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Mudando de lado - de Jornalista a assessor de imprensa governamental (2002-2011)

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I

Mudando de lado –

de jornalista a assessor governamental

(2002-2011)

Jair Norberto Rattner

Tese de Doutoramento em Ciências da Comunicação

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IV

Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências da Comunicação, realizada sob a orientação científica do Professor

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V

Para Miriam, minha mãe.

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VI

Agradecimentos

Após 35 anos no mercado de trabalho, esta tese é resultado de uma volta à Universidade - assim, com a inicial em maiúscula. Um espaço livre de debate de ideias, onde as concepções teóricas estabelecidas não têm o caráter do sagrado. Podem ser discutidas, questionadas, negadas, pode-se reinventar o mundo, desde que esta elaboração seja coerente e explique melhor que a anterior.

Os meus primeiros agradecimentos vão para aqueles que me ajudaram a construir o percurso pela faculdade. A cada "vítima" com quem eu ia testando e polindo as minhas ideias, as construções teóricas que estavam nascendo, as que resultaram e as que não tiveram coerência para serem desenvolvidas.

Foi um período de convívio num espaço de saberes, onde tive a oportunidade de aprender sobre temas os mais diversos. Sobre o período da ditadura portuguesa e resistência com os colegas que se dedicavam à história, como a Marta Silva, sobre o autoritarismo franquista com o Pau Casanellas, sobre jornalismo para adolescentes com a Juliana Doretto, sobre a literacia digital de idosos com a Celiana Azevedo, sobre o tráfico de escravos para o Brasil com o Cândido Domingues. Não posso esquecer também o Victor Braga, com quem sempre aprendi muito nas nossas discussões sobre a área da comunicação, entre outros.

E, de vez em quando, de algumas dessas situações surgia algo que acabava por contribuir para as minhas elaborações. Assim, foi numa palestra do amigo Gilberto Costa no ISCTE, em que ele falou a respeito do que é visível e o que é invisível na cobertura jornalística - tema da sua tese de doutoramento - que me veio a ideia de trabalhar sobre a visibilidade. E foi uma conversa com outra colega, a psicóloga Vanina Dias, que resultou na indicação de que Freud tinha trabalhado sobre esse tema.

Na investigação, tenho muito a agradecer a cada pessoa que me forneceu contatos para que conseguisse os dados biográficos e as entrevistas no longo processo até reunir informações sobre os assessores de imprensa que estiveram nos governos portugueses entre 2002 e 2011.

E deixo um agradecimento especial ao professor António Granado, que aceitou ser o meu orientador, pelos comentários e correções, além de ter exigido um pouco mais quando o cansaço do processo me inclinava a buscar uma forma mais rápida de concluir este trabalho.

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VII

Resumo

A maior percentagem dos jornalistas que mudaram de lado e foram trabalhar como assessores de imprensa do governo português, continuou ligada ao Estado ou ao poder político após deixar o trabalho governamental. Esta é a conclusão desta tese, que analisou o percurso profissional dos profissionais da informação que foram ser assessores do governo português entre entre 6 de abril de 2002 e 12 de junho de 2011 – abarcando dois governos PSD-CDS e dois governos PS, ou seja, o conjunto dos partidos que desde 1975 ocuparam o poder em Portugal.

A investigação dividiu os destinos profissionais em quatro tipologias: além dos que ficaram na órbita do Estado, organismos dependentes do Estado e dos partidos políticos (33,3%), um segundo grupo voltou ao jornalismo (28,7%), o terceiro é o dos que foram para a comunicação empresarial (19,5%) e 18,4% retiraram-se do campo da comunicação. No período analisado, entre os 129 assessores de imprensa que foram nomeados para os governos – dois encabeçados pelo PS e dois dirigidos por coligações entre o PSD e o CDS – 64,3% dos assessores vieram do jornalismo e, desses, 51,8% eram mulheres. O número dos que tinham cursos superiores chegou a 66,3% dos jornalistas e, no que toca à experiência profissional, o maior grupo era o que tinha entre 5 e 9 anos de trabalho (36%), seguido dos que tinham 15 ou mais anos de trabalho (28%). Um terceiro grupo tinha entre 10 e 14 anos como jornalistas (24%) e apenas 12% tinham entre 0 e 4 anos de jornalismo.

