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A conjugalidade e estatuto da mulher em O Regresso do Morto

Capítulo II – A condição feminina em O Regresso do Morto

2.2. A conjugalidade e estatuto da mulher em O Regresso do Morto

Neste ponto vamos tentar inferir as caraterísticas da conjugalidade das sociedades patrilineares presentes nos contos que incorporam a antologia. Como podemos depreender, são várias as temáticas abordadas nos dez contos da antologia, mas em todos eles existe algo referente à conjugalidade. Por isso, iremos explorar esses pormenores presentes em cada conto, o que nos permitirá construir um corpus significativo que nos ajude a tomar posição sobre as caraterísticas das relações conjugais nas sociedades patrilineares e o consequente estatuto que é conferido à mulher casada.

O Conto inaugural da antologia é o conto representativo da temática da conjugalidade nas sociedades patrilineares. A primeira característica da relação conjugal, que liga Ngilina ao seu marido, é o facto de ela não ter podido escolher nem de lhe ter sido dado o direito de se decidir em relação ao casamento. O seu casamento é decidido à sua revelia. A outra característica é que o marido tem quase a idade do pai e ela tem, na hora do casamento, dezasseis anos apenas:

Ngilina tinha só dezasseis anos quando o marido, um homem da idade do pai e gaiça na altura reuniu com os pais na palhota grande. Só depois desta reunião ela soube que estava lobolada. Não queria. Mas o pai queria. Mandava. (Cassamo, 1989:14)

Este tipo de casamento escapa à caraterização de Martinez (2007), ao apresentar duas caraterísticas: a primeira é a preferência do pai de Ngilina e a segunda é a compulsividade; Ngilina não tem muita escolha, o pai manda e ela tem que obedecer à risca.

Estão por detrás desta vontade paterna e desta imposição a Ngilina, as somas monetárias que nem à própria Ngilina são dadas a conhecer. O negócio foi fechado entre o homem e o pai de Ngilina como se fosse venda de gado, recordando a afirmação segundo a qual, nas sociedades cujas actividades económicas se baseiam na pastorícia, a mulher é confundida por gado. A segunda caraterística do casamento de Ngilina é o facto de esta não ter direito a pronunciar-se sobre a sua vida sexual, ela tem que satisfazer a insaciabilidade do seu homem porque é pertença sua:

Ngilina nunca até ali dormiu com homens e nunca gostou desde aquele dia em que o marido a possuiu. Mas ele queria sempre, todos dias. Como diria não se lhe pertencia? Acordava com dores na coluna, nas ancas, na cabeça, todo o corpo. (Ibid.:14)

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A terceira característica é o facto de Ngilina ter que servir o marido em tudo, cumprindo à risca todas as regras que a tradição exige. Assim que o homem volta tem que encontrar a comida já feita e quentinha à mesa:

Servir e pôr a mesa. Não esquecer moringa de água para beber. Não esquecer piripiri, água na bacia e toalha. Não esquecer nada mesmo, nada. Mas primeiro água no balde na casa de banho. Depois de ele banhar, ir ajoelhar com respeito e dizer:

-Tatana, vaicomer.2(Ibid.:14)

O segmento parece não narrar uma situação de conjugalidade em que marido e mulher são companheiros, amantes e amigos. A situação descrita aproxima-se mais à escravatura que à conjugalidade, acrescentando-se que a mulher é ainda uma menina adolescente de 16 anos. Associado ao trabalho de servir o marido, estão os trabalhos da casa. Ngilina vive com a sogra, o que não é caso único, uma vez que no conto «O Regresso do Morto», que dá título à antologia, encontramos também uma nora a viver com a sogra. Mas, neste caso, a sogra de Ngilina

é cruel. Portanto, Ngelina não só deve servir ao marido, tem que servir também a sogra exigente: aquela velha maldita – a dizer: tu, lenha, tu água; tu, balde de barro na Cabeça; tu, enxada; tu panela de barro no lume; tu, pratos lavados… mas lá estava a sogra a chamá-la preguiçosa, preguiçosa, preguiçosa todo o dia no xicuembo 3 (Ibid.: 14) Além disso, o marido batia-lhe:

Naquele dia, quando o marido voltou, a sogra fez queixa.

