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A hegemonia masculina e o silenciamento do feminino

Capítulo II – A condição feminina em O Regresso do Morto

2.2. A hegemonia masculina e o silenciamento do feminino

Na análise de alguns contos refletimos sobre os aspetos que norteiam as relações conjugais em O Regresso do Morto, como ressonância da conjugalidade nas sociedades patrilineares. E, por conseguinte, fomos dando conta do estatuto social que a mulher adquire logo que contrai casamento. Analisando o contexto da mulher na relação conjugal, fomos ao mesmo tempo, dando conta do estatuto do homem nessa relação.

Vimos, assim, que a tipologia dos elementos socioculturais e económicos contribui em muito para a conceção de uma sociedade falocêntrica, visto que as atividades económicas praticadas na sociedade patrilinear, a pastorícia especialmente, não só educam o homem na arte de dominar, como também lhe atribuem o produto daí resultante. Portanto, é ao patriarca que pertence o gado, ao mesmo tempo a mulher é também vista como gado, podendo ser adquirida mediante o pagamento em somas monetárias ou em gado, uma aquisição que não depende da anuência da parte feminina: “Só depois dessa reunião, ela soube que estava lobolada. Não queria. Mas o pai queria. Mandava” (Ibid.:14); “Depois brincadeiras só mucadinho, brincar xingombela, até o

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homem vir falar com o pai e lobolar. A gente não sabia nada mesmo. Era só ouvir este é teu marido. E se é coxo? E se morreu um olho? Que fazer, Velina? Era assim mesmo…” (Ibid.:61).

Como se pode ver, o casamento para a mulher era um destino incerto, uma fatalidade que obrigava a mulher a resignar-se, guiada pelo pai até ao marido, e a submeter-se sem objeções. Neste contexto, o homem detém o poder sobre a sua mulher ou as suas mulheres, visto que, à semelhança do gado, que pode ser multiplicado, ao homem é também permitido multiplicar as suas mulheres desde que detenha algum poder financeiro para o pagamento do lobolo. Assim, vamos analisar o modo como é conseguida essa autonomia masculina e o consequente silenciamento da mulher e o modo como se explicita o falocentrismo nos contos inscritos em O Regresso do Morto.

O primeiro conto da antologia é o mais representativo dos traumas da conjugalidade na sociedade patrilinear em O Regresso do Morto. Neste conto, encontramos plasmados os métodos usados na realização do casamento e encontramos ainda grande parte das astúcias que se usam para perpetrar e perpetuar a supremacia do homem em detrimento da mulher nestas sociedades.

A primeira astúcia e, provavelmente, a mais importante é o papel da sogra. A figura da sogra, tanto nas culturas patrilineares, como nas matrilineares, é vista como persona non grata. E a relação existente entre sogra e nora é sempre uma relação de hostilidade. Parecem existir dois motivos que sustentam o conflito sogra/nora. O primeiro motivo relaciona-se com o preconceito das sogras, pois, para elas, toda a nora tem defeitos: ora é prostituta, ora é preguiçosa. Mas a verdadeira razão é o sentimento possessivo que o coração de mãe tem sobre o filho; o amor possessivo pelo filho faz com que a mãe não queira partilhar o filho com qualquer outra mulher. O segundo motivo está relacionado com o sentimento da prodigalidade dos bens. Um filho varão é, nas culturas patrilineares, uma bênção, garantia de continuidade do nome, possibilidade de aumento da riqueza, é mais um pastor de gado da família. Contudo, é também com esse gado que esse varão vai pagar o lobolo. Portanto, a mãe sente o desperdício dos bens usados no pagamento do lobolo e imputa à nora toda a culpa: “Mas lá estava a sogra a chamá-la preguiçosa, preguiçosa, preguiçosa todo o dia do xicuembo. Evocava sempre o lobolo que o filho gastou” (Ibid.:14).

