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Matheus Andrade* INTRODUÇÃO

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Academic year: 2021

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Era uma vez dois sertões:

A representação do Sertão nordestino nos filmes

Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira

20/02/2008

Matheus Andrade*

INTRODUÇÃO

No decorrer dos acontecimentos históricos de nosso país, o Sertão brasileiro transformou-se em sinônimo indissociável de seca, devido à condição climática natural da região, que afeta seu solo e, consequentemente, a vida de milhares de pessoas que vivem nessas terras.

A ausência da água, causada pela estiagem, atinge as terras do Sertão deixando-as em grave estado de improdutividade, deixando-assim, os camponeses ficam impossibilitados de exercer suas principais atividades econômicas: agricultura e pecuária. Nesse período, a vegetação sobrevivente limita-se a plantas adequadas à alta temperatura, à aridez do solo e sol ardente. Nessas condições, o povo sertanejo é levado a abandonar a sua região em busca de outros campos que dêem condição de sobrevivência.

O espaço assolado pela seca, considerado nos discursos políticos como principal causador da miséria dos habitantes das terras do Nordeste, mais precisamente do Sertão nordestino, tornou-se o grande dramalhão representativo da história da região. Entre os diversos meios de expressão artística que utilizam esse discurso da seca como tema, o cinema nacional fez de tal problema um enredo recorrente, sem desperdício de sentimentalismo, os diretores escreveram roteiros de filmes que representam o Nordeste brasileiro a partir dessa imagem cristalizada de região predominantemente árida e pobre.

Contudo, a seca não é um fenômeno constante na região, o Sertão brasileiro não é predominantemente árido, não atravessa eternamente essa condição climática desprovida de água, não é definitivamente desértico e a estiagem ocorrida nas terras da região Nordeste é periódica, embora freqüente.

Com a chegada da chuva, a região muda visualmente. As terras ficam aptas para a prática agrícola, banhadas pela água em abundância armazenada nos açudes e rios que servem às plantações e animais. A paisagem luminosa reflete o verde da vegetação que transforma o ambiente. O povo sertanejo cultiva seus roçados e alimenta suas criações com as condições disponibilizadas pela natureza do lugar. O índice de imigração e mortalidade dos nordestinos diminui graças às novas condições do solo do Sertão.

Entretanto, a fertilidade das terras sertanejas, derivada da presença de água na região, e a alegria dos homens que nelas sobrevivem também se transformam em referência para os cineastas que utilizam a temática nordestina como narrativa de seus filmes, o cenário elaborado sobre um Sertão sem seca parece possuir tanta carga dramática para o cinema quanto a abordagem da miséria.

Embora haja uma predominância de filmes nacionais que abordam o Sertão e o Nordeste brasileiro sob a perspectiva da seca, pode-se identificar, também, filmes que mudam essa perspectiva em suas histórias, que diferem desse olhar sobre a problemática rural, passando a representar o Sertão nordestino, em seus períodos de fertilidade.

O presente trabalho, intitulado de Era Uma Vez Dois Sertões, apresenta as distintas formas pelas quais o Sertão nordestino é representado nos filmes Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Baile Perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira.

O Sertão mostrado em Vidas Secas é uma região arcaica e miserável, impossibilitada de se enquadrar ao sistema econômico urbano e a cultura perde todo o seu valor; lugar onde não há esperança de um futuro para o povo. Enquanto em Baile

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sofre a influência do processo de modernização dos centros urbanos, mutável e contraditória.

A análise realizada sobre os filmes Vidas Secas e Baile Perfumado no presente trabalho, parte dos pressupostos de que “a arte do cinema é a arte de uma atitude, o estilo de um gesto. Não é tanto o quê mas o como” (BERNARDET, 1994. p.58), e que “um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto sócio-histórico” (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994. p.26). Desse modo, buscamos compreender como se dá a representação do Sertão brasileiro a partir da forma pela qual a temática é

abordada nos referidos filmes, valendo-nos de uma análise sobre os elementos estéticos e buscando situar os contextos históricos das obras.

Para a explanação do conteúdo apresentado no presente trabalho, dividimos o texto entre três capítulos e conclusões a fim de obter organização plena durante as atividades de pesquisa e a produção textual, e fornecer para o leitor maior clareza do conteúdo tratado.

No Capítulo 1 discutimos o cinema como forma de representação e suas

características como forma narrativa ficcional e documental. E, também, apresenta-se o percurso histórico do conceito de Nordeste e Sertão brasileiro, bem como a sua

representação e absorção na cinematografia nacional.

Nos Capítulos 2 e 3 apresentamos a análise dos filmes escolhidos para o trabalho. No Capítulo 2 discute-se a representação do Sertão e do Nordeste brasileiro em Vidas

Secas, centrado na abordagem predominante sobre a região: a seca e seus problemas;

no Capítulo 3 analisa-se a representação do Sertão e do Nordeste em Baile Perfumado, como um olhar inovador em relação à forma predominante de abordagem

cinematográfica sobre a região: o Sertão verde dos homens fortes, que incorporam a modernidade e não representam sua negação. A estrutura dos Capítulos 2 e 3 organiza-se na forma de tópicos, organiza-seguindo o esquema: o período histórico de produção do filme, o roteiro e a história narrada, a estética do filme, a representação das terras e do homem do Sertão no filme e a interpretação de algumas cenas que contribuem para a análise feita a propósito da representação proposta por cada filme.

Por fim, nas Conclusões apontamos os paralelos encontrados entre os filmes, esclarecidos nos capítulos anteriores, buscando as diferenças e as repetições e permanências em suas abordagens sobre a temática, apresentadas nas distintas representações do Sertão e do Nordeste brasileiro.

Era Uma Vez Dois Sertões é o resultado da disciplina Projeto Experimental do curso de Comunicação Social, habilitação em Radialismo, da Universidade Federal da Paraíba, Campus I, realizado no período letivo de 2003.2, atividade obrigatória para conclusão de curso.

CINEMA E REPRESENTAÇÃO

1.1 Imagem Fotográfica: entre o Real e a Ilusão

Para dar início à reflexão sobre representação cinematográfica, inicialmente utilizaremos a imagem fotográfica. Não dissociando-a do cinema, e sim pensando nela como embrião da sétima arte. A partir da foto, buscaremos compreender o processo de representação através da imagem em movimento.

Ao longo dos anos de nossas vidas nos lembramos, com maior precisão, dos momentos mais significativos que vivemos, das situações mais importantes e mais marcantes pelas quais passamos. Mas, provavelmente, algum dia presenciamos uma situação, um tanto comum, como a narrada a seguir: certa ocasião, nas últimas férias de verão, um conhecido fez uma viagem ao Rio de Janeiro, a “cidade maravilhosa”. É cabível lembrar que a máquina fotográfica é um acessório típico do turista em todo o mundo. Então, ao retornar de sua viagem, ele trouxe várias fotos para mostrar os lugares onde esteve.

Numa noite qualquer, resolvi visitá-lo para saber como foi seu passeio turístico. E ele, imediatamente, trouxe seus álbuns de fotografia da viagem, repletos de imagens,

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para me mostrar. Em meio a tantas fotos, de repente, chega aquela clássica em que o sujeito está em frente à estátua do Cristo Redentor.

Por mais que possamos ironizar o registro fotográfico dos turistas, até mesmo a clássica foto, essas imagens nos dizem implicitamente: “Estive lá. Olhe aqui!”.

Outra experiência marcante que me vem à memória, quando falo sobre fotografia: há alguns anos, um amigo estava de férias e resolveu ir passear em Maracaípe, Pernambuco, uma bela praia, onde, devido à natureza do ambiente, a prática do surfe é intensa, local que comportou diversos campeonatos brasileiros desse esporte radical.

Ao retornar, dias depois, fui visitá-lo. Logicamente, ele me trouxe as fotos da viagem e eu comecei a observá-las tranqüilamente. De repente, a surpresa: três fotografias me impressionaram. Na seqüência estava a foto de um surfista em atividade, executando uma manobra; na segunda fotografia uma outra manobra que parecia dificílima, diferente da primeira. O detalhe é que nessas duas fotos não era possível reconhecer o personagem, em virtude da distância em que foram tiradas. Então, a terceira foto era a conclusão da seqüência. A imagem era a do meu amigo saindo da praia de sunga de banho, com os cabelos molhados, carregando uma prancha. Não pude me conter. Por conhecê-lo, eu sabia que aquilo era mentira, mas as fotos arrumadas nessa seqüência, conduziam a uma outra narrativa, que contrariava a realidade: ele nunca praticou surfe em toda sua vida dele. E, por fim, ele perguntou se eu havia gostado de sua seqüência. Resultado: gostei.

