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As transfigurações do mito de Ariadne e Dionísio em Hilda Hilst

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Academic year: 2021

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LUANA FRANCIELE FERNANDES ALVES

AS TRANSFIGURAÇÕES DO MITO DE ARIADNE E DIONÍSIO EM HILDA HILST

Palhoça 2020

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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA LUANA FRANCIELE FERNANDES ALVES

AS TRANSFIGURAÇÕES DO MITO DE ARIADNE E DIONÍSIO EM HILDA HILST

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Linguagem.

Profª. Drª. Ramayana Lira de Sousa (Orientadora)

Palhoça 2020

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, especialmente ao meu marido Jaison Alves, pelo apoio e encorajamento e por entenderem minha ausência. Aos meus amigos por serem ombros e ouvidos nos momentos de aflição. Ao Rafael Zen que me apresentou Hilda Hilst e me incentivou a fazer mestrado.

Aos colegas de turma que fizeram esta ser uma bela jornada com muito aprendizado e compartilhamento de experiências, em especial ao Igor Rosa pelo companheirismo, apoio e leitura dos meus textos.

Ao Professor Cristiano Diniz, que me atendeu durante dias no Centro de Documentação Alexandre Eulalio (CEDAE) do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, pelo cuidado e manutenção de todo o acervo de Hilda Hilst. Um trabalho minucioso de anos, de extrema competência e que merece nossa admiração e respeito.

Ao Instituto Hilda Hilst pelo esforço em manter vivo o legado hilstiano. À Olga Bilenky que, com muito carinho, recebe os pesquisadores e visitantes na Casa do Sol. Passar dias a seu lado foi uma imersão de cultura.

Aos Professores do PPGCL e toda equipe da UNISUL que foram incríveis. Um agradecimento especial aos Professores Ana Carolina Cernicchiaro e Antonio Carlos Gonçalves dos Santos pelas sugestões, empréstimos de livros e análise do meu texto.

À minha banca pela leitura e contribuições com o resultado desta pesquisa.

À minha orientadora, Ramayana Lira de Sousa, ser humano ímpar, que acreditou nesta pesquisa e em mim. Agradeço pelo aprendizado, pela paciência, por compreender que o universo acadêmico é só uma parte do mundo ao qual pertencemos.

À UNIFEBE pela bolsa de estudos e oportunidade e aos colegas de trabalho por entenderem minhas angústias.

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Também são cruas e duras as palavras e as caras Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte É um rei que nos visita e nos cobre de mirra. Sussuras: ah, a vida é líquida. (Hilda Hilst, 1992).

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RESUMO

As artes buscam nos mitos inspiração para (re)discutir temas contemporâneos, como é possível observar no conjunto poético que compõe o livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão

(1974), de Hilda Hilst e que é o objeto de estudo desta pesquisa, buscando descrever a

transfiguração em “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”. Realizou-se uma pesquisa de caráter exploratório em bibliografias, periódicos e sites, além de pesquisa nos documentos do Instituto Hilda Hilst, localizado em Campinas – SP, e análise documental no Centro de Documentação Cultural "Alexandre Eulálio" da Unicamp. Percebe-se que a transfiguração está prePercebe-sente em toda a obra pesquisada, Percebe-seja na figura do deus que Percebe-se faz humano diante da amada, ou na transposição de Ariadne da mitologia para Ariana de Hilda Hilst. Nota-se que há uma relação erótica heterossexual e a alteridade estaria relacionada, então, a um desejo pelo outro sexo, um desejo, no entanto, que não parece encontrar solução. Seria nesse jogo erótico de constante adiamento do gozo que se constrói o outro nos poemas que compõem o objeto de estudo.

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ABSTRACT

The arts search in the myths inspiration to (re)discuss contemporary themes, as we can observe in the poetic set that composes the book Jubilo, Memory, Novitiate of Passion (1974), by Hilda Hilst and which are the object of study of this research, in an attempt to describe the transfiguration in “Discontinuous and remote Ode to flute and oboe. From Ariana to Dionysus”. An exploratory research was carried out in bibliographies, journals and websites, as well as research in the documents of the Hilda Hilst Institute, located in Campinas - SP, and document analysis at the Unicamp's "Alexandre Eulálio" Cultural Documentation Center. It can be seen that the transfiguration is present in all the researched work, either in the figure of the God who becomes human before the beloved, or in Ariadne's transposition of mythology to Ariana by Hilda Hilst. It is noticed that there is a heterosexual erotic relationship and alterity would be related, then, to a desire for the other sex, a desire, however, that does not seem to find a solution. It is in this erotic game of constant postponement of enjoyment that the other is constructed in the poems that make up the object of study.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Casa do Sol - 2018 ... 10

Figura 2: Bacco - Caravaggio - 1596-1597 ... 19

Figura 3: Ariadne Abandoned by Theseus - Angelica Kauffman - 1774 ... 21

Figura 4: Bacchus and Ariadne - Ticiano – 1520 - 1523 ... 22

Figura 5: Hilda Hilst por Fernando Lemos - 1954 ... 49

Figura 6: Títulos de poemas - 1973 ... 56

Figura 7: Notas sobre o título – de 01 a 03 ... 57

Figura 8: Notas sobre o título – de 04 a 06 ... 57

Figura 9: Notas sobre o título – de 07 a 10 ... 58

Figura 10: Definição do título ... 59

Figura 11: Carta de Anésia Pacheco Chaves a Hilda Hilst – 1974 ... 60

Figura 12: Carta de Hilda Hilst a Anésia Pacheco Chaves - 1974 ... 61

Figura 13: Capa de Júbilo, Memória Noviciado da Paixão - 1974 ... 62

Figura 14: Manuscrito da Canção I ... 66

Figura 15: Versão original da Canção X - 1973 ... 68

Figura 16: Carta de Zeca Baleiro - 1999 ... 74

Figura 17: Capa do CD “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio” - 2005 ... 75

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SUMÁRIO

1. “QUERO BRINCAR MEU AMIGO, DE VER BELEZA NAS COISAS” ... 10

1.1. “TUDO VIVE EM MIM. TUDO SE ENTRANHA” ... 12

1.2. “MORTOS? O MUNDO. MAS PODES ACORDÁ-LO” ... 14

1.2.1. “Meu corpo, Dionísio, é que move o grande corpo teu”... 17

1.2.2. “A cada noite, eu Ariana, preparando aroma e corpo” ... 20

1.2.3. “Que canto há de cantar o indefinível?” ... 23

2. “ENQUANTO VIVE UM POETA O HOMEM ESTÁ VIVO” ... 28

2.1. “COSTURO O INFINITO NO PEITO” ... 30

2.2. “SE TE PAREÇO NOTURNA E IMPERFEITA. OLHA-ME DE NOVO” ... 38

2.3. “REPENSAMOS A TAREFA DE MUDAR O MUNDO” ... 40

2.4. “ANTES DE SER MULHER, SOU INTEIRA POETA” ... 47

2.5. “MINHA RIQUEZA? PROCURA” ... 53

3. “É MAIS VASTO O SONHO QUE ELABORA HÁ TANTO TEMPO SUA PRÓPRIA TESSITURA” ... 54

3.1. “POR QUE RECUSAS AMOR E PERMANÊNCIA?” ... 63

3.1.1. “O meu tempo lunar, transfigurado e rubro” ... 69

3.1.2. “O sumarento gozo de cantar”... 73

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 76

REFERÊNCIAS ... 78

ANEXOS ... 85

ANEXO A – BIBLIOGRAFIA DE HILDA HILST ... 86

ANEXO B – TEXTOS ORIGINAIS DE ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ. DE ARIANA PARA DIONÍSIO ... 89

ANEXO C – CLIPAGEM DE MATÉRIAS SOBRE O LANÇAMENTO DE JÚBILO, MEMÓRIA, NOVICIADO DA PAIXÃO (1974) ... 96

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1. “QUERO BRINCAR MEU AMIGO, DE VER BELEZA NAS COISAS”

“A minha casa é guardiã do meu corpo” (Hilda Hilst, 1974)

O tocar do sino, o cheiro de grama recém-cortada e o latido dos cachorros. O chão úmido do amanhecer, os pássaros e ela: a imponente figueira. A Casa, representada nos poemas e protetora do mundo. O pátio, o vermelho das paredes e o portão com as iniciais HH que não eram dela, mas que chegaram lá pelo acaso. As marginálias dos livros, a máquina de escrever Olivetti, as fotos e a lareira. As esculturas, a luz entrando pela janela e o chapéu que ainda está lá. O balançar das redes, o balanço de corda na árvore, o caminho de pedras, o silêncio... a Casa emana inspiração. A Casa do Sol, que durante décadas foi abrigo para as criações de Hilda Hilst, acolheu diversos artistas e hoje faz parte da história da artista. A Casa que recebe artistas, curiosos, apaixonados por poesia e pesquisadores, também me recebeu. Ali, em estado de êxtase fiquei por cinco dias e quatro noites, respirando literatura e mergulhando no universo hilstiano.