Do lado da nora, porém, este conflito não é acolhido de forma resignada. A nora não gosta quando, por exemplo, o marido frequenta a casa da mãe, quando compra bens à mãe. A nora não adora um marido excessivamente ligado à mãe, chegando a criar crises conjugais que

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levam ao divórcio. Por exemplo, em “Ngilina, tu vai morrer”, assistimos de forma aberta a conflito entre sogra e nora:

Lá estava a sogra - aquela velha maldita – a dizer: tu lenha; tu água; tu, balde de barro na cabeça; tu, enxada; tu, panela de barro no lume; tu, pratos lavados…mas lá estava a chamá-la preguiçosa, preguiçosa, preguiçosa todo dia do xicuembo. (Ibid.:14)

Ao destrinçarmos o conflito latente nesta lamentação, sentimos a raiva que Ngilina rumina contra a sogra nas palavras “aquela velha maldita”. Estas palavras não transmitem apenas o sentimento de repúdio de Ngilina pela sogra, mas sim o ódio visceral que a levaria a procurar um ervanário a pedir-lhe um veneno para dar cabo à sua vida. Na repetição da palavra preguiçosa está presente o sentimento de crueldade da sogra para com a nora. Por outro lado, é ainda visível o desencanto total pela vida manifestado pela nora, Ngilina. Como se pode depreender, os dias após o casamento de Ngilina são malditos. Isto revela uma revolta interna, abafada pela impossibilidade de a poder exteriorizar, porque é mulher, porque está lobolada e, por isso, não pode mais nada, é objeto do seu homem e, por conseguinte, da sua sogra. Porém, Ngilina rumina internamente esta revolta e acabará por explodir quando procurar a morte.

Do outro lado está a impertinência da sogra que, ao emitir as ordens para a nora fá-lo de modo a que ela se sinta desprezada, que se sinta não como uma nora e, portanto, como uma esposa, mas sim como um burro de carga. É importante recordar o próprio código de conduta imposto à mulher lobolada:

É preciso ferver ncancana depressa, botar amendoim. Ferver água, botar um mucado de farinha de milho que agora começou a peneirar. Esperar mucadinho. Mais farinha. Depois mexer com libôndzo até ficar wusua, servir e pôr na mesa. Não esquecer moringa de água para beber. Não esquecer piri-piri, água na bacia e toalha. Não esquecer nada mesmo, nada. Mas primeiro água no balde na casa de banho. Depois de ele banhar, ir ajoelhar com respeito e dizer:

- Tatana, vai comer. (Ibid.:14)

Ora, Ngilina, como a maioria das meninas loboladas, não passa de uma adolescente que, em casa dos pais, ainda se encontrava envolvida nas brincadeiras infantis de xingombela, sem nenhuma preocupação com os deveres para com um possível marido. Agora casada, fora-lhe recitada toda aquela ladainha de deveres e obrigações que devia saber de cor para “não esquecer nada mesmo, nada”.

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A ênfase que é dada a expressão «não esquecer nada»já veicula a fatalidade que acarreta “o esquecer algo”. Implica isso que Ngilina devia formatar-se para cumprir à risca todas as regras sob pena de ser castigada, como veremos adiante.

É importante igualmente salientar que, na sociedade patrilinear, o casamento não é visto como expressão máxima do amor entre o homem e a mulher, pois apresenta um carácter utilitarista: fazer filhos, de tal sorte que, quando a mulher não concebe, é maltratada, sendo mesmo devolvida aos pais e exigidos de volta os bens ofertados na cerimónia do lobolo.

A síntese destas condições que suportam o casamento na sociedade patrilinear permite a acumulação de todos os poderes na figura do homem e a redução da mulher a simples escrava doméstica.

Como tivemos já oportunidade de sublinhar, oconto “Vovó Velina” é a antítese do texto “Ngilina, tu vai morrer”. Neste último, encontramos exposto o código sociocultural do relacionamento conjugal e todas as consequências que esse feixe cultural implica para o novo casal, especialmente para a mulher: “Coitadinha, Ngilina, era uma menina xonguile mas agora ficou velha num ano só. Ngilina é xiluva que murchou” (Ibid.:14). Neste conto, o objetivo do casamento não parece ser a celebração do amor nem da felicidade de duas pessoas que se amam e se comprometem a passar resto dos seus dias juntos.

Contrariamente, em “Vovó Velina”, assistimos à subversão desse código cultural, o que escandaliza todos os que entram em contacto com essa realidade subversiva: “Mas varrer, lavar, cozinhar, a mulher na varanda, pernas estendidas no sol a pintar unhas é ser homem mesmo?” (Ibid.:57).