Diante dos exemplos citados anteriormente, percebemos que as fotos aparecem na mesma situação (tratamos de dois turistas), porém com cargas semânticas diferenciadas; uma revela imagem em que eu acredito: a presença do turista em frente à estátua do Cristo, mas na outra imagem, aquela do amigo surfando, eu não pude crer, mas apenas por conhecê-lo bem.

A imagem fotográfica possui duas características inatas e que se fazem importante para a discussão propostas adiante. Utilizando os exemplos já citados, na primeira história o turista registra uma dada realidade e nos traz a prova de que o fato aconteceu de verdade, ele realmente esteve em tal lugar. Numa situação como essa, nossa reação é de concordar com a imagem fotográfica apresentada. De fato, a outra história também está sujeita à mesma reação. Imagine se eu não o conhecesse? Eu jamais discordaria de que ele pegava ondas, e ele poderia jamais contar a verdade.

Independente da situação, supomos que tudo que um dia foi registrado por uma câmera fotográfica deve haver existido em determinado tempo e espaço. Uma fotografia, por mais simples, mal tratada, preto e branco ou amadora que seja, da estátua do Cristo Redentor, por exemplo, pressupõe que ela existe. Segundo Paulo Roberto Arruda de Menezes (1996, p.83-84), esse pressuposto contido na imagem fotográfica é responsável por toda verossimilhança do processo. Ele diz: “É evidente que esse pressuposto não leva em conta o fato de que as imagens, como qualquer outra linguagem, são passíveis de serem adulteradas ou montadas, podendo, portanto, enganar ou mentir.”. Em relação à clássica fotografia do turista em frente à estátua do Cristo Redentor, nós nem se quer pensamos em observá-la melhor para saber se foi realmente verdade, ou seja, se ele estava realmente no Rio de Janeiro.

Ainda segundo Arruda de Menezes, “por mais que possamos ter em conta essa perspectiva de simulação e engano, sempre temos a tendência quase natural de acreditar nas imagens que contemplamos antes que algo nos induza a desconfiar de sua veracidade” (p.84). Na fotografia do meu amigo “sufista” eu pude pressupor, por conhecê-lo, que não foi ele quem fez aquelas manobras no mar. Desvendei a montagem. Mas, para uma outra pessoa, aquela informação poderia ser absorvida sem levantar dúvidas.

Por suas possibilidades, a imagem fotográfica tem a capacidade de nos causar uma impressão de realidade através do registro qualquer de objetos e pessoas, mesmo quando sofreu efeitos de montagem ou manipulação.

A imagem cinematográfica proporciona efeito equivalente, de forma até mais poderosa, pois a película cinematográfica além de registrar 24 exposições fotográficas por segundo, rodando-as sucessivamente quando exibidas, dá a impressão do movimento humano assim como nós o percebemos. Para Jean-Claude Bernardet (1980,

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p.12) diante de suas características, o cinema simula a realidade, ele nos dá a “impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeira, amores verdadeiros”. Por esse motivo, em conversas informais sobre filmes entre diversos níveis de espectadores, nós podemos, com freqüência, ouvir frases como: “Aquele filme é pura realidade!” ou, quando o filme infringe o que para nós é verdadeiro, “Aquele filme é muito fantasioso!”. Opiniões essas, resultado do modo pelo qual o cinema conta suas histórias.

A arte cinematográfica, assim como a literatura, narra histórias. Antonio Costa (1989, p.23), em seu livro Compreender o Cinema, afirma que “o cinema é, simultaneamente, narração e representação”. Só que, enquanto a literatura narra através de palavras, dando-nos uma história a ser imaginada, o cinema narra com imagens nos mostrando a história imaginada por um cineasta. E, tal característica, ao contrário da literatura, faz do cinema uma máquina de invenção da realidade. Costa diz que, além de narração, “o cinema pode ser visto como um dispositivo de representação, com seus mecanismos e sua organização dos espaços e dos papéis” (p.26). As histórias contadas nas narrativas cinematográficas clássicas são bastante parecidas com a realidade. Não apenas pela imagem em movimento, como também através da adequação de seus cenários, figurinos, atuação, som, etc., o cinema consegue construir ambientes semelhantes ao que costumamos presenciar em nossas vidas, ou evocam sociedades do passado, tornando o filme um crédulo instrumento de representação, simulador da realidade social, presente ou passada.

Para buscarmos um melhor entendimento sobre cinema e representação, faremos referência aos primeiros registros cinematográficos, considerando alguns momentos de sua história e reflexões a propósito do desenvolvimento do filme, visto como ferramenta da intenção de representar a realidade, baseada na verossimilhança, no imaginário social ou, ainda, no desejo humano de ultrapassar limites, como é o caso da ficção científica.

1.2 Imagem Cinematográfica: primeiras Representações

Neste texto, iremos nos ater à descoberta da arte cinematográfica e às primeiras experiências do olhar humano sobre o cinema, a fim de percebê-lo como ferramenta de representação e seu potencial narrativo.

No início, os inventores do cinema não tinham idéia do futuro da nova invenção, tanto que as primeiras palavras diante da nova máquina foram, segundo Bernardet (p.11), que esse aparelho “não tinha o menor futuro como espetáculo, era um instrumento científico para reproduzir o movimento e só poderia servir para pesquisas”. Essa postura vai se revelar como um grande equívoco. O cinema, com passar do tempo, se transformou numa das maiores ferramentas narrativas da história da humanidade.

Mesmo considerando-o como mais uma entre suas invenções “banais”, os irmãos Auguste e Louis Lumière, ao executarem as primeiras experiências com o cinematógrapho, entre elas filmar a chegada de uma locomotiva na estação e exibir no dia 28 de Dezembro de 1895, no Grand Café em Paris, nunca imaginariam até onde chegaria a arte cinematográfica, se é que se pensaria que aquela “geringonça” teria função na produção artística.

A reação dos primeiros espectadores foi totalmente inesperada. Diante de um registro mal acabado do trem, um filme em preto e branco e sem som, ninguém pensaria que aquelas imagens influíssem diretamente no comportamento das pessoas que assistiam ao filme dos Lumière. Pois a reação do público diante da tela foi de puro medo e insegurança devido à aproximação daquela locomotiva que, por alguns instantes, parecia totalmente desgovernada, e, como observa Merten (1995, p.17): “Hoje parece mentira, mas há 100 anos houve gente que quis se atirar debaixo da cadeira, escondendo-se para fugir do trem que parecia vir na direção deles”.

Os filmes dos irmãos Lumière foram realizados como registros experimentais de situações alheias. Em La Sortie des Usines (A saída das Fábricas), eles puseram a câmera em frente à fábrica e gravaram, em película única, a saída dos operários ao final

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do expediente de trabalho. Antonio Costa fala que, embora pareçam insignificantes esses registros primários, eles exprimem a tendência natural do cinema, por sua vez derivada da fotografia instantânea, ou seja, a representação de uma realidade pressuposta.

Não muito distante, em 1902, o cinematográpho inicia uma nova fase em sua existência. O mágico Georges Méliès adquire um aparelho de filmagem e descobre, por acaso, a magia que se encontrava por trás das grandes telas. Méliès estava filmando um ônibus em Paris quando, de repente, a câmera enguiçou. Nesse instante, o ônibus saiu e um carro funerário parou no mesmo lugar. A câmera voltou a funcionar e quando o trabalho foi concluído, ele percebeu que o filme ficou com a ilusão da mágica na troca dos veículos. Por esse fato, o mágico logo descobre que no cinema o fantástico, construído pela possibilidade da montagem que, assim descoberta, induziria tanta credibilidade quanto a realidade capturada diretamente pela câmera, sem intervenção alguma. Segundo Costa (p.49),

o cinema dos primeiros anos debateu-se entre a consciência do caráter de autencidade de

reprodução do real que o novo meio assegurava e a extraordinária facilidade com que se podiam

produzir simulações perfeitamente aceitáveis, sobretudo por parte do público ingênua e crédulo que enchia as primeira salas de cinema. Entre os pioneiros da nova arte houve logo quem

considerasse justo defender seu caráter de autenticidade contra qualquer tentativa de contrafação.

