vítimas passivas que se conformam com a sua situação humilhante de submissão, tanto ao homem patriarca, cujas ordens são inquestionáveis, como à sociedade, que subestima a mulher. Veja-se o conto “Ngilina, Tu vai Morrer», cuja personagem é a Ngilina que, lobolada por um marido tirano, lhe impõe toda espécie de maus tratos e que, descartando a possibilidade de mudança do estado de coisas, encontra no suicídio o seu refúgio. Veja-se ainda o conto «Laurinda tu vai mbunhar”, no qual os mufanas que têm força se infiltram na frente da fila e compram o pão aproveitando-se da fraqueza das mulheres que suportam a fila e que, em vez de andar para a frente, anda para atrás ou para os lados. Entretanto, elas não podem fazer nada.

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A produção literária de Suleiman Cassamo já não se inscreve na literatura empenhada do contexto propagandista pró político-idealista, mas ainda se preocupa com a construção de uma identidade cultural moçambicana, que se enuncia tanto pela linguagem impregnada de incursões pela língua nativa do autor, como pela reflexão sobre problemas que caraterizam a sociedade a que o autor pertence.

Constituem grandes temas de debate entre estes escritores (Ungulani Ba Ka Kosa, Mia Couto e Paulina Chiziane) a problemática da identidade, a reflexão sobre a História e sobre a problemática de género, numa escrita que se situa entre a figuração do realismo mágico importado das literaturas latino americanas e a reflexão das realidades histórico-sociais vivenciadas pela sociedade moçambicana.

A obra de Suleiman Cassamo não parece dedicar-se especificamente a nenhum destes temas, pois parece abordá-los de forma holística, salientando, por vezes, um aspeto atinente a cada um destes temas. Da sua obra destaca-se a coletânea de contos O Regresso do Morto, que vai ser analisada neste trabalho; um volume de crónicas com o título Amor de Baobá e um romance intitulado Palestra para um Morto.

Pode perceber-se na produção de Cassamo uma reflexão em torno de vários temas, desde incursões históricas até temas que se podem inscrever numa literatura de cariz universalista. Em Amor de Baobá, por exemplo, encontramos crónicas que se inscrevem tanto numa perspetiva de reflexão histórico-contextual, bem como histórias que se enquadram numa perspetiva literária universal, diluindo-se, neste contexto, o sentido habitual dacrónica. Vejam-se, a este pressuposto, as crónicas “O Xirico”, “Um enterro de luxo”, “O mel secreto” e “Um gafanhoto no lençol”, entre outras, que se parecem mais a contos do que a textos de filiação cronística.

Para além desta tendência, que parece caraterizar a produção de Suleiman Cassamo, há também uma abordagem frequente do tema da morte. Em Amor de Baobá, encontramos várias crónicas que abordam a morte, por vezes condimentando-a com um nível de ironia bastante significativo, como a querer confirmar a afirmação do autor aquando da entrevista concedida ao jornal O País:

(...). A morte é tratada com ironia, com arrogância, se quisermos. É um texto que diz: morte, tu não és nada. És apenas o outro lado de uma fronteira escorregadia! Alias, a morte é até uma condição suprema, aquela em que os humanos estão livres de todas as mazelas, despojado de qualquer dor. A situação em que pagamos todas as nossas dívidas. (O País on line – a verdade como notícia 20.08.012)

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Veja-se a este propósito, o conto “O Pai Demissionário”, que parece representar melhor esta visão do autor em relação à morte. Há também os contos “Avó versus televisor”, “Fuzilado pelo Televisor” e “Um enterro de luxo”. Os primeiros dois, no entanto, não ironizam sobre a morte mas sobre a forma como se faz uso dos novos meios de comunicação ressaltando, no primeiro, a substituição da tradição oral da cultura (simbolizada pela morte da avó) pela cultura audiovisual representada pelo televisor, sem se ter, no entanto, passado pela cultura do livro; no segundo, salienta-se a falta de discernimento na seleção de programas televisivos destinados às crianças que levou Mbomby, nascido num tempo em que havia valores e pudor social, aum choque fatal ao assistir a cenas de teor erótico junto a crianças de sete anos.