Disse que Ngilina ʼstava com mufana no poço quando ia cartar água. Youé! Aquilo não foi abater não os dentes ficou partido. Quase Ngilina queria morrer, faltou mucadiiinho (Ibid.: 15)

Estamos a observar uma criança que sai abruptamente da liberdade da adolescência para uma situação de alta pressão sem uma preparação psicológica e social adequada; Ngilina sai da infância e é obrigada a saltar a fase da juventude, caindo na fase adulta e arrastando todos os dissabores que o peso da tradição e da cultura impõem. Neste contexto, o casamento, ou seja, o lobolo parece dar à mulher um estatuto mais de serviçal que de esposa e mãe.

2

Papá, vai comer 3

Este termo, segundo o glossário de Cassamo pode significar Deus ou feitiço, o que complica a tradução do sintagma “todo o dia do xicuembo”, que parece poder equivaler a “todo o maldito dia”, ou a “todo o santo dia”. Entretanto, neste segmento parece mais viável a hipótese da primeira tradução.

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Apesar de não estamos perante uma análise antropológica, a realidade não parece apartar- se completamente das situações descritas neste conto, que é representativo da conjugalidade nos contos da antologia em estudo. Como prova disso, encontramos nos contos subsequentes situações que, embora apresentadas com relativa veemência, apontam para a hostilidade que a mulher lobolada sofre em casa do seu marido.

No conto “Nheleti” encontramos duas situações que apontam para a problemática da conjugalidade e, por conseguinte, para o estatuto da mulher. A primeira está relacionada com a partida de Foliche para as minas do Rand. Foliche partiu para o Rand com a finalidade de se aprovisionar de dinheiro e bens com os quais ia fazer o lobolo. Dessa partida depreende-se que, da parte do homem, o casamento é uma espécie de conquista que requer anos de trabalho árduo para merecer a dignidade de uma mulher com lobolo.

As minas são uma das várias provações a que os jovens se submetem para a angariação dos fundos destinados ao pagamento do lobolo. Ora, como se sabe, o trabalho das minas, para além de ser duro, é arriscado, contando com os soterramentos que chegam a sepultar dezenas, centenas de mineiros, pondo fim a sonhos, não somente do mineiro, mas também da sua rapariga e dos seus familiares. Os sortudos que voltam e conseguem concretizar o sonho de pagar o loboloficam com a sensação de uma conquista conseguida à base de muito sacrifício e sentem-se no direito de fazerem da o que entenderem, porque esta já lhes pertence. A mulher nesta situação passa a ser pertença, propriedade do seu homem.

Uma outra questão surge relacionada com as esperanças que a família de Nyeleti sustenta relativamente ao lobolo de Foliche. Cada um espera receber dele algo que acha valioso, isto para além do dinheiro do lobolo:

O pai de Nyeleti queria fato e gravata, sapatos e „hop-stick.‟ Dele viria o mucume, o lenço para Mabana, a mãe de Nyeletie a nkeka e o frasco de rapé para a velha Magugu, mãe do pai de Nyeleti; o centro da roda dos madoda, […] queria também de Foliche, fora do relógio de brilhar como sol, do anel de ouro, dos brincos pequeninos parece gotas de orvalho, da roupa de valor, roupa fina cheia de rendas isto para Nyeleti, fora do dinheiro, fora de tudo isto, um garrafão de mulemba, cheio até a garganta, de sope, o vinho branco. (ibid.:25)

Como se vê, a lista das exigências é enorme, o que significa que, cumprindo-a integralmente, parte significativa da fortuna amealhada ao longo dos anos de trabalho nas minas

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fica comprometida. E isto traz duas consequências: em primeiro lugar, a qualidade de vida dos cônjuges baixa, na tentativa de recuperar economicamente dos danos provocados pelo lobolo; em segundo lugar, o peso na consciência que a mulher tem devido aos caprichos da família no acto do pagamento do lobolo coloca-a numa condição de submissão em relação ao homem, sentindo- se na obrigação de satisfazer todos os desejos e caprichos do marido. E se ela se sente incapaz de satisfazer algum desejo relacionado com o casamento, sabe que isso coloca em risco a sua vida conjugal e, por conseguinte, acarretaria a necessidade de devolução de todos os bens recebidos pela família no acto de pagamento do lobolo. Este facto poria à família numa situação crítica, visto que seriam precisos muitos anos de trabalho para juntar as somas gastas nesse rito. 4

Por causa destas situações, a mulher lobolada sente-se refém, presa e, ainda que o marido a maltrate, não pode dar-se ao direito de abandonar a casa conjugal, primeiro porque não teria para onde ir (repudiada por toda a sociedade e votada ao ostracismo), mas também porque esse facto implicaria prejuízos avultados para a família, conforme sustenta Chiziane em Baladas de Amor ao Vento: “O único problema é devolver as trinta e seis vacas do meu lobolo” (Chiziane, 2008:104).