Abordando os primeiros momentos de existência do cinema, Luiz Carlos Merten (p.18) diz que “a glória dos irmãos Lumière está na paternidade do invento do cinematógrafo, e não do cinema como linguagem”. Mesmo assim, com seus primeiros experimentos de registro cinematográfico, os pais do cinema iniciaram uma linguagem de filme documental. O filme La Sortie des Usines é a reprodução, em imagens, da ação dos operários ao término de seu expediente de trabalho. Eles gravaram em película cenas do meio em que eles viveram naquele período, tudo isso dotado de valores referentes àquela sociedade. Porém, com sua repentina experiência, Meliès iniciou o que, após alguns anos, se convencionou chamar de montagem cinematográfica, o que seria a colagem dos planos de cena para obter-se a história narrada como se deseja, subvertendo o tempo real.

Em referência ao realismo dos irmãos Lumière e à fantasia de Meliès, o crítico cinematográfico João Batista de Brito (1995, p.210) afirma que esses aspectos marcaram a arte do cinema. Segundo ele, a trajetória de desenvolvimento do cinema “confirma que, o tempo todo, essa dicotomia entre a cópia mimética do real e a criação gratuita esteve no cerne de sua natureza”.

Ainda em referência aos filmes de curta duração da primeira década do cinema, Costa (p.53) diz que “(...) não é possível separar nitidamente no cinema dos primeiros anos uma tendência ‘realista’, objetiva e uma ‘irreal’, ‘fantástica’(...)”, ao ato de assistirmos àquelas imagens. Nos primórdios da imagem em movimento, os irmãos Lumière e o mágico Meliès conseguiram reproduzir imagens parecidas com as da vida real (mesmo usando formas diferenciadas), imagens que puseram em questão o que se via no cinema: real ou irreal.

1.3 Construção e Ilusão da Realidade

“A vida não é como você viu no cinema. A vida é mais difícil”. Essas são as palavras usadas pelo projecionista Alfredo no filme italiano Cinema Paradiso (Giuseppe

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Tornatore, 1989). Sempre preocupado com o futuro de Totó, um menino fascinado pela magia do cinema, ele o aconselha com essa frase, explicando o que foram todas aquelas “imagens amadas” durante sua vida, esclarecendo, assim, que elas eram parecidas com a vida, mas que, no fundo, a vida não é realmente aquela ficção vivida por vários personagens na tela do cinema, nem mocinho, nem bandido, donzelas ou beijos censurados, ela é verdadeiramente muito mais difícil.

Segundo Bernardet (p.13), uma das principais características do cinema é a ilusão, o fato de trazer à tona uma realidade semelhante àquela que você conhece, provocando afinidade pelo que lhe foi apresentado no filme, seja o real ou o sonho humano, isso causa, imediatamente, a impressão da realidade, pois “no cinema, fantasia ou não, a realidade se impõe com toda a força”.

Jacques Aumont (1995) explica que a ilusão construída pelo cinema é derivada das técnicas de profundidade: a profundidade de campo e a perspectiva. Técnicas utilizadas na composição das imagens para simular uma visão tridimensional. É a partir desses elementos que o cinema consegue mostrar espaços semelhantes ao real; ainda segundo Aumont, outro elemento fundamental para a ilusão cinematográfica é o som. Montado juntamente com as imagens, o som torna a narrativa cinematográfica mais verossímil: “o som se tornou um elemento insubstituível da representação fílmica” (p.45). Esses elementos fazem com que, antes de percebermos os aspectos irreais do filme, a história pareça ser realidade. Para ele, como qualquer meio de expressão artística, o cinema possui suas limitações (recorte espacial, ausência de terceira dimensão, caráter artificial ou ausência de cor, etc.), mesmo assim, no momento em que nós assistimos ao filme

(...) reagimos diante dessa imagem plana como se víssemos de fato uma porção de espaço de três dimensões análogo ao espaço real no qual vivemos. Apesar de suas limitações essa analogia é

vivenciada com muita força e provoca uma

‘impressão de realidade’ específica do cinema, que se manifesta principalmente na ilusão de movimento e na ilusão de profundidade (p.20-21).

A elaboração de um filme, desde o roteiro, depende de uma série de elementos que podem modificar a história a ser narrada, direta ou indiretamente. De fato, devido às características estéticas do cinema, às influências políticas, culturais e sociais do diretor, o investimento econômico do produtor e, até mesmo, alguns imprevistos a que estão sujeitos na hora da gravação, a história a ser narrada pelo cinema, por mais que pareça realidade é sempre uma representação dos fatos, daquilo que o diretor quer nos mostrar:

O filme não pode simplesmente contentar-se em apresentar, em mostrar os acontecimentos, ele é também uma seleção tendenciosa desses acontecimentos, a sua confrontação, libertos de tarefas estreitamente ligadas ao tema, realizando, em conformidade com o objetivo ideológico do conjunto, um trabalho adequado no público (LEITÃO, 1981. p.19).

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O cineasta soviético Sergei Eisenstein, um dos primeiros estudiosos a refletir sobre a arte cinematográfica, em seus conceitos sobre cinema diz que a montagem significa

tudo para um filme. Segundo ele, duas determinadas imagens montadas em colisão têm

o poder de fabricar uma terceira imagem situada na mente do espectador, ou seja, lança-se um propósito metafórico que se encontra além dos elementos explícitos no filme.

Em suas reflexões, Eisenstein (1990a) afirma que a câmera de cinema fixa, em película, eventos reais e elementos da nossa realidade, tendo em vista que a técnica fotográfica favorece uma imagem com alto índice de verossimilhança daquilo que se quer representar. Após a captura das imagens, o filme, agora, submete-se ao que convencionou chamar de montagem. Para ele, a montagem é o que determina como a história do filme será narrada, ou seja, “a ordem final é inevitavelmente determinada, consciente ou inconscientemente, pelas premissas sociais do realizador da composição cinematográfica” (p.15).

Ainda na perspectiva do cineasta soviético, “a necessidade legítima de combinar esse fragmentos da realidade se transformou em concepção de montagem que pretendiam suplantar todos os outros elementos de expressão do cinema” (p.17). A manipulação das imagens, vistas no conceito de montagem, implica diretamente na realidade mostrada no cinema. Ainda para Eisenstein, a capacidade do cineasta de conectar os fragmentos dessa realidade, exposta nos registros da película cinematográfica possibilita ao diretor fabricar um novo sentido ou elaborar uma outra interpretação ao real.

A forte analogia entre a imagem fílmica e o mundo material fazem da sétima arte um instrumento de força e credibilidade quase que inabalável enquanto construtor de realidades.

É possível dizer que a função do cinema é a representação, independente do conteúdo exposto no filme. O cinema tem a capacidade de recortar o tempo e o espaço de uma determinada situação, juntar as imagens captadas passando, assim, por todo um processo de produção para representar o conteúdo proposto em forma de narrativa. Mesmo assim, abordando posteriormente alguns conceitos sobre a imagem

cinematográfica e a realidade, é importante afirmar que o cinema pode ser visto, também, como uma realidade.

A representação do real, inata da arte cinematográfica, impulsionou movimentos cinematográficos em alguns países, dando forma à ideologia de algumas vanguardas do cinema mundial. Na Alemanha, por exemplo, o movimento expressionista (1907/1926) se opôs ao realismo explícito, pois tinha a intenção de mostrar, através dos filmes, a realidade interior da vida. Para isso, os cineastas utilizavam elementos deformados em suas imagens, exacerbavam as formas para criar os universos, usavam sombras e silhuetas nas composição das cenas, era um cinema de “visões” e “alucinações” (VANOYE & GOLIOT-LÉTÉ, 1994. p. 33).