Em “Um enterro de luxo”, há um sarcasmo mordaz relativo a duas situações, sendo que a primeira é a forma como é concretizada e encarada a morte: com pulmões dilacerados pelo efeito do álcool, o pai teima em beber, sente que a morte se aproxima e encara-a de forma serena - a sua preocupação é não se apresentar à porta de Deus com o hálito etílico; a segunda situação satirizada no texto é a pobreza que obriga o filho a negociatas com o coveiro para que o pai mereça um enterro condigno. O coveiro remove de uma sepultura o legítimo dono, que pertencia a uma familiar abastada, para enterrar o pai de Jeremias e, no dia seguinte, o pai já tinha direito a uma missa “com padres, flores, choros e mármore” (Cassamo, 1998:68).

A tematização do universo feminino parece habitar esta antologia de forma talvez não intencional, mas, ainda assim, os contos apresentam potencialidades que remetem para uma problemática que carateriza a sociedade em que a mulher ocupa um lugar inferior. O primeiro conto-crónica que alude a problemática da mulher é o conto “O pai demissionário”, onde encontramos referências aos problemas da poligamia e do divórcio, fazendo com que a divorciada volte à casa paterna com os filhos.

No texto “Os varões vão a guerra”, a inferiorização da mulher é apresentada de forma subtil, ao referir-se a sua impossibilidade de ir à guerra, que é a expressão inequívoca da sua fragilidade. Há ainda outro aspeto que aponta para a sua condição de inferioridade neste texto: quando ela nasce, o seu anúncio não é festivo, ao contrário do que acontece com o homem: “da casa vizinha ecoou o festivo anúncio de um nascimento. Era rapaz!” (Cassamo 1998: 74). Neste texto, são apenas estes os elementos que apresentam a situação de inferioridade a que é votada a mulher. Estes aspetos estão disfarçados de forma que é difícil decidir se a dissimulação do problema foi intencional ou se a sua apresentação é resultado de uma interiorização cultural.

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O terceiro texto que se refere ao universo feminino é “Os atributos da beleza feminina”, que também dissimula os traumas da mulher na descrição do pé: «o pé rachado no rigor das madrugadas, as coxas no capim alto dos caminhos cacimbados, os dedos no matope e na dureza na argila no estio, pé cheio de matequenha, despido de poesia (Ibid.:111).

O quarto e último texto é “Amor de Baobá” e, diferentemente dos outros textos, aqui subverte-se a situação, uma vez que no presente texto, a mulher assume um certo protagonismo, não é submissa, nem é descrita sob o auspício de condições adversas. Este texto pode comparar-se ao texto “Ngilina tu vais Mbunhar” incomparar-serido na coletânea de contos O Regresso do Morto. Em o “Amor de Baobá”, a mulher não ondula uma longa fila, ela sai dessa fila, parecendo ter sido a primeira que conseguiu a flor que deu ao primeiro homem que encontrou na rua e que coincide com o narrador, sugerindo liberdade e protagonismo por parte da mulher, o que a coloca numa situação diferente de Ngilina, que consegue o pão com sacrifício e desespero.

Em Palestra Para Um Morto, encontramos também referências à condição feminina. Mais uma vez é difícil decidir a intencionalidade dessa abordagem, visto que nessa obra a reflexão sobre a condição feminina é ainda mais ténue do que em Amor de Baobá.

Em Palestra Para um Morto, encontramos dois capítulos que abordam a condição feminina: o ciclo quarto, cujo título é “De como a viúva resistiu à inexorável combustão do tempo, jogando ntchuva com o filho paralítico até o jogo raiar pelo incesto”, e o ciclo quinto, intitulado “Tinha uma mulher no meio do destino, no meio do destino havia uma mulher”. Noprimeiro capítulo, ciclo quarto, abordam-se as vivências de uma viúva, Cangueira, com o seu filho paralítico, Malaquias, os quais se entregam ao jogo de ntchuva, que acaba anulando o respeito que a relação de parentesco exige, envolvendo-senuma relação incestuosa. Para além desta entrega ao jogo, para matar o tempo, há ainda, neste capítulo, a convicção de que ntchuva éum jogo apenas para homens, o que denota a discriminação de género. Isto levou a que a Cangueira, ao encomendar o tabuleiro do jogo, mentisse, dizendo que era para o Malaquias. (cf. Cassamo, 1999: 49)