O trabalho também incluiu entrevistas com os ex-assessores governamentais sobre as questões éticas e deontólógicas colocadas pela mudança de lado de jornalistas para fontes profissionalizadas – e como os profissionais viveram essa mudança –, sobre a relação entre jornalistas e assessores, além de outros aspectos da passagem do jornalismo para a assessoria.

No campo teórico, partiu-se da concepção da esfera pública como território coletivo de inter-relações humanas, visto como um tecido social em que atuam os campos, conforme teorizado por Bourdieu. Ao tratar da comunicação – o campo da visibilidade, segundo Bourdieu – procurou-se melhor compreender o seu funcionamento, recorrendo-se para isso à teoria freudiana sobre a visibilidade, relacionada por Freud à histeria.

Na distinção entre jornalistas e assessores, a partir da sociologia das profissões caracterizou-se o jornalismo como uma profissão e a assessoria de imprensa como uma ocupação profissional. No que diz respeito à atuação da assessoria de imprensa na construção da notícia, foram identificados três níveis de procedimentos: o dirigido ao gatekeeping, o voltado para a construção da agenda e o que tem como meta a criação da narrativa, que enquadra os outros dois.

Palavras-chave: jornalismo, assessoria de imprensa, desconstrução, esfera pública,

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VIII

Abstract

The largest percentage of journalists that changed sides and went to work as government press attachés stayed in positions related to the State or the public power after the term of the government they worked for. This is one of the conclusions of this study that focused on the career of the information professionals that worked as government PR between April 6, 2002 and June 12, 2011 – comprising two PSD-CDS governments and two Socialist Party governments, the three parties that since 1975 were in the country's governments.

The research allowed to identify four categories of professional destinies: the ones that stayed in the orbit of the State, political parties and institutions and companies dependent of the government (33.3%); the second group was formed by those who returned to journalism (28.7%); the professionals that went to communication consultancies (19.5%); and those who abandoned the communication field (18.4%). During this nine year period four Portuguese governments – two run by the Socialist Party and two by a coalition of the center-right PSD/CDS parties – that hired 129 press attachés and 64.3% of them were journalists. Among those journalists, 51.8% were women, and 66,3% of the journalists had a University degree. The largest group to these journalists had between 5 and 9 years of professional experience (36%), followed by those that had 15 or more years of work experience (28%), the ones between 10 and 14 years of work experience (24%) and only 12% had worked as journalists up to four years.

The research also included interviews with these former press attachés with questions on the ethical and deontological issues involved in the changing sides from journalism to the government work and how they faced these changes, as well as how they viewed the professional relationships between journalists and press attachés.

In the theoretical area, the starting point was the concept of the public sphere as common social territory in which human inter-relations occur, considering this territory as a social tissue where the fields – as Bourdieu theorized – interact. In an effort to better understand Communication, seen by Bourdieu as the field of visibility, this thesis used the Freudian theory on visibility, related to the manifestation of hysteria.

Using the categories of the Sociology of Professions, Journalism was characterized as a profession and the work of press attachés as an occupation. In what concerns the PR activity in relation to the news publishing, this thesis identified three types of proceedings: influencing the gatekeepers; agenda building; and the creation of narratives.

Keywords: journalism, press consultant, deconstruction, public sphere, fields,

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IX

Índice

Introdução 1

Capítulo 1 8

Por uma conceitualização do espaço público

Capítulo 2 30

Sobre jornalismo e assessoria

Capítulo 3 56

Da natureza do jornalismo – questões éticas e deontológicas

Capítulo 4 84 Metodologia Capítulo 5 123 Assessoria e jornalismo Conclusões 172 Bibliografia 181