Por sua vez, o período mais influenciado pelo filme como representação do real, ocorre a partir da década de 50. Surgem escolas cinematográficas que buscam, como principal propósito, colocar nas telas a realidade de suas nações – Neo-realismo italiano, Cinema Novo brasileiro. No Brasil, Glauber Rocha (1981, p.30), falando sobre o Cinema Novo, diz que a importância e repercussão mundial do movimento deve-se ao “seu alto nível de compromisso com a verdade”. Segundo Ismail Xavier (2001. p.13), o cinema dos anos 60, período das produções cinemanovistas, se impôs “como uma espécie de vitrine de exacerbação dos sintomas mais drásticos da vida cultural(...)”. O ideal era registrar as situações e os conflitos sociais e políticos, ainda que fosse com uma câmera

na mão e, utilizando o cinema como instrumento de denúncia, buscando influir na

transformação política e econômica a partir da exposição da realidade através dos filmes, pois, mostrando nas telas a problemática social enfrentada diariamente pelo povo brasileiro, colocariam uma idéia na cabeça da população a fim de conscientizá-la para construir um mundo melhor.

Segundo o historiador francês Marc Ferro (1992), que percebe o filme como uma fonte de pesquisa legítima para o estudo da história, as imagens cinematográficas

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parecem terrivelmente verdadeiras. Ferro mostra-se atento ao cinema, ciente de suas características de representação, afirmando que “(...) todo mundo sabe que essas imagens, essa pseudo-representação da realidade, são escolhidas, transformáveis, já que são reunidas por uma montagem não controlável, por um truque, uma trucagem” (p.83). Porém, acima de tudo, para ele um filme é uma testemunha de algo; “(...) imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é história” (p.86).

Para a atividade de análise histórica sobre o cinema, segundo o método proposto por Ferro, é necessário pesquisar não somente o filme, enquanto objeto de análise, mas também todo o universo que o rodeia, referindo-se assim a todos os componentes contidos ou não no filme. O pesquisador deve

analisar no filme tanto a narrativa quando o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime político. Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa (p.87).

Frente aos conceitos de representação imagética, o cinema funciona basicamente como um espelho, onde os fatos simulados por ele parecem reflexos perfeitos do conteúdo material existente na vida real. Com isso, o mundo das narrações fílmicas consegue fundir-se facilmente com o real na imaginação humana e o espectador, por sua vez, cria uma leve tendência a confundir os universos distintos – realidade e ficção.

Em A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985), a história narrada pelo filme é um grande exemplo. Para fugir dos problemas que enfrenta no dia-a-dia, Cecília vai ao cinema e assiste a filmes. Nesse momento, ela assiste ao filme A Rosa Púrpura do Cairo diversas vezes, todas a contemplar o personagem romântico Tom Barxter. De repente, em uma das sessões, Tom simplesmente sai da tela do cinema e vai ao seu encontro, afirmando estar perdidamente apaixonado por ela. Imerso na outra realidade (a realidade fílmica), Tom não entende como tudo é tão diferente no mundo de Cecília, como as situações correntes naquele mundo são tão estranhas em comparação às vividas por ele no filme. Em seguida, Tom leva Cecília para dentro da grande tela, ela experimenta o tão sonhado mundo do cinema percebendo, nitidamente, as diferenças daquele universo em relação ao ambiente em que ela vive. Cecília, então, ficou bastante confusa com tudo aquilo que conhecera, a mistura e a confusão entre o sonho e a realidade, entre o mundo real e a realidade cinematográfica ficcional.

O roteiro de Allen desvenda o abismo entre os dois universos ao ponto de Cecília e Tom Barxter perceberem que não poderiam viver felizes para sempre – como são as histórias do cinema. Em consolo à despedida de Tom Barxter, após compreender melhor toda aquela situação, Cecília diz: “No seu mundo tudo acaba dando certo. Sou um ser humano. Tenho que escolher o mundo real, apesar da tentação”.

Assim, o cinema tem a capacidade de (re)construir histórias convincentes em sua estrutura narrativa. A partir de suas características de representação, sua forma de narrar histórias incorpora marca autoral e bastante veracidade pela semelhança criada entre o espaço fílmico e o real, podendo-se considerar um instrumento narrativo de grande poder persuasivo. Por essa razão, as imagens cinematográficas infiltram-se na consciência do espectador sem maiores entraves, transportando-o para outros universos, levando-o a viagens imaginárias ilimitadas, por vezes a galáxias distintas, por vezes a paisagens inóspitas como aquelas que retratam o Nordeste de um país possível chamado Brasil.

1.4 O Nordeste Brasileiro Representado

Para iniciar a discussão sobre a forma pela qual o Nordeste e o Sertão brasileiro são representados pela arte cinematográfica no Brasil, a princípio se faz necessário

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entender como essa região se tornou sinônimo de um lugar distante de toda e qualquer civilização, antônimo de toda modernidade associada ao Sul do país, tal como ela é vista e entendida por grande parte da sociedade brasileira. Para tanto, citaremos duas

abordagens distintas sobre como se deu a construção desse espaço. A partir do enfoque dado, veremos como esse espaço regional aparece narrado na cinematografia brasileira.

Até meados do século XIX, o Brasil se dividia entre o “Norte” e o “Sul” do país. O Nordeste ainda não era região reconhecida, sua denominação se dava como províncias ou estados do Norte. Nesse período, acentuou-se o desenvolvimento social e econômico na região Sul, que adotava modelos estrangeiros de civilização, privilegiando a

urbanidade ao final do século XIX. A região Norte transformou-se em pólo menos evoluído do país. Enquanto o Sul surge como o espaço da indústria e do progresso nacional, o Norte nasce destinado a ser seu avesso, a partir do final do século XIX. Situação que se consolidaria ao longo da primeira metade do século XX.

Em 1877, um acontecimento notável, climático, contribui para fixar a imagem de pobreza e subdesenvolvimento associados ao Nordeste brasileiro. A região enfrentou três anos marcantes de seca, até 1879, período esse conhecido como “grande seca”, e

milhares de pessoas morreram de fome. O fenômeno fez com que a população sertaneja emigrasse, na esperança de sobreviver em outros lugares, condenando, definitivamente, a região pela sua natureza climática. A seca foi um fato determinante em relação ao Nordeste e seu reconhecimento nacional, fixando-o, definitivamente, como região árida e improdutiva do país. A seca de 1877 fixou no imaginário nacional o lugar do Nordeste. Por outro lado, diante da decadência das atividades econômicas das províncias do Norte – a produção de algodão e açúcar –, a “grande seca” tornou-se o maior instrumento político utilizado para a arrecadação de fundos públicos para o Nordeste. Toda a problemática da região passou a ser atribuída à seca. As elites regionais, dessa forma, contribuíram para reafirmar uma característica para o espaço nordestino: decadente, atrasado, necessitado de ajuda.

Segundo a historiadora Rosa Maria Godoy Silveira (1984), o Nordeste brasileiro é fruto da forma como a atividade política e econômica regional se desenvolveu após a

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“grande seca”, realizada frente à regionalização desencadeada pelo Estado Nacional. O Nordeste, como elo mais fraco do processo produtivo sob o capitalismo tardio da nação, foi engendrado pela necessidade desse modo de produção de gerar a desigualdade, numa combinação perversa de desenvolvimento e escassez, riqueza e pobreza sob mesma teia capitalista. A ela interessou analisar esse processo a partir do discurso dos representantes políticos e dos proprietários de terra ante o período de crise, verificando, também, a documentação produzida na Paraíba e em Pernambuco, estados

emblemáticos da representação do espaço regional na época. Para ela, o desequilíbrio regional vivido após a desvalorização geográfica e social dos estados do Norte vincula o Nordeste, diretamente, à “caracterização da identidade regional em estado de crise e sua oposição a uma outra identidade espacial, o Sul do país” (p.16).

Ainda segundo Silveira, devido à conjuntura econômica no Brasil, a região Nordeste ficou marcada como espaço geográfico em estado de crise e

subdesenvolvimento. O investimento e a entrada do capital europeu no Brasil causou mudanças na área de comércio. Com isso, enquanto a região Sul estabelece uma alta circulação monetária e um grande desenvolvimento comercial, o Nordeste perde movimento de capital sofre uma desvalorização de seus produtos no mercado, especialmente, no caso da economia nordestina, do açúcar. Sendo assim, no final do século XIX o discurso regionalista começa a ficar cristalizado, estabelecendo, do ponto de vista ideológico, o discurso das elites dirigentes, que, na impossibilidade de outra

inserção, buscam, na representação da crise, na presença constante da escassez, na imagem tórrida da terra, manter meios de recursos públicos que, em última instância, são por elas apropriados. Para ela, “a ideologia regionalista, tal como surge é, portanto, a representação da crise na organização do espaço do grupo que a elabora” (p.17).

