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Biopolítica e ideologia de gênero: uso do terror ideológico na educação/Biopolitics and gender ideology: use of ideological terror in education

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761

Biopolítica e ideologia de gênero: uso do terror ideológico na educação

Biopolitics and gender ideology: use of ideological terror in education

DOI:10.34117/bjdv6n11-269

Recebimento dos originais:08/10/2020 Aceitação para publicação:13/11/2020

Lucas Teixeira Costa

Psicólogo pela Universidade Tiradentes

Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe (UFS)

Coordenador do curso de bacharelado em Psicologia do Centro Universitário UNIRB – Alagoinhas Professor e Membro do Colegiado do Centro Universitário UNBIRB – Alagoinhas

Endereço: Rua Altino Ribeiro Rocha, 100/ Alagoinhas Velha. - Alagoinhas/BA E-mail: lucasteixeira1987@gmail.com

Priscila Cordeiro Costa

Psicóloga pela Faculdade Ruy Barbosa

Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Endereço: Rua Barão de Jeremoabo, s/n, PAF-V, Ondina – CEP 40170-115

E-mail: priscila.cordeiro.costa@gmail.com

RESUMO

Após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, assistiu-se, no cenário brasileiro, à reemergência de forças políticas neoconservadoras que fomentaram debates políticos protagonizados por posicionamentos contrários às pautas identitárias, especialmente às temáticas relacionadas a gênero e sexualidade. Neste período, foram levantadas discussões acerca do polêmico “kit gay” e da “ideologia de gênero”. Sendo assim, tendo como prerrogativa a compreensão de que o Estado ocidental utiliza os dispositivos da sexualidade para legitimar formas de controle sobre os corpos de uma população, o presente trabalho pretende revelar os regimes de verdade pelos quais operam os discursos sobre sexualidade na esfera educacional, demarcando o exercício de uma biopolítica que se alimenta da captura de modos de subjetivação, na tentativa inesgotável de produzir corpos dóceis, destinados à reiteração da heteronormatividade. Para tanto, utilizar-se-á de ferramentas analíticas propostas por Michel Foucault e da discussão sobre o terror ideológico construído em torno do debate acerca da “ideologia de gênero” para compreender, através da análise do projeto nacional do cidadão, o impacto da biopolítica sobre a sexualidade e sua intersecção com a educação.

Palavras-chave: Ideologia de gênero, Educação, Biopolítica, Heteronormatividade. ABSTRACT

After the impeachment of President Dilma Rousseff, there was a reemergence of neoconservative political forces on the Brazilian scene that fostered political debates led by positions contrary to identity guidelines, especially issues related to gender and sexuality. During this period, discussions were raised about the controversial “gay kit” and “gender ideology”. Therefore, having as a prerogative the understanding that the Western State uses the devices of sexuality to legitimize forms of control over the bodies of a population, the present work intends to reveal the regimes of truth by which discourses on sexuality operate in the educational sphere, demarcating the exercise of a biopolitics that feeds on the capture of modes of subjectivation, in an inexhaustible attempt to produce

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 docile bodies, destined to reiterate heteronormativity. To this end, we will use analytical tools proposed by Michel Foucault and the discussion about ideological terror built around the debate about “gender ideology” to understand, through the analysis of the national project of the citizen, the impact of biopolitics about sexuality and its intersection with education.

Keywords: Gender ideology, Education, Biopolitics, Heteronormativity.

1 INTRODUÇÃO

As temáticas relacionadas a gênero e sexualidade têm sido objeto de intervenções estatais que objetivam deslegitimar as lutas sociais dos grupos minoritários e, consequentemente, a retirada de diretos civis conquistados historicamente. Nesse sentido, o campo da educação tornou-se o centro do debate das questões de gênero, visto que há uma tentativa de convencer parte da população, através de um discurso moralista vinculado ao terror, que as práticas sexuais e as expressões gênero devem ser banidas do debate escolar.

Neste artigo, daremos enfoque à discussão sobre “ideologia de gênero”, levando em consideração o fato de que houve uma massificação do uso indiscriminado da expressão nos últimos anos. O termo “ideologia de gênero” vem sendo cunhado por fundamentalistas religiosos para se referir à construção social do gênero, tendo sido amplamente divulgado por igrejas e mídias – televisão, internet e revistas – para combater a inclusão dos temas sexualidade e gênero nos Planos Municipais, Estaduais e Nacional de Educação. O Papa Francisco, atual Chefe de Estado do Vaticano, já se manifestou algumas vezes sobre esse tema, afirmando que a chamada ideologia de gênero “nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família”. Em 2019, a Santa Sé emitiu um documento intitulado “Homem e mulher os criou”, no qual propõe uma educação cristã em resposta à “antropologia da fragmentação e do provisório” (VATICANO, 2019, p.28).

A discussão sobre a inclusão ou o apagamento de temas relacionados a gênero e sexualidade no campo da Educação no Brasil tem causado impasses há alguns anos, sendo, inclusive, assunto recorrente em pronunciamentos do atual presidente. Esse fato visibiliza a importância do assunto enquanto constitutivo de um projeto nacional. Assim, o objetivo deste artigo é proporcionar uma reflexão acerca do tema, buscando entender o que está por trás de um “debate” no qual há um interesse explícito no apagamento de determinadas vozes. A quê/quem serve a exclusão desses temas do ambiente educacional? Quais políticas estatais de controle sobre a vida estão sendo construídas para efetivar a exclusão de tais conteúdos do ambiente escolar?