O segundo capítulo, ciclo quinto, refere a instrumentalizaçãode uma menina para lavar a honra de dois homens. Biana vive com o pai, que a controla rigorosamente, e mesmo os mais mesquinhos afazeres diários eram acompanhados pelo olhar atencioso do pai. À noite, ela dormia no fundo e ele à porta; apesar disso, a menina ficou grávida. E presume-se que tenha sido o pai que a engravidou. Neste capítulo, existem duas situações que remetem para uma condição

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adversa da mulher. A primeira é, como dissemos, a instrumentalização da mulher para o restabelecimento da dignidade dos dois homens: o pai da Biana e o tio do narrador (Cf. Cassamo 1999: 62). Neste contexto, a mulher é vítima e é usada ao belo prazer dos homens sem que ela conteste, visto que ela mesma se considera um mero objeto que se deve ser manipulado pelos homens. A segunda situação é a referência ao modo como Biana e o pai chegaram ao lugarejo: “- É mesmo, o que se diz - disse o mais velho – Que atirou a mulher no poço em Pesseni, para logo rumar para cá e fazer da filha mulher dele” (ibid.:61). Nesta passagem, pode vislumbrar-se o sentimento de posse que os homens detêm sobre a mulher nas sociedades patrilineares, atribuindo-se a liberdade de as tratar segundo as suas vontades.

À semelhança do que sucede em Amor de Baobá, parece que a abordagem da condição da mulher neste romance não é intencional, ela parece emergir como fruto do contexto sociocultural que norteou a produção do romance. Este aspeto colide com a abordagem do feminino em O Regresso do Morto, onde a problemática que cerca o universo feminino aparece como um projeto que o autor se propõe executar e que executa de uma forma bem conseguida, visto que os contos, na sua maioria, transfiguram-se em cenários dramáticos que permitem visualizar, não apenas as personagens e os seus traumas, mas também o meio social, os seus mitos, a sua linguagem, numa escrita picto-cinematográfica de tendência neo-realista.

Em Amor de Baobáe em A Palestra Para Um Morto, as personagens femininas que vivem os traumas da sua condição de mulher são apenas motivo de alusão, e portanto, estão distantes do leitor; elas são geralmente apresentadas como fazendo parte de um conto antigo, evocadas e evocando um passado ou vivido pelo narrador ou ouvido. Portanto, elas fazem parte apenas do universo do narrador e, neste contexto, o leitor é um simples ouvinte sem grandespossibilidades de interagir nem com o narrador nem com as personagens. Ao invés, em O Regresso do Morto, a escrita é sublime e fantástica, permitindo o apagamento do narrador e o transporte do leitor para o mundo real das personagens, possibilitando-lhe dialogar com elas e experimentar a sua dor.

As personagens de O Regresso do Morto ganham vida, as suas histórias parecem não ser conta das pelo narrador e sim encenadas pelas próprias personagens, sendo que o leitor também não é um mero espetador de uma peça de teatro, mas um coator que se posiciona ao lado de Laurinda numa fila longa, no serpentear desesperado pelo pão. O leitor transfigura-se nesses caranguejos que se agarram às ancas, nesses mufanas que tentam entrar à frente da fila, nessa

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vizinha, nesse homem que vende pão, enfim, o leitor de O Regresso do Morto é, sem dúvida, obrigado, pela magia dessa escrita a que apelidamos de picto-cinematográfica, a tomar partido nos traumas que as personagens sofrem.