A subversão começa mesmo com o esquema das personagens apresentada pelo narrador. Ngilina ocupa a posição de Zabela no texto “Vovó Velina” e é caraterizada por ser triste, sofre maltratos tanto do marido como da sogra, vivendo em maldição os seus dias após o casamento. Isto que significa que não vive para desfrutar dos prazeres que a vida conjugal proporciona, mas para cumprir com o destino, tal como afirma: “Mas é assim vida de mulher. Paciença…Só o xicuembo sabe…”. (ibid.:13)

Em consequência disso, teve uma velhice precoce. A alegria, a felicidade foi-se-lhe logo no dia que o marido a tomou por mulher. Ngilina odeia tanto o marido como a sogra, por lhe infligirem todos os sofrimentos que antes não conhecera. Odeia igualmente a vida: “Assim é

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vida? (…). Assim não é vida, não. É melhor morrer mesmo. Morrer é mesmo bom. Tudo acaba, tudo. Sim vale apena morrer” (Ibid.:13).

Em contrapartida, Zabela é alegre, ama tanto o marido como a sogra: “Uma mão foi pegada pelo Ernesto e outra pela mulher. Entraram com ela, a rir, marido e esposa” (Ibid.:61). Entretanto, as diferenças entre Ernesto, o marido de Zabela, e o marido de Ngilina acentuam-se, até porque este último é descrito como sendo um velho, com a idade do pai dela: “Ngilina tinha só dezasseis anos quando o marido, um homem da idade do pai e gaiça na altura reuniu com os pais na palhota grande” (Ibid.:14).

Em nenhum momento é referida alguma alegria advinda do casamento desse homem anónimo com Ngilina. E mais, a regra no cumprimento das tarefas domésticas é exigida por ele de forma muito rigorosa, trata a mulher como escrava, “Bate-lhe (…) com cinto que tem ferro, com paus, com socos, com pontapés, com tudo” (Ibid.:14). Opostamente, Ernesto é afável, amável – “Regressa logo que acaba serviço. Ajuda a mulher…” (Ibid.:60).

A sogra de Ngilina nada tem a ver com Vovó Velina. À semelhança da sogra de Ngilina, vovó Velina partilha uma conceção de casamento em que a mulher não passa de mbongolo de carregar os sacos. E, como tal, ela não admite que o filho dela, o filho que ela criou com sofrimento, tenha essa fraqueza de espírito: “Arnesto? Arnesto, meu filho, tu não pode ser feito xithombe, fotografia de colar no papel. Deve e ser homem mesmo como teu pai. No jone, ele torcia o pescoço dos tsotsi” (Ibid.:58).

À semelhança da sogra de Ngilina, vovó Velina guarda ódio pela nora, essa “mulher com olho aberto, feitiçou ele, ficou escravo dela…” (Ibid.:58), mas a diferença, porém, reside no facto de, ao conviver com o casal, vovó Velina abrandar toda a ira que incubara contra o filho e especialmente contra a nora: “O coração de vovó Velina ficou cheio de mel. Aí morreu a zanga: ao dizer aquilo, os olhos da Zabela eram doces, olhos de rola, olhos de menina da terra” (Ibid.:61).

Outras diferenças existentes entre os dois contos relacionam-se com as categorias da narrativa. No conto “Ngilina, tu vai morrer”, a única personagem que tem nome é Ngilina, as restantes são anónimas, ao passo que, no segundo texto, no conto “Vovó Velina”, todas as personagens têm nome. Isto parece sublinhar a parcialidade do narrador no julgamento das ações protagonizadas pelas personagens, o que carateriza a maioria dos narradores da coletânea. De

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facto, merecem a dignidade de um nome as personagens que configuram o plano de heróis e vítimas e são inomináveis as personagens que representam os papéis de vilões.

Assim sendo, em “Ngilina, tu vai morrer”, o conto é tecido com personagens que assumem o papel de vilões, desde o pai de Ngilina, passando pelo marido e terminando com a sogra, e com a personagem que representa o papel de vítima, Ngilina. Opostamente, em “Vovó Velina”, o conto é tecido com personagens que representam o papel de heróis, desde Ernesto, que decide comportar-se de forma diferente dos seus coetâneos, fazendo ouvidos de mercador ao que a sociedade comentava acercada sua conduta, passando por Zabela que, diferentemente das meninas da sua cultura, ama a sogra, vovó Velina, a qual, perante a convivência com o casal Ernesto/Zabela, consegue rebater o ódio e a raiva que incubou por influenciados falares alheios, reconciliando-se tanto com o seu filho, como com a sua nora.

Como dissemos, o conto “Vovó Velina”, por via do comportamento de Ernesto e Zabela, subverte os cânones culturais, o que escandaliza a sociedade e a leva a exteriorizar o que é esperado em termos de comportamento. Essa exteriorização surge pela voz de Vovó Velina, em jeito de desabafo e retaliação contra os comportamentos escandalosos das novas gerações.