Para alcançar o debate proposto, o presente artigo, realizado através de uma revisão bibliográfica, será apresentado através das seguintes subseções: no primeiro momento, discutiremos o conceito de biopolítica proposto por Michel Foucault, enquanto dispositivo para compreender a

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 inserção da sexualidade no campo do discurso. Posteriormente, apresentaremos a discussão sobre o surgimento do termo ideologia de gênero e seu impacto nos planos nacionais, estaduais e municipais de educação e, por último, realizar-se-á uma análise do projeto cidadão nacional, proposta apresentada por Miskolci para pensar as práticas governamentais no contexto educacional brasileiro que estão a serviço de uma reiteração da heteronormatividade.

2 DISPOSITIVOS DA SEXUALIDADE E BIOPOLÍTICA

A arte do uso dos prazeres do Homem moderno tem sido objeto de diversas problematizações ao longo da história, cujos investimentos têm engendrado tecnologias de controle cada vez mais potentes, na tentativa inalcançável (e incansável) de manutenção de certos modos de exercícios da sexualidade que não toleram sexualidades dissidentes. Entre os comportamentos sexuais dissidentes, as práticas homossexuais continuam sendo objeto de controle e docilização, pois localizam em uma só “categoria” a possibilidade de expressar a posição supostamente mais inferior do uso dos corpos: a negação da masculinidade a serviço da feminilidade (FOUCAULT, 2006).

Compreender de que forma essas práticas tornaram-se tema de inquietação no mundo contemporâneo é uma tarefa que Foucault (2006) dedica-se no primeiro volume da História da

sexualidade. Nesse volume, o autor demonstra através de quais mecanismos, táticas e estratégias a

sexualidade se tornou um campo de positivação do poder. Para isso, descreve como as instituições médicas, jurídicas e especialmente, os saberes Psi, legitimaram a heterossexualidade e a monogamia como modelos hegemônicos de manutenção da família burguesa europeia. Sua investigação revela que na ordem do discurso não se pode pensar a sexualidade através do viés repressivo, mas através de um conjunto de mecanismos que incitam a sexualidade continuamente, e que sua revelação está presente nas mais diversas instituições (incluindo as escolas). Para o autor, toda a sociedade pós vitoriana busca falar sobre sexualidade muito mais que reprimi-la (FOUCAULT, 2006, p.32).

O desenvolvimento do conceito de biopolítica elaborado por Foucault iniciou-se no último capítulo do volume citado, em 1976, onde o autor fez uma discussão sobre como os dispositivos disciplinares e de gerência da vida constituíam uma rede de tecnologias de poder-saber, sendo o sexo e a sexualidade um dos elementos mais importantes para a compreensão destes mecanismos. Essa discussão já foi suficientemente impactante, pois trazia para o campo de análise o caráter positivo em que uma “prescrição” da sexualidade (antes que uma repressão) estaria em vigor na Era Moderna: um dispositivo de controle, entrelaçado em uma rede de poderes que buscava normatizar, docilizar os corpos, colocá-los expostos ao esquadrinhamento e, sobretudo, a serviço da potência de poder para gerir a vida de uma população.

Revel (2005) fundamenta que o conceito de biopolítica depende de uma retomada da análise da microfísica foucaultiana do poder. O poder não é compreendido como uma entidade única, vertical,

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 concentrado na figura do Estado ou do Soberano, impondo por meio de repressão da lei o que é permitido ou ilícito. As relações de poder configuram-se em todas as instâncias da vida, e, portanto, é plural e relacional. “As relações de poder não se constituem na base das relações legais, no nível do direito e dos contratos, mas sim nos planos das disciplinas e de seus efeitos de normalização e moralização” (REVEL, 2005, p. 46). Dessa forma, pode-se compreender a micropolítica do poder como mecanismo sempre heterogêneo e construído historicamente. No mundo do possível, o poder penetra através de seus dispositivos nos mais diversos níveis da vida cotidiana, está por toda parte e a biopolítica constitui a instância mais íntima em que o poder pode penetrar, a vida, especialmente no conjunto de práticas exercidas pelos cidadãos.

É no início de sua análise da genealogia do poder, em Vigiar e Punir, que Foucault (2009) conduz a explanação extensiva sobre a anátomo política do poder, a saber, o corpo mergulhado no político, onde as relações de poder são investidas sobre ele em todo seu alcance. O corpo pode - e deve - ser constrangido, adestrado, mutilado, repartido e educado. A normatização do corpo é realizada por diversas tecnologias de poder-saber e são espalhadas pelo corpo social em uma linha contínua. O corpo revela-se como instrumento de produção e o que a Era Moderna irá implementar cada vez mais são mecanismos que fortalecem essas tecnologias, tornando-as potentes em ação e reflexão sobre a vida.

Sendo assim, uma análise sobre a implicação da biopolítica transpassa pelas novas configurações dos mecanismos de poder que surgem a partir do século XVII, na Era Clássica através do deslocamento do direito sobre a vida e a morte que era aplicado pelo soberano quando sua pessoa ou reino era ameaçado, para um poder que terá como função gerir a vida. Foucault (2006) sinaliza que o confisco (dos bens, dos corpos e da própria vida) deixa de ser a principal função, como era na sociedade do poder soberano, e adquire a característica complementar de controlar, vigiar e ordenar as forças que operam sobre a vida. Se no caso do poder soberano, este tinha o direito de dispor a vida do seu súdito, seja diretamente, através do gládio, ou indiretamente, quando os súditos dispunham suas vidas em guerras pela defesa do reino, com o deslocamento da função privativa do soberano para o poder exercido pelo Estado, populações inteiras foram extintas em nome da produção da vida, da espécie biológica, da raça.