Não há nenhuma outra região brasileira sobre a qual se tenha escrito mais do que o Nordeste. Diante da grande produção acadêmica, Silveira observa essa historiografia do espaço nordestino da seguinte forma:

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Constituem a produção, nesse termos, as histórias provinciais e estaduais (...). O espaço é pouco visualizado em suas relações externas, por vezes referenciado apenas a um espaço contíguo (ex.: província ou estado vizinho); e, internamente, é caracterizado como unívoco, pasteurizadas as diferenciações e contradições. Outras vezes, o espaço é visualizado passivamente em relação ao espaço nacional (...) (p.21).

Diante dessa construção do espaço regional, o Nordeste é freqüentemente associado no imaginário popular a um espaço arcaico e subdesenvolvido, distante de toda e qualquer civilização, visão diferente daquela atribuída ao Sudeste que, por sua vez, identifica-se como espaço moderno, progressista, propulsor do desenvolvimento do país. Desta forma, imagina-se o nosso país como uma espécie de “dois Brasis” (p.29).

Uma outra abordagem sobre a construção do conceito de Nordeste é do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., autor do livro A Invenção do Nordeste - e Outras Artes (1999). Para ele o Nordeste brasileiro é uma invenção cultural; foi um espaço construído a partir dos discursos de várias ordens produzidos no Brasil durante o século XX sobre a região: “o Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente, em relação a uma dada área do país” (p.49).

Para Albuquerque Jr., durante o processo de desenvolvimento do Brasil, o

Nordeste foi identificado através dos seus problemas, em especial a seca e, em segundo plano, o cangaço e o messianismo. Esse ponto de vista tornou-se predominante no discurso nacional. Assim, o Nordeste brasileiro foi construído como uma região submissa a partir da forma pela qual foi representado nos diversos discursos, entre eles o discurso artístico. Para ele,

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As obras de arte têm ressonância em todo o social. Elas são máquinas de produção de sentido e de significados. Elas funcionam proliferando o real, ultrapassando sua naturalização. São produtoras de uma dada sensibilidade e instauradoras de uma dada forma de ver e dizer a realidade. São máquinas históricas do saber (p.30).

Ainda para Albuquerque Jr. (p.59), a partir desse discurso sobre o Nordeste e o Sertão brasileiro, centrado na miséria e no sofrimento, criou-se uma imagem cristalizada sobre o espaço nordestino. As obras de arte contribuem intensamente nessa divisão hierárquica entre as regiões brasileiras. Esse discurso sobre as condições climática do espaço nordestino “vai ser um dos responsáveis pela progressiva unificação dos

interesses regionais e um detonador de práticas políticas e econômicas (...)” dos espaços áridos. Essa “descrição” do Nordeste “tenta compor a imagem de uma região

abandonada, marginalizada pelos poderes públicos”.

Segundo Albuquerque Jr., o discurso produzido pelas obras de artes brasileiras, entre elas o cinema, contribuiu para a divisão regional nacional estabelecendo uma hegemonia do Sul do país, a partir dos interesses da burguesia paulista que tinha como finalidade tornar-se o centro da identidade nacional.

Frente ao exposto, essas distintas abordagens relacionadas à forma como o espaço nordestino foi construído nacionalmente, resultam numa forma singular de observar a região, pois discursiva ou historicamente o Nordeste brasileiro é facilmente associado à pobreza e à miséria, marcado desse modo por uma imagem parcial e definida na consciência de grande parte do povo brasileiro.

1.5 A Região em Cena

Entre as várias companhias cinematográfica brasileiras responsáveis pela produção nacional existiram duas de fundamental importância para a história do cinema no Brasil: a Atlântida e a Vera Cruz. Ambas tiveram a preocupação de tentar fazer do cinema nacional uma indústria comercial, no entanto, não alcançaram muito sucesso nesse objetivo. Os filmes produzidos por essas companhias sofreram grande influência estrangeira, principalmente da cinematografia norte-americana, que dominava o mercado de filmes em diversos países do mundo.

A Atlântida foi fundada no ano de 1941, no Rio de Janeiro e sua produção é essencialmente constituídas dos filmes musicais denominados de “chanchadas”, os famosos musicais carnavalescos, uma espécie de paródia do cinema americano, pois Hollywood foi uma das maiores referências da época para os produtores brasileiros. Segundo Antonio Moreno (1994, p.99), “a Atlântida foi a maior responsável pela produção de filmes brasileiros” durante a década de 40. Além disso, ainda segundo Moreno (p.100), “os filmes da Atlântida e as chanchadas de outras companhias

obtiveram enorme sucesso de bilheteria” tornando Oscarito e Grande Otelo verdadeiros astros de cinema.

Enquanto a companhia Vera Cruz, criada em 1949 pela burguesia paulista, no momento insatisfeita com o modelo de filme considerado inferior, esteticamente pobre, produzido pelos cariocas, estabelece como objetivo o modelo estrangeiro de produção cinematográfica, a fim de realizar filmes com um padrão de qualidade de nível

internacional. Para tanto, a Vera Cruz importou equipamentos e profissionais da Europa, entre eles: diretores, produtores, editores, técnicos de som, para compor o quadro de funcionários da empresa. Entretanto, seus filmes não tiveram tanto sucesso de bilheteria quanto as “chanchadas”. Os investidores da companhia não obtiveram retorno financeiro imediato, consequentemente, a empresa não pôde se manter por muito tempo e, em 1953, a companhia cinematográfica Vera Cruz fechou suas portas.

Os filmes da Atlântida apresentavam, em seus enredos e personagens, traços de nacionalidade. Albuquerque Jr. diz que nos anos 40, baseado nos programas de humor do rádio, as “chanchadas” já produziam um estereótipo do homem nordestino nas telas

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de cinema. “O nordestino se aproxima muito da imagem do matuto ou do caipira. Ele é sempre mostrado como a inversão da figura (...) do civilizado, do polido” (p.266). Em suas primeiras imagens, o homem do campo foi representado como paradoxo do cidadão urbano, fidalgo e educado, colocando-o à margem dos valores sociais das cidades.

A Vera Cruz, até então, estava sempre preocupada em produzir filmes com uma estética internacional. Em parâmetros gerais, suas produções possuem um perfil estrangeiro de representação, isentos de qualquer característica nacional, seus filmes reproduzem uma imagem cinematográfica importada. Mas, não muito distante, o cinema nacional começa a se auto-referenciar e logo a temática nordestina invade a grande tela. A indústria paulista lança, nos anos 50, dois filmes sobre o Nordeste brasileiro: O

Cangaceiro, de Lima Barreto, 1953, realizado pela Vera Cruz e O Canto do Mar, de

Alberto Cavalcanti, 1954, realizado pela Kino Filmes.

O filme de Cavalcanti narra o drama dos sertanejos que abandonam suas terras secas à procura de um lugar melhor para viver. Inicialmente, mostra imagens de enxada, caveira de boi, terra rachada e, em seguida, um mapa que, de forma didática, aponta para o espectador que aquilo se passa no Nordeste brasileiro. Durante os primeiros momentos do filme, uma voz em off afirma, redundantemente, que naquela região não chove. Essas primeiras cenas do cinema nacional do período sobre o Nordeste reafirmam elementos do discurso da seca já existente. O Canto do Mar não obteve grande sucesso de público, mas enriqueceu a nossa filmografia.