1.4.A conjugalidade na sociedade patriarcal moçambicana e as relações

de descendência em Moçambique

Segundo Martinez, a família representa o ordenamento e a padronização de normas de comportamento no que se refere ao sexo; regulamenta os direitos, os deveres e, em relação à prole, a sua educação e a responsabilidade com os novos membros da sociedade (Martinez, 2007: 123). O autor classifica a família quanto ao número de membros e quanto à descendência. Quanto ao número de membros encontramos a família nuclear, ligada por laços de consanguinidade, e a família extensa, que agrega várias famílias nucleares. Quanto à descendência encontramos a família patrilinear, a família matrilinear e as famílias bilaterais. Nas famílias ou linhagens patrilineares, o laço de parentesco transmite-se através dos varões e a descendência é reconhecida como masculina ou agnática e, nas famílias ou linhagens matrilineares, a relação de parentesco é transmitida através das mulheres e é reconhecida como descendência feminina ou uterina (Cf. Ibid.:126).Estas duas linhagens podem denominar-se patriarcal e matriarcal, termos estes com uma conotação política, referindo-se ao exercício do poder na sociedade por parte dos homens (patriarcal) ou por parte das mulheres (matriarcal) (Cf.Ibid.:127).

Todavia, nas sociedades matrilineares, o poder político feminino não existe. Quem exerce o poder continua a ser o homem. A diferença reside no facto de, nas sociedades patriarcais, o pai da família, o pater corresponder à figura que exerce o poder e, nas matriarcais, quem exerce o poder é o tio. É por isso que muitos antropólogos já não falam de sociedades matriarcais, mas sim matrilineares. Portanto, não existem linhagens matriarcais.

Em Moçambique, são verificáveis estes dois sistemas de linhagens, sendo a patriarcal mais dominante no sul e centro do país e a matrilinear no norte. Entretanto, por causa das mudanças vertiginosas nas formas de economia, no norte, já se regista um pendor ligeiro para a tendência patrilinear. Esta tendência, porém, ainda não afecta o poder político do tio sobre os sobrinhos, mas já há um certo determinismo do pai, sobretudo no que se relaciona com a

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formação académico-cultural dos filhos. Por exemplo, já não é o tio que deve custear os estudos dos sobrinhos, como era costume há quinze ou vinte anos atrás.

No sul, parece ser o poder económico do pater que determinou e continua a determinar o carácter patriarcal da família, visto que, se o marido não tiver pago o lobolo, que lhe concede plenos direitos sobre a mulher, os filhos dessa relação não podem identificar-se com a família do pai, mas com a da mãe, até que o pai pague o lobolo.

O sul é caraterizado pela prática de pastorícia do gado bovino e pela emigração para as minas do Rand na África do Sul. Estas duas atividades são dominantemente praticadas pelos homens e por conseguinte determinaram o poder económico e aquisitivo do homem em detrimento da mulher, que continua na agricultura de subsistência.

O gado tornou-se desde há vários séculos a moeda de troca comercial e o casamento começou a ser concebido também como uma espécie de troca comercial, sendo que o gado assumiu desde esse tempo a moeda predileta para a aquisição da mulher. Mais tarde, introduziu-se o Rand, moeda resultante do trabalho das minas da África do Sul, acrescido de bens, também adquiridos nas minas.

Enquanto o sul beneficia do solo propício à prática da pastorícia do gado, com planícies verdejantes, várias bacias de grandes rios que atravessam o país, tendo ainda por perto a próspera África do Sul rica em minérios, sonho para muitos jovens do sul do país, o norte, dominado por planaltos e montanhas, tem como atividade económica a agricultura artesanal, sendo que a mosca tsé-tsé não permitiu que o gado povoasse estas terras. Mais tarde, com os árabes e europeus, desenvolveu-se um comércio relativamente pobre. Ora, a organização da actividade agrícola leva a que as sociedades que a praticam sejam mais identificadas com a mulher do que com o homem.

De facto, a mulher é quem mais trabalha com enxada e o homem trabalha com a catana e o machado. Na verdade, o trabalho da catana e do machado, apesar de mais duro, é curto, ao passo que o da enxada longo e duradoiro. Isso leva a que a mulher fique mais tempo na machamba e que, por conseguinte, a machamba seja efetivamente da mulher e os bens daí resultantes sejam mais da mulher do que do homem. Nas sociedades em que a principal atividade económica é a agricultura de subsistência, o homem é neutro, não tem bens e, por isso mesmo, os filhos não são seus. Ainda que politicamente tenha poder, ao nível económico deve subordinar-se à sua mulher, ou seja, não pode decidir sobre nenhum bem à revelia da mulher.