Para o autor, a positividade do poder sobre a vida pode ser compreendida através da análise das grandes matanças que ocorreram a partir do século XIX, a exemplo dos holocaustos que dizimaram populações. “Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar inúmeras guerras, causando a morte de tantos homens” (FOUCAULT, 2006, p. 149). Multiplicam-se as disciplinas sobre os corpos, com suas técnicas de adestramento peculiares, ao mesmo tempo em que a biopolítica opera sua regulação sobre a população tendo como suporte os processos biológicos: controle do nascimento e mortalidade, das epidemias e duração da vida. Esses

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 são os dois polos que para Foucault irão construir a nova teoria do poder que foi operacionalizada a partir da Era Clássica.

Assim, segundo Foucault (2006), a biopolítica se apresenta, então, enquanto um conjunto de estratégias do poder estatal que visa, além do controle dos corpos, estabelecer políticas higienistas e eugênicas com o propósito de sanar as mazelas da população. Essa nova configuração das relações de poder/saber irá contribuir para a construção de uma série de mecanismos que irão permitir o controle, administração e gerenciamento do tempo de quem habita um Estado, mas, principalmente, o uso político da vida dos cidadãos. É através do uso político da vida que a sexualidade foi tornando-se, paulatinamente, um campo de capturas de subjetividades, fazendo desmoronar quem não corresponde às expectativas de gênero/sexualidade (FOUCAULT, 2006, DUARTE, 2008).

Essa vagarosa transformação das relações de poder ganhou sustentáculo através dos novos modos de se relacionar entre homens e mulheres, que foram se cristalizando e construindo formas hegemônicas de masculinidade e feminilidade, ao mesmo tempo em que emergia uma nova forma de governar que visava assegurar a riqueza do Estado e garantir a “ordem” da população. Em nome desse “progresso”, houve uma proliferação de saberes que utilizaram as tecnologias dos sexos para promover práticas de esterilização das mulheres, controle da natalidade, psiquiatrização das perversões, assim como o controle da sexualidade infantil (FOUCAULT, 2006, p. 160).

Foucault (2006), afirma que a proliferação discursiva da sexualidade se apresenta como um dos mecanismos que inscreve uma vontade de verdade sobre o homem ocidental. Será através do biopoder que haverá a formação de um emaranhado discursivo sobre o sexo, determinando as formas de uso dos corpos, o que dependerá de uma rede de saberes especializados em adestrar e esquadrinhar os comportamentos sexuais, nos quais há uma participação efetiva dos saberes psicologizantes.

Ao compreender a importância dos dispositivos da sexualidade enquanto efetivação de uma biopolítica, cabe a seguinte indagação: de que forma este conceito pode ser aplicado na compreensão dos mecanismos de controle da sexualidade infantil e na leitura dos projetos educacionais? Como expressões como “ideologia de gênero” se popularizaram nos espaços educacionais a ponto de influenciar debates eleitorais e deixar mães e pais aterrorizados só de ouvir a palavra gênero? Há um objetivo político estatal por trás deste discurso, ou é apenas o sinal da necessidade de uma manutenção da estabilidade nas configurações familiares? O próprio autor nos dá uma pista ao descrever a distribuição dos espaços escolares do início do séc. XIX:

“O espaço da sala, a forma das mesas, dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios [...], os regulamentos elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono, tudo fala da maneira mais prolixa da sexualidade das crianças” (FOUCAULT, 2006, p. 30)

Cesar (2009) realiza uma importante genealogia da inserção do sexo enquanto discurso nos espaços escolares brasileiros. A autora confirma a tese foucaultiana de que o sexo, na ordem do

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 discurso, passou a ser cada vez mais incentivado, explorado e disciplinado na medida em que as instituições escolares permitiam que médicos e educadores pautassem discussões sobre higiene sexual e educação sexual. Ainda segundo a autora, em meados dos anos 60, antes da instauração do regime militar, escolas de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte propuseram a inserção de temas sobre sexualidades em seus projetos educacionais, que foram banidas assim que o golpe de 64 foi efetivado (CESAR, 2009, p. 41).

Nas décadas subsequentes, o debate sobre sexualidade na educação foi marcado por uma série de tensões. Fenômenos como a gravidez precoce, uso de drogas e, principalmente, a pandemia da AIDS no final dos anos 80, exigiram que tais temas estivessem presentes nas salas de aula, visto que se relacionavam diretamente ao cotidiano dos jovens. Porém, apesar da necessidade de discutir sobre gênero e sexualidade, sempre houve segmentos sociais resistentes a encarar de frente os dilemas que as crianças e adolescentes vivenciavam, visto que o patriarcalismo e a misoginia também sempre estiveram presentes em nossa sociedade, reforçando discursos moralistas e de controle sobre os corpos (CESAR, 2009; FOUCAULT, 1999; BUTLER, 2002).

Dessa forma, paulatinamente, a educação foi se tornando um verdadeiro campo minado (grifo nosso) para se falar sobre qualquer aspecto relacionado a gênero e a sexualidade. O exercício da biopolítica e o uso das tecnologias de controle da sexualidade possibilitaram a ascensão da concepção de terror ideológico nas instituições educacionais. Retorna-se à problemática levantada por Foucault (2006): a tentativa de banir o sexo/sexualidade do discurso. Porém, essa tentativa sempre é falha, na medida em que o poder sempre produz fissuras, ou seja, também se exerce de uma forma que o torna incapturável. (DELEUZE, 2013; FOUCAULT, 1999; BUTLER, 2002).