Fonte: Fotografia feita pela pesquisadora

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“Não é um livro, é um ato de agressão – uma banana que estou dando para o editores, para o mercado editorial1” foram estas as palavras que me apresentaram à Hilda Hilst. Durante o projeto de residência literária que participei, em 2015, o mediador apresentou uma entrevista desta mulher que falava o que pensava, mas escrevia com sentimento e entrega. Talvez fosse esta entrega que a fez dar uma “banana” para a produção tradicional e a fez repensar seu modo de escrever após 40 anos de trabalho. Esta coragem que a fez hoje ser reconhecida, pois se há 29 anos foi chamada de louca, hoje é apontada como uma grande artista. Sua tetralogia erótica foi apenas um capítulo nesta longa história literária. Mas não foram as obras de seu “período pornográfico” que me encantaram em Hilda Hilst e sim seu momento de retomada poética após um período de escrita ficcional com o livro Júbilo, Memória Noviciado da Paixão (1974).

A Casa do Sol, em Campinas-SP, foi a fonte para beber desta história, mas precisava de mais. Buscando ainda mais proximidade com suas criações procurei a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e fui recebida pelo Professor e Pesquisador Cristiano Diniz, que me apresentou o Centro de Documentação Alexandre Eulalio (CEDAE) do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. Ali encontram-se os acervos pessoais de Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho e de quem me interessava: Hilda Hilst. A UNICAMP foi minha casa durante cinco dias. Com uma organização impecável, tive acesso a todo o acervo da escritora e me concentrei em apenas um período: a década de 1970.

Tive a oportunidade de ler seus rascunhos, seu diário pessoal, suas anotações, suas inspirações, perceber um pouco do seu processo criativo e chegar perto do que foi a ideia inicial dos textos a serem pesquisados nesta dissertação. Pude perceber que a escrita é feita de acordo com as paixões, seus personagens são seus amores e que o místico está presente não só na obra, mas em sua casa e em sua vida. A escrita era levada a sério, assim como a leitura. “Fico besta quando me entendem” foi dito por ela e virou título de um livro com coletânea de entrevistas que concedeu ao longo da vida. Os livros lidos, marcados e hoje organizados, refletem a personalidade de Hilda Hilst. Sua paixão pela numerologia, pela astrologia e mitologia são proporcionais a paixão pela escrita que transborda de significados e subjetivações.

A mitologia também está presente na obra a ser estudada. Aqui a princesa Ariadne é Ariana e clama ao amado, o deus Dionísio que segue em ausência.

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1.1. “TUDO VIVE EM MIM. TUDO SE ENTRANHA”

Até 2018 havia 1263 publicações sobre Hilda Hilst e sua obra, segundo a Fortuna

Crítica de Hilda Hilst (2018), de Cristiano Diniz. O levantamento bibliográfico feito de 1949 a

2018 apontou 209 livros ou capítulos de livros, 782 artigos em diferentes periódicos, 88 entrevistas para os mais diversos veículos, 173 dissertações e teses e 9 monografias.

Os estudos acadêmicos acontecem em todos os estados, sendo a maioria no estado de São Paulo. Há também publicações internacionais nos Estados Unidos, Portugal, França e Espanha e o único país da América Latina, além do Brasil, a publicar sobre a autora foi o Chile. Entre as áreas de produção literária de Hilda Hilst, a prosa lidera os estudos acadêmicos, seguida da poesia. Até 2001 as produções acadêmicas se limitavam a uma por ano e, a partir de 2002, este número sobe para três, no ano seguinte para seis até que em 2012 chega a 17 pesquisas acadêmicas por ano.

Sobre os artigos e entrevistas a situação se repete, não seguindo uma periodicidade, mas publicações conforme os lançamentos de obras da artista. Esta situação muda com a publicação da tetralogia pornográfica, em que entre 1990 e 1991, há 18 matérias jornalísticas e 22 artigos. Outro momento de muitas publicações foi em 2004, ano da morte de Hilda Hilst e desde então não há menos de 17 publicações anuais, chegando a 62 artigos publicados somente no ano de 2010. Do levantamento bibliográfico o título mais pesquisado foi A obscena Senhora D (1992) com 126 publicações, seguido de O caderno rosa de Lori Lamby (1990) com 104 publicações a respeito. O livro Júbilo, Memória Noviciado da Paixão (1974), que contém os poemas pesquisados nesta dissertação é objeto de pesquisa de oito livros e capítulos, 33 artigos e 19 teses e dissertações.

Dois fatores podem ser observados para este aumento em relação as publicações a respeito de Hilda Hilst: A reedição de suas obras pela Editora Globo a partir de 2001 e a morte da artista em 2004. No início dos anos 2000 os estudos culturais são intensificados, as discussões sobre as minorias e a literatura feminina começam a ser debatidas com maior amplitude, o que também explica o interesse pelas obras de Hilda Hilst. Neste sentido, esta pesquisa corrobora com a literatura, pois traz discussões relevantes para a cultura, reforçando a importância da poesia e buscando propagar o universo hilstiano.

Como objeto desta pesquisa, escolheu-se o conjunto de poemas “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”, que compõem a quarta parte do livro

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Júbilo, Memória Noviciado da Paixão (1974), pois se trata da obra de uma das mais

representativas escritoras brasileiras e por trazer a correlação entre a mitologia, a poesia e a transfiguração. A escolha deste tema se dá pela multiplicidade de inter-relações possíveis entre a literatura e os mais variados campos do saber humano.

Ao lermos os dez poemas que fazem parte do livro, percebemos uma relação entre o conceito clássico de ode e o sentido almejado pela autora: não há uma exaltação, existe uma quebra, uma descontinuidade causada especificamente pelo outro, que na maioria das vezes, não retribui aos apelos de Ariana que canta e exalta Dionísio que permanece em ausência. A menção à mitologia grega, especificamente a paixão entre o deus Dionísio e a princesa mortal Ariadne, é fundamental para compreender estes poemas.

A princesa Ariadne, filha do rei Minos, se apaixona por Dionísio na Ilha de Naxos após ter sido abandonada por Teseu enquanto dormia. A mitologia grega conta que Ariadne (aqui transfigurada em Ariana) foi levada ao Olimpo pelo deus, porém nestas canções Dionísio é ausente. Neste conjunto de poemas, pressupõe-se que a transfiguração está presente em toda a obra, seja na figura do deus que se faz humano diante da amada, ou na transposição de Ariadne da mitologia para Ariana de Hilda Hilst. Percebe-se que há uma relação erótica heterossexual, um desejo, no entanto, que não parece encontrar solução. Seria nesse jogo erótico de constante adiamento do gozo que se constrói o outro nos poemas, já que “a mulher tem uma relação com o homem mais ligada a uma partilha carnal, a uma experiência sensível, a um vivido imanente”. (IRIGARAY, 2002, p.3).

Foram trabalhados vários referenciais teóricos, como Luce Irigaray e Jean Baudrillard discutindo sobre transfiguração e alteridade. Foram estudados também outros autores cujos trabalhos permitem uma possível troca de informações e teorias, pois dialogam com os universos abordados por estes dois acima e com o tema da pesquisa: a contextualização de mito e o sagrado nas obras Mircea Eliade, a mitologia por Junito de Souza Brandão, a literatura por Antônio Cândido e Alfredo Bosi, a poesia, o feminino e a década de 1970 com Heloisa Buarque de Hollanda, além de publicações a respeito de Hilda Hilst e suas obras.

Para o trabalho realizou-se uma pesquisa aplicada, de caráter exploratório em bibliografias, periódicos e sites sobre o mito de Dionísio e Ariadne, a obra de Hilda Hilst, e a transfiguração. Para tanto, em janeiro de 2018, foi feita uma pesquisa nos documentos do Instituto Hilda Hilst e na Casa do Sol, localizada em Campinas – SP, bem como em documentários e entrevistas com a poeta, além de análise documental no Centro de Documentação Alexandre Eulalio (CEDAE) do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP.