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X

Índice dos apêndices

Apêndice 1 – Dados biográficos dos assessores 205

de imprensa dos governos de 2002 a 2011

Apêndice 2 – Entrevistas

1 Entrevista com Alexandre Barata 289

2 Entrevista com Andreia Duarte 293

3 Entrevista com Antonio Carneiro Jacinto 297

4 Entrevista com Carlos Simões 304

5 Entrevista com Dalila Carvalho 313

6 Entrevista com David Dinis 322

7 Entrevista com Fátima Alves 326

8 Entrevista com Fernando Lima 335

9 Entrevista com Inês Rapazote 344

10 Entrevista com Isabel Athayde Cordeiro 346

11 Entrevista com Ivone Dias Fereira 352

12 Entrevista com Joana Réfega 360

13 Entrevista com Jorge Costa 364

14 Entrevista com José Pedro Santos 368

15 Entrevista com Leonor Ribeiro da Silva 374

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XI

17 Entrevista com Manuel Meneses 385

18 Entrevista com Margarida Bon de Sousa 390

19 Entrevista com Maria de Lurdes Sousa 396

20 Entrevista com Maria do Céu Novais 399

21 Entrevista com Maria Rui 409

22 Entrevista com Mário Ribeiro 415

23 Entrevista com Miguel Guedes 421

24 Entrevista com Rita Tamagnini 428

25 Entrevista com Rosário de Abreu Lima 431

26 Entrevista com Rui Calafate 437

27 Entrevista com Susana Gaião Mota 442

28 Entrevista com Susana Lemos 447

29 Entrevista com Teresa Pina 452

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1

Introdução

A comunicação social tem sido uma das áreas da sociedade com maiores mudanças nos tempos mais recentes. A cada vez maior dependência da sociedade da comunicação informatizada, inicialmente com a onipresença da Internet e, na sequência, com o surgimento das várias redes sociais, provocou uma mudança na área, e mais especificamente no jornalismo, resultando no enfraquecimento das organizações tradicionais e no surgimento de novas organizações.

Estas transformações – que Castells apresenta como "um período da história caracterizado pela ampla desestruturação das organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais e pela expressões culturais efémeras" (Castells, 2002: 3) – têm provocado alterações na relação existente entre os indivíduos e o espaço público, o que envolve aspectos que vão do acesso à informação, com consequências no que diz respeito ao tipo e à qualidade da informação transmitida, no trabalho do profissional cuja função é transmitir essa informação, nas considerações éticas e deontológicas dos que lidam com essas informações profissionalmente e nas relações entre as tarefas de reunião e seleção de informações e passagem delas ao público e as esferas do poder. Como afirma McNair:

"O processo político, na sua manifestação pública, chega aos cidadãos como produto de um conjunto de códigos e práticas jornalísticas (o sistema dominante de valores-notícia, estilos de entrevistas, linhas-mestras de imparcialidade e objetividade) que interagem com e são formatadas por políticos e seus conselheiros profissionais de comunicação, ao negociarem o acesso ou então buscarem influenciar o que é publicado na imprensa política de forma que lhes seja favorável" (McNair, 2000: 1)

Este trabalho tem como objeto analisar uma faceta dessa relação entre os profissionais do jornalismo e as instâncias de poder. Dentro de um processo de mudança, o foco está centrado numa transformação profissional específica – a dos jornalistas que foram trabalhar como assessores de imprensa para o governo português. Procura-se nesta tese conhecer o percurso profissional dos jornalistas que deixam a profissão para trabalharem como assessores de imprensa depois de saírem do governo. Uma questão acessória, a ser respondida pela investigação, debruça-se sobre se é possível definir redes de poder a partir dos percursos profissionais dos jornalistas que foram assessores de imprensa do governo – entendendo rede de poder como uma estrutura mais ou menos formalizada que organiza setores sociais no sentido de obter hegemonia sobre os mesmos. Não se trata apenas de analisar o que ocorre em relação a forças políticas determinadas, mas sim de procurar uma tendência geral, que vá além de uma análise das práticas de um ou outro partido. Nesse sentido, foi tomada a opção de realizar o estudo sobre os que executaram as funções de assessores de imprensa de um período que abrange

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o conjunto das forças políticas portuguesas que estiveram no poder em Portugal a partir de 1975. Para isso, fixou-se para a análise um prazo de cerca de nove anos – de 6 de abril de 2002 até 20 de junho de 2011 –, que abrange dois governos compostos pelo Partido Social Democrata e pelo Centro Democrático Social e dois governos compostos pelo Partido Socialista. Tratam-se dos governos chefiados por José Manuel Durão Barroso, Pedro Santana Lopes e José Sócrates.