Sendo assim, cabe ressaltar que, de forma semelhante ao período da ditadura militar, presenciamos em nosso país o agenciamento de políticas governamentais pautadas em tentativas de censura dos debates sobre gêneros, feminismos e sexualidades. O ressurgimento desta forma de gerenciar tais conteúdos aponta para o retorno de uma forma de gerir a vida, portanto, de efetivar a biopolítica, baseada na imagem da família tradicional nuclear burguesa (supostamente o único espaço legítimo para discutir sobre educação sexual).

Esta representação pode ser vista através da figura do maior líder do país, o presidente Jair Bolsonaro, assim como em sua retórica. O mesmo já chegou a afirmar em entrevista que a “educação sexual (...) vem com os pais”, ignorando completamente que mais da metade dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil acontece no ambiente doméstico2. A imagem do presidente representa um modelo de masculinidade herdado do patriarcado: um homem supostamente viril, pouco sensível às questões emocionais, objetivo, que através de sua postura afirmativa e contundente, seria capaz de colocar ordem na “casa”. Velho retrato que pareia o imaginário do povo brasileiro, típico dos líderes coronelistas (BORDIEU, 2000; LINS, 1967).

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3 O PÂNICO MORAL DA IDEOLOGIA DE GÊNERO

Reis (2017) apresenta um panorama geral dos marcos internacionais e nacionais sobre a constituição da educação enquanto um direito fundamental de todas/os, demonstrando como a educação é considerada essencial para a promoção da equidade entre os gêneros e o respeito à diversidade sexual, demanda alcançada com muita luta, principalmente dos movimentos sociais. Em seguida, o autor delineia as discussões acerca da aprovação do segundo Plano Nacional de Educação (PNE) do Brasil, visto que se aproximava o fim da vigência do primeiro PNE (2001-2010).

O debate iniciou-se a partir da apresentação da proposta na Câmara dos Deputados em 20 de dezembro de 2010 e, após dois anos de debates e tramitações na Câmara dos Deputados, a proposta foi encaminhada para o Senado Federal, reiterando as deliberações de Conferências Nacionais de Educação e incluindo os temas da equidade de gêneros e respeito à diversidade sexual. No Senado, houve a supressão do inciso III do artigo 2º a frase “promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (BRASIL, 2020) e das flexões de gênero presentes na proposta, permanecendo apenas o gênero masculino. Em seguida, a proposta voltou à Câmara dos Deputados, quando emergiram discussões calorosas sobre a chamada “ideologia de gênero” na Educação. No fim, foi aprovado com o atraso de quase quatro anos, através da Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, com a substituição do texto do inciso III por “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”, sem mencionar em nenhum momento as palavras “gênero” e “orientação sexual ( REIS, 2017).

No dia oito de junho de 2015, quando os Planos Municipais de Educação (PMEs) estavam sendo discutidos e ressurgiu a possibilidade de inclusão da temida igualdade de gênero nos mesmos, os jornais A tarde (2020) e Estadão (2020) publicaram um texto do jornalista e professor Carlos Alberto Di Franco, intitulado “Educação sexual compulsória”, listando uma série de “inconvenientes” para a educação, que seriam ocasionados pelo que ele chamou de “ideologia de gênero”:

1) a confusão causada nas crianças no processo de formação de sua identidade, fazendo-as perder as referências; 2) a sexualização precoce, na medida em que a ideologia de gênero promove a necessidade de uma diversidade de experiências sexuais para a formação do próprio "gênero"; 3) a abertura de um perigoso caminho para a legitimação da pedofilia, uma vez que a "orientação" pedófila também é considerada um tipo de gênero; 4) a banalização da sexualidade humana, dando ensejo ao aumento da violência sexual, sobretudo contra mulheres e homossexuais; 5) a usurpação da autoridade dos pais em matéria de educação de seus filhos, principalmente em temas de moral e sexualidade, já que todas as crianças serão submetidas à influência dessa ideologia, muitas vezes sem o conhecimento e o consentimento dos pais.

Tomamos esse texto como referência, pois engloba diversas “preocupações” que, frequentemente, estampam artigos e discursos daqueles que se dizem defensores da família: a formada por homem, mulher e filhos.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 O primeiro ponto lança luz sobre a base identitária que fundamenta a preocupação do autor, o qual acredita que identidades são estáveis, fixas, ao mesmo tempo em que se contradiz, já que a fragilidade das identidades também é exposta, a partir do momento em que Di Franco acredita que falar sobre gêneros nas escolas poderia confundir as crianças, fazendo-as perder as referências. A base identitária apoia-se no binarismo entre os sexos, e o autor afirma em outro momento do texto que a chamada “ideologia de gênero” propõe uma libertação dos “dados biológicos” (como se a Biologia servisse apenas para constatar uma verdade pré-discursiva e não para produzir essa “verdade”), fazendo com que os sujeitos sejam livres e escolham arbitrariamente a sua identidade de gênero. Ele cita um documento elaborado pelo Fórum Nacional de Educação, afirmando que este documento visava impor às crianças a “ideologia de gênero”, de modo dogmático e compulsório. Ora, não é dessa forma que a heteronormatividade é reiterada, a ponto de ser tomada como “natural”, não sendo passível de questionamentos?