Já o filme de Barreto teve êxito, sua repercussão transformou-o num grande sucesso mundial, sendo, assim, um dos filmes brasileiros mais conhecidos. Foi o primeiro sucesso internacional da cinematografia brasileira, projetando uma imagem nacional no exterior, traduzindo em imagens os valores culturais e sociais do próprio país, dando início à consolidação da imagem do Nordeste no cinema brasileiro. Para Paulo Emílio Sales Gomes (1996, p.77), com O Cangaceiro, em meios àqueles diretores quase todos estrangeiros, Lima Barreto “inaugurou um gênero que permanece ainda vivo e fecundo”, tendo, assim, deixado marcas duradouras para a cinematografia nacional. Wills Leal afirma que o filme O Cangaceiro iniciou o ciclo de produção de “filme-de-cangaço”. Na busca de realizar um filme com temática nacional, Lima Barreto criara o protótipo para os diversos filmes do gênero, produzidos posteriormente. Porém, para Leal (p.97), o filme de Barreto “foi também o primeiro que negou, mentiu e disfarçou (...) o homem e a cultura do Nordeste. Baseado na história do cangaceiro Lampião e seu bando, O

Cangaceiro foi filmado no interior do Estado de São Paulo, produzido e realizado por uma

equipe de cinema do Sul do país, fazendo com que, em muitos momentos, a narração distancie-se dos valores sociais, culturais do povo nordestino e dos espaços do Sertão brasileiro.

A estética de O Cangaceiro está bastante relacionada ao modelo de filme conhecido como Western americano, nos quais os enredos do gênero mostram o distanciamento entre os pólos sociais, dividindo a sociedade entre o progresso e o regresso, a ordem e a desordem. Em O Cangaceiro podemos encontrar esse discurso explícito na cena do filme em que a professora Olívia, ao ser tirada do bando pelo cangaceiro Teodoro, lhe diz: “você é um fora da lei em quem não se pode confiar!”. Percebe-se, também, na contribuição com esse tipo de discurso, a identidade e os sentidos sociais determinados a cada personagem da cena – professora e cangaceiro; um socialmente educado, o outro, selvagem, fora dos padrões educacionais e civilizados, contribuindo dessa forma para a elaboração do mito do nordestino primitivo.

Segundo Jean-Claude Bernardet (1978, p.45), discorrendo sobre o filme de Lima Barreto e a imagem do cangaceiro presente no cinema nacional, “a personagem não é recente no cinema brasileiro; já aparece em filmes pernambucanos de 1925/27 (Filho

sem Mãe e Sangue de Irmão), num momento em que cangaceiro ainda não era

fenômeno do passado”. Para ele (p.46), o cangaceiro cinematográfico está desvinculado do seu significado social (violento), o personagem transforma-se em um “bandido de honra”, importando apenas que “ele não se fixe, não tenha pouso certo e sua vida seja uma andança; ele vai de aventura em aventura” nas trilhas dos seus solos encandecidos e castigados pelo sol avermelhado.

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Após a bem-sucedida série de filmes-de-cangaceiro, dotada de personagens primitivos e violentos, os mitos regionais nordestinos, inclusos no seu cenário natural, serão incorporados a uma série de filmes onde seus problemas sociais e econômicos são a grande atração das telas. A partir do sucesso de O Cangaceiro, de Lima Barreto, os cineastas brasileiros são seduzidos pelo espaço arcaico e marginal do país, movidos pela vontade de expressar o que parece exótico para os espectadores.

1.6 Nordeste Novo Brasileiro

Na década de 60, o Nordeste e o Sertão brasileiros recebem um novo tratamento cinematográfico, um novo olhar é lançado sobre a região árida. Os cinemanovistas filmam o espaço nordestino com realismo, inovando também a forma de se fazer cinema no Brasil, contrariados pelo fracasso industrial passado. O movimento conhecido como Cinema Novo busca expressar a problemática social do país através de seus filmes. Um país em estado subdesenvolvido deve realizar filmes temática e esteticamente

subdesenvolvidos. Para Ismail Xavier (p.28), os filmes produzidos pelo grupo

cinemanovista “promoveram uma verdadeira ‘descoberta do Brasil’, expressão que não é um exagero se lembrada a escassez de imagens de certas regiões do país na época”. Segundo um dos principais integrantes do movimento, Glauber Rocha (p.31), seria por intermedio desses filmes “feios e tristes, (...) gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto”, que o povo brasileiro entenderia sua condição perante o

sistema capitalista.

Neste momento, o Nordeste e o Sertão brasileiro entram em evidência, com novo enfoque, nas produções cinematográficas. Nos filmes produzidos nesse período, o Sertão, juntamente com seus problemas é, simultaneamente, cenário e personagem de suas histórias.

Ainda segundo Rocha, nos filmes que representam o Sertão brasileiro, “o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome” exibindo personagens marginalizados em cenários problemáticos, “(...) foi essa galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo (...)” (p.30). Assim, ainda segundo Xavier, “em sua feição original, anterior ao golpe militar de 64,” o

movimento “tem seu momento pleno em 1963/64, com a realização da trilogia do sertão do nordeste: Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis” (p.28). Em

seqüência, os filmes foram dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Ruy Guerra. Suas histórias colocam em ascensão os temas da seca, do cangaço e do

messianismo, representando-os como freqüentes problemas sociais do país.

Segundo Albuquerque Jr. (p.277), o Cinema Novo capturou “(...) no Nordeste, as imagens de um país de rosto roto e esmolambado. Um rosto cruel e violento em oposição ao rosto polido e civilizado da estética hollywoodiana da Vera Cruz e a mascarada carnavalesca das chanchadas cariocas”.

Essa geração de filmes subdesenvolvidos foi influenciada por um documentário curta-metragem produzido e realizado no estado da Paraíba no fim da década de 50. Pode-se afirmar que tudo começou nos anos cinqüenta, quando Linduarte Noronha decidiu filmar a história da população negra de Serra do Talhado, em pleno Sertão paraibano, resultando no seu clássico Aruanda, lançado em 1959. O filme, produzido em condições precárias, mostra a forma sofrida com que esse povo desenvolve sua

economia com a finalidade da sobrevivência.

As imagens da miséria ascendem nas obras cinemanovistas. O Nordeste brasileiro é reduzido, imageticamente, ao espaço árido. Os filmes de ficção recebiam um

tratamento estético de alto teor realístico, de forma que seguisse o propósito do

movimento. Em artigo publicado sobre a primeira exibição de Deus e o Diabo na Terra do

Sol, Arnaldo Jabor (1995, p.69) descreve detalhadamente sobre o que havia visto

naquela sessão:

E aí o filme começou. Um plano aéreo do sertão de Cocorobó. Corte súbito para o olho morto de um boi roído de sol. Villa Lobos na trilha. E caiu um silêncio

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sideral na sala. Todos os olhos estavam sendo feridos por imagens absolutamente novas. Como explicar isso? Não era apenas um bom filme que víamos. Nada. Era um país que nascia à nossa frente. Não um país que reconhecíamos como sendo, digamos, de Graciliano. Não. Era uma realidade desconhecida que começávamos a

compreender. Ela esteve esbolçada na literatura, em

Os Sertões, em Rosa. Mas, ‘no olho’, era a primeira

vez. Ela nos via. Ela nos incluía.

No decorrer dessa época, diversas vezes o Sertão brasileiro encontra-se como tema representado na grande tela, como lugar e espaço digno de aparecer num filme, como assunto interessante para ser roteirizado e, posteriormente, virar “coisa de cinema”, como afirmam as pessoas quando vêem algo grandioso. Porém, dificilmente a grandiosidade que é atribuída aos cenários Hollywoodianos é também atribuída à região árida do Nordeste.

Segundo Ivana Bentes (2001), em artigo publicado no Jornal do Brasil, no cinema dos anos 60, o Nordeste e o Sertão foram representados como uma região em crise, primitiva, onde o sertanejo parte em busca de conquistar o espaço urbano e, por fim, transforma-se em favelado e suburbano. Contudo, “o cinema brasileiro dos anos 90 vai mudar radicalmente de discurso diante desses territórios da pobreza (...) com filmes que transformam o sertão ou a favela em ‘jardins exóticos’”. Os filmes que apresentam este outro olhar sobre o espaço nordestino estão em pequena quantidade em relação ao discurso presente nas demais produções cinematográficas sobre o Nordeste, em sua maioria realizadas na região Sul do país. Nesse sentido, Ivana Bentes propõe a tese da

Cosmética da Fome.

O discurso transformador do Sertão cinematográfico aparece junto com a inovação tecnológica no cinema brasileiro. A partir de meados dos anos 80, o cinema nacional incorpora novas formas de produção, munido de novas técnicas, direcionado a uma nova estética assumida como um compromisso profissional com o público. Nessa década o Brasil “afirmou a técnica e a ‘mentalidade profissional’” (XAVIER, p.40).

