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O PÍCARO ESPANHOL NA LITERATURA BRASILEIRA: UMA POLÊMICA EM MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS

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O PÍCARO ESPANHOL NA LITERATURA BRASILEIRA: UMA POLÊMICA EM MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS

Aldimeres Ferraz da Silva (G-CLCA-UENP/CJ) Nerynei Meira Carneiro Bellini (Orientadora- CLCA-UENP/CJ)

Resumo: Segundo Antônio Candido (1970), a obra Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, é um típico romance malandro brasileiro e que justamente por isso, não pode ser classificado em stricto sensu como pertencente ao gênero picaresco espanhol. No entanto, Josué Montello (1997) fundamenta-se no contrário, afirmando que tal obra ajusta-se perfeitamente às convenções da picaresca espanhola dos séculos XVI e XVII e que obras como La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autor anônimo, serviram de modelo para sua criação. Tendo em vista as duas posições tomadas pelos críticos, faz-se oportuno empreender uma breve comparação e discussão sobre as supostas variantes pertencentes à obra. O presente trabalho tem como embasamento teórico considerações de: Antonio Candido (1970), Josué Montello (1997) e Mario Miguel González (1988).

Palavras chaves: Romance malandro. Romance picaresco. Memórias de um Sargento de Milícias.

Considerações iniciais

Segundo Josué Montello (1997), a obra Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida, baseia-se primordialmente nos clássicos espanhois dos séculos XVI e XVII e classifica-se como romance picaresco, uma vez que recria no Brasil a picaresca iniciada com tais clássicos adequando-se consideravelmente à sua evolução, fato que acentua a dinamicidade e a mobilidade das diversas literaturas ao longo dos anos. No entanto, Antonio Candido (1970) contrapõe-se a Montello ao afirmar que tal obra é, na verdade, um romance malandro, carregado de características brasileiras e dotado em sua essência de mínimos traços picarescos. Diante de tais proposições, pretende-se com o presente trabalho comparar e discutir a respeito das possíveis variantes do gênero romance as quais se enquadra a obra em questão.

Para tanto, faz-se necessário, em primeira instancia contextualizar brevemente sobre o gênero em questão: o romance e algumas considerações sobre seu nascimento, evolução e principais características, junto à obra de Manuel Antonio de Almeida. Logo após, contextualiza-se também o histórico da picaresca espanhola desde seus anos iniciais, com Lazarillo de Tormes, Gusmán de Alfarache e Él Buscón, e, logo após, é importante também

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colocá-la em paralelo ao conceito de malandro, dado por Candido (1970) como característica intrínseca de Leonardo filho – protagonista da obra de Manuel Antonio de Almeida. Para ele tal personagem caracteriza-se por seus traços malandros que, de acordo com o crítico, são, em parte, distintos dos picarescos. Leonardo, de acordo com Candido, diferencia-se claramente de Lázaro por já nascer malandro e em nada estar preenchido com mínima bondade e ingenuidade. Além disso, diferente de Lázaro, ele não vaga pelas ruas de sociedade em sociedade buscando algum benefício para si. Ao contrário, ele fica apenas em meio aos personagens que aparecem na trama em um espaço comum do Rio de Janeiro.

No entanto, é facilmente perceptível na obra características que dialogam com a picaresca espanhola. O próprio Candido parece rever seus conceitos sobre isso e não nega a possibilidade de alguma intervenção espanhola em sua composição. Contudo, pretende-se neste trabalho promover apenas a comparação e discussão sobre o assunto, deixando de lado sentenças ou opiniões sobre o possível gênero em questão. Entretanto, não se pode negar as marcantes características que nos induzem a perceber em Memórias certa recriação da picaresca espanhola no cenário brasileiro através da figura do personagem malandro, perfeitamente representado por Leonardo filho.

Considerações sobre o gênero Romance

O romance é segundo Cândida Vilares Gancho (1991, p. 7) “uma narrativa longa” levada ao seu ápice mais precisamente por volta do século XIX quando refletia sobre a sociedade burguesa da época. Tal romance que se apresenta como o único gênero nascido e alimentado pela era moderna mundial, pode ser considerado o mais jovem entre os gêneros. De acordo com Bakhtin (1988, p. 398), ele evolui desde sua criação e está sempre em constante mutação assim como um camaleão que busca se adequar as necessidades do homem e por elas se modifica. ”O romance é o único gênero em evolução, por isso reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade” (BAKHTIN, 1988, p. 400). É sempre amorfo (sem forma) e inacabado, de maneira a retratar concomitantemente passado, presente e futuro. E justamente por isso, percebe-se determinada complexidade quanto ao seu estudo, tendo-se em vista suas variantes temáticas, já que há uma grande quantidade de modalidades romanescas e dentre elas o romance malandro e o picaresco.