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Desta forma, esta pesquisa iniciou com uma breve apresentação da mitologia acerca dos personagens que fazem parte dos poemas estudados e como a mitologia influencia as artes. A pesquisa segue com uma discussão com base em Jean-Luc Nancy, Antônio Cândido e Alfredo Bosi a respeito do papel da poesia na literatura e na sociedade. Neste mesmo capítulo, apresentou-se o contexto da mulher na literatura e o papel que ocupa hoje, a partir do ponto de vista do gênero e do outro, apontando os pensamentos dos teóricos Luce Irigaray e Jean Baudrillard. Na sequência uma contextualização cultural e social da década de 1970, período que foi lançado o livro pesquisado nesta dissertação e de forte repressão política. Fechando este capítulo, trouxe uma apresentação de Hilda Hilst e do objeto de pesquisa.

No capítulo seguinte é apresentado do livro Júbilo, Memória Noviciado da Paixão (1974), trazendo fragmentos de arquivos originais da obra e do seu processo de criação. Apresenta-se “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”, sua ligação com a música, seus personagens e o resultado da parceria entre Hilda Hilst e Zeca Baleiro. A pesquisa é concluída com as considerações finais e a impressão de que há muito a ser pesquisa sobre Hilda Hilst, suas obras e sua contribuição para a literatura.

1.2. “MORTOS? O MUNDO. MAS PODES ACORDÁ-LO”

Para melhor compreensão dos poemas é necessária uma introdução a respeito dos mitos e como influenciam na obra de Hilda Hilst. Neste sentido, Mircea Eliade afirma que o mito fornece os modelos para a conduta humana, atribuindo significação e valor. Ele diz que “compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos”. (ELIADE, 1972, p.5).

Segundo Leminski a mente humana procura no mito e nos conceitos a ordem no caos dos fenômenos “Os mitos são frutos da imaginação. Os conceitos e os números nascem da abstração e da capacidade combinatória da mente humana. Os mitos são obras de arte, como os sonhos, modelos de todas as obras de arte.”(LEMINSKI, 1998, p.59)

Para complementar os pensamentos, Max Müller (apud CASSIRER, 1992, p. 19) conclui que a mitologia é inevitável e é uma “necessidade inerente à linguagem, se

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reconhecemos nesta a forma externa do pensamento: a mitologia é, em suma, a obscura sombra que a linguagem projeta sobre o pensamento”. Ele diz ainda que:

A mitologia irrompe com maior força nos tempos mais antigos da história do pensamento humano, mas nunca desaparece por inteiro. Sem dúvida, temos hoje nossa mitologia, tal como nos tempos de Homero, com a diferença apenas de que atualmente não reparamos nela, porque vivemos à sua própria sombra e porque, nós todos, retrocedemos ante a luz meridiana da verdade. Mitologia, no mais elevado sentido da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento, e isto em todas as esferas possíveis da atividade espiritual. (MÜLLER, Max apud CASSIRER, 1992, p. 19).

As artes buscam nos mitos inspiração para suas obras, como podemos observar desde os poemas de Homero (Odisseia - século VIII a.C.), as tragédias gregas de Sófocles (Antígona - 442 a.C.), esculturas de Michelangelo (Baco - 1498), pinturas de Ticiano, Tintoretto e Leonardo da Vinci (deuses mitológicos - século XVI), a ópera de Handel (Arianna in Creta - 1734) até na filosofia, como O Nascimento da Tragédia (1872) de Friedrich Nietzsche. Atualmente, os mitos são visitados com o objetivo de (re)discutir temas contemporâneos, como é o caso da escritora Hilda Hilst que apresenta Dionísio, deus grego, transfigurado em um humano amado, e a Princesa Ariadne, que se transforma na protagonista Ariana de suas poesias. Estes personagens fazem parte do objeto de estudo desta pesquisa que é a quarta parte do livro

Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão (1974), composta por dez poemas que contam a história

do amor de Ariana e Dionísio.

A mitologia designa dois conceitos: o conjunto de mitos e lendas que um povo imaginou e o estudo dos mesmos. A palavra mitologia vem do grego mythos, que significa fábula, e logos, pensamento, razão, tratado. O conceito de fábula2 não deve nos induzir a crer que o mito seja uma ficção. Na narrativa mítica há um aspecto que encerra uma verdade. Já a fábula refere-se a acontecimentos imaginados e que não modificam a condição humana. Paulo Leminski fala que é “fundamental recuperar o pleno sentido da palavra mito, vocabulário grego que, entre nós, acabou sub-significando mentira, falsidade, patranha, enganação” (1998, p.70), pois este não é o sentido original. Para ele “mito é a palavra fundadora, a fábula matriz, a estrutura primordial, leitura analógica do mundo e da vida. Sobretudo, uma leitura criativa. Ideogrâmica. Uma cocriação”. (1998, p.70)

Seabra (1992) afirma que o mito dá forma à tentativa arcaica e perene de responder às questões sobre o universo, o mundo, e o próprio ser. Eliade (1972) por outro lado, diz que é

2 Composições literárias, geralmente com animais personificados, trazendo contos de moralidade popular e disseminados pela tradição oral. A criação das fábulas foi atribuída ao escritor grego Esopo (620 - 564 a.C.).

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difícil encontrar uma definição de mito que fosse aceita por todos, desde eruditos a não especialistas, mas questiona se é realmente possível encontrar uma definição que cubra todos os tipos e funções dos mitos, nas sociedades arcaicas e tradicionais. Assim, o mito é uma realidade cultural “extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares [..] conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio"”. (ELIADE, 1972, p.9) .

Segundo o autor, os mitos descrevem as irrupções do sagrado no mundo. “É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural”. (ELIADE, 1972, p.9).

E como se conserva e transmite, desde a Grécia antiga, esses mitos? Conforme Jean-Pierre Vernant (2009) os saberes tradicionais eram veiculados por certas narrativas, a respeito das sociedades, famílias dos deuses, genealogia, aventuras, conflitos e poderes. Esta transmissão era feita, essencialmente de duas maneiras: a linguagem oral e a voz dos poetas.

Primeiro, mediante uma tradição puramente oral exercida boca a boca, em cada lar, sobretudo através das mulheres: contos de amas-de-leite, fábulas de velhas avós, para falar como Platão, e cujo conteúdo as crianças assimilam desde o berço. Essas narrativas, esses mythoi, tanto mais familiares quanto foram escutados ao mesmo tempo que se aprendia a falar, contribuem para moldar o quadro mental em que os gregos são muito naturalmente levados a imaginar o divino, a situá-lo, a pensá-lo. Em seguida, é pela voz dos poetas que o mundo dos deuses, em sua distância e sua estranheza, é apresentado aos humanos, em narrativas que põem em cena as potências do além revestindo-as de uma forma familiar, acessível à inteligência. Ouve-se o canto dos poetas, apoiado pela música de um instrumento, já não em particular, num quadro íntimo, mas em público, durante os banquetes, as festas oficiais, os grandes concursos e os jogos. (VERNANT, 2009, p.15).

A literatura prolonga e modifica, pela escrita, a tradição da poesia oral e ocupa lugar central na vida social e espiritual da Grécia. Segundo Vernant (2009), não se tratava aos ouvintes apenas de divertimento, mas uma instituição que serve de memória social, instrumento de conservação e comunicação do saber, pois é na poesia que se exprimem e se fixam os traços fundamentais para uma cultura comum.

Se não existissem todas as obras da poesia épica, lírica, dramática, poder-se-ia falar de cultos gregos no plural, mas não de uma religião grega. Sob esse aspecto, Homero e Hesíodo exerceram um papel privilegiado. Suas narrativas sobre os seres divinos adquiriram um valor quase canônico: funcionaram como modelos de referência para os autores que vieram depois, assim como para o público que as ouviu ou leu. (VERNANT, 2009, p.16).

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Leminski reforça a reflexão dos mitos a partir da escrita “com a chegada da escrita, visual, começa a chegar a crítica, o pensamento reflexivo, o pensar sobre: é a escrita pensando sobre a oral”. (LEMINSKI, 1998, p. 65)

1.2.1. “Meu corpo, Dionísio, é que move o grande corpo teu”

Na mitologia grega, Dionísio ou Dioniso (equivalente ao romano Baco) é filho da princesa Sêmele e de Zeus, foi o único deus filho de uma mortal. De todas as divindades, era a que mais aproximava dos homens. É deus do vinho, das festas, do prazer, do teatro e do delírio místico (BRANDÃO, 1991).

