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Hipercinema : elementos para uma teoria formalista do cinema de animação hiperrealista

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

DOUTORADO

Hipercinema: elementos para uma teoria formalista do

cinema de animação hiperrealista

ALBERTO LUCENA BARBOSA JÚNIOR

Campinas

2012

(2)

ALBERTO LUCENA BARBOSA JÚNIOR

Hipercinema: elementos para uma teoria formalista do

cinema de animação hiperrealista

Tese apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Multimeios do

Instituto de Artes da UNICAMP

para obtenção do Título de Doutor

em Multimeios

Orientador: Prof. Dr. Antonio

Fernando da Conceição Passos

Co-Orientador: Prof. Dr. Marcello

Giovani Tassara

Campinas

2012

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(4)
(5)

RESUMO

A pesquisa almeja formular uma teoria estética para o cinema de animação

hiperrealista. Após completar meio século de existência, a computação gráfica finalmente alcançou um estágio tecnológico no qual o artista dispõe de ferramentas poderosas e flexíveis o suficiente para enfim encarar o desafio de criar filmes com imagens realistas sintéticas absolutamente convincentes. Impõe-se, entretanto, a necessidade de

fundamentação estética para fornecer o apoio artístico capaz de colaborar para o êxito expressivo desse novo cinema, tanto no trabalho de produção quanto na avaliação crítica. Para tanto o estudo empreende uma investigação do desenvolvimento da arte desde sua origem a fim de situar, seja na arte fixa ou na arte móvel, o lugar da forma realista e

verificar as exigências formais que transformam uma imagem de alto nível icônico em obra de arte.

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ABSTRACT

The research aims to formulate an aesthetic theory for the hyperrealist animated film. After completing half a century, computer graphics has finally reached a technology stage in which the artist has powerful and flexible tools to finally face the challenge of creating films with realistic synthetic images absolutely convincing. It must be, however, the need for aesthetic reasons to provide artistic support able to contribute to the expressive success of this new cinema, both in production work and in critical evaluation. For that, the study undertakes an investigation of the development of art from its origin in order to place, whether in still art or moving one, the place of realistic form and check the formal requirements that make a high- level iconic picture into the work of art .

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

CAPÍTULO I 11

Modos de representação (fundamentação teórica – problematização) 1. A representação visual realista e a natureza da arte 11

1.1. A razão em xeque: definição e crítica da arte 13

1.1.1. A definição da arte 24

1.1.2. A crítica da arte 49

1.1.3. A ecologia cultural 177

1.1.4. O fator geométrico 221

CAPÍTULO II 285

Modos de representação (arte fixa e arte móvel – o projeto da imagem artística) 2. Uma história dos modos de representação na arte e no cinema 285

2.1. A evolução da forma e do espaço na conquista visual da realidade sensível 286

2.2. Ilusão visual e as teorias formalista e realista no cinema 329

2.3. A ilusão da vida na animação 365

CAPÍTULO III 415

A elaboração do modelo (estudos de caso) 3. Pintura clássica, procedimentos de modelagem e animação facial, filme de animação digital 415

(8)

3.2. Modelagem e animação facial 424

3.3. As aventuras de Tintin – o filme 438

CAPÍTULO IV 449

Hipercinema – a encenação desenhada (formulação teórica) 4. Arte e realidade: em direção a uma teoria do hiperrealismo no cinema de animação 449

4.1. Espaço gráfico e espaço narrativo: decoração e ilustração na animação hiperrealista 471

4.2. O ator sintético: o modelo de hiperrealista para a encenação dramática 479

4.3. Hipercinema: o cinema hiperrealista 487

CONCLUSÃO 491

REFERÊNCIAS 501

(9)

INTRODUÇÃO

Esta tese é um estudo de teoria estética. Faz a investigação, no âmbito da arte (belas artes), de referências para fundamentar uma teoria para a representação da forma realista (ilusionista, verossimilhante) na animação feita com recursos de computação gráfica tridimensional (3D).

Após completar meio século de existência, a computação gráfica finalmente alcançou um estágio tecnológico no qual o artista dispõe de ferramentas poderosas e flexíveis o suficiente para a exploração plástica e mecânica de um universo expressivo até então intocado pelo cinema de animação, habilitando-o à criação de filmes com imagens realistas sintéticas absolutamente convincentes. Antes disso, os desafios enormes, no campo da técnica, impunham sérios limites à animação tradicional de lançar-se numa esfera tão complexa da criação cinematográfica, ao ponto de estabelecerem-se regras não escritas definindo os limites de representação do personagem animado – sob o risco de cair, acertadamente, num arremedo de encenação pseudorealista. Afinal, a forma gráfica estilizada do desenho animado conspirava para minar qualquer tentativa nessa direção. O advento da animação digital 3D removeu as barreiras tecnológicas que impediam o animador de aventurar-se no reino da representação realista.

Entretanto, como seria de esperar, com a posse das novas e poderosas ferramentas digitais, os artistas animadores se veem diante de um novo desafio, agora não mais de ordem tecnológica, mas expressiva: qual a vantagem de simplesmente reproduzir a natureza?, o que a arte da animação teria a ganhar com isso?, será que o poder de

representação visual ilimitado alcançado pela animação (anteriormente um privilégio da pintura) estaria fadado à concepção de seres e ambientes fantásticos ou à obtenção de efeitos especiais perigosos para atores de carne e osso?, será que restaria à animação de ambição realista, que almeja a criação de peças cinematográficas apreciadas com o mesmo interesse (e respeito) dos filmes com atores reais, contentar-se em permanecer como suporte para a produção de cenas específicas do cinema de imagens reais?

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Na verdade a animação tem agora não apenas a condição de representar em pé de igualdade (mesmo nível icônico) a exploração da imagem realista numa competição direta com o cinema fotografado tradicional, mas encontra-se numa situação privilegiada para inaugurar fronteiras expressivas completamente inovadoras no campo da estética cinematográfica, com um repertório visual que não seja tão simples como o de antes da tecnologia digital, nem tampouco uma mera cópia do mundo natural proporcionada pelos recursos informáticos de simulação plástica e mecânica. O cinema espetáculo dos efeitos especiais extraordinários (resultado de trucagens que se apóiam sobremaneira no uso da animação digital) não chega a caracterizar uma estética renovadora. No mais, apenas se vale dos novos recursos para reafirmar uma característica intrínseca ao cinema, que diz respeito a sua capacidade de convencimento da realidade da coisa mostrada, por mais inverossímil que seja – e isso não é suficiente, por si mesmo, para estabelecer uma condição renovadora da apreciação estética. Entretanto, a tecnologia digital coloca à disposição dos artistas animadores as ferramentas para a elaboração visual e mecânica capaz de engendrar um espaço narrativo completamente original – já não mais possível ao cinema de atores reais e muito menos ao desenho animado tradicional. A esse respeito, o conhecido animador Alexandre Alexeieff (inventor de uma original técnica tridimensional para a animação analógica, conhecida como tela de pinos) já havia dito, em 1973, que ―o repertório do cinema baseado em fotografia é limitado e encontra-se próximo da

exaustão‖.1

Temos evidências mais do que suficientes para conjecturar que pertence, portanto, ao universo da animação, o privilégio de vir a propor os novos paradigmas da representação para a imagem em movimento.