Após a década de 90, com o desenvolvimento da arte cinematográfica no Brasil, em filmes com histórias que se passam no sofrido Sertão brasileiro, como Eu, Tu, Eles (Andrucha Waddington, 2000) e Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), os cineastas flexibilizam o discurso cinemanovista. A belíssima fotografia realizada nesses filmes, utilizando a excessiva luminosidade da região para compor o cenário, possibilita ao espectador observar o Sertão não mais como um lugar feio e triste, visão tão marcada nos filmes já produzidos sobre o tema.

Segundo Leal (p.15), entre as décadas de 50 e 60 havia um cinema de temática nordestina, e não um cinema nordestino. A produção de filmes no Nordeste era minoritária em relação ao resto do país. Apenas a partir das décadas posteriores, “a inteligência cinematográfica nordestina se voltou para concretizar um cinema

nordestino”, produzindo filmes que exibem para o país as diversas possibilidades de uma região.

Atualmente, algumas produções nacionais realizadas no Nordeste e por cineastas da região, escolhem os espaços urbanos para a realização de seus filmes. O

documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000) e o longa-metragem ficção Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003), produzidos em Pernambuco por cineastas nordestinos, em suas imagens, mostram um espaço poucas vezes explorados na história da nossa cinematografia, o urbano, no caso, a cidade do Recife.

No Brasil, ao longo da história de sua produção cinematográfica, muitos filmes foram baseados em fatos reais, mesmo sabendo-se que a proposta não era apresentar o registro de tal realidade, e sim fazer filme de ficção. Contudo, a forma excessiva pela qual o Nordeste e o Sertão brasileiro são representados nas grandes telas de cinema é

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responsável pela visão unilateral sobre a região. Na maioria dos filmes nacionais, segundo Iza L. Mendes Regis (2003, p.116), o espaço nordestino representado

é o mais claro protótipo imaginado por nós: seco, com uma vegetação sem folha à espera de chuva, distantes de povoamento onde as casas não se avistam e onde o sol impiedoso esfria as esperanças, pois ao contrário das miragens provocadas pelo sol nos desertos orientais e africanos, o sol dos sertões nordestinos destrói as ilusões dos sertanejos.

Assim, em alguns filmes, talvez na grande maioria dos filmes produzidos sobre o Sertão brasileiro, é possível que, ao término da sessão, o espectador saia da sala de cinema ofuscado com a imagem de uma região miserável, subdesenvolvida, arcaica, de cores opacas e avermelhadas; uma região totalmente vencida pela natureza de sua vegetação seca, pela escassez da água gerando a improdutividade nas áreas do campo. Essa é a versão predominante e recorrente na cinematografia sobre o Nordeste.

A REPRESENTAÇÃO DO SERTÃO NO FILME VIDAS SECAS

2.1 A História do Filme

Nos anos 50, o povo brasileiro alimentava a esperança de um país melhor. Na conjuntura do pós-guerra, o parque industrial nacional, prejudicado pelo longo período do esforço de guerra, necessitava se reerguer. Essa situação levou à implantação de novos planos governamentais, em especial a meta de industrialização traçada pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek em 1955 – “Cinqüenta anos em cinco”. Contudo, os projetos progressistas implantados por JK, não foram tão eficientes para assegurar o desenvolvimento pretendido pois as bases de sua implantação tornaram o país mais suscetível às oscilações da economia mundial. No Brasil começou a despertar uma grave inquietação política e social, decorrente da crise econômica em curso nos anos 60.

O plano de desenvolvimento centrava-se no Sul do país, não havia investimento direto para solucionar os problemas agrários do Nordeste o que acentuava, ainda mais, as disparidades regionais. Neste contexto, em 1958, surgiram as Ligas Camponesas nordestinas protestando pela reforma agrária. Preocupado com o problema, JK criou a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 1959. O Órgão seria responsável pelo desenvolvimento industrial no Nordeste, porém a atuação da SUDENE revelou-se insuficiente para debelar as disparidades regionais e o problema da reforma agrária continuava sem solução.

A geração de artistas que viveu esse período político do país produziu intensamente, no final da década de 50, uma série de obras de arte engajadas a representar o povo brasileiro, buscando mais uma vez impulsos de mudança.

Segundo Marcelo Ridenti (2000), as lutas políticas e culturais vividas nos anos 60 e princípio dos anos 70 no Brasil são relevantes para compreender a história do país. Nessa fase, a esquerda apresentava suas posições, também, através das diversas produções artísticas, como a música popular, o cinema, o teatro, as artes plásticas e a literatura. Sendo assim, Ridenti convencionou chamar o processo social e as concepções artístico-estéticas engajadas dos artistas desse período de “Romantismo Revolucionário”, expressão cujo conteúdo para Ridenti consiste na busca de reconstruir uma identidade nacional através do ideal revolucionário de transformação social, frente ao modelo capitalista. Para ele, “a utopia revolucionária romântica do período valorizava acima de tudo a vontade de transformação, a ação dos seres humanos para mudar a História, no processo de construção do homem novo (...)” (p.24).

A construção de um homem novo, segundo o conceito de Ridenti, está centrada no resgate das tradições ou raízes da cultura nacional para revigorar valores não mais existentes no homem contemporâneo, porém sem o passadismo característico de uma

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posição regressiva: “a volta ao passado, contudo, seria a inspiração para construir o

homem novo” (p.25).

Ainda segundo Ridenti, os grupos de artistas e intelectuais revolucionários

andavam fascinados pelas idéias de povo, libertação e identidade nacional, influenciados pelas mudanças políticas dos anos 50. Um dos fatos que mais favoreceram a emergência desse romantismo revolucionário foi a morte do ex-presidente, Getúlio Vargas, em 1954. Com isso, enquanto a direita tomava uma atitude de recuo, a esquerda, fortalecida pelo socialismo que contagiava o mundo das transformações políticas, avançava no cenário nacional. Isso se somava à vontade que os intelectuais e artistas tinham de despertar o povo brasileiro para maiores reflexões sobre a realidade de seu país.

Nesse momento, entram em cena os CPCs, especialmente o CPC da UNE (Centros Populares de Cultura), entidades com independência política, cuja proposição era a superação, através da arte, do estado de alienação política instaurada na consciência popular. Em sua produção artística, inclusive no cinema (Cinco Vezes Favela, 1962), temáticas com teor revolucionário eram trabalhadas com freqüência. Foi nesse contexto que surgiu o Cinema Novo.

O movimento surgiu no início dos anos 60, formado por cineastas ligados ao CPC. Concentrado no estado do Rio de Janeiro, segundo Ridenti, o Cinema Novo era

“composto basicamente por cariocas, baianos e cineastas de outros estados radicados no Rio, cuja influência espraiou-se Brasil afora” (p.99). Os integrantes desse grupo

possuíam vínculos fortes com o pensamento da esquerda e ideais revolucionários. Para Ridenti, o Cinema Novo enquadrava-se com precisão no conceito de

romantismo revolucionário, sua militância, via imagens, tinha grande importância para

as batalhas políticas e culturais daquele período: “o cinema estava na linha de frente na reflexão sobre a realidade brasileira, na busca de uma realidade nacional autêntica do cinema e do homem brasileiro, à procura da revolução” (p.89). Segundo Glauber Rocha (1981), os filmes realizado pelo integrantes do movimento são novos porque o Brasil, ali representado, também era novo para os espectadores. Ele diz: “nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” pelo povo brasileiro. (p.30). Ainda segundo Rocha, o objetivo do Cinema Novo era de produzir “um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência” (p.33).

A produção cinematográfica da década de 60 alcançou um considerado número de trabalhos, porém, esses filmes não obtiveram sucesso de bilheteria, pois dificilmente caiam no agrado do grande público. Segundo Ismail Xavier, “o Cinema Novo, em particular, problematizou a sua inserção na esfera da cultura de massas, apresentando-se no mercado mas procurando apresentando-ser a sua negação (...)” (2001, p.24). A safra de filmes dos cinemanovistas foi, também, uma resposta às metas de desenvolvimento fracassadas na década anterior. Mesmo assim, o movimento comporta alguns dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro.