A heteronormatividade, conceito cunhado por Michael Warner (1991), expressa as expectativas, demandas e obrigações sociais que provêm do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade. De acordo com Spargo (2004, p. 86): “especifica a tendência, no sistema ocidental contemporâneo referente ao sexo-gênero, de considerar as relações heterossexuais como a norma, e todas as outras formas de conduta social como desviações dessa norma”. Atualmente, a heteronormatividade é apontada como o grande mecanismo da homofobia e da falta de respeito à diversidade sexual.

Zanello (2018) aponta que a sociedade ocidental passou um importante processo de transformação cunhado por uma necessidade de diferenciação dos papéis de gênero, papéis estes sustentados pela heteronormatividade. Partindo de uma concepção foucaultiana, a autora apresenta a discussão sobre os dispositivos amoroso e materno como processos de construção indenitária feminina e o dispositivo da eficácia para os homens. Ou seja, tais dispositivos fomentam construções sociais idealizadas de “ser homem” e “ser mulher”, onde as mulheres estão sempre dispostas a serem escolhidas por um homem e naturalmente aptas para o desenvolvimento do papel da maternidade, enquanto os homens são interpelados culturalmente pela necessidade de reafirmação da virilidade sexual e laborativa.

O segundo “inconveniente” citado por Di Franco, a sexualização precoce, ignora completamente que a sexualidade é um tema comum nas salas de aula e corredores das escolas, entre alunos e professores, colocando as crianças numa redoma que já se mostrou inexistente e perigosa. Colling (2009), respondendo a um outro artigo (de teor semelhante) publicado por Di Franco, ressalta o quanto esse pensamento é problemático e tem aumentado o índice de doenças sexualmente transmissíveis entre adolescentes, que, por conta da ausência de diálogo, não têm a devida orientação sobre os riscos do sexo inseguro. Além disso, pensar que um diálogo sobre gêneros poderia promover

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 a “necessidade” de experiências sexuais diversas é minimamente conflitante com a ideia de que não há sexualidade entre crianças e adolescentes (e de que, se há, essa acontece de forma natural).

A preocupação com a sexualidade, apesar de presente em todos os dispositivos de escolarização, não se apresenta abertamente. Muitas vezes as pessoas que dirigem as escolas e as que lá ensinam afirmam que o ambiente não é propício para discutir essas questões, as quais deveriam ficar a cargo da família. Assim, cria-se a ilusão de que a sexualidade se situa fora dos muros escolares, porém, é necessário reconhecer que concepções de gênero e sexualidade que circulam na sociedade são reproduzidas e produzidas no ambiente escolar. Para constatar isso, basta observar o binarismo presente nos livros escolares, nas brincadeiras, na adjetivação de meninos e meninas, nas expectativas em torno das suas matérias preferidas etc. Isso acontece porque a sexualidade faz parte dos sujeitos, não é algo que podemos tirar e deixar em casa ou em qualquer outro lugar (LOURO, 1997).

O terceiro ponto é bastante problemático, visto que Di Franco afirma que a orientação pedófila é considerada um tipo de gênero, sem citar nenhuma fonte, aparentemente fazendo uma confusão entre orientação sexual, identidade de gênero e pedofilia. É válido ressaltar que o projeto de lei 415/2012 (CÂMERA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 2020), que motivou o artigo do autor, não menciona a palavra pedofilia em momento algum, mas isso demonstra como o autor não diferencia identidade de gênero de orientação sexual e busca reativar o pânico moral da pedofilia, atrelando-a à orientação sexual.

Para Miskolci (2007), os pânicos morais são estruturados por uma política simbólica que funciona com base na substituição, quando “grupos de interesse ou empreendedores morais chamam a atenção para um assunto, porque ele representa, na verdade, outra questão” (p. 114). A descriminalização da homossexualidade, por exemplo, fez com que os grupos que julgavam a homossexualidade como imoral buscassem outra maneira de denunciá-la, atrelando a imagem do homossexual à do pedófilo. O autor expõe que grupos sociais estigmatizados, seja por sua orientação sexual, religião ou visão política são representados socialmente como um perigo para as crianças, como aconteceu com os judeus, que eram associados a rituais de sacrifício de crianças, ou os comunistas, vistos como “devoradores de criancinhas”.

Ao fazer uma busca por artigos que associem pedofilia à orientação sexual no Google é possível observar uma série de referências especialmente em sites religiosos, e principalmente em 2013, ano em que foi lançada a 5ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-5). Os sitesasseguram que o DSM-5 deixou de considerar a pedofilia uma doença para considerá-la uma orientação sexual. Isso aconteceu porque no Manual a pedofilia está incluída na seção de “Distúrbios parafílicos” e, em um momento específico, afirma-se que caso as pessoas não se sintam culpadas ou envergonhadas pelos seus impulsos e estes não as estiverem atrapalhando funcionalmente (além de observado o histórico com a lei), “então esses indivíduos têm uma orientação

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 sexual pedófila, não um transtorno de pedofilia” (APA, 2013, p. 698, tradução nossa). Talvez aí esteja a base do terceiro temor de Di Franco, que aciona o discurso da Psiquiatria, ainda que para contrapô-lo, para autorizar o seu discurso, a sua “verdade”.

Isso também é importante para perceber como o saber sociológico, médico, psiquiátrico, dita “verdades”, servindo, inclusive, de apoio para argumentos religiosos, ainda que pelo uso aparentemente equivocado do conceito de orientação sexual. Da mesma maneira, o discurso pode se inverter, estrategicamente, segundo o contexto em que foi produzido. Assim, Foucault (1988) pontua a importância de avaliar o discurso a partir da sua produtividade tática – quais efeitos do poder e do saber recíprocos são proporcionados no embate.