Qual a direção a seguir a fim de propor uma base sólida para bem sucedidas produções artísticas e avaliações críticas que possam contribuir para viabilizar esse potencial? A solução encontra-se no reconhecimento de necessária abordagem multidisciplinar. Para tanto o estudo sincronizou o conhecimento das artes visuais em torno da noção de belas artes, a criação de imagens representacionais com fim poético, estabelecendo a relação artística e intelectual entre a arte fixa da tradição clássica ocidental e a arte móvel do

1 ALEXEIEFF, Ale xandre. ― Pre face‖, e m Cartoons: one hundred years of cinema animation (Giannalberto

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cinema fotografado e do desenho animado, cujo diálogo parecia não existir ou mesmo não ser possível devido as distâncias estilísticas e as diferenças de meios expressivos. Mas a tecnologia de computação gráfica aproximou definitivamente esses mundos artísticos consanguíneos que pareciam irremediavelmente separados. E o fez pela retomada da obsessão pela representação realista, que está na base da origem da arte como concebida pela civilização ocidental. O próprio computador é fruto de uma soma de saberes dos diversos campos da ciência e da arte. Foi a integração desses conhecimentos que resultou nessa conquista formidável. Se esse instrumento poderoso serve de referência, não resta dúvida que se encontra na integração de conhecimentos artísticos, cindidos pela Era

Industrial no rastro dos movimentos românticos de vanguarda, a geração dos saberes para a solução dos problemas expressivos que se apresentam para a animação digital realista. Assim, essa ginástica intelectual envolve a análise da dialética interna ao cinema de animação e sua relação com o universo das artes plásticas e do cinema fotografado, como condição para chegar ao cerne do entendimento das questões técnicas e estilísticas dos modos de representação figurativos e sua nova abordagem digital. Mas um fator central para o argumento que dá suporte a tese defendida neste estudo, e que ajudará nas respostas dos problemas suscitados pela pesquisa, é baseado no poder por trás de todo trabalho de produção na arte e na animação: a criação da imagem de ma neira completamente artificial, com total controle sobre os componentes fundamentais da linguagem visual.

Como ponto de partida para a investigação, todo o problema poderia ser resumido a uma breve indagação: é necessária (e desejável) a formulação de uma teoria para o filme de animação hiperrealista? Minha resposta é sim. Com base nessa crença, uma hipótese é formulada em torno da ideia central da arte poética como criação artificial ilusionista (imitação), a partir da integração dos conceitos clássicos da arte com a tecnologia de computação gráfica mais recente, que finalmente oferece a flexibilidade para a ampla manipulação dos elementos básicos da sintaxe visual.

A hipótese sustenta que é na imitação da natureza onde reside a força da arte, comprovada pelo papel central que tal fator psicológico exerce na percepção e cognição humana – atingindo seu apogeu com a invenção da fotografia. Mas a fotografia vulgariza a imagem por seu procedimento de registro automático. Com isso percebe-se o valor da

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construção artificial na aquisição do status artístico – que tem sido buscado tanto na fotografia estática como na fotografia em movimento que desejam ser vistas como arte. Mas tanto a dependência rigorosa do objeto fotografado, quanto a pouca liberdade de manipulação dos elementos visuais, limitam o âmbito expressivo da imagem de base fotográfica. Por outro lado, a pintura e a animação eram vítimas de limitações técnicas como também de entraves ideológicos oriundos do movimento modernista.

A tecnologia digital veio para ajudar a superar esses dois empecilhos. Dessa maneira proporcionou as condições para a retomada de uma evolução artística que foi interrompida na segunda metade do século XIX, e que encontra justamente no cinema de animação digital hiperrealista o meio expressivo apropriado para dar sequência à investigação representacional da imagem de alto nível icônico. Impõe-se, entretanto, a necessidade de fundamentação estética para fornecer o apoio artístico capaz de colaborar para o êxito expressivo desse novo cinema. Para tanto o estudo empreende uma investigação do desenvolvimento da arte desde sua origem a fim de situar, seja na arte fixa ou na arte móvel, o lugar da forma realista e verificar as exigências formais que transformam uma imagem de alto nível icônico em obra de arte.

Para esse emergente cinema de animação hiperrealista eu dei o nome de hipercinema, caracterizando uma imagem realista criada artificialmente cujo espaço expressivo ocupa uma dimensão intermediária entre o mundo da animação tradicional e o mundo do cinema fotografado. A definição oferecida estabelece um quadro teórico que apresenta em termos gerais o âmbito estético do hipercinema, ao mesmo tempo em que proporciona diretrizes para sua elaboração prática, pois a intenção é contribuir tanto para o pensamento crítico como também ser útil como ferramenta intelectual para a atividade produtiva. O quadro conceitual trata da definição visual e da encenação, com a descrição, de um ponto de vista formal, do sistema convencional que melhor atende a formulação do hipercinema como uma expressão cinematográfica original.

O problema da expressão visual é abordado de maneira precisa. Mesmo a linguagem plástica não estando subordinada a nenhuma lei evidente, a sintaxe visual oferece um tal nível de domínio e interação com seus elementos, uma tal lógica na equivalência entre configuração formal e conteúdo expressivo, que podemos aplicar um pensamento

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sistemático e chegar a uma análise precisa daquilo que constitui os componentes do design na animação; em última instância, os responsáveis pela encenação do personagem animado. É justamente essa possibilidade de controle que permite a imagem produzida de maneira completamente artificial ir desde um nível de comunicação puramente funcional até os mais elevados domínios da expressão artística. A investigação, em acordo com os princípios clássicos da arte, chama atenção para a situação da obra na qual se reconhece o conteúdo artístico na forma, quando uma síntese é alcançada com a forma inteira resultante a partir do efeito cumulativo da combinação dos elementos plásticos, o nível de controle e a flexibilidade na manipulação dessas unidades visuais básicas e sua relação formal e compositiva com o significado pretendido.

Como o objetivo é produzir uma definição sistemática, essa abordagem formalista da arte é também o recurso metodológico apropriado para a comprovação da hipótese

apresentada. Esse procedimento é o mais objetivo, além de ser próprio do campo artístico. É o que mais se aproxima do rigor de uma abordage m científica (verificável,

demonstrável), podendo contar com a flexibilidade quanto a aplicação de tratamento quantitativo como qualitativo da informação, pois a abordagem formal tem a vantagem de lidar dialeticamente com ambas as ações operacional e expre ssiva da arte. Afinal, a arte se fundamenta na técnica, mas a arte também opera uma linguagem.

O melhor exemplo da abordagem formalista como recurso investigativo representa o ponto mais alto na história da arte no que diz respeito à análise estilística, q uando Heinrich Wolfflin publicou seus estudos sobre a arte renascentista clássica e o barroco – os quais ficaram conhecidos como os princípios fundamentais da arte.

Também no campo cinematográfico foi essa abordagem que legou ao cinema sua verdadeira estrutura sintática, estando por trás do sucesso da narrativa cinematográfica, que efetivamente caracterizou o cinema como uma forma de arte. A abordagem formalista, defendida por autores como Rudolf Arnheim e Sergei Eisenstein, chega, inclusive, a nomear uma das duas principais teorias do cinema.

Por fim, na própria área da animação, foi através de uma abordagem formal rigorosa, com a intenção de dominar a expressão dramática de maneira confiável e de fácil aplicação à personagens desenhados, que o Estúdio Disney sistematizou os princípios fundamentais

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da animação, cuja descrição teórica foi formulada pelos veteranos animadores Frank Thomas e Ollie Johnston.

Esse direcionamento objetivo na condução deste estudo se mostrou decisivo para enfrentar dogmas irracionais arraigados no campo da arte, de orientação romântica modernista, mantidos como verdade supracientífica. Resultado de uma onda relativista e anti-racional que alimentou o movimento vanguardista no começo do século XX, essa postura levou a uma radicalização do discurso sobre arte que se manteve ao longo do século e chegou ao presente, embora menos intensa, com a manutenção de controvérsias e mal-entendidos que continuam a emperrar o avanço das investigações sobre arte. Esse pensamento, de cunho ideológico, que fazia cerrada oposição à representação ilusionista nas artes plásticas, exigiu grande esforço investigativo a fim de desfazer toda a confusão e o persistente engano que promoveu – acabando por afetar o cinema de animação. Somente esclarecendo o completo equívoco dessas ideias seria possível proceder à tentativa de elaboração de uma teoria estética para a animação hiperrealista.