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Opostamente, nas sociedades em que a principal atividade económica é a pastorícia, o gado é propriedade exclusiva do homem e a mulher é menorizada. E porque a atividade da pastorícia ensina também grande parte das artes marciais, sendo uma delas a arte de dominar pela força, não importa que o dominado seja um animal ou ser humano. Veja-se os exemplos de Kilongo no conto “Malidza” de Carneiro Gonçalves (1980), Tchaka Zulo, herói lendário da mitologia africana, e Chitlangou, o filho de chefe, da obra do mesmo nome, dos autores Chitlangou Khambane e André Daniel de Clerc (1946), entre outros exemplos.

Da mesma maneira que os homens poderosos reuniam um grande número de cabeças de gado nos seus currais, reuniam também um número relativamente grande de mulheres nos seus haréns para demonstrar esse poder, porque a poligamia era (é) signo de prestígio para os homens poderosos. Relativamente a este aspeto, em Niketche, Paulina Chiziane escreve o seguinte:

Conheço um povo sem poligamia; o povo macua. Este povo deixou as suas raízes e poligamiou-se por influência da religião. Islamizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e converteram-se de imediato. Porque poligamia é poder, porque é bom ser patriarca e dominar. Conheço um povo com tradição poligâmica: o meu, do sul do meu país inspirado no papa, nos padres, e nos santos, disse não à poligamia. Cristianizou-se. Jurou deixar os costumes bárbaros de casar com muitas mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. Tinha o poder e renunciou. Um dia dizem não aos costumes, dizem sim ao cristianismo e a lei, noutro negam tudo no que tinham aceitado. (Chiziane, 2004:92)

1.5. A conjugalidade e o estatuto da mulher nas sociedades patrilineares

O casamento, segundo Martinez, é «uma instituição social que visa estabelecer vínculos de união estáveis entre o homem e a mulher baseados no reconhecimento do direito de prestações recíprocas de comunhão de vida e de interesses, segundo as normas das respectivas sociedades» (Martinez, 2007: 117). Aparecem vinculados a este contrato social, segundo Martinez, duas normas implícitas – “a aliança heterossexual, que cria vínculos estáveis entre o homem e a mulher e os respectivos grupos familiares; e a filiação, isto é, a prole nascida, que é considerada socialmente de ambos” (Ibid.:126).

Os critérios apresentados pelo autor para a definição do tipo do casamento são inúmeros e passamos a apontar alguns: o número de cônjuges, a escolha dos nubentes, a procedência cultural dos cônjuges, a modalidade e a residência post-nupcial (Cf. Ibid.:119). Destes vamos descrever

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apenas os critérios mais importantes para o nosso trabalho. Quanto ao número de nubentes, o casamento pode ser monogâmico e poligâmico. O poligâmico, por sua vez, pode caraterizar-se como poligínico, quando for praticado pelo homem, e poliândrico, quando a poligamia for praticada pela mulher. O antropólogo considera ainda o concubinato, o amantismo, a “compreensão” pelo adultério e a prostituição como formas furtivas da poligamia.

Em relação à modalidade encontramos:

a) Casamento por livre conhecimento e interesse dos contraentes; b) O casamento em que o papel das famílias dos contraentes é decisivo;

c) O casamento em que se requer o conhecimento tanto dos nubentes, como das respetivas famílias;

d) O casamento em que está prescrito o lobolo, como acto fundamental;

e) O casamento em que não há nada estabelecido sobre o lobolo, apenas exige o comum acordo e a aprovação formal da sociedade;

f) O casamento por herança, em que podem ocorrer os casos mais conhecidos de levirato (que consiste em receber como esposa a viúva do irmão falecido) e de sororato (isto é, receber como esposa a irmã da falecida) (Cf. Ibid.: 120).

Todos estes tipos de casamento existem, na sociedade moçambicana, embora um ou outro tipo não seja praticado de forma generalizada. Entretanto o casamento por lobolo (lovolo) é o tipo mais privilegiado nas culturas do sul do país, região cujas linhagens predominantes são patriarcais. Segundo Brigitte Bagnol, “a prática do lovolo [lobolo] estava geralmente relacionada com a população camponesa rural e analfabeta e era comummente apresentada como uma transação monetária entre as parentelas envolvendos “a venda da mulher” (Bagnol, 2008:251).