Bento (2011) cita que é preciso reafirmar que os manuais de patologização dos sujeitos são falaciosos, contribuindo para produzir a transfobia, lesbofobia e homofobia. Eles se pautam em uma cientificidade mesmo sem tê-la, como é o caso do Transtorno de identidade de gênero (atualizado para Disforia de Gênero pelo DSM-5). Neste caso, o próprio DSM reconhece que não há testes diagnósticos específicos para o transtorno. A autora ressalta a importância da American Psychiatric Association (APA) se posicionar sobre os interesses que estão escondidos quando categorias culturais são tratadas como nosológicas.

Um exemplo recente da tentativa de manipulação da opinião da população contra alguém, através da ativação do pânico moral da pedofilia, é o do youtuber brasileiro com o maior número de inscritos em seu canal: Felipe Neto. Em julho de 2020, após ter um vídeo no qual criticava os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil publicado pelo jornal The New York Times, um tuíte falso no qual o influenciador supostamente fazia apologia à pedofilia viralizou e ele foi alvo de muitos ataques, incluindo ameaças em sua própria residência.

O quarto ponto que Di Franco levanta é de difícil compreensão, visto que ele parece acreditar que reflexões sobre identidades de gênero e sexualidade ocasionariam o aumento da violência sexual, através da “banalização da sexualidade”, especificando justamente os grupos que sofrem mais com a falta dessa discussão nos ambientes educativos: as mulheres e os homossexuais.

A concepção de dois mundos distintos, baseada no binarismo rígido entre as relações de gênero, ignorando as múltiplas e complexas combinações entre este marcador e outros (como sexualidade, etnia, raça e classe), tem contribuído para instituir desigualdades nas escolas.

Assim, a diferença entre meninos e meninas é naturalizada, fixada, e produz-se aquilo que é afirmado ser “natural”. O silenciamento e a negação dos homossexuais (e da homossexualidade) pelas escolas serve como uma forma de garantir a heteronorma, mantendo valores considerados “bons” e desejáveis, ao mesmo tempo em que confina as pessoas que desviam da norma às gozações e insultos. Assim, desde cedo, as pessoas que não se conformam à lógica heterossexual se reconhecem como indesejadas (LOURO, 1997).

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 A naturalização da homofobia em nossa sociedade ocorre desde o momento em que, por exemplo, os meninos, antes mesmo de entenderem o que se foi inventado para o “universo masculino”, internalizam a mensagem crucial para sua aceitação social: eles não podem parecer uma mulher. Dessa forma, a misoginia faz parte da construção de base da subjetividade masculina. Em prol da masculinidade, os meninos aprendem desde muito cedo a odiarem as mulheres (ZANELLO, 2018).

O quinto “inconveniente” preconiza que os pais seriam a autoridade no que diz respeito à educação dos filhos, principalmente no que diz respeito à moral e sexualidade. É a reiteração do discurso que, como mencionado anteriormente, também circula entre dirigentes e professores de escolas. Dessa maneira, a preocupação do autor é com a influência que reflexões sobre questões que não deveriam sequer serem pensadas podem exercer na vida das crianças.

É sabido que crianças e adolescentes passam cada vez mais tempo nas escolas, em decorrência de fatores preponderantemente econômicos (quer seja a inclusão dos pais e mães no mercado de trabalho, quer seja na preocupação com a sua própria inclusão), assim como pais e mães ainda têm dificuldade em abordar temas referentes à sexualidade e gênero. Ainda assim, Di Franco traz uma questão importante, que se refere ao desconhecimento dos pais sobre o que ocorre dentro dos muros das escolas. Isso muitas vezes ocorre por negligência e/ou falta de interesse. Quem/o quê o autor está querendo defender ao fazer essa consideração?

O cenário apresentado expõe o quanto as relações de poder/saber, que se apoiam em diversas instituições produzem efeitos de controle sobre as sexualidades de crianças e adolescentes, especialmente no campo da Educação, contribuindo para a exclusão daqueles que não se adequam a suas normas arbitrariamente criadas e, consequentemente, reforçando a sua vontade de verdade sobre os corpos dissidentes. (FOUCAULT, 1999).

O ambiente educativo está em disputa por causa da sua importância para a formação do cidadão nacional. O modelo de cidadão brasileiro, o qual se busca afirmar/formar através dessa educação, propaga-se em todos os canais educativos, que o reiteram incessantemente, porém sempre permite que novas existências surjam de suas fissuras, nos seus interstícios. Afinal, onde há relações de poder, há possibilidade de resistência.

4 O PROJETO DE CIDADÃO NACIONAL

De acordo com Miskolci (2012), a mistura de raças tornou-se uma das principais preocupações dos progressistas no período de passagem da Monarquia para a República. Este período, que iniciou no final do século XIX, logo após a abolição da escravatura, é fundamental para compreender os primeiros delineamentos do Brasil enquanto nação – visto que até então era uma colônia de Portugal –, e a construção do cidadão nacional, considerando as expectativas em torno deste.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 A bandeira brasileira já sinalizava o horizonte almejado na época: ordem e progresso. Foram realizadas reformas urbanas e enviadas expedições ao interior, buscando manter a ordem em meio ao caos que se instalava no processo de transição. Fazia-se necessário afastar o Brasil da imagem de instabilidade e anarquia das outras repúblicas latino-americanas, o que recai na já mencionada necessidade de estabilidade. Enquanto isso, o progresso estava associado a uma ideia de evolução humana, na qual era feita uma avaliação negativa sobre o passado e o povo que aqui habitava, e o olhar era dirigido à Europa, mais especificamente à França, considerada o modelo ideal. Esse processo mostra como o mecanismo imperialista utilizado na colonização não tinha se extinguido, havendo sido apenas adequado às metrópoles.