Para além disso, a insubordinação de uma mulher é vista como uma maldição dos espíritos e a mulher que se aventura em não se submeter humildemente aos mandos do marido arrisca-se a contrair infortúnios impostos pelos antepassados; arrisca-se a correr como uma louca e a morrer na floresta. Veja-se por exemplo o destino de Nyeleti:

Mais tarde, quando os dois beligerantes, nos passos leves, felinos, se assediavam, se elevou na selva um fio de escuro fumo. A tarde, de cobre ardente ficou mais rubra; a noite, a mais escura das noites. Houve um relâmpago e a seguir, um ribombo que ensurdeceu o mundo. Uma lágrima, uma grande lágrima, desceu do céu e cobriu a terra. O amanhecer surpreendeu o milagre de um verde rebento no chão de brasas. Hoje, Nyeleti é massinguita de um cacto a crescer a crescer na cinza do que foi a cabana de Malatana. (Cassamo, 1989:29)

Como também pode ver-se, Sarnau foi igualmente punida pelos espíritos, depois de ter sido levada, pelo vigor do amor, a abandonar o seu trono de rainha para terminar como

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Veja-se, a este propósito, o texto dramático Amélia, de Glória Santana, em anexo, em que Amélia não conseguia engravidar e, tendo-lhe sido imputada a culpa, o marido devolveu-a à família e exigiu de volta todos os bens que havia dado no lobolo.

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vendedeira de tomate num mercado sujo dos bairros de caniço da cidade de Maputo (Cf.Chiziane, 2008).

O conto “Madalena Xiluva do meu Coração” é a inversão do anterior, “Nyeleti”. Ainda assim, os dois contos apresentam semelhanças, sendo que nos dois se assiste a uma partida do homem, deixando as futuras noivas à espera dos seus respetivos regressos. Entretanto, se em Nyeleti Foliche volta, embora Nyeleti já tivesse desposado Malata, em “Madalena, Xiluva do meu coração”, Fabião adquiriu um estatuto que o separa já de Madalena, pelo facto de esta ser camponesa.

Nos dois contos pode-se esboçar uma instrumentalização da mulher. Em “Nyeleti”, como vimos, toda a família esperava adquirir bens em troca do seu casamento; portanto esperavam fazer um bom negócio, com o dinheiro que Foliche traria das minas; neste último conto, Madalena guarda um amor que, não tendo correspondência por parte de Fabião, vai envelhecendo no fundo do seu coração, não encontrando alternativa para o seu renascimento. A razão da não correspondência amorosa entre os dois é-lhe atribuída a ela, mas cada um vai tentando fazer valer a sua razão:

Sou o que estudava para ser gente, que já não quer ser Fabião. Fabião Hoje é o Neves, está atrás dos óculos e não te aperta. Se o faz, olha antes para todos os lados. Poderia até casar contigo, Madalena. Mas como te aceitariam os amigos do Neves, tu, uma inculta? Ridículo! (Ibid.:35)

Porém, Madalena tem suas razões. Ainda que sejam motivadas pelo sentimento de ciúme, é uma razão plausível: “Você me esqueceu por causa das mininas pintadas de Maputo” (Ibid.:34). De facto, já que não podia casar com uma inculta, o que lhe restava era embeber-se da beleza cosmética mas mulheres da capital, embora Fabião acusasse um certo vazio nessas relações com mulheres de Maputo. Mesmo assim, sede um lado as relações com as mulheres pintadas de Maputo são vazias, a correspondência com Madalena é impossível, porque estão em mundos e contextos diferentes: “Sempre me sento à mesa para te responder, mas fico não sei quanto tempo, a falar contigo dentro de mim, o papel liso e vazio, inútil” (Ibid.:34).E o amor de Madalena vai crescendo, amadurecendo, mas Madalena reconhece-se incapaz de casar com seu minino que cresceu na cidade: “As pessoa diz por que você não casa? O José, aquele Tchali,todos casaram. Só você. Não é que eu quer. Eu já não serve para você que cresceu na cidade e xitudou muito. Mas sabe como eu te gosta meu minino” (Ibid.:34).