Pautando-se na divulgação do gênero, no século XVIII escritores franceses ao perceber que as pessoas, principalmente as mulheres, liam com frequência os jornais diários,

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começaram a publicar seus textos e poesias em um pequeno espaço do rodapé deixado exatamente para isso. Depreenderam, assim, que as pessoas compravam os jornais especialmente por causa destes pequenos textos publicados, que tinham o poder de retratar essa sociedade da época e de mostrar a ela sua aparente identidade. Muitas mulheres se viam nas personagens e observavam nelas, inclusive, as características que desejavam em seus maridos. Então, começou-se a publicação e venda em massa dos romances, que no Brasil foram denominados de folhetins. A cada dia vinha uma parte da história e as moças burguesas adoravam e os moços também. No Brasil, formaram-se os gabinetes de leitura, frequentado por boa parte da população burguesa. Dessa forma, um novo gênero se levantava: O romance, que veio para retratar a nova sociedade moderna, imperfeita e inquieta que aos poucos foi se formando.

Nesse contexto, Memórias de um Sargento de Milícias foi publicado inicialmente em folhetim por volta de 1852. Só depois seus capítulos foram compilados e publicados em livro, por volta de 1854. Passa-se no tempo da chegada da família real portuguesa ao Brasil, mais precisamente no espaço do Rio de Janeiro com aspectos verossimilhantes quanto à representação da sociedade da época com suas casas, bares, locais de encontro e etc. É na verdade uma idealização daquela sociedade próxima dos personagens, fato que reafirma a característica do gênero romance como uma modalidade de texto que se aproxima do leitor, principalmente através do riso. Tal riso é segundo Bakhtin (1988, p. 414), meio que leva a “dessacralização” das narrativas, pois agora não existe mais a figura do heroi e dos deuses como nos textos épicos, mas sim o retrato do povo com sua ‘vidinha’, cada um com suas próprias alegrias, tristezas, angústias e risos. Isso é claramente perceptível já no começo da obra no episódio em que Leonardo nasce por meio de pisadelas e beliscões entre Leonardo-Pataca e Maria Hortaliça, que se conheceram no navio vindo de Portugal.

O tempo da obra é psicológico e produzido através de flash backs, daí o título de memórias. É um tempo interno aos personagens e não cronometrado exatamente pelos sentidos do relógio. Além disso, apresenta um narrador onisciente que sabe tudo sobre a narrativa e as cenas, inclusive psicológicas, vividas pelos personagens. Quanto a estes, tem-se a figura de Leonardo, Leonardo-Pataca, Maria Hortaliça, a madrinha, o padrinho, Major Vidigal, o sacristão da Sé, o padre, Dona Maria, Luisinha, José Manuel entre outros. Cada uma dessas figuras tem suas próprias características que se inserem em uma particularidade muito interessante da obra: seu caráter antitético. Segundo Antonio Candido (1970), há dois planos opostos pelos quais os personagens transitam e que caracterizam a dialética da ordem e da desordem. Tem-se aí a presença de aspectos culturais e pessoais de cada personagem que os coloca nestes planos. Leonardo, por exemplo, insere-se no plano da desordem por sua

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condição de protagonista anti-heroi, que com sua esperteza desde a infância, toma uma posição de destaque na trama, contudo sempre sendo “vítima das adversidades ou de seus próprios defeitos de caráter” (GANCHO, 1991, p.15).

Contudo, ao mesmo tempo em que pertence a ordem, tais personagens praticam ações que os levam a desordem, como o padre que embora seja um representante da igreja e consequentemente das boas ações, tem relações com a cigana de forma a se deixar levar ao plano da desordem assim como os outros personagens. Tal fato implica ao nosso estudo relativo à classificação temática do gênero na obra, pois se percebe através de tais considerações que Leonardo, o anti-heroi, sempre esteve localizado entre estes dois planos. Depreende-se, a partir disso, que se ele não é malandro pertencente à desordem, também não pode ser regrado pertencente à ordem. Abre-se então uma lacuna que possibilita encaixar o personagem Leonardo como um pícaro que atravessou as barreiras do tempo e influenciou Manuel Antonio de Almeida na composição de seu romance.

