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Breve análise dos elementos paratextuais

Capítulo II – A condição feminina em O Regresso do Morto

2.1. Breve análise dos elementos paratextuais

O primeiro elemento paratextual é o título O Regresso do Morto, que é também o título de um dos contos que integra a coletânea. Junto deste título temos uma ilustração icónica em que se vê um homem com uma mala e, ao fundo, duas palhotas ao lado de uma árvore. A impressão que esta paisagem deixa, ao associar-se ao título, é a de alguém que vem de longe, provavelmente alguém que vem de um meio urbano para o meio rural. Porém, o título pressupõe que esta pessoa vivia aqui, neste meio rural. Depois terá partido, provavelmente para um meio urbano, à procura de melhores condições de vida. Antes de lermos o texto que empresta o título ao livro, podem ser feitas duas conjeturas: a primeira é que, após a partida do homem do meio rural em direção à cidade ou para as minas, onde passa muito tempo, a família, não tendo recebido notícias, tenha acreditado na sua morte, momento após o qual se dá o regresso do (não) morto.

É este o sentido inscrito no texto, mas, para além desta leitura paratextual, é possível congeminar a existência de uma outra, em que um homem deixa a família e parte para a cidade ou para as minas, na esperança de encontrar melhores condições de vida. Entretanto, nesta aventura, o homem perde a sua juventude, a sua saúde e a esperança. Em vez de trazer riqueza, o homem volta, mas volta débil, mais morto que vivo. Acreditando nesta hipótese, o título evidenciaria uma intertextualidade hetero-autoral com os textos A Chuva Pasmada, de Mia Couto, “A História do Magaiza Madevo”, de José Craveirinha, e «Magaíça», de Noémia de Sousa.

Em todos estes textos aborda-se a ilusão que os jovens, sobretudo do Sul de Moçambique, criam face ao falso brilho de ouro das minas de África do Sul, partindo em busca deste brilho, do ouro, da fortuna. Muitos destes homens que partem deixam a família, esposa e filhos, para trás e os mais novos deixam a namorada, ou mesmo a esposa, em casa dos pais, e partem para a aventura. Todavia, quase sempre voltam desiludidos, doentes, quase às portas da morte ou morrem soterrados nas minas. Em Mia Couto, por exemplo, o pai em A Chuva Pasmada (2004) assistiu ao soterramento de milhares de colegas seus nas minas e, juntamente com eles, a sua própria alma:

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De cada vez que voltava, vinha mais e mais doente. Fumava para que o peito não estranhasse a falta de poeira.

Quando por fim se estabeleceu, definitivo, entre nós, meu pai só tinha um afazer: dormir. (Couto, 2004:15)

Como se pode ver, em Mia Couto, o pai deixa a família, a esposa e o filho, em casa dos sogros e volta doente, portanto quem ficaria a assumir os encargos de casa seria a esposa. Esta é uma situação relativamente incomum entre as sociedades patrilineares, onde o normal é deixar a família em casa do homem.

Por seu turno, em José Craveirinha assistimos, no poema “História do Magaíza Madevo”, à mesma a partida de um jovem que deixa em casa da sua mãe a sua Ngelina, ao mesmo sonho e à mesma desilusão. Madevo volta sifilítico, doente dos pulmões e agora tudo recai na mulher: “vai fazer missa, Ngelina! Que os mochos fatais ruflaram as asas no Jone / e picaram Madevo no âmago dos pulmões” (Craveirinha, 2008: 53).

Em Noémia de Sousa, o Mamparra engole o ouro dos folhetos da propaganda e “carrega a ânsia enorme, tecida / dos sonhos insatisfeitos [… ]”, partindo para o mítico Jone de onde volta com a ilusão perdida, com a mocidade e a saúde soterradas lá nas minas: “a mocidade e saúde, / as ilusões perdidas/ que brilharão como astros no decote de qualquer lady / nas noites deslumbrantes de qualquer city” (Apud Andrade, 1977:211).

Deste modo, não é só o homem que se submete a um destino nefasto, uma vez que a mulher é a principal vítima: na ausência do seu homem, é ela que deve assumir o mando da casa, providenciar comida e educação aos filhos. Quando a mulher é deixada na casa paterna do homem, ela é sujeita à castidade durante muitos anos, à espera do seu homem. Esta castidade e fidelidade não são compensadas, como era de esperar, da parte do homem que, em vez de voltar saudável e rico para um casamento promissor, regressa débil, tísico, mais preparado para morrer do que para assumir um casamento. Este é o caso de Moisés em O Regresso do Morto.

Assim, esboça-se já, desde o primeiro elemento paratextual, uma situação de sofrimento imposta à mulher na sua relação conjugal, quando a ilusão e a ambição desmedida do homem o levam a partir a busca do luxo nas minas da África do Sul.