Dionísio nasceu duas vezes. O primeiro Dionísio nasceu do amor de Zeus e Perséfone, chamado Zagreu, e foi o filho preferido do pai dos deuses e dos homens e iria sucedê-lo no governo do mundo, porém não foi assim que aconteceu. Zeus confiou o filho aos cuidados de Apolo e dos Curetes, para protegê-los dos ciúmes de sua esposa Hera. Zagreu ficou escondido nas florestas do Parnaso até que Hera descobriu onde estava e mandou os Titãs raptá-lo e matá-lo. Com os rostos polvilhados de gesso, os Titãs atraíram o pequeno deus com brinquedos místicos: ossinhos, pião, carrapeta e espelho. De posse do filho de Zeus, os enviados de Hera fizeram-no em pedaços: “cozinharam-lhe as carnes num cadeirão e as devoraram. Zeus fulminou os Titãs e de suas cinzas nasceram os homens, o que explica no ser humano os dois lados: o bem e o mal”. (BRANDÃO, 1987, vol II p.117-118).

Como é um deus, Dionísio não morre e renasce do próprio coração. Zagreu volta à vida porque seu coração foi salvo enquanto ainda palpitava. “Engolindo-o, a princesa tebana Sêmele tornou-se grávida do segundo Dionísio. O mito possui muitas variantes, principalmente aquela segundo a qual fora Zeus quem engolira o coração do filho, antes de fecundar Sêmele”. (BRANDÃO, 1987, vol II p.120).

Engolido o coração de Zagreu (ou fecundada por Zeus), Sêmele ficou grávida do segundo Dionísio. Porém, o ciúme de Hera, ao ter conhecimento da relação de Sêmele com Zeus, fez com que ela decidisse eliminá-la. Transformando-se na ama da princesa tebana, aconselhou-a a pedir que Zeus se apresentasse em todo o seu esplendor. “Espero que seja mesmo, mas não posso deixar de duvidar. Nem sempre as pessoas são quem dizem ser [...]

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faze-o dar uma prfaze-ova dissfaze-o. Pede-lhe para vir vestidfaze-o cfaze-om tfaze-odfaze-o faze-o seu esplendfaze-or, tal cfaze-omfaze-o anda nfaze-o céu. Assim, acabará qualquer dúvida”. (BULFINCH, 2002, p.196).

De acordo com Brandão (1987), Zeus não poderia atender o pedido, dizendo a amada que um mortal não tem estrutura para suportar a epifania de um deus imortal. Mas, havia jurado pelas águas do rio Estige que nunca contrariaria seus desejos, assim, apresentou-se com seus raios e trovões: O palácio de Sêmele se incendiou e ela morreu carbonizada. O feto foi salvo pelo pai dos deuses e dos homens: “Zeus recolheu apressadamente do ventre da amante o fruto inacabado de seus amores e colocou-o em sua coxa, até que se completasse a gestação”. (BRANDÃO, 1987, vol II p.120).

Temendo novo estratagema de Hera, Zeus mandou que Hermes levasse o pequeno Dionísio para o monte Nisa, onde foi confiado aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros. Eles habitavam uma gruta profunda, cercada de vegetação e cujas paredes se entrelaçavam galhos de vides, donde pendiam maduros cachos de uva. Certa vez o jovem deus colheu alguns desses cachos, espremeu as frutas em taças de ouro e bebeu o suco em companhia de sua corte. Todos ficaram então conhecendo o novo néctar: o vinho acabava de nascer.

Nascido da coxa de Zeus, Dionísio se tornou tão poderoso, que desceu até o fundo do Hades para de lá arrancar sua mãe Sêmele, conferir-lhe a imortalidade, mudar seu nome para Tione, e com ela escalar o Olimpo (BRANDÃO, 1987, vol II p.120-123). Mircea Eliade fala da pluralidade de Dionisio e afirma que:

Dioniso assombra pela multiplicidade e pela novidade de suas transformações. Ele está sempre em movimento; penetra em todos os lugares, em todas as terras, em todos os povos, em todos os meios religiosos, pronto para associar-se a divindades diversas, até antagônicas. É o único deus grego que, revelando-se sob diferentes aspectos, deslumbra e atrai tanto os camponeses quanto as elites intelectuais, políticos e contemplativos, ascetas e os que se entregam a orgias. A embriaguez, o erotismo, a fertilidade universal, mas também as experiências inesquecíveis provocadas pela chegada periódica dos mortos, ou pela mania, pela imersão no inconsciente animal ou pelo êxtase do enthusiasmós — todos esses terrores e revelações surgem de uma única fonte: a presença do deus. O seu modo de ser exprime a unidade paradoxal da vida e da morte. É por essa razão que Dioniso constitui um tipo de divindade radicalmente diversa dos Olímpicos (ELIADE, Mircea apud BRANDÃO, 1987, vol II, p.138).

A pluralidade de Dionísio é retratada nas artes, como no Teatro de Dionísio, em Atenas – Grécia, do século V a.C., onde foram apresentadas as tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. No mesmo século Anacreonte fazia poemas em seu nome e em museus como o Louvre é possível encontrar esculturas suas com mais de 2 mil anos. Friedrich Nietzsche formulou pensamentos baseados na mitologia, ao retratar a dualidade entre os deuses Dionísio

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e Apolo e suas características nas artes. As artes plásticas trazem o deus como personagem, principalmente, a partir do século XVI, como a pintura de Caravaggio – Bacco.

Figura 2: Bacco - Caravaggio - 1596-1597

Fonte: Uffizi Gallery – Florence Museum, 2018. Acesso em https://www.florence.net/painting-bacco-uffizi-gallery.aspx

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1.2.2. “A cada noite, eu Ariana, preparando aroma e corpo”

Ariadne é a bela filha de Minos, o rei de Creta, e Pasífae e é irmã de Minotauro. Ao assumir o trono de Creta, o rei Minos travava uma batalha com seus irmãos e pediu a Poseidon, o deus do mar, que lhe enviasse um sinal de aprovação ao seu reinado. Poseidon então lhe enviou um belo touro branco, que deveria ser sacrificado em sua homenagem. Minos, porém, se encantou com a beleza do touro e não o matou.

Poseidon, sob forma de touro, e portanto a perversão, sob forma de dominação tirânica, inspira a Pasífae os conselhos perversos que fazem nascer o Minotauro, a injustiça despótica de Minos. Este, no entanto, envergonha-se do Monstro gerado por sua mulher e o esconde aos olhos dos homens. Minos e Pasífae repelem a verdade monstruosa, a dominação perversa do rei que é habitualmente sábio. Escondem a vontade monstruosa no inconsciente: aprisionam o Minotauro no Labirinto. (BRANDÃO, 1987, vol III, p.161).

Assim, foi construído o grandioso palácio de Cnossos, com um emaranhado de salas e corredores, de onde ninguém seria capaz de sair, a não ser o próprio construtor. Nesse labirinto o Minotauro passou a viver, alimentando-se dos jovens atenienses que ali eram lançados. (SOBRINO, 2013, p.4).

Os atenienses encontravam-se, naquela época, em estado de grande aflição, devido ao tributo que eram obrigados a pagar a Minos[...]. Esse tributo consistia em sete jovens e sete donzelas, que eram entregues todos os anos, a fim de serem devorados pelo Minotauro, monstro com corpo de homem e cabeça de touro, forte e feroz, que era mantido num labirinto construído por Dédalo, e tão habilmente projetado que quem se visse ali encerrado não conseguiria sair, sem ajuda. (BULFINCH, 2002, p. 187).

Teseu, filho de Egeu, Rei de Atenas, voluntariou-se para livrar seu povo deste sacrifício. “Chegando a Creta, os jovens e donzelas foram todos exibidos diante de Minos, e Ariadne, filha do rei, que estava presente, apaixonou-se por Teseu, e este amor foi correspondido”. (BULFINCH, 2002, p. 188). Ariadne lhe deu uma espada e um novelo de fios, que ele ia desenrolando, à medida que entrava no labirinto, para que pudesse encontrar o caminho de volta. A ajuda a Teseu foi condicionada a ser levada à Atenas. Ao derrotar e mortar o Minotauro, o herói escapou e, após inutilizar os navios cretenses, para dificultar a perseguição, velejou rumo à Grécia, levando consigo Ariadne.