No entanto, deve-se considerar o fato de que mesmo classificando-a como obra construída com base na picaresca espanhola, tal obra reflete características típicas da sociedade brasileira de sua contemporaneidade. Seus personagens, como já exposto, refletem certa verossimilhança diante do leitor, fato que a torna um tanto quanto realista e psicológica. Contudo entra-se em outro contraponto: a picaresca é considerada realista, pois segundo Ian Watt (1990, p. 12) “ao apresentar o comportamento humano, privilegia motivos econômicos ou carnais”. Mas Memórias não retrata de forma exata toda a sociedade brasileira, assim como os pícaros representavam suas origens. Então não se pode classificá-la exclusivamente como realista. É na verdade um romance com traços de malandragem e de picaresca e que nos dias atuais é estudado como Malandro, principalmente por Antonio Candido (1970). Tendo-se em vista sua complexidade quanto à classificação, elabora-se a seguir uma breve contextualização sobre a picaresca espanhola a fim de compreender exatamente as distinções entre romance picaresco e romance malandro.

Contextualização histórica da picaresca espanhola

O romance picaresco tem suas origens remontadas aos acontecimentos políticos que marcaram o lento desenrolar histórico espanhol em meados dos anos de 1490. Nesse período, os últimos povos mouros da Península de Granada foram expulsos, logo após a invasão dos muçulmanos, possibilitando aos espanhóis reconquistarem seu território certo tempo depois. Tal período coincide com a colonização da América e com o fortalecimento dos novos cristãos

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na Península Ibérica - os mouros e muçulmanos convertidos ao cristianismo pela Inquisição promovida pelos reis católicos. Logo, novos povos foram surgindo e uma nova classe social se despontava.

Cerca de sessenta anos após a expulsão do último reduto mouro, publica-se em 1554 o primeiro romance picaresco espanhol – La vida de Lazarillo de Tormes y de Sus Fortunas y Adversidades, de autor desconhecido. Contudo de tal afirmação depreendem-se alguns questionamentos, uma vez que alguns autores afirmam ser Gusmán de Alfarache, de Mateo Alemán, o impulsionador definitivo do gênero em 1599. No entanto, tal afirmação não se fundamenta, pois se percebe claramente em Gusmán características temáticas e estruturais possivelmente recuperadas de Lazarillo. Embora Lázaro não seja o primeiro personagem a ser livremente designado como pícaro, uma vez que Gusmán é que foi, cabe ao personagem de autoria desconhecida o título de pioneiro do gênero na Espanha.

De acordo com Gonzáles (1988, p. 38-39), definir exatamente o gênero picaresco não é tarefa fácil. Para o autor, há algumas dificuldades que impossibilitam a definição profícua, pois, existe uma quantidade relativamente grande de obras aproximadas ao gênero. Além disso, não se pode definir algo levando em conta apenas uma pequena parcela de seus feitos. É complicado encontrar exatamente os critérios que devem ser levados em conta para a classificação do gênero, uma vez que, são várias as opiniões sobre isso. Uns afirmam que Gusmán é o ponto crucial da definição, ou seja, a picaresca surge a partir de sua publicação. Outros acreditam que a conduta dos personagens é que é o clímax da definição. Já outros supõem que o pícaro restringe-se apenas ao contexto espanhol de forma que fora da Espanha não há picaresca. Então Gonzáles (1988, apud, Martini, p.02-03) arrisca-se a uma definição na qual a característica picaresca está na:

Pseudo-auto-biografia de um anti-herói que aparece definido como marginal à sociedade; a narração das suas aventuras é a síntese crítica do processo de ascensão social pela trapaça; e nessa narração é traçada uma sátira da sociedade contemporânea do pícaro.

De acordo com Gonzáles (1988), o gênero define-se a partir da chamada tríade picaresca – Lazarillo, Gusmán e El Buscón, e da autobiografia presente nas três obras. Contudo, tal definição encontra-se deficiente, pois como se sabe, não se pode definir um gênero todo ao analisar apenas três de suas obras. Há várias outras que devem ser levadas em conta em tal análise, uma vez que todas se aproximam basicamente do gênero. Quanto à autobiografia, percebe-se claramente que há obras de cunho picaresco que apresentam

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narrador em terceira pessoa, e não apenas em primeira como na tríade clássica. Dessa forma, não é fácil ater-se a uma definição.