Entre tanta desorientação se destaca uma defesa exclusivista da sensibilidade, em nome da qual se achou de restringir o espectro expressivo na arte, outorgando todo o poder à matéria plástica, ao purismo da forma, estabelecendo na arte o velho e falso dualismo de Descartes em relação à razão, e dessa maneira concluindo pela negação do aspecto narrativo na criação plástica, da descrição realista das figuras, da referência visual ao mundo exterior, a renegação do uso e do valor da perspectiva, para culminar com o total desprezo pelo estudo do sistema de conhecimento da tradição da arte – de comprovada eficiência na técnica e na expressão da imagem artística. Na apresentação do seu livro Fundamentos para o estudo da pintura, publicado em 1979, o artista, restaurador e professor Edson Motta, escreveu: ―Não é fácil falar sobre os procedimentos artísticos em nossos dias, quando os mesmos são contestados em nome de uma falsa compreensão de sensibilidade. Essa negação decorre do fato de que muitos artistas só admitem

espontaneidade e intuição como decorrência da ignorância dos valores que servem de veículos à realização da obra de arte‖.2

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No campo da animação, mesmo em publicações recentes, como o livro Understanding animation, de 1998, escrito pelo professor e teórico Paul Wells, insiste-se em afirmações improcedentes como a ―inata‖ tendência anti-realista da animação, alegando a

artificialidade de seu processo produtivo, quando aí encontra-se justamente o poder da formulação visual ilimitada.3 É o tipo de afirmação que apenas recicla a postura relativista de um século atrás, para atender os mesmos interesses de indivíduos e grupos que dese jam viabilizar suas ideias à custa da desconsideração dos fatos e conhecimentos comprovados. Nisso eles fazem a confusão de misturar declarações programáticas, poéticas, com discurso teórico, estético, como se fossem a mesma coisa, colaborando para a falta de discernimento sobre o que é conhecimento ou o que não passa de conjectura, ou mesmo o que não vai além da mera opinião.

Desfazer o intrincado novelo retórico no qual se transformou esse discurso que comprometeu o entendimento, impediu a discussão e a crítica sensatas, e interrompeu o pleno desenvolvimento expressivo da arte e da animação, requereu o estudo de fontes primárias quase esquecidas, de cunho particularmente acadêmico, envolvendo um trabalho de cerrada argumentação apoiada em fatos e demonstrações lógicas e empíricas, que compreende todo o primeiro capítulo e equivale a metade do volume da tese. Reconheço que essa parte da investigação, necessariamente erudita, sendo a única maneira de

esclarecer esse assunto controverso, não é um texto fácil ou agradável para os artistas mais ocupados com os problemas práticos da produção cotidiana. Eles até poderiam pular essa parte e ir direto para o Capítulo II, que trata de questões mais próximas das preocupações criativas. No entanto eu recomendo o esforço de ler o texto desde o início, pois aí se tem acesso a um tipo de informação e a uma abordagem crítica sobre tópicos importantes do pensamento sobre arte, cujo não conhecimento contribuiu para a proliferação de opiniões sem valor, pois não receberam a oposição adequada e encontraram acolhida no ambiente marcadamente ideológico do período, contando com ampla disseminação e implicações negativas para a discussão e a prática da arte – em que o esvaziamento das academias de belas artes foi um sintoma evidente.

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O texto ficou assim organizado: no Capítulo I é feita a problematização da abordagem da arte através da análise crítica de quatro grandes linhas de investigação, avaliando ideias, obras e autores representativos, estabelecendo a fundamentação teórica consistente que desata o nó que enredou a crítica de arte e abre o caminho que permite discutir as questões próprias da arte e da animação, para se articular a teoria que dá suporte à animação

hiperrealista. Esse capítulo é dividido em quatro tópicos. No primeiro, intitulado A definição da arte, como o nome sugere, começa pela explicação da noção de arte, indo à sua origem para recuperar os conceitos originais que explicam a concepção da arte como representação visual poética. O segundo tópico, A crítica da arte, faz o exame das metodologias de investigação artística, tanto para verificar sua validade como recurso crítico, como as consequências de seu emprego sem as devidas considerações quanto ao seu alcance teórico e rigor epistemológico – caso da estética, em que mostrei seu confuso desenvolvimento. A ecologia cultural se ocupa em revelar os danos para arte da condução ideológica do debate artístico. No último tópico, O fator geométrico, acompanhamos o desenvolvimento acadêmico da arte, seu relacionamento frutuoso com a ciência durante o período da tradição clássica, e por fim a demonstração empírica do equívoco que envolveu a negação do valor e da posição central para a arte da forma realista ao recorrer-se ao discurso pseudocientífico sobre geometria. Além d e evidenciar todo o engano do discurso que procurou negar a posição central da abordagem clássica artificial e a imagem artística resultante, esse estudo inicial recuperou uma série de conceitos sem os quais não é possível discutir apropriadamente sobre arte, facilitando o entendimento das ideias apresentadas nos demais capítulos por se encontrar no cerne da elaboração da imagem que almeja ser

apreciada como obra de arte.

O Capítulo II tratou exatamente de mostrar como esses conceitos ajudaram na elaboração de imagens ilusionistas de efetivo valor artístico. Num breve relato histórico, dividido em três partes, podemos acompanhar o desenvolvimento da representação da forma artística na arte, no cinema e na animação. A animação, como filme feito de desenhos, partilha de características da arte fixa da pintura e da arte móvel do cinema, e aqui se avalia as teorias dessas artes para encontrar pontos de interesse que deem sustentação à hipótese que a pesquisa busca elaborar para a animação hiperrealista. No

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Capítulo III são apresentados os estudos de caso para verificar, nas obras de arte mesma (uma pintura e um filme de animação) e nos procedimentos empregados na sua elaboração (modelagem e animação facial), os fatores artísticos envolvidos na operação da arte – tanto na seção técnica quanto na seção expressiva – que definem um modelo viável para a

estética do cinema de animação hiperrealista. Enfim, no Capítulo IV, é esboçada uma teoria estética para esse novo tipo de filme de animação, apresentada como uma hipótese geral, aberta à melhoria ou à refutação, como uma contribuição crítica para a afirmação do cinema de animação hiperrealista, o hipercinema.

O estudo aponta para a necessária convergência dos conhecimentos clássicos da arte com a tecnologia de computação gráfica 3D, sob o comando do artista animador com a devida educação teórica e prática, para assim ser capaz de elaborar obras visuais de acordo com as orientações conceituais que atendam aos requisitos estéticos demandados pelo tipo de filme de animação que caracteriza o hipercinema.

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CAPÍTULO I

Modos de representação (fundamentação teórica – problematização)

1. A representação visual realista e a natureza da arte

Um estudo que almeje resultados consequentes na prática artística e no pensamento sobre arte deve, necessariamente, levar em consideração a relação dialética (no sentido mesmo de diálogo – desde que lógico, crítico, não contraditório, vital, considerado em seu máximo rigor, exatidão e objetividade) entre técnica e estética.

Se esta afirmação já desfrutasse de valor em si mesma, no contexto do início do século XXI ela é simplesmente fundamental para a arte.

A urgência desta declaração justifica-se pela evidência de três fatores históricos determinantes: ultrapassamos a fase de uma história ou uma civilização ocidental para entrarmos numa história e numa civilização mundial igualmente ―ocidentalizada‖;4

a informação de qualidade (o conhecimento) assumiu a condição de principal insumo na economia produtiva pós- industrial (a sociedade, capitalista, da imagem); por fim, contamos com a emergência de recursos técnicos digitais para se lidar com a informação (de qualquer tipo) num alto grau de eficiência – e em acordo com a exigência e o ritmo da demanda ocidental.

Essa transformação vem afetando a sociedade em geral com uma intensidade nunca registrada. Entretanto, possivelmente seja no campo da arte que a repercussão de tais acontecimentos tenha um impacto ainda mais considerável.

Isso porque, mesmo que o significado do conhecimento tenha sofrido uma mudança vertiginosa para a sociedade como um todo, afetando a natureza e o valor desse

conhecimento nos mais variados setores, na arte do século XX imperou um discurso radical contra a própria necessidade de conhecimento! Conhecimento especificamente artístico.