O navio fez escala na ilha de Naxos e na manhã seguinte, quando acordou, Ariadne estava só. Teseu abandonou Ariadne e como consequência acabou perdendo seu pai, conforme

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descrito por Brandão. O abandono da princesa foi retratado por Angelica Kauffman, em 1774, e ao fundo é possível ver o navio de velas pretas desaparecendo no horizonte.

Triste com a perda de Ariadne, ou castigado por havê-la abandonado, ao aproximar-se das costas da Ática o herói aproximar-se esqueceu de trocar as velas negras de aproximar-seu navio, sinal de luto, pelas brancas, sinal de vitória. Egeu, que ansiosamente aguardava na praia a chegada do barco, ao ver as velas negras, julgou que o filho houvesse perecido em Creta e lançou-se nas ondas do mar, que recebeu seu nome (BRANDÃO, 1987, vol II p.164).

Figura 3: Ariadne Abandoned by Theseus - Angelica Kauffman - 1774

Fonte: Museum of Fine Arts - Houston, 2018. Acesso em https://www.mfah.org/art/detail/938

Esta é a versão mais conhecida e seguida inclusive por Ovídio, nas Heróides, 10,3-6:

Quae legis, exillo, Theseu, tibi litore mitto, unde tuam me uela tulere ratem; in quo me somnusque meus male prodidit, et tu, per facinus somnis insidiate meis.

- O que lês, Teseu, envio-te daquela praia, donde, sem mim, as velas levaram teu barco; onde o sono perverso me traiu, de que perversamente tu te aproveitaste. (apud BRANDÃO, 1987, vol II p.163)

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Ariadne na Ilha de Naxos, “embora em prantos, quando viu o navio de velas desfraldadas já fora da barra, logo se consolou com a chegada intempestiva de Dioniso e seu cortejo de Sátiros e Mênades. Fascinado pela beleza da jovem cretense, desposou-a e levou-a consigo para o Olimpo” (BRANDÃO, 1987, vol II p.139). A princesa ganhou de Dionísio uma tiara de ouro e diamantes feita por Hefestos, que posteriormente se torna uma constelação, chamada Ariadne (ou Coroa Boreal). Com Dionísio, Ariadne teria tido quatro filhos: Toas, Estáfilo, Enópion e Pepareto. (BRANDÃO, 1987, vol III p.164). A Coroa Coreal (Corona Borealis) também está registrada em diversas obras de arte, como na pintura Bacchus

and Ariadne, de Ticiano, que hoje está na Galeria Nacional de Londres.

Figura 4: Bacchus and Ariadne - Ticiano – 1520 - 1523

Fonte: The National Gallery - London, 2018. Acesso em https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/titian-bacchus-and-ariadne

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A figura de Ariadne aparece na arte ocidental ao longo da história. Apolônio de Rodes fala dela nos Argonautas (século III a.C.) e Catulo, no poema Núpcias de Tétis e Peleu, descrevendo o momento em que Ariadne olha o navio de Teseu se afastar. Na Idade Média, o mito de Ariadne é recordado por Dante, no cântico do Paraíso da Divina Comédia, fazendo referência à constelação que leva seu nome. No Renascimento italiano essa personagem ganha força, deixando se aparecer como a mulher que sofre por amor e passa a ser retratada como amante do deus Dionísio. Lourenço de Médici traz em seu canto o Trionfo di Bacco e Arianna (1490), exaltando os prazeres da comida, do sexo, da dança. Haendel compôs a sua Arianna in

Creta (1734). Em 1912, uma das mais famosas obras sobre a princesa, a ópera composta pelo

alemão Richard Strauss, com libreto de Hugo von Hoffmannsthal, Ariane à Naxos.

Ariadne e Dionísio continuam inspirando as artes e nomes como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Eugene Delacroix, Friedrich Nietzsche, Nikos Kazantzakis e Andy Warhol produziram suas obras com base nestes mitos. O amor de Ariadne e Dionísio também foi contado por meio dos poemas de Hilda Hilst, na quarta parte do livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, de 1974, nomeado Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De

Ariana para Dionísio.

1.2.3. “Que canto há de cantar o indefinível?”

Os deuses da mitologia grega, Dionísio e Apolo3, inspiraram o filósofo Friedrich Nietzsche, que passou a representar na literatura suas visões de mundo a partir das características essenciais de cada um. Dionísio e Apolo representam forças contrárias, como as antíteses presentes no mundo: o dia e a noite, a água e a terra, o ar e o fogo, a vida e a morte, a lucidez e a embriaguez. Os gregos moldaram o mundo com as artes e formas apolínea e dionisíaca, apresentando a arte em duplo caráter. Assim, o que Nietzsche busca é o reequilíbrio entre estas forças opostas, instintivas e vitais do homem. Os conceitos apolíneos e dionisíacos vão além da utopia do homem que cria a arte derivada da razão, mas são elementos revestidos de características racionais com o objetivo de esconder a passividade humana diante dos acontecimentos naturais.

3 Apolo é filho de Zeus e Leto, irmão gêmeo de Ártemis. É o Deus do sol e da luz, do arco e flecha, da música e da poesia, da verdade, da cura, perfeição, da beleza masculina, harmonia, equilíbrio e razão.

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A arte é amplamente discutida por Nietzsche, que buscou na estética os objetos para suas teorias, mas aqui nosso foco é seu pensamento a respeito desta dualidade. Para ele a arte é inerente à vida, seduz, dá sentido para continuar vivendo. É uma conexão entre as formas artísticas e a força e potência de vida, que na verdade é a vontade. Para Roberto Machado (2006, p.274) “o que possibilita essa transfiguração da vontade é a própria vontade”. Esta vontade potencializada é chamada por Nietzsche de embriaguez, que é o fundo do esforço de criação, a força motriz que une a arte e a vida.

A partir do pensamento de Nietzsche (1992, p.26), de que “a arte é a tarefa suprema e atividade propriamente metafísica desta vida” é possível afirmar que a realidade pode partir da imitação. A arte pode apresentar características de um ícone, mesmo que não seja este o objeto, mas uma representação sua. Neste sentido, é possível mesclar os sentidos de verdade e mentira, pois a verdade pode ser uma mentira. A arte não impõe a verdade como forma absoluta, como algumas manifestações mentirosas o fazem, e assim pode ser considerada como “tarefa suprema” da vida.

A arte e a vida são complementares, sendo a arte a manifestação da vida. Esta manifestação, conforme Nietzsche (1992), é apresentada de acordo com as características apolíneas e dionisíacas. Segundo ele a visão apolínea é destacada pela postura racional, harmônica, prudente, objetiva, pautada no real, apresentando assim características presentes nas artes plásticas e nos gêneros dramático e épico. Já a visão dionisíaca, conforme o filósofo, é marcada pelo emocional, pela autenticidade e vibração, sendo subjetiva e idealista, como o sexo, o sofrimento, a música e as produções líricas.

Na mitologia grega Apolo é o deus da razão, é lógico e Dionísio é o deus da loucura e do caos. De acordo com Roberto Machado (2006, p.242), “Apolo é a expressão, a representação, a imagem divina”. O autor complementa, dizendo que o deus é a representação do mundo das artes “Apolo é o deus da beleza; é o símbolo do mundo considerado como belo e ilusório e, por isso, do mundo da arte” (MACHADO, 2006, p.245). Neste sentido, o apolíneo é a individualização, é símbolo de luz, uma cortina estética para a forma perfeita e bela, que visa a perfeição e a beleza. O apolíneo cria a ilusão da realidade criada pela arte.

Apolo é o deus das artes “apenas enquanto ele é o deus das representações oníricas. Ele é o ‘resplandecente’ de modo total: em sua raiz mais profunda é o deus do sol e da luz, que se revela em seu brilho” (MACHADO, 2006, p.243). Desta forma, o apolíneo tem como características o brilho, a aparência, a fantasia. Como um deus de representação onírica (do sonho) provoca uma experiência ilusória que representa a verdade, mas é uma falsa realidade. Seguindo esta ideia, Machado diz que a luz é uma ilusão, que “os deuses e heróis épicos são

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miragens artísticas que tornam a vida desejável. Ao transformar em aparência não só o agradável, mas também o sombrio, o poeta épico dá à vida prazer e alegria” (MACHADO, 2006, p.244).