Em “Laurinda, tu vai mbunhar” encontramos expressos os traumas quotidianos desta personagem, na labuta pela aquisição do pão, com toda a azáfama que essa labuta implica. É Laurinda que nos informa que é casada, porém, é ela quem tem que enfrentar a fila para garantir o pão aos filhos. Fica em aberto a questão relativa às responsabilidades do marido, ante o desespero descrito quando se anuncia:

-Acabou pão!

Laurinda quer cair, Laurinda ficou vazia como saco de pão. Não tem força nenhuma, não tem cansaço, nada lhe dói, nada quer a não a não ser uma parede, uma árvore para se encostar. E ficar. (Ibid.:21)

O nível de desespero descrito já prenuncia o tipo de conjugalidade que carateriza o lar de Laurinda, tendo em conta o tipo de vida que caracteriza tanto a família como a sociedade que a rodeia. Uma sociedade com um nível de pobreza acentuado, em que a luta pela sobrevivência era o seu pão de cada dia. O seu desespero revela que se ela não conseguisse pão não teria outra alternativa:

Laurinda, tu vai mbunhar.Tu vai mbunhar! E se mbunhar? Teus filhos não vai comer nada. Eles vai chorar, não sabe tudo e difícil. Tem razão, é pequenos. O Zeca muito muito. (Ibid.:21)

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Todavia, a vida de Laurinda contradiz com o que ela afirma: “Eu não é puta, ouviu? Tem marido, tem filhos, eu. Eu…eu…” (Ibid.:21).

Nos outros contos assistimos a um cenário diferente: a mulher fica em casa, é vista como um ser frágil e incapaz de enfrentar o rigor da vida na busca de pão. O seu lugar é em casa à espera que o marido volte dessa aventura ordinária do amanhar do pão. Veja-se a esse propósito os contos “As mãos da vida” e “José, Pai Natal”. No caso de Laurinda, é ela que parte em busca do pão para a prole. A alusão ao marido só surge quando um dos mufanas manifesta interesse em negociara com ela a aquisição do pão:

-faz-me lá um jeito… […]

-Sacana! Eu não me vende com pãozinho! Eu não é puta, ouviu? Tem marido, tem filho, eu. Eu…eu. (Ibid.:21)

Ora, a crescente preocupação de Laurinda para com o bem-estar do lar e o crescente silenciamento do marido nessas lides é um indicador da autonomia do marido, concretizada na sua alienação em relação às preocupações da manutenção do lar e, por conseguinte, neste contexto não se fala do silenciamento da mulher, mas da imposição de trabalhos forçados, à semelhança do que ocorre no universo de Ngilina.

Em “Nyeleti”, a autonomia masculina e o consequente silenciamento feminino realizam- se de várias formas. A primeira consiste na obsessão que tanto Nyeleti como a sua família cultivam em relação às provisões que Foliche traria para o pagamento do lobolo almejado: “O pai da Nyeleti queria fato e gravata, sapatos e hop-stick” (Ibid.:25). E cada membro da família, passando pela mãe, pelo avô até todos os “madodas, no dia do lobolo queria também de fóloche, fora do relógio […] fora de tudo isso, um garrafão de mulema, cheio até à garganta, de sope o vinho branco» (Ibid.:25).

Ora, como dissemos anteriormente, em se concretizando todas essas exigências, é evidente que o homem tinha uma sensação de a ter comprado e daí ter o sentimento de autonomia em relação à vida dela, cuja consequência é a sua submissão, já que ela também tem consciência de que o seu dono conseguiu satisfazer todas as exigências do lobolo.

A outra forma da realização da autonomia feminina reside no facto de Nyeleti, não tendo conseguido preservar o compromisso com Fóliche, ter aceitado que os dois rivais se confrontassem pela sua posse, o que revela que a mulher não tinha direito à escolha do homem que preferia e é essa falta de direito que chamou para si todas as desgraças: “O amanhecer

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surpreendeu o milagre de um verde rebento no chão de brasas. Hoje, Nyeleti e Massinguita de um cacto a crescer na cinza do que foi a cabana do Malatana” (Ibid.:29).

Em “Madalena, Xiluva do Meu Coração”, a autonomia masculina e o consequente silenciamento do feminino realiza-se pela forma como Fabião renuncia ao amor infantil e inocente da Madalena, só pelo facto de esta ser camponesa e de ele ter estudado muito: “Poderia até casar contigo, Madalena. Mas como te aceitariam os amigos de Neves, tu, uma inculta? Ridículo!” (Ibid.:35).