Nessa época foi criada uma política pró-imigração europeia, que tinha por objetivo embranquecer a população, que depois da abolição da escravatura encontrava-se bastante miscigenada. Isso causava pânico nos progressistas, que consideravam a raça negra portadora de instintos incontroláveis, o que, claramente, consistia em uma ameaça à desejada ordem. As tensões características dessa época levaram às práticas disciplinadoras do cidadão nacional, ao mesmo tempo em que o construía, fundamentado em um ideal de branquitude e masculinidade, o que só poderia ser exercido através do embranquecimento da população e ao se colocar a mulher e os filhos em posição de dependência.

Cabe aqui uma reflexão sobre o exterior constitutivo que rege o pensamento ocidental, o qual, de acordo com Butler (2002), abre fendas que permitem olhar e criticar a norma: para que o homem assegure seu domínio é necessário que algo/alguém ocupe a posição de dominado, no caso, as mulheres e filhos. A autora questiona a serviço de quê (e a custo de quê) essas normas se materializam, produzindo sujeitos e corpos inteligíveis e ininteligíveis, relegando os últimos a uma posição de abjetos, sem os quais, paradoxalmente, não se pode produzir os primeiros. Neste ponto, Butler (2010) desenvolve a explicação do exterior constitutivo, chamando a atenção para o fato de que é dessa posição (não como um local físico, mas como um local de discurso) que se pode criticar a norma hegemônica, ou seja, deste local inabitável que é produzido pela mesma norma que o pretende excluir. Outro ponto importante, levantado por Butler (2013), é a não universalidade em pensar sobre estas questões de gênero e identitárias. Ela usa o exemplo de Irigaray para mostrar que se houvesse simplesmente uma inversão, e conseguíssemos chegar ao lócus de pensamento descrito por Irigaray, fora da estrutura binária falocêntrica, e considerássemos esta nova maneira como a única verdade, não permitindo o diálogo, isto configuraria um certo “fascismo”. A autora sugere que as políticas sejam feitas em termos de uma coalizão aberta, na qual as “identidades” podem se instituir e se abandonar (de acordo com os contextos e os interesses), como forma de romper o binarismo, no qual, o tempo todo, as coisas se configuram pela oposição, retroalimentando o próprio pensamento binário, e o colocando como única possibilidade.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 De acordo com Freyre (2004), no período pós-colonial houve uma mudança no eixo cultural das nossas origens (ibéricas) e fatos relacionados ao Império e, consequentemente, a Portugal eram vistos como um atraso, enquanto a Belle Époque francesa era exaltada enquanto modelo de progresso. A necessidade que temos de opor ideias e concepções, hierarquizando-as, acaba por atribuir juízos de valor, que muitas vezes estão no cerne dos preconceitos.

Miskolci (2012) ressalta que, para manter vivo o desejo de nação, de maneiras diversas, todos – tanto os antiabolicionistas quanto os que lutavam pela abolição – tinham medo das consequências que poderiam advir do fim do regime escravagista, com a possibilidade de dissolução das hierarquias, e nutriam suas expectativas acerca de como deveria ser a nação brasileira. Esses medos eram alimentados tanto pelas ideias científicas da época acerca de outras sociedades racialmente heterogêneas, como pelas incertezas políticas e econômicas. A principal fonte do medo era o povo, cujo primeiro senso, realizado em 1872, constatou: eram dez milhões de habitantes, sendo que apenas 38% eram brancos. É interessante observar como o cenário de instabilidade elicia sentimentos de medo e ansiedade, considerados ruins pela sociedade, que proliferam esforços de controle para a retomada da suposta estabilidade.

Dentro do projeto de nação brasileira, também se fazia necessário o controle da sexualidade, que não era silenciada. Ao contrário disso, a sexualidade é um dispositivo que engloba discursos médicos, científicos, leis, instituições, organizações, visando exercer o controle tanto pelo que é dito como pelo que não é, como discutido por Foucault (2006). Para atingir o objetivo de branquear e civilizar o povo era necessário controlar seus “instintos”, através da vigilância constante dos corpos e desejos, disciplinando-os em função do ideal reprodutivo (portanto heterossexual), viril e branco.

Miskolci (2012) sublinha que a branquitude não dizia respeito apenas ao sentido cromático. Acima de tudo, ela estava idealizada em termos morais e de poder, autocontrole e domínio dos outros, principalmente das mulheres. Elas deveriam ser dominadas pelos futuros maridos (homens verdadeiros). Assim, não é difícil compreender porque a relação entre dois homens ameaçava o projeto do cidadão nacional. Nesse tipo de relação, considerava-se que um dos homens assumiria o papel de dominado (feminino), o que era um desvio do projeto. Com base no mesmo princípio, não é difícil imaginar porque famílias monoparentais encabeçadas por mulheres também consistiam em uma ameaça. Dessa maneira, o que não se adequasse era discriminado manifestadamente ou rejeitado sutilmente, e, além disso, servia de modelo para o que não se deveria ser; a vida individual e íntima era disciplinada.