O aspecto fantasioso se faz presente no apolíneo, a luz cobre as sombras e o aparente é o belo.

Apolo é o brilhante, o resplandecente, o solar; ao mesmo tempo, conceber o mundo apolíneo como brilhante significa criar um tipo específico de proteção contra o sombrio, o tenebroso da vida: a proteção pela aparência. A bela aparência apolínea é uma ocultação. Os deuses e heróis apolíneos são aparências artísticas que tornam a vida desejável, encobrindo o sofrimento pela criação de uma ilusão. Essa ilusão é o princípio de individuação. Assim, o indivíduo, essa criação luminosa e aparente, é o modo apolíneo de triunfar do sofrimento pela ocultação de seus traços. (MACHADO, 2005, p.178)

Em oposição a ilusão apolínea há a presença dionisíaca, que visa unir a existência em torno da verdade, por mais dura que possa parecer. Traz a embriaguez dos limites, sendo um elo do ser humano com a realidade nua. Gilles Deleuze (2006, p.15) afirma que “só Dioniso, o artista criador, atinge a potência das metamorfoses que o faz devir, dando testemunho de uma vida que jorra; ele eleva a potência do falso a um grau que se efetua não mais na forma, porém na transformação”.

O dionisíaco é um choque de realidade que abraça a natureza caótica do homem. Dionísio é o deus da metamorfose, da loucura, da morte, do sexo, entre outras características. Ele é o deus da vida ao estar ligado à terra, ao florescer. Por estar ligado a vida e a morte, ele expressa a alegria e a dor de forma autêntica, sem as delimitações e serenidade do apolíneo. Também conhecido como deus-máscara, Dionísio assume o significado da metamorfose da vida, ao apresentar suas diversas faces “o terrível é a natureza, a verdade dionisíaca; [...] Dioniso, símbolo da natureza terrível, tenebrosa, monstruosa, não se dá diretamente, não se apresenta em pessoa, mas através de máscaras” (MACHADO, 2006, p.262).

O dionisíaco representa o abandono das medidas, da divisão e da consciência em si. É a existência humana em harmonia com o indivíduo e com a natureza, fazendo parte da totalidade, pois

em vez de medida, delimitação, calma, tranquilidade, serenidade apolíneas, o que se manifesta na experiência dionisíaca é a hybris, a desmesura, a desmedida. Do mesmo modo, em vez da consciência de si apolínea, o dionisíaco produz a desintegração do eu, a abolição da subjetividade, o entusiasmo, o enfeitiçamento, o abandono ao êxtase divino, à loucura mística do deus da possessão. (MACHADO, 2005, p.178)

Seguindo este pensamento, Machado ainda fala sobre o abandono dos padrões apolíneos no dionisíaco, afirmando que “impõe um comportamento marcado por um êxtase, um

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entusiasmo, um enfeitiçamento, um frenesi sexual, uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e cruel” (MACHADO, 2006, p.251). Estas características podem ser percebidas quando o autor cita Nietzsche ao afirmar que o dionisíaco é basicamente o culto das bacantes, ou seja, “o culto manifestado nos cortejos orgiásticos de mulheres que, em transe coletivo, dançando, cantando e tocando tamborins em honra de Dioniso, invadiram a Grécia vindas da Ásia, para fazer seu deus ser reconhecido, glorificado pelos gregos” (MACHADO, 2006, p.249).

No dionisíaco a música tem um caráter extasiante e não é simétrica ou harmônica com no apolíneo. Enquanto Dionísio representa o não figurado, Apolo é a representação da música harmoniosa. No dionisíaco a música não é racional, é feita por impulsos e livre, já no apolíneo a harmonia matemática faz da música uma das mais belas artes. A música é a arte que representa Dionísio. Temos assim, de um lado a palavra, o belo, o harmônico de Apolo e do outro a música, a dança e o êxtase de Dionísio. Desta forma, “essa “união conjugal”, essa “aliança fraterna” do dionisíaco e do apolíneo pode ser compreendida de modo mais explícito pelo estudo dos elementos constitutivos da tragédia: por um lado, a música, por outro, a cena e a palavra” (MACHADO, 2006, p.263).

A tragédia4 grega nasceu da música, com início nos ditirambos, que são os cantos e

danças em honra ao deus Dionísio. Os ditirambos são compostos por elementos alegres e tristes que narram a passagem do deus grego pelo mundo dos mortais, criando uma proximidade entre os homens e os seres divinos. Dionísio encontra a paixão após conhecer Ariadne, fazendo do ditirambo, também, uma conexão do selvagem com o entusiasmo e a alegria do amor, a demonstração do estado de êxtase sentido na saída do labirinto.

A canção de Ariadne adquire então todo o seu sentido: transmutação de Ariadne diante da aproximação de Dioniso, sendo Ariadne a anima que agora corresponde ao Espírito que diz sim. Dioniso acrescenta uma última estrofe à canção de Ariadne, que se torna ditirambo. (DELEUZE, 2006, p.12)

Este canto em coro é representado por atores que narram os acontecimentos do mundo mítico, tendo um herói que problematiza os valores da vida. Neste sentido, o culto dionisíaco deu origem à tragédia, e segundo Brandão (2002, p. 9), “ninguém pôde, até hoje, explicar a gênese do trágico, sem passar pelo elemento satírico”. O autor ainda complementa esta ideia a respeito do nascimento da tragédia, afirmando que

4 Do grego tragōidía (tragos: bode e oide: ode, canto) - canção dos bodes. Sátiros são seres metade homem, metade bode que acompanhavam Dionísio.

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teve origem nos solistas do ditirambo (coro) e que surgiu mediante um processo de transformação de peças satíricas (drama satírico), em cujo transcurso passou de assuntos menores, de fábulas curtas, para assuntos mais elevados, abandonando, com isso, o tom jocoso da linguagem. O drama satírico é, pois, anterior à tragédia. (Brandão 2002, p.128)

Por meio do coro, Dionísio deixa transparecer suas emoções, transfiguradas na beleza apolínea. “A tragédia, arte simbólica, arte em que a verdade é simbolizada, expressa a verdade dionisíaca através da aparência, da ilusão apolínea da beleza” (MACHADO, 2006, p.262). A interação entre o apolíneo e o dionisíaco são visíveis na tragédia, quando os heróis tentavam fazer justiça e acabavam morrendo no final, sem conseguir concluir sua missão. O apolíneo aparece no fantasioso, na encenação, nos poemas, trazendo forma à vida e ao transformá-la em arte a torna bela. O dionisíaco apresenta a realidade da vida, os reveses e sofrimentos, mas por meio de máscaras, ou seja, através da fantasia estética de Apolo.

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2. “ENQUANTO VIVE UM POETA O HOMEM ESTÁ VIVO”

“Um dia, ao começar a escrever um livro didático sobre literatura, tive que dar uma definição de poesia e embatuquei. Eu, que desde os dez anos de idade faço versos; eu, que tantas vezes sentira a poesia a passar em mim como uma corrente elétrica e afluir aos meus olhos sob a forma de misteriosas lágrimas de alegria: não soube no momento forjar já não digo uma definição racional dessas que, segundo a regra da lógica, devem convir a todo o definido e só ao definido, mas uma definição puramente empírica, artística, literária”. (Manuel Bandeira, 1958)

Em uma perspectiva canônica, a literatura é uma das sete artes tradicionais e contempla a poesia que transmite a realidade sob a perspectiva do autor e a leitura é feita de acordo com a identificação do leitor. A palavra poesia vem do latim poēsis.is, que deriva do conceito grego

poiēsis.eos, que significa ação de fazer algo ou criação. É conhecida como a arte de escrever

em versos, mas também encanto, graça e sentimento do belo. Neste sentido, a poesia é a manifestação da beleza ou da estética através da palavra, seja em versos ou prosas e que não se limita ao gênero literário.

O “Poeta é o doador de sentido” (BOSI, 1977, p.140), que traz em seus versos mais do que palavras: traz significados. A poesia passa a ser uma forma de expressão, um ato de liberdade e um instrumento de justiça. O poeta deixa de ser aquele de nomeia, como afirma Platão, e passa a ter um papel transformador no processo de libertação da sociedade.