O exercício da assessoria de imprensa governamental constitui, por definição, uma situação profissional transitória. São cargos de confiança. escolhidos pelos governantes segundo critérios de lealdade e proximidade política. Quando os governantes abandonam os governos, com eles também saem os assessores que, durante o período em que ocuparam o lugar, foram os responsáveis por gerir a visibilidade dos mandatários.

Trata-se de um estudo que inicialmente se procurava inserir no campo da sociologia da comunicação, mas que avançou para o campo epistemológico e da ética, adentrando a área normalmente atribuída à filosofia da comunicação ao procurar compreender a natureza dos processos comunicacionais. Ao mencionar a sociologia da comunicação não se procura o estudo dos efeitos da comunicação na sociedade, mas sim das relações sociais que surgem em consequência de fenómenos sociais comunicativos. Não se trata, como grande parte dos trabalhos em sociologia da comunicação, de verificar qual o envolvimento sociológico dos atos comunicacionais, mas antes ajudar a identificar as determinantes sociais do produto jornalístico.

Este estudo está integrado no campo que McNair considera a sociologia do jornalismo e que analisa a conexão entre o jornalismo e a sociedade em que ele se produz, tendo em conta dois aspectos fundamentais: o impacto dos media jornalísticos e o seu contributo nas atividades da sociedade e as determinantes sociais do produto jornalístico, que são sistematicamente resultantes de uma multiplicidade de forças culturais, tecnológicas, políticas e económicas específicas que ocorrem num contexto social e temporal específico (McNair, 2000: 3).

Uma outra abordagem à sociologia do jornalismo em que este estudo pode ver-se inserido é a que propõe Neveu, que considera esta área do conhecimento como sendo o estudo das hierarquias próprias do jornalismo e das empresas de comunicação social, assim como o seu relacionamento com as fontes de informação, poderes sociais e públicos (Neveu, 2005: 10).

Ao buscar redes de poder, pretende-se fazer luz sobre mecanismos e processos que estão marcados pela atividade do comunicador e que surgem em consequência desta. Pode-se situar este estudo no que diz respeito à abordagem sociológica da sociologia das notícias, dentro da esquematização proposta por Schudson.

Schudson faz um levantamento em que propõe a existência de quatro abordagens à sociologia das notícias: a política, a econômica, a sociológica e a cultural. Tanto a política quanto a econômica relacionam o produto do processo de criação de notícias à estrutura do Estado e da economia; a sociológica, busca as raízes no estudo da

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organização social, nas ocupações e profissões, além das construção social da ideologia; a cultural centra a sua atenção nas limitações impostas pelas tradições culturais e nos processos simbólicos (Schudson, 2005: 174).

Pretende-se que o estudo do percurso dos jornalistas que se tornam assessores de imprensa constitua um passo na análise de um fenómeno social, pois a partir da profissionalização das fontes, os assessores passaram a constituir parte do processo de produção de notícias, do jogo de interesse e negociações que acaba por forjar o produto acabado que chega ao leitor, espectador ou ouvinte.

Por conseguinte, este estudo está situado no campo da sociologia da comunicação, no sentido de que versa sobre a comunicação e a sua relação com a sociedade em que está inserida e de que faz parte. Ao acompanhar trajetos sociais de um grupo de profissionais que teve uma passagem pelos corredores do poder, busca-se marcadores comuns que sejam indicadores de relações de poder.

Apesar de o objetivo ser estudar fenómenos gerais, não se pode esquecer que os objetos analisados constituem-se de percursos individuais. É de notar que o exercício do poder, apesar de constituir um ato que normalmente é analisado sob o ponto de vista do coletivo, traz, para o grupo social ou de interesses que o exerce, as vantagens inerentes a ter um papel hegemônico na definição de rumos da sociedade que lidera.