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Num inequívoco acesso de irracionalidade, que se queria crítica (!), assistiu-se a um ataque furioso, em bloco, ao conjunto de conhecimentos clássicos (por se acreditar, entre outros enganos, estarem associados ideologicamente à razão e a dominação) responsáveis pela rica tradição da arte ocidental (o que quer dizer, da própria noção de arte). Isso pode ser verificado tanto nos textos de teóricos da arte que proliferaram no século passado como nos manifestos e declarações dos artistas à frente de movimentos e tendências estéticas diversas – invariavelmente desaguando na defesa de uma ―livre expressão‖, com isso querendo significar uma autonomia total e absoluta do sujeito criador (!).

Na esfera do discurso, tal opção resultou numa defesa apaixonada da subjetividade (leia-se, relativismo) como princípio norteador da abordagem da arte. Esse partido, porém, impossibilitou uma discussão estética sensata, e como consequência prática acabou por estimular o desenvolvimento de uma vanguarda que, por não contar com uma base conceitual sólida, rapidamente viu-se enredada na sua própria ciranda retórica,

precocemente esgotada em seu radicalismo formal e escassamente convincente como obra de arte.

Não foi por acaso que a vertente figurativa da arte – banida da linha principal da chamada pintura moderna nos prematuros relatos surgidos em meados do século XX5 – encontrou na área mais pragmática do design (como ilustração gráfica) um ambiente receptivo ao seu desenvolvimento e sucesso continuado.

Aparentemente todos se entregaram felizes e sem culpa a uma abdicação irrefletida de suas prerrogativas críticas, com consequências danosas para o pensamento e a produção artística – que se estende até o presente.

Esse momento coincide com a exposição sem precedentes experimentada pela animação, toda ela resultada do formidável impacto gerado pela aplicação de recursos técnicos de computação gráfica (não custa lembrar, uma conquista assentada na tradição

5

REA D, Herbert. História da pintura moderna; São Paulo, Círculo do Livro, s/d, p. 5 e 6. O autor justifica a e xclusão dos representantes de tendências realistas, usando como critério de modern idade a intenção, citando Paul Klee, ―não de refletir o v isível, mas de fazer v isível‖, o que por si já d iz bastante das ambiguidades modernistas.

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clássica da ciência e da arte)6. Todavia, mesmo contando com o arsenal de tecnologia digital já disponível, a animação segue a espera de formulações conceituais que lhe proporcione o apoio intelectual necessário a uma exploração esteticamente consistente de todo seu potencial expressivo pelo uso dos novos meios.

Tal deficiência conceitual é oriunda, em grande medida, do desajuste pelo qual passou o debate estético no século XX, cujo vácuo intelectual inibiu um desenvolvimento

sistemático do pensamente artístico. A outra parcela de responsabilidade fica por conta da própria evolução tecnológica digital, que só agora começa a oferecer ferramentas que favorecem a expressão visual autêntica do artista – sua assinatura plástica pessoal, direta.

É apenas com a conjunção de uma técnica e uma estética, devidamente equacionadas e assimiladas material/culturalmente7, que podemos esperar por produções artísticas de valor verdadeiramente representativas de um tempo e um lugar históricos – quando então

haveremos de falar de um novo estilo de arte.

1.1. A razão em xeque: definição e crítica da arte

O problema do irracionalismo no discurso crítico da chamada arte moderna está, entre outros motivos, não em discutir questões a respeito do mundo, da existência humana, da moral, da linguagem, da comunicação, etc., mas em querer conduzir essa discussão dentro do domínio da arte embora se valendo de conceitos e recursos metodológicos exteriores ao universo artístico – sem falar na inconsistência das opiniões manifestadas. Como diz Erwin Panofsky, tais procedimentos até podem evidenciar uma questão de história da arte, mas não uma afirmação do âmbito da história da arte8. O mesmo raciocínio aplica-se quando o interesse é voltado para a formulação e sistematização de questões artísticas com o objetivo de elaborar uma teoria da arte ou simplesmente problematizá- la.

6

De monstrado extensamente no livro Arte da animação: técnica e estética através da história; São Paulo, Senac-SP, 2001, te xto cuja origem é a pesquisa de mestrado do autor.

7 Ide m.

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Não se trata de pleitear aqui a defesa de uma autonomia xenófoba da arte frente aos demais campos da atividade e do conhecimento humano – até porque a arte tem como uma de suas características definidoras uma abertura sem igual ao tráfego de informação das mais diversas procedências do saber organizado e da cultura em geral –, mas

essencialmente chamar atenção para a necessidade fundamental de clareza e objetividade (com a evidência do interesse artístico), cuja ausência tem levado a um desgaste não só das idéias em debate, mas também ocasionado efeitos danosos no próprio corpo de

conhecimentos da arte.

Trata-se, pois, de uma questão de foco e método (em todos os sentidos), problema central nas ocupações da arte – como de resto em todas as esferas de ação e investigação que procuram evitar o relativismo epistêmico, cognitivo e cultural.

O paradoxal nessa situação é que isso veio acontecer justamente quando a arte, depois de séculos de aperfeiçoamento, desenvolvera metodologias e técnicas eficientes quer para levar a cabo o trabalho de criação/produção artística propriamente dito, quer para pensar essa produção em sua especificidade e na sua relação com o mundo.9

Não foi fácil para a arte alcançar tal independência metodológica, haja vista sua natureza expressiva aberta a toda sorte de manipulação/interpretação. Foi, portanto, sua mais importante conquista, exatamente o que lhe outorgou o estatuto de disciplina autônoma, respeitável.

Foi esse mesmo desenvolvimento de métodos próprios para o trabalho de investigação que levou a ciência (nas suas mais diversas especialidades) ao sucesso que há tanto tempo desfruta. A ciência tem o cuidado de resguardar certo âmbito da discussão de seus

problemas aos chamados ―pares‖, dessa maneira garantindo eficiência/autoridade ao discurso científico – e mais que isso, oferecendo objetividade e rigor na abordagem dos tópicos tratados, o que garante alguma certeza na direção da melhor solução (ainda que provisória). A favor dessa estratégia está a crescente especialização do conhecimento

9

SA LT, Ba rry. Film style and technology – history and analysis; Londres, Starword, 1992, p. 2;

PANOFSKY, Erwin. O significado nas artes visuais; Lisboa, Presença, 1989, pp. 15-78; GOM BRICH, Ernst H. Norma e forma; São Paulo, Mart ins Fontes, 1990: pp. 105-127; WÖLFFLIN, He inrich. A arte clássica; São Paulo, Ma rtins Fontes, 1990, pp. IX, X.

(23)

científico, o que acaba por inviabilizar a intromissão, por parte dos leigos, nos aspectos mais específicos das questões envolvidas. A especialização científica ainda foi

acompanhada por um crescente investimento financeiro nas pesquisas, cujos valores

também contribuíam para a formação de grupos de pesquisadores compostos por indivíduos que efetivamente agregassem conhecimento para o alcance da meta estabelecida. Há, portanto, interesses ―palpáveis‖ em jogo, e isso é mais um forte impedimento para se arriscar na convocação de forasteiros do mundo científico/tecnológico na condução de projetos de pesquisa.

Naturalmente o campo da arte não conta com tamanho controle. Além do que, apesar de suas especificidades, o campo da arte é propício e sedutor à investigação por profissionais de outras áreas do saber, de onde também eles importam os métodos de análise. Esses estudos enriqueceram (e continuam a fazê- lo) a história da cultura, da crítica cultural e mesmo da cultura artística visual em geral – da mesma forma que enriquece suas próprias áreas –, mas também criaram inconvenientes ao campo da arte quando desejaram sobrepor-se aos processos de investigação e aos interessobrepor-ses específicos da arte, contrib uindo para o estabelecimento da confusão que tomou conta da prática da arte e dos estudos de arte.

A proliferação de livros com temática sobre a ―morte‖, o ―desaparecimento‖, o ―eclipse‖, a ―crise‖ da arte, notadamente a partir do último terço do século XX, apenas reflete a situação extrema a que se chegou, pois o discurso confuso foi seguido por uma prática semelhante, que desconsiderava (e estigmatizava) a rica herança do corpo de conhecimentos próprio da arte. Onde quer que se aplicou tais procedimentos, a

consequência foi o afastamento do interesse por parte do público (sendo então chamado de ignorante, inculto!) e de artistas de verdade inconformados com a incoerência geral10 – estes, por sua vez, acusados (num tratamento pautado pela rispidez) de retrógrados, acadêmicos (neste último caso, já num exemplo de distorção dos conceitos).