O lobolo era primeiramente uma prática rural, apesar de ter recebido constantes críticas, por se rotular de “venda de mulher”, como preceitua Bagnol, mas persistiu até à atualidade e constitui um dos núcleos duros da cultura bantu que, para além de resistir às constantes agressões, continua a ganhar terreno nas áreas urbanas e, por conseguinte, entre as classes médias e escolarizadas, sobretudo no sul do País e um pouco na zona centro por influência daquela. O lobolo consiste num pagamento em valor monetário ou em cabeças de gado efectuado pelo noivo, ou pela família do noivo à família da noiva para aquisição de plenos direitos sobre a esposa e o direito de paternidade em relação aos filhos provenientes dessa relação conjugal.

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Bagnol esboça um perfil evolutivo desta prática no sul do país, começando pela era Pré-colonial até aos nossos dias, apontando o carácter simbólico da prática e os produtos utilizados no pagamento do lobolo. As mais-valias atribuídas ao lobolo entre as comunidades que o praticam, segundo Bagnol, são: permite estabelecer uma comunicação entre os vivos e os seus antepassados; inscreve o indivíduo numa rede de relações de parentesco e de aliança tanto com os vivos como com os mortos; faz parte da identidade individual e colectiva, ligando os seres humanos, vivos e mortos, numa rede de interpretações do mundo e num conjunto de tradições em contínuo processo de transformação. Ao nível social, o lobolo estabelece uma harmonia social. Entretanto, entre instituições tais como a Igreja e o Governo, que tentaram combatê-lo vislumbram-se outros sentidos do lobolo, em que o fenómeno era visto como venda de mulher, como se ela “fosse bem material, uma fonte de riquezas” (ApudIbid.: 254).

No que refere ao valor simbólico dos bens oferecidos à noiva, Bagnol esclarece o seguinte:

Enquanto estava a colocar os brincos na cunhada, a irmã de Paulo disse-lhe: o brinco que estou-te colocando é[sic] para fechar os teus ouvidos, a fim de que não oiças ninguém mais. Este fio é para te amarrar a fim de que não possas ir com ninguém. Este anel é o meu coração. Quando um homem te chama eu estou contigo. Este relógio é para te lembrares que tinhas um compromisso comigo. Tudo isso não é para ir passear e olhar para outros homens. (Ibid.:258)

Para além destes simbolismos do rito e dos bens oferecidos, Bagnol descreve ainda os procedimentos do pagamento do lobolo e das oferendas exigidas pela família da noiva. Segundo essa descrição, cada ato, por mais elementar que seja, exige um pagamento. Todavia, depois que a família do noivo tiver cumprido todas as exigências, o homem sente-se dono de um “bem” adquirido mediante o pagamento escrupuloso exigido pela família da mulher.

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2.1. Breve análise dos elementos paratextuais

O primeiro elemento paratextual é o título O Regresso do Morto, que é também o título de um dos contos que integra a coletânea. Junto deste título temos uma ilustração icónica em que se vê um homem com uma mala e, ao fundo, duas palhotas ao lado de uma árvore. A impressão que esta paisagem deixa, ao associar-se ao título, é a de alguém que vem de longe, provavelmente alguém que vem de um meio urbano para o meio rural. Porém, o título pressupõe que esta pessoa vivia aqui, neste meio rural. Depois terá partido, provavelmente para um meio urbano, à procura de melhores condições de vida. Antes de lermos o texto que empresta o título ao livro, podem ser feitas duas conjeturas: a primeira é que, após a partida do homem do meio rural em direção à cidade ou para as minas, onde passa muito tempo, a família, não tendo recebido notícias, tenha acreditado na sua morte, momento após o qual se dá o regresso do (não) morto.

É este o sentido inscrito no texto, mas, para além desta leitura paratextual, é possível congeminar a existência de uma outra, em que um homem deixa a família e parte para a cidade ou para as minas, na esperança de encontrar melhores condições de vida. Entretanto, nesta aventura, o homem perde a sua juventude, a sua saúde e a esperança. Em vez de trazer riqueza, o homem volta, mas volta débil, mais morto que vivo. Acreditando nesta hipótese, o título evidenciaria uma intertextualidade hetero-autoral com os textos A Chuva Pasmada, de Mia Couto, “A História do Magaiza Madevo”, de José Craveirinha, e «Magaíça», de Noémia de Sousa.