O filme Vidas Secas, do cinemanovista Nelson Pereira dos Santos, foi produzido em 1963 e lançado em 64, às vésperas do Golpe Militar. Certamente, isso não foi uma missão fácil, pois, após o golpe, o cinema passou a ser alvo de críticas, perseguido por uma censura institucionalizada que castrava a liberdade de expressão da maioria dos cineastas. Em entrevista concedida a Maria do Rosário Caetano, publicada em Revista de

Cinema, Nº 19, Nelson Pereira dos Santos explica: “em 64, quando lancei ‘Vidas Secas’,

o tema era subversivo. As autoridades diziam que nós, cineastas, queríamos denegrir a imagem do país no exterior” (2001, p.20).

Baseado na obra literária homônima do escritor Graciliano Ramos, o filme representa o Sertão da década de 40 com seus problemas sociais, marcado pela opressão do latifúndio sobre a população camponesa. Uma região predominantemente hostil pela recorrência da seca e migrações; representado sob a exacerbada luz do sol, onde os homens se tornam duros como a terra seca. Para Albuquerque Jr. (1999), “transpor Vidas Secas para a tela visou contribuir com o debate da problemática da reforma agrária no Nordeste, que estava na ordem do dia” (p.273).

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Na abertura do filme, antes de qualquer imagem, Nelson Pereira expõe um texto que mostra-nos, de certa forma, as idéias revolucionárias traçada pelo grupo de cineastas integrantes do Cinema Novo:

Este filme não é apenas a transposição fiel, para o cinema, de uma obra imortal da literatura brasileira. É, antes de tudo, um depoimento sobre uma

dramática realidade social de nossos dias e extrema miséria que escraviza 27 milhões de nordestino e que nenhum brasileiro digno pode ignorar.

Através deste tipo de discurso, presente nesse e nos demais trabalhos dos cineastas do movimento, os cinemanovistas acreditavam que dariam uma contribuição para a transformação política e social do país. Nessa perspectiva, segundo Ismail Xavier (2000, p.51), “é o Nordeste dos polígonos das secas o espaço simbólico que permite discutir a realidade social do país”, e que participa da luta política e ideológica em curso na sociedade. Mas, após o Golpe de 64 e, definitivamente após o AI-5, em 1968, todas essas pessoas foram impedidas de expressar suas idéias e sonhos. Artistas e intelectuais foram cada vez mais pressionados a abandonar suas atividades artísticas e intelectuais críticas da realidade social. A produção cultural, mesmo alguns dentro dos padrões de legalidade, declinou, e os CPCs foram fechados em 1964.

O Cinema Novo deparou-se com problemas de ordem política e econômica, enfrentou a carência tecnológica e aceitou a ausência de espectadores em suas sessões. Ainda com todos esses entraves, o movimento perdurou por uma década e obteve reconhecimento mundial.

2.2 Autoria, Direção e Adaptação

A literatura sempre foi uma grande fonte de histórias para o cinema. Durante anos, diversos filmes foram produzidos baseados em contos ou romances, algumas vezes tentando narrar, a seu modo, com fidelidade à obra, outras apenas tomando-a como referência. Contudo, não é uma tarefa simples adaptar um bom livro para o cinema e fazer um bom filme. De fato, diversos leitores/espectadores, na maioria das vezes, dão preferência ao tratamento dado a uma das duas ferramentas narrativas, quando comparadas, geralmente, apontando a insuficiência das versões cinematográficas. Apenas exceções transformam um clássico da literatura em um clássico do cinema. Nesse caso, quando nos referimos a dois ícones da produção cultural brasileira, Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, podemos encontrar essa raridade. Vidas Secas é uma dessas exceções.

O escritor nordestino Graciliano Ramos, nascido no estado de Alagoas em 1892, é reconhecido pela expressividade contida em toda a sua obra literária, um romancista da realidade de seu tempo, dotado de rara habilidade para a produção textual, conciso, econômico, com um estilo único em nossa literatura, um verdadeiro conhecedor da arte de escrever.

Militante do Partido Comunista na década de trinta, seus romances foram influenciados pela sua opção política, visto que a literatura de trinta tentou contribuir para o conhecimento da realidade nordestina. Influenciado, também, pelo movimento regionalista, desenvolveu a temática nordestina, colocando em foco o espaço sofrido do Sertão, conforme aquela imagem discutida no item anterior. Nesse período, o romance nordestino narrava um Brasil que estava ficando para trás. Segundo o professor de literatura Lourival Holanda (2003, p.14), “sua literatura desenha o duro desejo de dizer a crueza do mundo”. Ainda segundo Holanda, nas formas aparentes de destruição vista nos livros de Ramos, encontra-se o desejo de uma possível reconstrução.

O Nordeste inscrito nos livros de Graciliano Ramos projetava o ápice do estado de subdesenvolvimento do país com seu povo em alto nível de alienação. Para Albuquerque

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Jr. (1999, p.229), “o camponês nordestino é visto por Graciliano como um ser silenciado, quase apenas grunhindo como animal”. Elaborando, assim, um homem impossibilitado de reagir decisivamente diante dos problemas políticos, sociais e naturais de seu universo.

Autor de quatorze livros, uma de suas obras mais significativas, com um duro caráter representativo do espaço nordestino, foi Vidas Secas, publicado em 1938. O livro retrata a realidade dos nordestinos diante a problemática da seca, lutando incansavelmente pela sobrevivência. Os personagens de Graciliano Ramos estão sujeitos a enfrentar o fenômeno climático de sua região, mantendo-se em busca de novas terras a fim de realizar sua cotidiana sobrevivência. Para o crítico Álvaro Lins (1999, p.136), Ramos consegue transformar “este mundo árido e sombrio numa verdadeira categoria de arte”.

Vidas Secas narra a história de uma família de emigrantes nordestinos em busca

de melhores condições de vida, movidos pela esperança de sobreviver no Sertão. Para tanto, alojam-se como empregados de uma fazenda. Fabiano, o pai vaqueiro,

trabalhador, sofre para manter sua família, e submete-se à exploração do fazendeiro. Devido à sua ingenuidade, ele é humilhado constantemente em diversas situações, pelo patrão e pelas autoridades representativas das instituições sociais. Sinhá Vitória, sua mulher, a mãe, é responsável pelo trabalho doméstico e controle da casa. Ela carrega consigo o sonho de “uma cama de couro” que simboliza a sua esperança na mudança de vida. Os dois meninos, filhos do casal, meninos sem nome, vivem curiosos a tudo que se passa, e a cadela, Baleia, aparece como integrante da família sertaneja. Fabiano e sua família labutam na tentativa de conseguirem condições de vida mais favoráveis, livre da expropriação dos latifundiários e da seca que agrava suas condições de submissão diante os donos de propriedades da região.

Para Lins, através desta obra, Graciliano Ramos consegue revelar algumas de suas melhores qualidades como escritor. Um livro escrito com maturidade, apresentando a problemática do Sertão nordestino e de seus habitantes através da concisão de suas frases e precisão de sua forma narrativa. Uma referência importante da literatura brasileira.

O cineasta Nelson Pereira dos Santos, por sua vez, nasceu em São Paulo no ano de 1928 e radicou-se no Rio de Janeiro nos anos 50. Ainda estudante, partilhava do pensamento esquerdista de sua geração. Considerado um dos mais importantes diretores do Brasil, Nelson Pereira é conhecido pela ousadia e expressividade de sua obras cinematográficas. Filmou e mostrou os fenômenos sociais do seu país com características realistas, influenciado pelo neo-realismo italiano, realizou filmes imortais para a cinematografia brasileira, um mestre na arte cinematográfica.

Integrante do movimento do Cinema Novo brasileiro, algumas de suas obras possuem forte tendência ao pensamento da esquerda revolucionária dos anos 60. Durante sua carreira, produziu filmes que trazem temáticas suburbanas, acontecimentos sociais e culturais do país, registrou em imagens a história do povo brasileiro, na maioria das vezes. Segundo Ridenti (2000, p.103),

estão na filmografia de Nelson Pereira: a introdução nas telas da vida do homem simples do povo favelado (...); a presença do povo camponês migrante do Nordeste (...); a busca histórica do indígena, das origens brasileiras (...); as raízes negras da sabedoria popular, num projeto de descolonização cultural (...); a cultura de artistas

Referências

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