O poema está frequentemente vinculado à poesia, mas esta relação não é de exclusividade, pois pode haver poesia em tudo, desde pequenos objetos até grandes tragédias e em diferentes vertentes artísticas além da literatura: música, cinema, teatro, artes plásticas ou fotografia. Pode haver poema sem poesia, sem o desejo de despertar sensações no leitor e pode haver poesia sem o poema, partindo da linguagem como atitude criativa, transfigurando a literatura para uma linguagem de sentimentos.

Mesmo quando aparece escrita, a poesia é oral, aproximando-se muitas vezes da música, como nos antigos hinos e odes. Faustino fala que a criação poética “trata antes de tudo de uma maneira de ser da literatura, ou seja, da arte da palavra, da arte de se exprimir percepções através de palavras, organizando estas em padrões lógicos, musicais e visuais” (FAUSTINO, 1977, p. 60). A interação dos versos entre sons, ritmos e palavras traduz novas descobertas das mensagens. Ela cria imagens a partir da transfiguração da realidade por meio do pensamento, do sentimento, da relação entre emissor e receptor, que será diferente em cada cultura. Leminski

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fala sobre esta relação entre quem produz e quem consome a poesia, pois para ele, entender poesia também é ser poeta:

Eu tenho uma teoria particular de que tem de existir tanta poesia no receptor quanto no emissor, certo? Você precisa ser tão poeta para entender o poema quanto para fazê-lo e que só poetas são capazes de entender poesia. Então, você pode ter passado sua vida inteira sem ter feito nenhum verso, nenhuma letra de música, nada! Mas, ao mesmo tempo, você diz assim: - ‘Há 30 anos que eu leio Vinícius de Moraes, João Cabral de Mello Neto, Mário Quintana e aquilo tudo me emociona e, nos meus momentos de crise, eu vou ali e’... – esse cara é poeta. (LEMINSKI, 2014)5

Os significados da poesia são atribuídos de acordo com a interpretação de mundo do receptor. No processo comunicativo a ressignificação cultural pode atribuir diferentes funções e sentidos para músicas, filmes, obras de arte e poesia. Durante o processo criativo a ressignificação atribui novos significados a eventos comuns.

Octavio Paz diz que “o poema não diz o que é e sim o que poderia ser” (PAZ, 1972, p. 38), preenchendo as lacunas, construindo e transfigurando a realidade. Através da linguagem a poesia consegue ultrapassar as normas cultas e práticas, rompendo os limites da língua que é escrita. Já sobre a produção poética como trabalho, Carlos Drummond de Andrade fala:

Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. (ANDRADE, 1944, p. 1344).

A poesia enquanto fazer é a essência da análise de Jean-Luc Nancy. Para ele a poesia diz mais o que a poesia quer dizer, é o primeiro fazer. Desta forma, é o acesso de sentido que se constrói conforme se faz a poesia, que antes de ser uma arte específica está em toda arte. Aí pode-se perceber a essência plural da poesia, que se estende a uma pluralidade de aplicações. Nancy afirma que a “poesia é, por essência, mais e outra coisa que a própria poesia. Ou ainda: a própria poesia pode muito bem ser encontrada ali onde sequer há poesia” (NANCY, 2013, p.416), como a pedra do caminho de Drummond virou poema, porém para muitos é motivo de tropeço.

Jean-Luc Nancy perturba a noção clássica que diferencia poema e verso, afirmando que “o poema ou o verso, dá na mesma: o poema é um todo de que cada parte é um poema, ou seja, um “fazer” consumado; e o verso é uma parte de um todo que ainda é um verso, ou seja, uma

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virada, uma revirada ou um reverso de sentido”. (NANCY, 2013, p.419) A poesia é comunicação, feita de versos, ou não, comumente abordando emoções no campo afetivo, sensorial ou conceitual, “é também por isso que “poesia” diz mais do que o que “poesia” quer dizer. E mais precisamente – ou melhor, exatamente: “poesia” diz o mais-que-dizer como tal e na medida em que estrutura o dizer”. (NANCY, 2013, p.419).

A resistência da poesia enquanto sentido, conforme o autor, busca reivindicar um papel na articulação das artes. Esta seria a representação da resistência da linguagem à sua infinitude. Portanto, a poesia “não tem exatamente um sentido, mas, antes, o sentido do acesso a um sentido a cada vez ausente e adiado. O sentido de “poesia” é um sentido sempre por fazer” (NANCY, 2013, p.416), como se a poesia fosse o sentido do que é apresentado como indefinível.

Este campo infinito de possibilidades da poesia nas artes abre espaço para diversas discussões. A poesia continua buscando sentidos em diferentes esferas, como no caso da literatura feminina, mostrando que a alteridade assume diversas posições e sentidos no campo literário e demais categorias artísticas, conforme apresentado a seguir. O envolvimento das mulheres no fazer artístico é significante, porém este espaço só foi conquistado após ultrapassar as barreiras impostas pela sociedade patriarcal, enfrentando desafios de superação relacionados ao gênero.

2.1. “COSTURO O INFINITO NO PEITO”

A arte-historiadora Linda Nochlin, em seu artigo “Por que não houve grandes artistas mulheres?” questiona o motivo da ausência de grandes mulheres artistas. Ela diz que:

Nunca houve grandes mulheres artistas, até onde sabemos, apesar de haver algumas interessantes e muito boas que ainda não foram suficientemente investigadas ou apreciadas, como não houve também nenhum grande pianista de jazz lituano ou um grande tenista esquimó, e não importa o quanto queríamos que tivesse existido. (NOCHLIN, 2016, p.5)

Isso ocorre porque geralmente a situação da mulher, e por consequente, da artista, na sociedade é diferente da do homem. Assim, a arte produzida por um grupo de mulheres “determinado a impulsionar uma consciência de grupo sobre a experiência feminina deve ser identificado como arte feminista – ou feminina”. (NOCHLIN, 2016, p.9)

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Nochlin afirma ainda que a culpa não está nos astros, nos hormônios, ou nos nossos ciclos menstruais, mas em “nossas instituições e em nossa educação, entendida como tudo o que acontece no momento que entramos nesse mundo cheio de significados, símbolos, signos e sinais” (NOCHLIN, 2016, p.9) e aponta John Stuart Mill que há mais de um século assegurou: “[...] tudo que é costumeiro parece natural. Sendo a sujeição das mulheres aos homens um costume universal, qualquer desvio desta norma naturalmente parece antinatural”. (NOCHLIN, 2016, p.12)

Historicamente as mulheres estiveram à sombra dos homens, inclusive nos aspectos artísticos e culturais. Porém, mesmo sob estas circunstâncias, vêm contribuindo para a literatura há muito tempo. O primeiro romance da história foi escrito por uma mulher: a japonesa Murasaki Shikibu escreveu o livro A história de Genji no século XI (entre 1001 e 1005)6. Assim como Murasaki Shikibu, muitas outras escritoras ganharam e continuam ganhando destaque na literatura mundial, como Jane Austen, Virginia Woolf, Sylvia Plath, Agatha Christie, Emily Dickinson, Simone de Beauvoir, Clarice Lispector, Cecília Meireles entre outras. “Apesar de um trânsito restrito, de uma linguagem bastante adequada ao que esperava do universo feminino, o século XIX é crivado de mulheres que escrevem muito” (HOLLANDA; HERKENHOFF, 2006, p. 46) mas que não tiveram o devido destaque.

A herança europeia, seja pela migração ou por valores políticos e culturais, passa a influenciar o Brasil, que lentamente estabelece mudanças de valores. As mulhes que tiveram acesso à escola, filhas da alta burguesia, já não aceitavam com tanta facilidade os modelos de educação. Até então o detentor do conhecimento e do discurso era o homem branco, de classe média alta, neste sentido todo e qualquer outro grupo era silenciado. Assim, cabia à estas mulheres as manifestações contrárias à sociedade falocêntrica.

A literatura passa neste momento a representar as vozes das mulheres, que até então era marginalizada. O cânone literário masculino não possibilitava esta representação e perspectiva social, pois se tratava de um terreno sexista retratado apenas por homens. Até o século XIX as mulheres brasileiras, em sua maioria, viviam sem ter acesso à cultura e isso era “natural”. O direito básico de ler e escrever era reservado aos homens e somente com a Lei de 15 de outubro de 1827 - que mandava criar escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do império – que houve autorização para abertura de escolas públicas femininas.