Em “As Mãos da Vida” e em “José, pobre Pai Natal”, a autonomia masculina e o silenciamento da mulher são evidenciados pelo machismo dos homens, que se afirma apesar conselhos sábios das mulheres, fazendo estes ouvidos de mercador até que chegue o dia da fatalidade.Em “O Funeral do Bobi”, a autonomia masculina realiza-se através da reação da avó mediante o sexo do cão que José traz..

“ –Aqui não quero cadela. Cadela com cio e uma vergonha.” [ …]

-Se é fêmea, devolva-me levantando a pata traseira, espreitou os fundos do bicho e depois ficou calada.” (Ibid.:48)

A posição da avó de José é bastante irónica e revela alguma consciência social e cultural. É uma mulher que não quer um cachorro fêmea, o que parece reflectir o mesmo sentimento em relação aos homens. Um filho varão é sempre bem-vindo, mais do que o é uma filha.

Em “Casamento de um Casado”, a hegemonia masculina realiza-se na figura do velho Massie e da velha Nguanasse: o velho com um busto ostensivo e altivo e a velha com “ar submisso, olhos no chão, com casca de cana-doce riscando o chão” (Ibid.:65).

Este texto representa nas suas personagens a personificação da autonomia masculina e o consequente silenciamento feminino. Nota-se no texto que na conversa que a família teve com o filho, é só o pai quem fala porque perante os homens a mulher não tem o direito de falar.

Por fim, vamos analisar o conto que intitula a antologia. Importa referir que este conto não apresenta de forma clarividente os traumas que caracterizam o estatuto da mulher nas sociedades patrilinear, ou seja, não materializa claramente a hegemonia masculina e o consequente silenciamento da mulher.

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O conto representa, sim, os traumas sociais engendrados pelo sistema político e pelo tipo de economia imposto às sociedades e daí advêm todos os males que também vão colocar a mulher numa condição de vítima, tal como o homem.

O conto “O Regresso do Morto” guarda intertextualidade com vários textos hetero- autorais, mais especificamente, com o já referido poema de José Craveirinha e com “Magaiça”, de Noémia de Sousa. Em ambos os textos há a referência a uma partida de jovens, com vigor e saúde, e que regressam quase mortos, tal como no conto “O Regresso do Morto”. A este propósito, veja-se a relevância dos versos seguintes:

O gado está escolhido Contado e marcado

E vai no comboio gado Mamparra. No curral

Ficam as fêmeas A partir do gado novo.

Regressa o comboio de“Migodini”

E vem podre de doenças o velho gado de África. Oh,e faltam cabeças no gado “ M´gaiza”

[…](Craveirinha, in Andrade,1977:213)

É sugestivo o primeiro verso (“O gado está escolhido”), porque permite denunciar, neste contexto, a seleção dos melhores jovens em termos de saúde e vigor, para as minas da África do Sul. Isso leva-nos a crer, efetivamente, que não eram os débeis ou os fracos que eram recrutados para as minas do Rand, mas os melhores. Este verso entra em contraste com o segundo verso da terceira estrofe: “e vem podre de doenças o velho gado de África”. O mesmo gado que fora criteriosamente seleccionado, após uma intensa exploração, já não presta, já está repleto de doenças e prestes a morrer. É nesta condição que o gado é devolvido ao seu curral de origem. O verso a seguir (“oh, e faltam cabeças no gado m‟gaiza”) revela a morte de outros para além dos que voltam em estado de invalidez.Vê-se efectivamente o tom irónico que encobre esta tragédia, desde o título (“MamparaMagaiza”), cuja tradução é mineiro sem juízo, ignaro, sem discernimento, passando pela metáfora do gado escolhido, até atingir o seu auge na segunda estrofe: “no curral /ficam fêmeas/ a parir gado novo”, como se os africanos fossem predestinados a serem tratados como gado.

64 E um dia

O comboio voltou, arfando, arfando… Oh Nhamisse voltou.

E com ele, magaiça,

de sobretudo, cachecol e meia listrada, é um ser deslocado

embrulhado em ridículo.

Às costas-ah, onde te ficou a trouxa de sonhos, magaiça? - Trazes as malas cheias de falso brilho

dos restos da falsa civilização do coumpound do rand. E na mão,

Magaiça atordoado acendeu o candeeiro, á cata das ilusões perdidas,

da mocidade e da saúde que ficaram soterradas

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