O segundo elemento paratextual da obra de Cassamo corresponde ao prefácio escrito por Marcelo Panguana, do qual importa sublinhar algumas ideias que parecem efectivamente caracterizar o livro. A primeira delas transparece neste segmento:

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São sobressaltos que traduzem o nosso espanto quando descobrimos no(s) texto(s) uma aforada de ar fresco. E é bom que isso aconteça, precisamente agora que no nível literário vamos procurando a nossa matriz. E é ao longo dessa busca que transparece nos nossos escritos uma certa atitude de reencontro ou de retorno às fontes (Apud Cassamo, 1989:5).

Nesta citação, Panguana entende que os contos desta antologia se situam num contexto histórico-literário emergente e que ainda não estão estabelecidos os paradigmas da literatura moçambicana. Está-se num período em que o projeto de literatura empenhada já atingiu o seu apogeu e está em declínio. E ainda são em número reduzido os textos existentes, especialmente de género narrativo, e os que existem inscrevem-se numa literatura empenhada. Para além disso, a guerra que devasta o país, a fome e a miséria que fustigam as populações não motivam para uma produção literária dedicada ao panegírico dos libertadores da Pátria.

Neste contexto, Suleiman Cassamo ilustra esta realidade, a realidade caótica que caracteriza o seu povo, transfigurando a realidade sociopolítica nas suas personagens e descrevendo apenas o sangrar do povo comum, o seu sofrimento, sem, no entanto, apontar o dedo acusador ao sistema responsável por esse sofrimento.

Veja-se, a este propósito, o seguinte fragmento:

Os olhos da Laurinda procuram “milícias”. Onde „stão?” o serviço deles afinal é qual? Ahã! São „sperto: chega parece qu‟stá ver bicha, vai no balcão, enche saco com pão, vai „mbora com o olho, porque tu que dormia na bicha é mamparra. É bom assim? É bom mesmo? Onde tem unidade? Onde tem vigilância dele?(Cassamo, 1989:19)

Um outro aspeto que importa salientar refere-se a uma “atitude de reencontro ou de retorno às fontes” (Apud Cassamo, 1989: 5). Visto que os contos radiografam as vivências quotidianas do povo comum, expressando as suas angústias e ansiedades causadas por fenómenos sociopolíticos vigentes, funcionam como crónicas e veiculam um saber popular, que se designaria por retorno às fontes. Como a confirmar a nossa posição, veja-se o que Panguana afirma: “O autor oferece-nos neste livro situações díspares, vividas ou observadas na amálgama da vida” (Apud Cassamo, 1989: 6).

O último elemento paratextual diz respeito à epígrafe do autor: “Que da leitura destes contos / vos fique um leve, / levíssimo sabor a terra. /O sabor da nossa terra” (Cassamo, 89:10).Mais uma vez, a epígrafe vem reforçar a ideia de que os contos nos proporcionam um retrato dos traumas, da angústia e da ansiedade do povo, do povo real dos bairros de caniço que, devido às

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condições adversas do meio rural, devido à guerra, veio povoar os arrabaldes da cidade, procurando, neste contexto, a satisfação das necessidades básicas. No já referido prefácio, Panguana já dá conta desta situação, ao afirmar que:

Nos contos que incorporam “O Regresso do Morto”, há todo um desfile de momentos, de personagens, traumas e processos conflituais que, ao serem descritos de uma forma talentosa, nos legou essa outra face de uma realidade que nos pertence e que, muitas vezes confinados na algazarra das paredes betão armado e na luminosidade dos néon, facilmente se nos escapa. (Ibid.:5)

Como se pode depreender, as personagens povoam o espaço geográfico da grande cidade (Maputo), como é o caso de Laurinda, do Fabião que já é o Neves, o velho e outros, criando dentro do espaço urbano um outro universo importado do meio rural e que parece, mesmo com a hostilidade dos néones, conservar-se e permitir a emergência daqueles traumas descritos de uma forma que Panguana considera abrupta e emocional.:

E, diariamente chegava mais gente. Cada um a sua língua, seus costumes. Cada um suas ambições e meios muito pessoais para realizá-las.

Cada um, sozinho no seio de tanta gente. (Ibid.:53)

São estas ilhas teoricamente criadas no meio urbano que conservam este núcleo duro da cultura e da tradição. Assim, vemos Laurinda a afirmar categoricamente: “- Sacana! Eu não me vende com pãozinho! Eu não sou puta, ouviu? Tem marido, tem filho, eu. Eu…eu…” (ibid.:21). Mas, ao mesmo tempo, é ela que tem que enfrentar “esse alcatrão a ferver nos pés” (Ibid.: 19), para comprar o pão para servir ao filho e ao seu “senhor”.

Em condições normais, não seria a mulher que devia enfrentar uma fila como aquela, seria o seu homem, Laurinda sabe, conhece o código da sua tradição. O texto não diz que ela foi lobolada, mas da afirmação acima descrita já se depreende que Laurinda é uma mulher com estatuto de esposa e ter esse estatuto significa ser lobolada, o que faz com que ela tenha que trabalhar para servir o seu senhor e a prole.

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