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Este conformismo esboça ainda o estatuto de humildade da mulher, negando-se o privilégio de casar com uma pessoa instruída, ainda que arda de paixão, pelo simples facto de ser inculta, camponesa, sabendo falar apenas a linguagem da maçaroca e do florir dos campos verdes. Efetivamente, a humildade é o principal conteúdo aprendido pelas mulheres desde tenra idade, na escola cultural e tradicional, tanto entre as sociedades patrilineares como nas matrilineares.

Os dois contos “As Mãos da vida” e “José, Pobre pai Natal”, que a seguir vamos analisar ,têm uma estrutura formal e conteudística semelhante. Mais do que uma referência à conjugalidade, nestes contos é sobretudo evidenciado o estatuto da mulher.

Em ambos os textos temos como personagens um casal de imigrantes e assiste-se a um fenómeno que se pode apelidar de êxodo rural. Ambos os contos descrevem as personagens como tendo chegado à grande cidade desprovidas do mínimo para viver, mas decididas a ganhar a vida por “meios muito pessoais” (Ibid.ː53).

Para além dessas caraterísticas, há também o burro, animal de carga que serve para os dois casais, como peça fundamental do seu ganha-pão. Para além de ser animal de carga, o burro nos dois contos assume um simbolismo peculiar. O burro é um animal submisso e meigo, fácil de ser manipulado de acordo com os desejos e necessidades do dono. Mas, ao mesmo tempo, é capaz de tomar providências quando acha que o seu dono não está em condições de governar a marcha. Veja-se, a este respeito, o que se diz nos textos “As mãos da vida” e “José, pobre pai Natal”, respetivamente:

1.

E por causa daquilo, como bêbado de mbangui, apagado o lume na cinza dos olhos fundos, indiferente ao trânsito, se foi deixando conduzir pelo bairro. Difícil é explicar como ileso o burro foi, a trote, sem norte, cruzando avenidas, ruas bairros, seguindo atalhos. Já a noite tinha caído quando encontro o caminho certo. (Ibid.:41)

2.

Mas eis que agora bate com força. As crianças acordam. Ele sai. Choca com os olhos do burro. Vai à carroça: Com os braços de um Cristo pregado na cruz, José jazia. Tinha olhos esbugalhados e barba branca de Pai Natal pintada de escuro sangue. (Ibid.:54)

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O comportamento do burro é semelhante ao das mulheres nos dois textos. Nos dois textos a mulher é deixada a cuidar da casa, tratada como doméstica, como uma espécie de um animal de estimação. O papel de lutar pela vida pertence ao homem, é o homem que arregaça as mangas e enfrenta todas as hostilidades do dia-a-dia e da cidade, para garantir o pão da sobrevivência. A mulher tem que esperar, ansiosa, em casa, pelo regresso do seu homem e providenciar-lhe as comodidades domésticas que amansam o sofrimento imposto na labuta em prol da sobrevivência. Mas não é só esse o papel da mulher nestes contos, ela tem que obedecer e aguentar os devaneios do seu homem sem os criticar, ainda que pense de modo diferente, porque a sua opinião é recebida não como uma visão crítica, mas como um desabafo sentimental e histérico. Veja-se, a este propósito, o seguinte segmento: “Estou cansada da cidade, pai do Jusé - dizia ela. Quantas vezes eu te disse? Quantas? Não é como no tempo em que vendias tripas…” (Ibid.:40). Porém, o homem faz ouvido de mercador, teima em permanecer, contra todas as evidências, irredutível, com os olhos postos no seu objetivo, comprar uma charrua, embora a vida se torne cada vez mais cara e adversa. Todavia, quando a esperança chega ao fim e se transforma em desilusão, à semelhança do burro, é a mulher que assume as rédeas do destino, aparecendo o homem cabisbaixo, abatida já a sua arrogância, como ilustra este fragmento:

-Acorda. Já pus água. Despacha-te. Temos que partir antes do Sol, atacou de surpresa. […]

-Escuta, Jandina…

-Já sabe o que vai dizer - disse uma vez decidida. - Não se fala mais da charrua. Ainda tenho as mãos, pai do Jusé, não morreremos de fome enquanto as tiver estas mãos.(Ibid.:43)

Em “José, pobre pai Natal”, a história é mais trágica, porque José aparece na carroça morto, exigindo, neste contexto, grande flexibilidade da mulher na tomada de decisão em relação ao futuro, tanto no que diz respeito ao defunto como no que concerne à sua própria vida. Entretanto, a história é semelhante: Elisa tem que estar em casa, esperando de José, seu homem, tudo o que der e vier; portanto, a mulher é tratada, como dissemos, como um objeto de adorno do lar, reservada apenas à lida da casa.