Sem fazer parte diretamente dos grupos que exercem a hegemonia política, os assessores de imprensa constituem, na atual sociedade e conjuntura, elementos fundamentais para a consecução dessa hegemonia, ao garantir a visibilidade política de sentido positivo dos grupos que disputam o poder político, o que se revela fundamental para que esses grupos possam executar os seus objetivos e manter-se no poder.

No caso de Portugal, a passagem dos jornalistas profissionais para a área da assessoria de imprensa constitui uma tendência que, apesar de afirmada e reafirmada por muitos profissionais, foi objeto de muito poucos estudos, o que se deve, em grande medida, à falta de um registo profissional dos assessores.

Os dados sobre o número de possuidores da carteira profissional de jornalista, segundo a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, em 15 de outubro de 2018 chegavam a 5.781, sendo que somam-se mais 164 títulos provisórios de estagiários de 12 meses e 98 títulos provisórios de estagiários de 18 meses. Em 3 de dezembro de 2018, o número mais alto de uma carteira profissional válida era 7.395 – segundo a comissão da carteira, é impossível afirmar com exatidão quantos desses jornalistas encontravam-se ativos nesse momento.

Por outro lado, não existem dados a respeito do número de assessores de imprensa que trabalham em Portugal, segundo a Associação Portuguesa das Agências de Publicidade, Comunicação e Marketing. A falta de dados a respeito da passagem de jornalistas também está relacionada com o facto de que poucos desses profissionais cumprem o que está previsto no estatuto do jornalista, que prevê a suspensão da carteira

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profissional para exercer atividades consideradas incompatíveis. Coimbra (2008) regista que, entre 1990 e 2006, apenas 268 jornalistas suspenderam a sua carteira para realizarem trabalhos incompatíveis e apenas seis declararam que o objetivo da suspensão era trabalhar em agências de comunicação.

A falta de dados não ocorre apenas em relação à situação portuguesa. É mais aguda em países como o Reino Unido, a Espanha ou os Estados Unidos, em que não é necessária nenhuma chancela oficial para o exercício da profissão e menos ainda para atuarem como assessores de imprensa. Na Alemanha, um estudo realizado por Buckow indica que cerca de metade dos jornalistas tem uma segunda ocupação como assessores de imprensa (Buckow, 2011: 72). Ao avaliar a situação australiana Ward concluiu que se vivia num "PR state", ou “Estado relações públicas”, depois de constatar que cerca de 4.000 jornalistas trabalhavam como assessores de imprensa no governo nacional ou nos governos regionais australianos em 2006 (Ward, 2007: 3).

No caso português, acresce a esta falta de dados as consequências da instabilidade vivida pelo campo da comunicação social, com as modificações decorrentes das mudanças tecnológicas que advieram do surgimento da Internet – que reduziu as receitas dos meios tradicionais de informação – e das redes sociais, que para muitos substituíram a imprensa, o rádio e a televisão como fornecedores de notícia. Essa mudança nas relações entre leitores e órgãos informativos acabou por provocar uma redução da dimensão das redações dos jornais e até mesmo modificações na forma de fazer jornalismo, com uma maior incidência do efêmero e superficial, em prejuízo da busca de informações comprovadas e análises aprofundadas.

Um país onde há mais dados a respeito da situação de jornalistas e assessores de imprensa é o Brasil, país que exige um diploma de jornalista para o exercício profissional e, ao mesmo tempo, considera, segundo o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que a assessoria de imprensa deva ser exercida por profissionais formados em jornalismo e com o devido registo.

A situação brasileira permitiu observar uma mudança no campo da comunicação, registada em artigo de Marina Rossi publicado em 25 de janeiro de 2014, que verificou que o número de jornalistas profissionais nas grandes empresas de assessoria de imprensa brasileira era superior ao número de jornalistas nas redações dos principais jornais do país. Entre os dados, Marina Rossi cita as duas maiores empresas de assessoria de imprensa no Brasil – a FSB, com 650 jornalistas, e a CDN, com 400 – comparando a situação no jornal O Estado de S. Paulo, que tinha 280 jornalistas contratados, e com o grupo Folha, que edita dois jornais, a Folha de S. Paulo e o Agora, que tinha 400 jornalistas (Rossi, 2014). Desde essa época, houve sucessivas reduções das redações desses jornais.