Algumas características típicas dos pícaros, segundo Martini (2011, p.03), são: “o parecer ser (o fingir), a trapaça, o rufianismo, a itinerância e a sátira social”. O personagem espanhol encontra-se como egocêntrico e pragmático, uma vez que age com suas artimanhas desenvolvidas durante os acontecimentos da vida, visando alcançar seu objetivo central: jamais trabalhar. Dessa forma, tem-se que eles almejam tornar-se “homem de bem, à custa da própria honra” (MARTINI, 2011, p.03), ou seja, preferem conquistar a “vida boa” por meio das traquinagens, ao trabalhar honradamente para receberem o que devidamente for merecido.

Sabe-se que ainda no ambiente familiar os pícaros encontram dificuldades em serem estabelecidos de acordo com a ordem. Tal ambiente apresenta-se como impulsionador da vida delinquente, uma vez que os próprios pais encontram-se envolvidos na picardia. O pícaro, de início dotado de envolvente ingenuidade e falsa candura, aprende com os fatos da vida a tornar-se “esperto” e a lutar por si só. Daí depreende-se a característica egocêntrica, típica de tais personagens. Quanto ao rufianismo, percebe-se que todo pícaro pretende não só lutar pelo que quer, mas também manter o que já conseguiu. Lázaro, por exemplo, preferiu entregar-se a imoralidade a renunciar ao casamento ajeitado, uma vez que não queria perder a comida e o conforto que lhe era oferecido.

Almejando, portanto, discutir o gênero romanesco pertencente à obra Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antonio de Almeida, fez-se necessário contextualizar brevemente o histórico picaresco espanhol, demarcando suas principais características, obras e definições. A partir daqui, tem-se algumas ferramentas necessárias para a sucinta discussão e comparação entre pícaros e malandros, apoiando-se nas proposições teóricas de Candido (1970) e Montello (1997).

A picaresca deslocada no tempo ou marco de originalidade brasileira

Pautando-se nas proposições teóricas divergentes de Candido (1970) e Montello (1997), tem-se que o estudo comparado entre pícaros e malandros apresenta-se como ponto fértil às pesquisas, tendo em vista, no caso de Memórias de um Sargento de Milícias, a dificuldade em se apontar a variante romanesca ao qual se identifique. Candido (1970), em seu ensaio Dialética da Malandragem, afirma que Memórias não pode ser considerada romance picaresco, uma vez que apresenta características distintas de tal gênero, opondo-se

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claramente as opiniões de Silvio Romero, Mario de Andrade e Josué Montello que a vêem como romance de cunho picaresco deslocado no tempo.

Segundo Montello (1997) tal obra de Manuel Antônio de Almeida fundamenta-se nos clássicos espanhois dos séculos XVI e XVII, tomando-os como modelo básico a sua produção. Para ele, o personagem principal – Leonardo filho – ajusta-se perfeitamente às características da picaresca espanhola, contudo, adaptando-se às transformações pelas quais passa o sistema literário brasileiro ao longo dos anos. Dessa forma, tal obra indicaria a recriação da picaresca espanhola no Brasil, comprovando sua evolução desde a época clássica e reafirmando o dinamismo e a mobilidade, traço típico de todas as literaturas que utilizam ferramentas como a intertextualidade, a paródia e o pastiche para recriar no presente o resgate do passado, colocando a moda brasileira que o pícaro ‘abrasileirado’ na verdade denomina-se malandro. No entanto, Candido (1970) opõe-se a tal afirmação.

Para ele, Memórias inaugura o primeiro malandro a participar da literatura nacional – Leonardo filho, seguido posteriormente por Macunaíma – e identifica-se perfeitamente com a cultura brasileira, possuindo o chamado “jeitinho brasileiro” utilizado para alcançar determinados objetivos. O autor argumenta que falta ao personagem “um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das picardias” (CANDIDO, 1978, apud, MARTINI, 2011, p. 05). Leonardo ao contrário dos pícaros, já nasce malandro. Não tem a falsa candura e ingenuidade que os personagens espanhois possuem desde a infância, uma vez que, estes aprendem com as circunstancias da vida e só então desenvolvem seu caráter egocêntrico e pragmático.