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As mulheres nesta época eram criadas para serem boas mães, donas de casa e obedecer ao marido, pois a sociedade patriarcal imperava e as mulheres não precisavam de estudos, inteligência ou cultura. Para as que quisessem estudar, segundo a pesquisadora Constância Lima Duarte, “até então as opções eram uns poucos conventos, que guardavam as meninas para o casamento, raras escolas particulares nas casas das professoras, ou o ensino individualizado, todos se ocupando apenas com as prendas domésticas” (DUARTE, 2003, p.153). Duarte afirma ainda que foram essas as primeiras e poucas mulheres que tiveram uma educação diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender o conhecimento às demais mulheres, abriram escolas, publicaram livros e enfrentaram a opinião de quem dizia que mulher não precisava ler nem escrever. Neste sentido, Zahidé Muzart (2003)aponta que:

[...] no século XIX, as mulheres que escreveram, que desejaram viver da pena, que desejaram ter uma profissão de escritoras, eram feministas, pois só o desejo de sair do fechamento doméstico já indicava uma cabeça pensante e um desejo de subversão. E eram ligadas à literatura. Então, na origem, a literatura feminina no Brasil esteve ligada sempre a um feminismo incipiente. (MUZART, 2003, p.267).

As mulheres iniciavam uma luta para conquistar espaço em diversos setores, inclusive na literatura. A potiguar Nísia Floresta Brasileira Augusta (pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto) foi uma educadora, escritora e poeta brasileira que rompeu os limites entre os espaços públicos e privados publicando textos em jornais da chamada "grande" imprensa. Seu primeiro livro, “intitulado Direitos das mulheres e injustiça dos homens, de 1832, é também o primeiro no Brasil a tratar do direito das mulheres à instrução e ao trabalho, e a exigir que elas fossem consideradas inteligentes e merecedoras de respeito” (DUARTE, 2003, p.153). Anos depois, em Porto Alegre, a jovem escritora Ana Eurídice Eufrosina Barandas publicou o livro: A

philosopha por amor (1845) com contos, versos e uma peça teatral e foi considerada a primeira

cronista do país. (DUARTE, 2003, p.155)

Duarte assinala ainda que “apenas em meados do século XIX começam a surgir os primeiros jornais dirigidos por mulheres. Os críticos chegam junto, considerando-a desde sempre uma imprensa secundária, inconsistente e supérflua, pois destinava-se ao segundo sexo”. (DUARTE, 2003, p.155) E assim seguiu até o início do século XX, quando houve uma movimentação organizada por mulheres “que clamam alto pelo direito ao voto, ao curso superior e à ampliação do campo de trabalho, pois queriam não apenas ser professoras, mas também trabalhar no comércio, nas repartições, nos hospitais e indústrias” (DUARTE, 2003, p.160).

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Embora haja forte engajamento das mulheres literatura do século XIX, não há grandes nomes de escritoras, conforme Heloisa Buarque de Hollanda e Paulo Herkenhoff:

Isso é razoavelmente compreensível, quando pensamos na condição socialmente muito limitada imposta às mulheres daquela época e na experiência muito disciplinar da performance do que se chamou “maternidade republicana”, isto é, os deveres cívicos da maternidade. Menos compreensível é o gargalo que o Modernismo trouxe para a literatura feminina. (HOLLANDA; HERKENHOFF, 2006, p. 50)

Durante muitos séculos a mulher ocupou o papel de musa inspiradora nas poesias, enquanto as vozes expressivas eram as masculinas. Sempre bela, recatada e do lar. Com poucas exceções, como Safo, as mulheres foram silenciadas. Porém, mesmo sem espaço, foram deixando de ser apenas o objeto da poesia. Eram mulheres em um universo de homens. Podemos citar a dupla jornada de Pagu e Ana Cristina César, que foram revolucionárias e ainda assim musas inspiradoras.

Em 1915 José Veríssimo escreveu a História da Literatura Brasileira e nela não havia espaço para mulheres. Após muitas lutas e mudanças o trabalho das mulheres está longe de estar concluído. Na Semana de 22 pouco espaço dedica à literatura feminina. Cecília Meireles que já havia publicado Espectros (1919) e teve forte influência modernista, ficou de fora da Semana de Arte Moderna. No livro História Concisa da Literatura Brasileira (1994), o autor Alfredo Bosi menciona poucas poetas, entre elas Francisca Júlia, Gilka Machado, Auta de Sousa, Narcisa Amália e Cecília Meireles. Destas, somente Francisca Júlia ganhou biografia e algum destaque.

Italo Moriconi organizou o livro Os cem melhores poemas brasileiros do século, publicado pela editora Objetiva, em 2001, e nele selecionou os que considerava os 100 melhores poemas brasileiros do século XX. Destes, apenas 19 foram escritos por mulheres e o restante por homens. As autoras também estão em menor proporção, sendo 12, enquanto havia poemas de 47 homens. Entre os autores com poemas repetidos no livro Carlos Drummond de Andrade lidera com nove poemas, seguido de Manuel Bandeira com seis, João Cabral de Melo Neto com cinco, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes ambos com quatro poemas publicados. Já entre as escritoras, Cecília Meireles se iguala aos homens com seis poemas publicados. As autoras com poemas repetidos são Adélia Prado, Ana Cristina Cesar e Hilda Hilst, com dois poemas publicados cada uma. As demais escritoras tiveram apenas um poema no livro.

Na Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP comemorou-se o fato de ter uma mulher homenageada em 2018. A FLIP acontece anualmente e, desde a criação em 2003, esta foi a terceira mulher homenageada: Clarice Lispector em 2005, Ana Cristina César em 2016 e

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Hilda Hilst em 20187. Estes dados reforçam que o cânone literário brasileiro é restrito aos

homens.

Este apagamento na literatura é percebido e há resistência. Na década de 1960, segundo a historiadora Joan Scott (1992, p. 64), “[...] as ativistas feministas reivindicavam uma história que estabelecesse heroínas, prova da atuação das mulheres, e também explicações sobre a opressão e inspiração para a ação”. A Professora Andréa Senra Coutinho aponta que a revisão da condição da mulher é motivada pelos crescentes estudos sobre o movimento feminista e o início da luta pelos direitos da mulher. Os costumes, a sexualidade, o corpo e as questões de gênero têm se tornado objetos de pesquisa, inclusive na produção artística realizada por mulheres, que:

Passaram, então, a formar um grupo coeso de pensamento e produção, direcionando suas obras para as questões do feminino e do feminismo, produzindo imagens e representações do universo singular da mulher pelo ponto de vista feminino, criando uma arte feita por e a propósito de mulheres. Visto que, até então, de maneira geral, a mulher ocupava o lugar de modelo na obra de arte, daquela a ser representada pelos artistas homens, pronta para ser apreciada e consumida pelo olhar masculino. (COUTINHO, 2007, p.2)

Assim, há a necessidade de mudança nos padrões que reforçam a imagem de submissão da mulher e no enfoque dado à sua representação social e ideológica dentro da produção literária feminina. As mulheres estão cientes do lugar que ocupam, como portadoras de significados sob a perspectiva masculina, pois “se atrevem a levantar críticas, ironizando ou delatando posturas, propondo resistências através de ações e comportamentos onde suas próprias experiências são apresentadas em inúmeras propostas de trabalhos artísticos”. (COUTINHO, 2007)

Nelly Novaes Coelho (1991) afirma que o cenário da literatura feminina no Brasil teve força nas décadas de 30 e 40 com enfoque social e ético. Nos anos seguintes a preocupação era em relação ao rompimento do modelo patriarcal e a partir dos anos 60 se procurava multiplicar o que foi criado anteriormente. A autora afirma que:

Já não há dúvida de que, na base das mudanças que dia a dia alteram o mundo herdado do passado, está a gradativa e crescente mudança dos conceitos que definiam, nos planos social, econômico e político, as figuras da Mulher, da Criança e das chamadas "raças inferiores". Nessa ordem de ideias, insere-se o chamado boom da Literatura Infantil a partir de meados dos anos 70; bem como a tímida produção literária ou crítica da "negritude" (e também a redescoberta da nossa "mitologia indígena"), que se tem manifestado, entre nós. E, principalmente, se compreende a força com que a Literatura Feminina se vem impondo à crítica, como um fenômeno especial a exigir a atenção; mesmo a despeito das muitas vozes (inclusive de muitas escritoras...) que

7 http://flip.org.br/a-flip/homenageados

Referências

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