Se existe um culpado por tais acontecimentos, não resta a menor dúvida que essa falta recai, principalmente, sobre a categoria dos artistas. Num processo tortuoso, complexo, procurando reagir às pressões imensas de uma sociedade em transformação profunda (como

10 MARLING, Kara l Ann. Norman Rock well 1894/1978 – America’s most beloved painter; Cologne,

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aquela da passagem do século XIX ao XX), os artistas foram arrastados ao abraço do radicalismo, da alienação e do relativismo, achando de atacar a razão (e tudo o que lhe está associado – nada menos, afinal, do que a própria condição humana) como responsável por suas frustrações. Com essa opção os artistas abandonaram a companhia segura da ciência (ao lado da qual galgou seus mais altos degraus, quando a arte foi enfim resgatada da condição de mera atividade mecânica) para dar o braço ao desconhecido e sedutor discurso filosófico revolucionário – ao mesmo tempo abrindo mão de sua autonomia de

conhecedores (expertise) e assim flanqueando o campo da arte ao assalto de aventureiros de toda espécie. A arte se transformava em ―terra de ninguém‖.

Antes disso acontecer, a especificidade da arte era tratada com a devida consideração (sendo os embates em nome de sua autonomia como disciplina o melhor exemplo) – exatamente o que se espera quando a intenção é efetivamente contribuir para a ampliação do conhecimento (conseqüente) sobre determinado assunto. Foi assim quando do

surgimento da crítica especializada em arte11.

Diferentemente do discurso estético filosófico, ―puro‖, ocasião na qual é quase impossível evitar o acesso a esfera metafísica dessa matéria, a crítica, pelo contrário, implica uma descida ao rés do chão da arte, pois trata dos aspectos particulares da

manifestação artística, chegando a abordagem de obras em suas singularidades. Essa tarefa requer do seu praticante não apenas grande familiaridade com o meio de produção da arte (exige, portanto, uma frequentação do mundo da arte), mas também, e o que afinal garante a pertinência e o valor da crítica, é necessário o conhec imento da sintaxe da arte, nos seus aspectos teóricos e práticos – o que só é alcançado com estudo e experiência. É justamente aqui, no âmbito da crítica, da análise de elementos particulares da expressão visual, que a estética se revela em sua dimensão maior como ciência da arte. Como verdadeira aplicação de metodologia científica, a crítica parte dos aspectos específicos para chegar a uma

generalização – que, no entanto, apenas será frutuosa caso esteja calcada em critérios lógicos (fornecidos pela história e pela teoria da arte)12.

11

ARGA N, Giu lio C. Arte e crítica de arte; Lisboa, Estampa, 1995.

12 Deve-se entender que apesar da possibilidade de ação lógica, baseada em c rité rios igualmente lógicos, a

(25)

Embora envolvida com assunto de natureza poética, a crítica não pode abdicar do rigor, da precisão, devendo mesmo almejar à certeza – e isso se consegue com objetividade, conduzida com método, que lhe garante eficiência, desse modo afastando-a do relativismo.

Essa posição, entretanto, é contestada por aqueles que entendem a atuação artística como uma atividade inefável, pois capaz de macular o ―sagrado‖ processo criativo, que por natureza se encontra fora da apreensão humana. Segundo eles, tal postura poderia conduzir à extinção da inovação! E com isso flagra-se a contradição, pois a noção de inovação pressupõe a existência de uma tradição. Ou seja, não há como escapar da categorização, da necessidade de organizar a informação do mundo como requisito de uma mente que

funciona integrando perceptos. Sendo assim, haveria realmente condição para a emergência de ações criativas com base no trabalho racional, metódico? Como abordar a relação entre tradição e inovação sem limitar ou mesmo impedir uma existência empreendedora? A resposta: com mais razão, mais educação, mais disciplina. Pois é o conhecimento sistematizado, sob a autoridade da razão humana, que proporciona os elementos para a criação (na arte, na ciência, na vida) e fornece a s condições a partir das quais se possa formular juízos. Assim, é o estudo, fruto da abordagem racional, que oferece a única maneira em condição de contornar os naturais preconceitos e temores do homem. Ou seja, colocar a razão em xeque é rota de colapso para o avanço da civilização. É apostar, na arte, na sustentação de opiniões danosas como a idéia de livre expressão, a pura negação da crítica, da lógica, do diálogo no julgamento da arte – justamente o que se queria evitar com esse discurso relativista. Tentativa que, como se pretende demonstrar logo em seguida13, vai caracterizar o discurso dos movimentos da chamada vanguarda, ansiosos por remover a arte do alcance da crítica, que, como produtora de juízo, fatalmente faz juízo de valor.

Mas se não havia como evitar a crítica, então que ela fosse ocupada por gente que fizesse uma crítica interessada àqueles autodenominados modernistas. Estava armada a estratégia para escrever a história da arte do século XX.

abrindo uma marge m interpretativa que permite ju lga mentos subjetivos. Entretanto, deve -se procurar reduzir ao má ximo essa subjetividade, como forma mesma de au mentar o praze r da e xpe riênc ia art ística, ocasião na qual reconhecemos a constituição do que chamamos de u ma ―situação orgânica‖, ou o que Panofsky define como o ―sistema que faz sentido‖ (O significado nas artes visuais; 1989, pp. 18-23).

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Justamente devido à preocupação pela exatidão e clareza de argumentos (mesmo aqueles intrinsecamente complexos), para entender a situação da imagem realista quando do advento da chamada arte moderna, é necessário passar em revista as disputas artísticas que ocorreram quando da eclosão desse movimento pelo começo do século XX. No

entanto, mesmo estas só podem ser devidamente apreendidas se voltarmos ao século XVIII, quando efetivamente surge a crítica de arte como a conhecemos hoje em dia. Aliás, não somente a crítica, mas também a estética filosófica e a própria história da arte, como campos especializados de estudo, começaram a se definir naquela época.

É quando se questiona o problema do método, e isso leva ao problema mais geral da natureza do conhecimento. Tudo isso surgindo na esteira do Iluminismo, que contrapõe à razão a experiência empírica, desse modo tocando na questão do sentimento (central na epistemologia e, claro, no pensamento sobre arte). É nesse ambiente que emerge, na arte, duas tendências teóricas, uma vinculada ao conceito de idéia e a outra defendendo a sensação direta da realidade. A confusão moderna vai acontecer, entre outros motivos, por se querer separar essas duas tendências. É como querer separar razão e sensibilidade no alcance do conhecimento. É como querer separar a técnica da estética na feitura da obra de arte.

Claro que, com o passar do tempo, o assunto vai ficando mais enredado devido a mistura de outros ingredientes (que são associados a uma das duas vertentes, às vezes de modo completamente arbitrário), caso, por exemplo, do desenvolvimento industrial e a ascensão da burguesia, ou da voga da arte abstrata. Daí a justificativa do retorno à origem do problema e o revolvimento das questões mais pertinentes como meio de esclarecer o mal-entendido – que por extensão vai alcançar a esfera cinematográfica, incluindo a animação. Sim, porque quando do surgimento das teorias cinematográficas estas são influenciadas (não podia ser diferente) e dialogam com as teorias artísticas – aqui aparecendo com o sinal invertido, pois a forma abstrata troca de posição com a imagem realista de acordo com a conveniência. Olha a confusão! Perceba-se a ponta do iceberg das contradições das posturas ditas modernas que envolvem essas questões centrais da arte.

Tudo parte destas indagações: seria a imagem realista algo fora de propósito no âmbito da chamada arte moderna de vanguarda? Algo anacrônico, ilegítimo? Por que? Ela não

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servia para representar o sentimento dos contemporâneos? Era estranha à linguagem da arte?