Em todos estes textos aborda-se a ilusão que os jovens, sobretudo do Sul de Moçambique, criam face ao falso brilho de ouro das minas de África do Sul, partindo em busca deste brilho, do ouro, da fortuna. Muitos destes homens que partem deixam a família, esposa e filhos, para trás e os mais novos deixam a namorada, ou mesmo a esposa, em casa dos pais, e partem para a aventura. Todavia, quase sempre voltam desiludidos, doentes, quase às portas da morte ou morrem soterrados nas minas. Em Mia Couto, por exemplo, o pai em A Chuva Pasmada (2004) assistiu ao soterramento de milhares de colegas seus nas minas e, juntamente com eles, a sua própria alma:

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De cada vez que voltava, vinha mais e mais doente. Fumava para que o peito não estranhasse a falta de poeira.

Quando por fim se estabeleceu, definitivo, entre nós, meu pai só tinha um afazer: dormir. (Couto, 2004:15)

Como se pode ver, em Mia Couto, o pai deixa a família, a esposa e o filho, em casa dos sogros e volta doente, portanto quem ficaria a assumir os encargos de casa seria a esposa. Esta é uma situação relativamente incomum entre as sociedades patrilineares, onde o normal é deixar a família em casa do homem.

Por seu turno, em José Craveirinha assistimos, no poema “História do Magaíza Madevo”, à mesma a partida de um jovem que deixa em casa da sua mãe a sua Ngelina, ao mesmo sonho e à mesma desilusão. Madevo volta sifilítico, doente dos pulmões e agora tudo recai na mulher: “vai fazer missa, Ngelina! Que os mochos fatais ruflaram as asas no Jone / e picaram Madevo no âmago dos pulmões” (Craveirinha, 2008: 53).

Em Noémia de Sousa, o Mamparra engole o ouro dos folhetos da propaganda e “carrega a ânsia enorme, tecida / dos sonhos insatisfeitos [… ]”, partindo para o mítico Jone de onde volta com a ilusão perdida, com a mocidade e a saúde soterradas lá nas minas: “a mocidade e saúde, / as ilusões perdidas/ que brilharão como astros no decote de qualquer lady / nas noites deslumbrantes de qualquer city” (Apud Andrade, 1977:211).

Deste modo, não é só o homem que se submete a um destino nefasto, uma vez que a mulher é a principal vítima: na ausência do seu homem, é ela que deve assumir o mando da casa, providenciar comida e educação aos filhos. Quando a mulher é deixada na casa paterna do homem, ela é sujeita à castidade durante muitos anos, à espera do seu homem. Esta castidade e fidelidade não são compensadas, como era de esperar, da parte do homem que, em vez de voltar saudável e rico para um casamento promissor, regressa débil, tísico, mais preparado para morrer do que para assumir um casamento. Este é o caso de Moisés em O Regresso do Morto.

Assim, esboça-se já, desde o primeiro elemento paratextual, uma situação de sofrimento imposta à mulher na sua relação conjugal, quando a ilusão e a ambição desmedida do homem o levam a partir a busca do luxo nas minas da África do Sul.

O segundo elemento paratextual da obra de Cassamo corresponde ao prefácio escrito por Marcelo Panguana, do qual importa sublinhar algumas ideias que parecem efectivamente caracterizar o livro. A primeira delas transparece neste segmento:

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São sobressaltos que traduzem o nosso espanto quando descobrimos no(s) texto(s) uma aforada de ar fresco. E é bom que isso aconteça, precisamente agora que no nível literário vamos procurando a nossa matriz. E é ao longo dessa busca que transparece nos nossos escritos uma certa atitude de reencontro ou de retorno às fontes (Apud Cassamo, 1989:5).

Nesta citação, Panguana entende que os contos desta antologia se situam num contexto histórico-literário emergente e que ainda não estão estabelecidos os paradigmas da literatura moçambicana. Está-se num período em que o projeto de literatura empenhada já atingiu o seu apogeu e está em declínio. E ainda são em número reduzido os textos existentes, especialmente de género narrativo, e os que existem inscrevem-se numa literatura empenhada. Para além disso, a guerra que devasta o país, a fome e a miséria que fustigam as populações não motivam para uma produção literária dedicada ao panegírico dos libertadores da Pátria.