Enquanto uniões inter-raciais traziam o medo da degeneração reprodutiva, uniões entre pessoas do mesmo sexo eram uma ameaça ao projeto nacional como um todo, visto que fugia da função principal: reprodução. Como sublinhado por Sedgwick (1985), o controle da sexualidade extrapolava

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 as punições físicas e individuais e ia em direção ao simbólico e coletivo. Esse controle social, por conta de ser difuso, torna-se muito mais difícil de ser combatido, o que lhe confere mais eficiência.

O desejo, de acordo com Miskolci (2012), até o fim do século XIX, era considerado um instinto pré-cultural, inexplicável, bárbaro e, portanto, ameaçador, que deveria ser controlado. Em meados do século XVIII, na Europa, já se destacava um controle do desejo nas classes altas, através do controle da masturbação. A sexualidade infantil era perseguida, visando ser retardada até que as pessoas aprendessem a controlar seus instintos, o que acontecia supostamente na vida adulta, como destacado por Foucault (2006). Daí o pânico que a sexualidade causava, ainda mais a da raça negra e mestiça, que eram vistas como incivilizadas, ou seja, uma "pedra no sapato" daqueles que idealizavam o cidadão nacional como civilizado, capaz de controlar seus desejos.

A imagem do negro veiculada nos estudos publicados nessa época endossava essa visão, que se tornava hegemônica, a de que os mestiços eram mais propensos a desvios, visto que não tinham a moralidade, estando, portanto, mais inclinados a praticar crimes. Paralelamente a isso, é importante observar a posição infantilizada e dependente na qual as mulheres eram colocadas por aqueles que tinham o poder regulatório. Na contramão de tudo isso se destacava a imagem do homem branco, viril, dominador, capaz de sustentar sua família e prole, além de controlar seus desejos. Esse processo ia tecendo os limites do cidadão nacional, e muitos deles perduram, ainda que de forma sutil (e por isso mais perigosa) na pós-modernidade.

Miskolci (2012) também enfatiza que “o poder da cultura advém da forma poderosa com que apaga os rastros históricos de sua própria criação” (p. 35), o que explica a “naturalização” de certas relações em prejuízo de outras, como se a heterossexualidade fosse a ordem natural do sexo e não merecesse nem uma reflexão a que custos isso ocorreu. Enquanto o desejo heterossexual (direcionado ao casamento, reprodução e constituição de família) é naturalizado, considerado saudável e de esfera pública, os outros desejos devem permanecer no âmbito privado, sendo considerados degenerados. O binarismo heterossexualidade x homossexualidade fundamentou a criação do ideal de cidadão nacional viril.

Considerando esse contexto de constituição do Brasil enquanto nação e a importância da educação como criadora/reiteradora desse modelo de cidadão nacional, podemos perceber que não é à toa que a inclusão de temas que podem suscitar uma reflexão sobre a construção social do gênero e da orientação sexual seja colocada como um pânico moral por um projeto conservador.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Problematizar a educação no contexto brasileiro exige a tarefa de relacionar as práticas educacionais ao exercício da democracia. Esse movimento é fundamental pois, apesar dos avanços das lutas sociais - especialmente dos movimentos feministas, étnico-raciais, da comunidade LGBTQ+,

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761 dos coletivos de proteção à infância e juventude -, e talvez em decorrência dos mesmos, faz-se presente uma tentativa de manutenção do padrão heteronormativo, sexista e racista contra quem não corresponde às expectativas sociais idealizadas e criadas através da reiteração de modelos de comportamento. Essas manifestações dos dispositivos de dominação estão presentes nos discursos políticos, midiáticos, médicos e jurídicos, visto que importantes representantes dessas esferas são homens brancos, conservadores, de classe média-alta, que buscam assegurar sua confortável posição social de privilégio. Não obstante, as estatísticas mostram que, embora muitas conquistas realizadas nas últimas décadas, ainda apresentamos um número preocupante de feminicídio, assassinatos à comunidade LGBTQ+, genocídio da população negra e infanto-juvenil do país.

Portanto, as constantes investidas governamentais de proibir qualquer debate sobre sexualidade e gênero nas escolas parte de uma concepção intolerante em relação às diferentes formas de expressão de gênero e sexualidade, contribuindo para o sofrimento psíquico e exclusão de corpos lidos como abjetos (meninas e meninos trans, sapatões, gays afeminados, não-binários), retirando do espaço escolar a possibilidade de trabalhar a aceitação das múltiplas formas de ser e estar no mundo.

Assistimos ao longo dos séculos à transformação da instituição escolar, enquanto dispositivo disciplinador, em uma ferramenta de emancipação dos sujeitos. Permitir o retorno de um discurso conservador, alimentado por segmentos religiosos neopentecostais, não significa somente contribuir para o aumento do número de abuso sexual infantil, da violência contra crianças e adolescentes que estão em processo de construção de sua personalidade e que, portanto, exploram as barreiras da sexualidade, mas também é ser conivente com o avanço de um projeto político perigoso, pautado na censura e proibicionismo.

Assim, entendemos que é urgente um diálogo com gestores, professores e agentes que atuem nas escolas para desmistificar a ideia falsamente criada sobre “ideologia de gênero”. Pensamos que, o verdadeiro projeto nacional é aquele que possibilita uma política de aceitação em relação à diversidade sexual e de gênero, minimizando os aspectos normalizadores inerentes aos espaços educacionais e criando alternativas, na medida do possível, para o exercício da alteridade. A ideologia existe em ambos os projetos, a pergunta é: a quem ela serve em cada um deles?

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 11, p.87811-87827, nov. 2020. ISSN 2525-8761

REFERÊNCIAS

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