Uma certa estética naturalista, arraigada no senso comum, tinha (e tem) na

representação fidedigna da natureza a crença de que aí residia a excelência artística. Não era, evidentemente, a estética clássica – embora esta fosse igualmente baseada na forma realista. A revolução modernista varreu essa visão ingênua (mas não sem importância) e aquela clássica, com isso fazendo a crítica de arte abandonar o interesse pelo problema da representação icônica, do problema da ilusão14. Cresceu a impressão de que a ilusão seria artisticamente irrelevante, com isso apenas invertendo o preconceito anterior. No entanto, como Ernst Gombrich esclarece15, não é a fidelidade à natureza nem sua negação que garante o status de obra de arte. Como também a subjetividade da visão não exclui padrões objetivos de exatidão representativa. Uma obra alcança a condição de arte quando nela se conjuga os verbos saber, fazer e exprimir16. Entretanto, disso não resulta uma

desconsideração quanto ao nível icônico quando do julgamento do valor de uma obra artística. A biologia e a cultura humana asseguram uma posição especial da forma realista que transcende opiniões e modismos, sendo mesmo essa forma visual que veio a

caracterizar a concepção de uma noção artística vital conhecida como belas artes – uma concepção que está, nada mais, nada menos, na base do nascimento do próprio conceito ocidental de arte, que se assenta na representação verossimilhante da figura humana – simplesmente o motivo mais importante na arte (e o objeto de investigação mais precioso na ciência).

Em vista de tamanha importância dessa noção, como explicar a reviravolta que tomou conta do mundo da arte dita de vanguarda e afetou todo seu desenvolvimento subsequente – e da arte em geral – no tocante a forma realista?, desde a produção de arte, passando pelo sistema de ensino da arte, o mercado de arte, até alcançar a produção intelectual sobre arte?

14

O desdobramento desse enfoque resultará na abstração artística, que achava que ao escamotear o objeto referente do universo da arte resolveria todos os seus problemas.

15

GOMBRICH, Ernst. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica; São Paulo, Mart ins Fontes, 1986, pp. 4, 23.

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O ponto de partida para tal entendimento está na convicção de que nos encontramos em face de uma típica situação de irracionalidade no enfrentamento dos desafios postos à ecologia cultural humana, a partir de um momento no qual estruturas sociais como um todo vergaram frente ao impacto tremendo da verdadeira revolução representada pela

industrialização a partir do século XVIII – algo comparável apenas ao que se verificou de z mil anos atrás com o surgimento da agricultura, que simplesmente transformou o homem pré-histórico num ser civilizado. Não à toa, Karl Popper lista a industrialização como uma das três forças fundamentais a modelar a cultura ocidental européia17 (as outras duas seriam a ciência e a liberdade individual, que formam, como dá para perceber, uma tríade que se induz reciprocamente, interdependente).

Portanto, pretende-se demonstrar esse irracionalismo que gradualmente foi assenhoreando-se de uma parcela significativa também da arte e da crítica de arte (entendida em sentido lato, significando o estudo, a investigação e a análise da arte), a partir da emergência da Era Industrial no século XVIII – não por acaso fornecendo o contexto que vai dar origem a crítica de arte, a história da arte e a estética filosófica. Como se vai igualmente comprovar, essa irracionalidade crescente numa vertente da abordagem da arte, que assumirá posição hegemônica no momento de evidência das ditas vanguardas artísticas pelo começo do século XX, tem na agressão à representação visual realista possivelmente o seu dogma mais arraigado, cuja fúria vai quase levar ao aniquilamento da própria noção de arte como estabelecida na evolução da cultura humana ocidental. É preciso entender a motivação e o desdobramento desse problema, os obstáculos que se foi criando para a expressão visual realista, para daí, efetivamente, emergir uma explicação consistente, verdadeira, única maneira de superação do entrave cuja resolução enfim permitirá apresentar uma proposta de abordagem teórica (com alcance prático) para a emergente animação hiperrealista com chances de êxito.

Coerente com o procedimento aqui proposto, é preciso ser objetivo no encaminhamento dessa análise – característica já diagnosticada por Jacob Burckhardt, na definição do estado moderno, em seu livro clássico sobre a cultura do Renascimento publicado a cerca de cento

17 POPPER, Karl. ― Ep istemologia e industrialização‖, e m O mito do contexto; Lisboa, Edições 70, 1999, pp.

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e cinquenta anos atrás18. É o que se verifica ao ressaltar o atrelamento do irracionalismo ao ataque da figuração realista (associada à cultura ocidental burguesa), fato sintomático da imensa dúvida que se abateu sobre o século XX ante o sucesso (e a culpa, o medo) da civilização ocidental por suas extraordinárias conquistas, num período histórico tão curto – algo em torno de 150 anos (a fase industrial que vai até o início do século XX) ou 400 anos (se considerar o começo do mundo moderno com o Renascimento até o século XX).

Mas um marco objetivo de outra ordem, que deverá nortear todo o enfoque deste estudo é o computador eletrônico digital. O advento do computador introduz a civilização numa outra era revolucionária (Era da Informação), uma revolução autêntica, de influência global, nascida no seio da tradição científica e artística ocidental. O computador é um fator objetivo na orientação do debate artístico então desorientado. Não por coincidência trata-se de um fato técnico, que remete à própria origem da ciência e da arte – e mais além, remonta mesmo ao surgimento da consciência19. Não foi por outro motivo que os estudos sobre cognição – que avançavam há décadas sobre terreno movediço – tiveram grande impulso em meados do século passado com a chegada do computador, pois oferecia justamente um referencial objetivo para comparação com o funcionamento do cérebro, até então um órgão demasiadamente misterioso.

Entre as consequências extraordinárias do impacto do computador digital para a ciência cognitiva e para a figuração realista na arte foi que a natureza representacional do

pensamento pôde ser admitida20. Esse evento marcante iniciava a demolição, em bases seguras, de entraves ideológicos que, de outro modo, teriam impedido o afrouxamento dos dogmas vanguardistas que bloqueavam o enfoque objetivo das questões próprias da arte. Como ilustração da esquizofrenia que pautava as disputas sobre arte, a citação de Kerstin Stremmel dá uma boa pista: ―Qualquer um na década de 1950 que pintasse formas realistas seria um reacionário‖ (2004, p. 10)21

.

18

BURCKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália; São Paulo, Co mpanhia das Letras, 2003, p. 111.

19

CLA RKE, Robert. O nascimento do homem; Lisboa, Gradiva, 1980, p. 20.

20 GARDNER, Howa rd. A nova ciência da mente; São Paulo, Edusp, 1995, p. 67. 21 STREMM EL, Ke rstin. Realism; Co logne, Taschen, 2004, p. 10.

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Claro que o vanguardismo institucionalizado (mais uma contradição na trajetória do movimento modernista no século XX) não ia, a despeito de seu completo esgotamento, ceder terreno de uma hora para outra. Tanto que a década de 1960 registra um momento de efervescência – mas também seu último suspiro como fenômeno de influência –, para iniciar seu ocaso e restringir-se a uma curiosidade com espasmos esporádicos em guetos elitistas contemporâneos, como as bienais de ―arte‖ (a despeito de amplo marketing, o efeito não extrapola sua vizinhança).

Desde então, o aparecimento de textos que retomavam o debate consequente no campo da arte – também começaram a aparecer estudos que iluminaram a conflagração geral polarizada do século XX – alcançaram bons resultados justamente quando trataram do problema central da arte que envolve a idéia de representação. É o caso do mais famoso desses estudos, de autoria do historiador da arte Ernst Gombrich, que resultou no livro Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. Foi, inclusive, devido à publicação desse livro, que uma das disputas intelectuais mais estimulantes do século passado teve início, envolvendo, por um lado, o próprio Gombrich, e do outro um oponente de respeito, o psicólogo experimental James Gibson, reverberando entre outros renomados estudiosos, que acabaram por tomar parte na discussão apoiando uma das posições em

1. O filme 2001 – Uma odisséia no espaço (Stanley Kubric k,1968) fa z referênc ia a tais desdobramentos

da evolução humana, com a associação, ainda que de maneira obscura, da utilização/fabrico de instrumentos com a e mergência da consciência/conhecimento. Na cena in icia l, u m ho min ídeo maneja uma ferra menta de osso (uma arma) e ao jogá-la para o a lto ela transforma -se, bruscamente, numa nave espacial (outra ferra menta). Nesse tipo de nave encontra-se o computador HAL, u ma ferra menta de outro nível, agora co m pretensão à consciência.