Na origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa; mas Leonardo, bem abrigado pelo padrinho, nasce malandro feito, como se se tratasse de uma qualidade essencial, não um atributo adquirido por força das circunstâncias. (CANDIDO, 1978, apud MARTINI, 2011, p. 05)

Percebe-se então o teor de tal diferença levantada por Candido. Enquanto os pícaros aos poucos vão ganhando sua personalidade e tornando-se o que realmente são, Leonardo já nasce imbuído de pura malandragem, dotado de trapaças e espertezas. Contudo, algumas características pícaras perpassam sua infância, ainda que em pequena relevância. “Gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o levassem a esse fim” (ALMEIDA, 1998, p. 20). Percebe-se aí, em contraponto, algumas características típicas dos pícaros como o egocentrismo e o desejo de alcançar certos objetivos por meio da ‘esperteza’ e do engano,

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possuindo aversão ao trabalho honesto. Depreende-se então tamanha dificuldade em analisar-se a figura de Leonardo, tendo em vista analisar-seu suposto lado pícaro que analisar-se opõe ao lado malandro indicado por Candido.

Além disso, Candido (1970) elenca algumas características que a nós torna-se essencial no presente estudo. Para ele, os romances picarescos apresentam o pícaro como narrador de suas próprias aventuras, fato que não ocorre em Memórias de um Sargento de Milícias. Leonardo nunca narrou suas histórias, pois quem o faz é um narrador onisciente. Dessa forma, tal personagem embora seja o anti-heroi da trama, é visto como mais um personagem, assim como os outros. Isso nos remete a questão elencada por Gonzáles (1988) ao tentar definir exatamente as características do gênero picaresco. Para ele, toda obra pícara apresenta o narrador em primeira pessoa e tal característica depreende-se apenas da análise em stricto sensu da tríade clássica espanhola. Dessa forma, entende-se que se Candido apóia-se nas proposições de Gonzáles de que o gênero picaresco define-apóia-se apenas pelas três obras clássicas, realmente não se pode classificar a obra em estudo como romance picaresco. No entanto, ao negarmos as considerações de González, de que não se pode definir um gênero por apenas algumas de suas obras, caímos nas proposições de Montello de que o gênero em questão evolui, assim como a literatura em si se modifica.

Ao tomar-se, então, de acordo com Candido (1970), a idéia de malandro como personalidade intrínseca de Leonardo, deparamo-nos com o termo malandragem, que está estritamente ligado ao vocábulo anterior. Segundo o dicionário Aurélio, tal termo significa “conjunto ou reunião de malandros”, e ainda, em uma definição mais profícua: “o ato, a qualidade ou o modo de vida daquele que a pratica” (BOTOSO, 2011, p. 07), designando o uso de ferramentas como a trapaça e o engano para benefício de si próprio. Percebe-se, então, que tal termo remete a certa carga negativa, impulsionada por atos causadores de danos ou lesões a terceiros, geralmente típicos de tais personagens. Contudo, tal definição pode ainda ser complementada ao tomar-se a figura do malandro como um ser estabelecido entre a ordem e a desordem e que destas esferas retira sempre algum proveito para si mesmo. Surge, então, de acordo com Candido, a idéia do romance malandro, composto por um personagem anti-heroi, dotado de esperteza, individualismo, astúcia e negação ao trabalho. Tal personagem é nas palavras de Matos (1982, apud, Botoso, 2011, p. 08) “um ser da fronteira, da margem”, uma vez que não se pode defini-lo por meio dos extremos – honesto ou ladrão, mas sim pelo seu ‘jogo de cintura’ e mobilidade esperta diante de certas situações. Então, para Candido (1970, apud, BOTOSO, 2011, p. 03):

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Leonardo não é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca do seu tempo, no Brasil. Malandro que seria elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma.

Depreende-se, então, que Candido não aceita Memórias como obra filial da picaresca espanhola, mas a coloca como pioneira do gênero romance malandro no Brasil. Tal malandro é visto nas palavras de Candido como “espécie de um gênero mais amplo do aventureiro astucioso, comum a todos os folclores” (CANDIDO, 1970, apud, BOTOSO, 2011, p.03). O personagem “esperto”, trapaceiro e sagaz. Aquele que faz de tudo para “se dar bem” e que ao contrário dos pícaros, não sofre penosamente para alcançar seus objetivos. Assim, enquanto Lázaro vagava de amo em amo em sua servidão, passando por fome e humilhações até alcançar sua suposta “vida boa” e rendendo-se ao rufianismo em um casamento imoral, Leonardo, logo após ser abandonado por seus pais, ganha um protetor – seu padrinho – quem lhe garante, à custa de um bom coração, toda uma “vida fácil” sem muitos custos.