Neste contexto, Suleiman Cassamo ilustra esta realidade, a realidade caótica que caracteriza o seu povo, transfigurando a realidade sociopolítica nas suas personagens e descrevendo apenas o sangrar do povo comum, o seu sofrimento, sem, no entanto, apontar o dedo acusador ao sistema responsável por esse sofrimento.

Veja-se, a este propósito, o seguinte fragmento:

Os olhos da Laurinda procuram “milícias”. Onde „stão?” o serviço deles afinal é qual? Ahã! São „sperto: chega parece qu‟stá ver bicha, vai no balcão, enche saco com pão, vai „mbora com o olho, porque tu que dormia na bicha é mamparra. É bom assim? É bom mesmo? Onde tem unidade? Onde tem vigilância dele?(Cassamo, 1989:19)

Um outro aspeto que importa salientar refere-se a uma “atitude de reencontro ou de retorno às fontes” (Apud Cassamo, 1989: 5). Visto que os contos radiografam as vivências quotidianas do povo comum, expressando as suas angústias e ansiedades causadas por fenómenos sociopolíticos vigentes, funcionam como crónicas e veiculam um saber popular, que se designaria por retorno às fontes. Como a confirmar a nossa posição, veja-se o que Panguana afirma: “O autor oferece-nos neste livro situações díspares, vividas ou observadas na amálgama da vida” (Apud Cassamo, 1989: 6).

O último elemento paratextual diz respeito à epígrafe do autor: “Que da leitura destes contos / vos fique um leve, / levíssimo sabor a terra. /O sabor da nossa terra” (Cassamo, 89:10).Mais uma vez, a epígrafe vem reforçar a ideia de que os contos nos proporcionam um retrato dos traumas, da angústia e da ansiedade do povo, do povo real dos bairros de caniço que, devido às

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condições adversas do meio rural, devido à guerra, veio povoar os arrabaldes da cidade, procurando, neste contexto, a satisfação das necessidades básicas. No já referido prefácio, Panguana já dá conta desta situação, ao afirmar que:

Nos contos que incorporam “O Regresso do Morto”, há todo um desfile de momentos, de personagens, traumas e processos conflituais que, ao serem descritos de uma forma talentosa, nos legou essa outra face de uma realidade que nos pertence e que, muitas vezes confinados na algazarra das paredes betão armado e na luminosidade dos néon, facilmente se nos escapa. (Ibid.:5)

Como se pode depreender, as personagens povoam o espaço geográfico da grande cidade (Maputo), como é o caso de Laurinda, do Fabião que já é o Neves, o velho e outros, criando dentro do espaço urbano um outro universo importado do meio rural e que parece, mesmo com a hostilidade dos néones, conservar-se e permitir a emergência daqueles traumas descritos de uma forma que Panguana considera abrupta e emocional.:

E, diariamente chegava mais gente. Cada um a sua língua, seus costumes. Cada um suas ambições e meios muito pessoais para realizá-las.

Cada um, sozinho no seio de tanta gente. (Ibid.:53)

São estas ilhas teoricamente criadas no meio urbano que conservam este núcleo duro da cultura e da tradição. Assim, vemos Laurinda a afirmar categoricamente: “- Sacana! Eu não me vende com pãozinho! Eu não sou puta, ouviu? Tem marido, tem filho, eu. Eu…eu…” (ibid.:21). Mas, ao mesmo tempo, é ela que tem que enfrentar “esse alcatrão a ferver nos pés” (Ibid.: 19), para comprar o pão para servir ao filho e ao seu “senhor”.

Em condições normais, não seria a mulher que devia enfrentar uma fila como aquela, seria o seu homem, Laurinda sabe, conhece o código da sua tradição. O texto não diz que ela foi lobolada, mas da afirmação acima descrita já se depreende que Laurinda é uma mulher com estatuto de esposa e ter esse estatuto significa ser lobolada, o que faz com que ela tenha que trabalhar para servir o seu senhor e a prole.

Referências

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