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confronto. Esse tipo de debate frutífero na esfera da arte e da percepção ecoava o que era prática comum na ciência e respondia pelo sucesso do empreendimento científico. Na verdade está em sua base, quando foi inaugurado pelos gregos antigos, dando origem a filosofia – a manifestação primeira do procedimento científico.

Enfim, o advento do computador fortalecia a abordagem formal, própria, objetiva da arte. E fazia isso trazendo à baila as teorias e os procedimentos então associados com a desprezada tradição da arte, pois fôra essas teorias e procedimentos que deu suporte lógico, através de simulação algorítmica, ao modelo operacional do computador enquanto

ferramenta eficiente de computação gráfica, quer viabilizando uma interface gráfica amigável para o usuário, quer, principalmente, oferecendo ao novo artista digital um leque inédito de recursos familiares turbinados pelo poder renovador da informática. A partir da evolução desses recursos, cada vez mais os artistas digitais iam percebendo o valor de conhecer os princípios clássicos da arte se desejavam uma exploração expressiva, em toda sua extensão, da produção da imagem artificial realista, como agora proporcionada pe la computação gráfica. A consequência prática desse fato tem sido a retomada de disciplinas tradicionais da arte para atender a demanda de jovens artistas e de um mercado ansioso por criações ilusionistas, de autênticos faz-de-conta.

Após o estabelecimento desses marcos referenciais (o irracionalismo de uma crítica militante, a posição central para a arte da representação visual realista, e o advento do computador eletrônico digital), o estudo parte em busca das respostas para as questões levantadas nas páginas iniciais deste tópico. Como o problema se manifesta de maneira multifacetada, assim é que sua pista foi aqui mapeada em torno de quatro linhas de investigação, para cujo desenvolvimento se lança mão de autores representativos que estiveram à frente na defesa das idéias em confronto. Este rote iro, meramente didático, deve ser encarado de maneira flexível, haja vista a tendência de alguns assuntos

transcenderem os limites das categorias temáticas aqui esboçadas. A proposta, listada abaixo, apresenta cada denominação com sua respectiva extensão e xplicativa.

— a definição da arte: a arte como bela arte, o design da figura humana encenada, a natureza da representação.

(32)

— a crítica da arte: o julgamento da arte, a estética filosófica, a história da arte, a

epistemologia, comunicação e expressão visual, formalismo óptico, formalismo linguístico. — a ecologia cultural: o componente ideológico, o interesse político, o relativismo, a alienação, o abuso.

— o fator geométrico: geometria, perspectiva, academia, arte, design, ciência, técnica, tecnologia.

1.1.1. A definição da arte

Era conveniente, era mesmo imperativo, para que o plano da autodenominada

vanguarda prosperasse, demolir a noção de arte como entendida pelo mundo ocidental. Daí que, nos escritos sobre arte, até hoje é comum encontrarmos a indagação fatídica: o que é arte? E mais: quem decide? Ora, como então esperar ter sucesso num empreendimento se sequer sabemos do que estamos tratando? Faz-se mister, portanto, iniciar a pesquisa trazendo à ordem esse primeiro e crucial problema de definição da arte. Sem que se circunscreva com precisão o campo de estudo, sem que se saiba onde se está pisando, a investigação de qualquer matéria é, naturalmente, inviabilizada.

O que é arte? E quem decide? A persistência dessa anosognosia (incapacidade de

consciência, privação da sensação de realidade) que tomou conta dos escritos sobre arte tem origem conhecida. A localizamos na idéia de autonomia da arte, erigida como conceito central com o advento da estética filosófica no século XVIII. Não que essa noção fosse em si equivocada (ou mesmo uma novidade), mas as interpretações que lhe foram aplicando ao longo do tempo acabaram por envolvê- la em um tal relativismo que a consequência final foi mesmo a desordem conceitual que se verifica até o presente. E como se sabe, a instauração da dúvida é a melhor estratégia para tirar vantagem da confusão reinante. Jamais com bons propósitos.

A sustentação desse estado lamentável no entendimento da arte, na esfera mais erudita do pensamento, foi obra de filósofos pós-kantianos, filósofos pós-racionalistas que deram suporte ao mito romântico do relativismo/esteticismo filosófico.

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Já pelo final do século XIX o mal-estar dessa indefinição que se apossou da arte era denunciada por todos que reconheciam a debilidade dessa condição neurótica, apontando para a necessidade de ser objetivo.

É revelador nesse sentido que uma admoestação de peso tivesse partido do romancista Leon Tolstoi. Com seu livro publicado em 1898, sintomaticamente intitulado O que é arte?, e a despeito do sectarismo religioso que dá o tom do ensaio, Tolstoi não perde a clareza da natureza mais profunda da arte, do que a define enquanto tal. Não por outro motivo, ele constata um estranhamento na estética filosófica que a afasta da ciência – paradoxalmente almejada como paradigma de seus praticantes. Intrigado com a indefinição da estética, que desde sua fundação, em 1750, por Baumgarten, permanecia sem saber o que era a beleza (onde residiria a noção de arte), escreveu Tolstoi (2002, p. 35):22

―O que, então, é esse estranho conceito de beleza, que parece tão compreensível para aqueles que não pensam sobre o que estão dizendo, enquanto que, por cento e cinquenta anos, filósofos de várias nações e das mais variadas tendências foram incapazes de concordar sobre sua definição? O que é esse conceito de beleza, sobre o qual se baseia a doutrina reinante da arte?‖

Tolstoi põe o dedo na ferida, repreende o relativismo que prejudicou a estética desde sempre e assim contribuiu para o irracionalismo no discurso e na prática da arte.

É bastante conhecido o grito de independência dado pela ciência no século XVI, quando precisou remover os grilhões que lhe eram impostos pela filosofia a fim de garantir seu avanço. Surgia a ciência moderna, indutiva, experimental, metódica, objetiva, cujo

desfecho espetacular é o conhecimento do mundo que hoje temos acesso e cujo poder sobre a natureza chega a espantar – ainda mais quando pensamos que essa revolução ocorreu apenas há cerca de quatrocentos anos. Quem primeiro alertou, de maneira articulada, para aquela necessidade, foi Francis Bacon. Em seu livro The advancement of learning, de 1605, Bacon pregava a remoção do entendimento filosófico – contemplação e elevação espiritual – do saber, tido como obstáculo a entravar o avanço do conhecimento. Intimamente

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relacionado a esse diagnóstico, Bacon assinalava a falta de uma linguagem clara no discurso filosófico, que há tempos se tornara inútil, estagnado. A solução estaria na

conjunção de especulação teórica e métodos experimentais, garantindo a abordagem precisa do problema, cuja padronização, e objetividade de procedimentos e linguagem, permitiria o entendimento geral do assunto, sua fácil disseminação e colaboração entre pesquisadores. Essa clareza no encaminhamento de Bacon tinha explicação: sua meta principal era o conhecimento para benefício do homem23.

No caso específico da arte essa influência negativa da filosofia era igualmente reconhecida por artistas e estudiosos comprometidos com a busca de eficiência, de uma epistemologia para a investigação artística. Essa condição vai ser alcançada pela

história/teoria da arte na passagem entre os séculos XIX e XX, após ter sido iniciada por Johann Winckelmann em meados do século XVIII. E teve na figura de Heinrich Wolfflin a cristalização desse almejado status científico para a disciplina de história da arte. Sem meias palavras, Wolffin escreveu na introdução de seu clássico estudo sobre a arte clássica, de 1898: ―A ciência histórica (da arte) abdicou quase que totalmente do tema maior que é a ‗Arte‘, deixando-o aos cuidados de uma filosofia da arte (a estética), da qual está separada, e à qual, por outro lado, já negou por diversas vezes o direito de existir‖ (1990, p. X)24

. Wolfflin compreende que o trabalho do historiador da arte é analítico, é crítico, de modo que ―toda monografia sobre a história da arte contivesse ao mesmo tempo uma análise dos problemas estéticos‖25

.