Ora, este tratamento a que a mulher é destinada parece associar-se à sua alegada fragilidade física e, aliado a isso, é lhe associada uma fragilidade intelectual; ela é, portanto, vista como um ser incapaz de exercer atividades que exigem tanto um sacrifício físico como um

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sacrifício intelectual e é este contexto que faz com que a mulher seja condenada a não opinar em face do homem. O homem, nas culturas patrilineares, e talvez em quase todas as etnias bantu, tem razão e a razão da mulher só pode valer quando for sustentada por um homem.

No conto “Vovó Velina” encontramos uma técnica narrativa semelhante à do conto “Ngilina Tu Vai Morrer”. À semelhança daquele, o conto em estudo encontra-se impregnado de discurso indirecto livre em que o narrador e a personagem principal, Vovó Velina, se confundem no mesmo discurso. Porém, este conto é mais envolvente e mais lírico do que narrativo. A sua leitura exige do leitor uma transfiguração, por vezes assumindo o papel da Vovó Velina, outras vezes o papel de Arnesto, outras o papel do guarda do prédio,Tavares, e, outras vezes ainda, o papel de Zabela, a mulher de Arnesto. Entretanto, se existe esta semelhança técnica entre os dois contos, existem também, entre eles, diferenças significativas em termos de conteúdo. A tragédia abordada em “Ngilina Tu vai morrer” é compensada pelo lirismo que matiza o conto em estudo.

O conto “Vovó Velina” condensa e sintetiza duas perspetivas cosmológicas diferentes. A primeira, abordada no conto “Ngilina tu vai morrer”, caracteriza-se pela prepotência do homem e a consequente humilhação da mulher, vista e defendida como uma prática cultural válida e que deve ser preservada pelas camadas mais jovens, visto que concede ao homem o estatuto de superioridade relativamente a mulher. Como dissemos em análises anteriores, o homem, nas sociedades patrilineares, deve dominar. Num lar o homem é o senhor e a mulher a sua escrava. A mulher deve servir, não reclamar nada e o homem deve exigir da mulher submissão total. Veja- se o que Vovó Velina diz em defesa desta posição, neste conto:

A mulher era para ouvir, respeitar, trabalhar muito. No tempo da maçaroca, assar a mais grande, com dentes bonitos e dar o homem. Fazer assim com batata-doce também. Também com castanha e mandoinha, scascar casca de dentro e não dar homem o que stápartido […] Não enganar nada se não quer receber porrada. Saber dominar com homem, nascerfilhos. É para isso que xicuembo fez mulher. Ser mulher é ter paciência no coração. Saber guentar sofrimento. Não ir embora quando é batido (Ibid.:60)

É esta a perspetiva que carateriza a cultura patriarcal a que pertence vovó Velina e, por conseguinte, seu filho “Arnesto, aquele rapaz alto de Marracuene” (Ibid.:59). No entanto, Ernesto, não de forma pacífica, defronta esta prática cultural, o que permite a abordagem daquilo que devia ser uma verdadeira relação conjugal.

Enesto, ao subverter os códigos culturais da relação conjugal, não o faz de forma inconsciente; ele tem noção do escândalo que provoca entre os seus semelhantes, já que o

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próprio guarda reconhece implicitamente o caráter inusitado do comportamento do rapaz alto de Maniquene: “Teu filho eu conheço-o. Como ele, não tem outro aqui. Regressa logo que acaba serviço. Ajuda a mulher…” (Ibid.:60).

Veja-se como está vincada a expressão ajuda a mulher, que é aquela que justifica o enaltecimento de Ernesto. Os outros até podiam chegar às suas casas logo que acabassem o serviço, mas ficavam a ler o jornal enquanto a mulher morria de trabalho (cf.Ibid.:60).

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