Contudo, o próprio Candido (1970) que se opõe a Montello (1997), fundamentando-se na falta de provas deste em relação às suas afirmações, reconhece depois que tal obra “possa ter recebido sugestões marginais de algum outro romance espanhol ou feito à maneira dos espanhois, como ocorreu por toda Europa no século XVII e parte do XVIII” (CANDIDO, 1970, apud, BOTOSO, 2011, p. 02). Não cabe a nós, neste breve trabalho, sentenciar-se sobre as duas vertentes levantadas pelos críticos, uma vez que, tal condição exige complexa pesquisa e investigação. No entanto, é relevante considerar-se tal afirmação de Candido (1970) que parece rever seus conceitos ao reconhecer a humilde presença dos romances espanhois na obra de Manuel Antonio de Almeida, assim como o faz o crítico Josué Montello.

Considerações finais

O breve estudo cujo objetivo visou a compreensão das distintas vertentes levantadas por Candido (1970) e Montello (1997) proporcionou a nós conhecer um pouco mais sobre tais gêneros que devido à visível semelhança entre si, encontram-se ainda como fonte viva e fértil para pesquisas e estudos. Visando-se elaborar uma sucinta discussão sobre o assunto, foi fundamental neste trabalho, abordar em primeira instância algumas considerações sobre o gênero romance e sobre a obra em questão junto ao contexto histórico da picaresca espanhola dos séculos XVI e XVII, elencando suas principais características, obras e definições. A partir

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disto, pode-se fazer a simples comparação entre os gêneros romance malandro e romance picaresco, apoiando se nas proposições de Candido (1970) e Montello (1997).

Desta forma, compreendeu-se que a obra Memórias de um Sargento de Milícias apresenta, em seu enredo, tanto características picarescas, quanto relativas à malandragem, o que torna complexo seu estudo comparativo realizado pelos críticos brasileiros. Leonardo filho apresenta em seu caráter características malandras que remetem a picaresca de personagens como Lázaro de Tormes. Segundo Martini, “dizer que Leonardo não é um pícaro [...] é uma pretensa forma de originalidade. Que Leonardo é malandro, isso não se pode negar.” (MARTINI, 2011, p. 06) Não cabe neste simples trabalho definir-se uma modalidade específica para a obra, uma vez que se tem como objetivo apenas a profícua discussão sobre o assunto. No entanto, assim como Candido (1970), que de certa forma revê suas proposições e supõe, ainda que ao mínimo, alguma influência pícara na obra, é também para nós facilmente considerável a recriação da picaresca espanhola no cenário literário brasileiro através da figura do personagem malandro, bravamente inaugurado por Leonardo Filho e seguido por tantos outros como o próprio Macunaíma de Mario de Andrade.

Referências

ALMEIDA, M. Memórias de um Sargento de Milícias. 30. ed. São Paulo: Ática, 1998.

ANÔNIMO. La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades. Edición de Victor García de la Concha. Madrid: Austral, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini et al. 4. Ed. São Paulo: Editora UNESP, 1988.

BOTOSO, Altamir. A recriação do pícaro na literatura brasileira: o personagem malandro. Porto Alegre: Letrônica, 2011.

CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (Caracterização das Memórias de um sargento de milícias). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. N. 8. Universidade de São Paulo, 1970, p. 67-89.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1991.

GONZÁLEZ, Mario Miguel. A saga do anti-herói: estudo sobre o romance picaresco espanhol e algumas de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

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MARTINI, Luiz Francisco Martorano. Picaresca ou malandragem em Memórias de um Sargento de Milícias. Acta Científica da UNASP – São Paulo, SP, 2011.

MONTELLO, J. M. A. In: COUTINHO, A. A literatura no Brasil: era romântica. São Paulo: Global, 1997.

WATT, Ian. O realismo e a forma romance. A ascensão do romance. São Paulo: Cia das letras, 1990.

Para citar este artigo:

SILVA, Aldimeres Ferraz da. O Pícaro espanhol na literatura brasileira: uma polêmica em Memórias de um Sargento de Milícias. In: XII CONGRESSO DE EDUCAÇÃO DO NORTE PIONEIRO Jacarezinho. 2012. Anais. ..UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná – Centro de Ciências Humanas e da Educação e Centro de Letras Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2012. ISSN – 18083579. p. 398 – 408.

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