Em princípio aparentemente inofensiva, a nova doutrina da autonomia da arte introduzida pela estética filosófica vai influir, num primeiro momento, na supressão da hierarquia temática. É evidente sua conseqüência revolucionária, especialmente responsável pela distinção do romantismo como estilo, juntamente com seus subprodutos (caso das escolas estéticas realistas, de temática social, de meado s do século XIX). A desvalorização do tema vai, afinal, acabar por destruir a representação visual em si mesma, redundando na arte abstrata do século XX e a posterior eliminação de qualquer resquício visual com aquilo

23

BA CON, Francis. The advancement of learning; New Yo rk, Modern Library, 2001, p. 36.

24 WOLFFLIN, He inrich. A arte clássica; São Paulo, Martins Fontes, 1990, p. X. 25 Ide m.

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que ficou conhecido como arte conceitual, na década de 1960. Foi quando chegou ao fim da linha. Não por acaso, a abordagem crítica formal da arte que chamo de formalismo

linguístico (para diferenciá- la de uma abordagem distinta que chamo de formalismo óptico), teve projeção exatamente após a eclosão do abstracionismo, tendo ganhado novo fôlego com as tendências concretistas e conceitualistas da década de 1960 – para logo em seguida perder sua influência (embora mantida em certos círculos acadêmicos como um dogma). Essas abordagens serão exploradas particularmente no item seguinte, A crítica da arte.

Como superar esse revés que se abateu sobre a arte ao ponto de minar-lhe a identidade? A providência imediata a fim de restaurar o campo da arte seria delimitar seu espaço – definir sua natureza, restabelecer seu fim. Isso implicaria num retorno da razão ao campo da arte, novamente pensada como disciplina humana inserida na sociedade produtiva de economia industrial e consumo de massa. O efeito prático instantâneo dessa providência estaria na eliminação da autoridade arbitrária de pessoas e/ou instituições que passaram à condição de detentoras do poder de auferir o status de obra de arte a qualquer coisa que lhes seja conveniente, que lhes traga vantagem, em detrimento da mínima consideração ao que quer que não lhes interesse. Nesse processo constata-se o desprezo pela vida objetiva, pela sociedade democrática, pelo conhecimento de valor, pela moral, pelo ser humano. É a negação do diálogo.

Atacaram a objetividade na arte alegando sua natureza subjetiva, fora do alcance da razão, justificando ser tal característica que responderia pela surpresa, pelo indizível, pela poesia que diferencia a arte das demais atividades humanas. O filósofo Benedetto Croce foi particularmente incisivo a esse respeito, sendo especialmente bem sucedido graças a seu texto fluente – coisa rara nos escritos de estética filosófica. Ele não titubeou ao afirmar, ―a pergunta sobre o que é arte direi, imediatamente, da maneira mais simples, que a arte é visão ou intuição‖26

. Sim, muito simples. Tão simples que aí cabe tudo. E, sendo assim, ficamos sem nada! A arte como intuição de Croce é tão fluida quanto ambígua, nela havendo espaço até mesmo para o ―incômodo‖ do inteligível, do pensamento racional, daquilo que é o oposto da poesia inefável tão competentemente defendida por Croce. Mas

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existe, na visão da arte como criação inefável, dois equívocos: não há ligação causal entre subjetivismo e estado poético, como também a subjetividade não está desconectada da objetividade. É a confluência desses dois estados da mente que permitem a consciência racional. Assim, a sensação poética é facilmente e constantemente despertada pela criação racional, objetiva. Fazemos arte porque queremos, porque a desejamos, porque sentimos necessidade. Por sua vez a subjetividade é a ação da consciência que nos coloca na posição de escolha, deixando que a razão decida. É, portanto, uma ―tabelinha‖ que a mente executa numa típica operação complementar, equivalente a simbiose do processo de

percepção/cognição. Tais explicações já circulavam em textos científicos, filosóficos e mesmo artísticos mais antigos (como se verifica em Arte e técnica, 1952, de Lewis Mumford), mas vêm sendo comprovados e detalhados pelas descobertas mais recentes da neurobiologia (como se pode encontrar em O erro de Descartes, 1994, de António Damásio).

Portanto, se a arte passou a ser ―terra de ninguém‖ foi porque, num momento decisivo de preparação da sociedade para o mundo moderno industrial (o mundo da ação), deixou-se arrastar – numa afronta a sua inteireza orgânica – para o limbo do puro sentimento (a explicação técnica dada pela estética filosófica para sua nova doutrina de autonomia da arte). A arte optava por não ser o que sempre fora, um conhecimento para fora da pessoa; optava por não fazer o que sempre fizera, comunicar-se. A arte estava, principalmente, sendo despida de sua prerrogativa de disciplina, detentora de uma metodologia que por sua vez estruturava um sistema, um corpo de conhecimentos organizado, definido. A arte, infelizmente, saia da esfera do humano e adentrava a metafísica esotérica. Abdicava da rota que resultou, evolutivamente, na criatura humana, ser que se fez inteiro na criação cultural, prática, na ação para fora, no pensamento convertido numa prática – em suma, na

interferência concreta e transformadora da natureza com o sentido de melhoramento da condição de vida material e espiritual, entendida como um todo inseparável.27 É a

circunstância de abandono dessa dupla condição – ação prática e imaginação teórica – que afastou a arte da abordagem intelectual e produtiva consequente, necessária a qualquer

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atividade que se pretenda eficiente, reconhecível, de valor. De outro modo a arte não passa de uma palavra sem sentido, vazia, autêntica ―terra de ninguém‖.

Pois bem, quando a arte foi levada a sério ela se definiu como disciplina. Alcançou tal condição do mesmo modo que as disciplinas científicas – uma habilidade, uma técnica, fundamentada numa teoria. Portanto, a discussão sobre arte deve ocorrer sob esse prisma. Pensar a arte como filosofia, sob a ótica da estética metafísica modernista, é desvirtuar-se da natureza da arte enquanto técnica e estética a serviço da comunicação visual.

Quando, então, há consenso sobre a delimitação do campo da arte, outros problemas aparecem. Mas aí a discussão é possível. Surge a necessidade de especificar o objetivo da arte, cristalizado na simbiose das ações operacional e expressiva. Almeja-se, com isso, a elaboração/concretização do símbolo estético. Qual o propósito dessa criação artíst ica? A resposta correta a esta pergunta nos remete ao entendimento explicado acima, que baliza a estruturação da arte como disciplina, com a necessária elaboração de um corpo de

conhecimento específico, teórico e prático, que permite sua abordagem conceitual e o trabalho empírico voltado à comunicação visual. Como desdobramento, isso também vai permitir uma distinção das diversas manifestações artísticas, que apesar de partilharem um espírito geral semelhante (expressão poética), têm no meio expressivo e na intenção poética diferenciais determinantes. Nessa linha de argumentação facilmente podemos estabelecer uma classificação inicial para fins de orientação geral28. Desse modo, temos três grandes ramos artísticos: sonoro, literário e visual. No plano visual, que interessa particularmente a este estudo, encontramos artes narrativas e artes decorativas. Nestas, a forma figurativa é a mais versátil, pois ocupa ambos os domínios da comunicação visual. Mas se a forma

figurativa pode apresentar-se apenas como decoração, ela vai alcançar sua mais completa dimensão expressiva quando apresentar-se como narrativa ilusionista – à qual o recurso decorativo se integra. É nessa forma expressiva (narrativa visual ilusionista) que a idéia de arte na cultura ocidental foi estabelecida, com um percurso que remonta aos mais antigos, fascinantes e influentes registros artísticos da humanidade.

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