Outro dado do Brasil foi publicado pelo instituto DataViva, que em 2012 fez um levantamento em todo o país e referiu a existência de 44.900 profissionais que tinham como emprego registado nas suas Carteiras de Trabalho – o documento de identificação profissional existente no Brasil – a função de jornalista. Desse total, apenas 44,9%

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trabalhavam em empresas que tinham como objetivo a publicação ou emissão de produtos informativos, o que indica que o número de jornalistas é inferior ao dos assessores de imprensa (DataViva, 2012).

Ainda sobre o caso brasileiro, mas com conclusões que podem ser clarificadoras de uma tendência geral do jornalismo internacional, um estudo elaborado por Kupfer (2014: 18/21) – a partir de um levantamento realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo de Investigação nos anos de 2012 a 2014 – relata que está ocorrendo uma concentração dos textos jornalísticos em um número reduzido de fontes de informação, sendo que cada vez mais se multiplicam as assessorias de imprensa. A mesma situação foi relatada já em 1998 no 3º Congresso dos Jornalistas Portugueses, em que Bom afirmou que "mais de dois terços das informações hoje publicadas pelos media na União Europeia provêm de fontes organizadas" (Bom, 1998: 122).

Ante uma área de trabalho pouco explorada, mais especificamente no que diz respeito à realidade portuguesa, este estudo busca trazer algumas pistas no sentido de compreender como se processa a relação entre o jornalismo e as instâncias de poder. Trata-se de um tema que envolve o processo pelo qual a comunicação de informações ocorre na esfera pública, vista aqui como o território coletivo de inter-relações humanas. Assim, no primeiro capítulo desta tese procura realizar o que chamei de arqueologia filosófica do espaço público em que, partindo do conceito de jogo de palavras, elaborado por Wittgenstein (2001), chega-se a uma formulação não habermasiana que considera a esfera pública não como tendente à igualdade e inclusão – como propõe Habermas no seu primeiro livro sobre este tema, que data de 1962 (Habermas, 2012) –, mas sim como espaço de conflitos, que se move através de processos de inclusão e exclusão, de identidade e desigualdade. Procura-se, na linha do que foi proposto por Neveu e Benson (2005), encontrar também o caminho das afinidades teóricas entre o conceito de esfera pública e o dos campos, conforme proposto por Bourdieu.

Segue-se um capítulo que trata da das relações entre o jornalismo e a assessoria de imprensa. A partir da constatação de que estas duas ocupações têm valorações diferentes por parte da sociedade, procura-se explicar o motivo desta diferença. Em seguida, é colocada a questão do estatuto do jornalismo e da assessoria de imprensa enquanto profissão ou ocupação profissional, a partir das várias linhas adotadas pela sociologia da profissão. A seguir, é abordada a questão do relacionamento entre os media e o poder político, inserindo-se aí o papel dos assessores de imprensa como elementos de intermediação. Num ponto posterior, trata-se da relação dos assessores de imprensa com os jornalistas, apresentando-se as duas visões a respeito da ligação entre estes, de conflito ou de colaboração, incluindo o facto de alguns profissionais estarem dos dois lados.

O terceiro capítulo inicia-se com o tema da ética e da deontologia do jornalismo, com a questão apresentada por Fidalgo, a respeito da dupla lealdade dos jornalistas, de um lado como trabalhadores de uma empresa e do outro com o compromisso com a verdade. A partir das várias visões a respeito do trabalho do jornalista, chega-se ao

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conceito da peça jornalística como uma construção. A seguir, em contraposição ao cerne do trabalho do jornalista, procura-se explicitar a natureza do trabalho do assessor de imprensa.

A partir da afirmação de Bourdieu de que o campo da comunicação constitui o da visibilidade (2002:178), é apresentado um estudo comparativo com a área da psicologia, em que Freud, nos livros Estudos sobre a histeria (1974a), Escritos sobre la histeria (1974) e Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos (1976), apresenta os casos de busca de visibilidade social por parte dos que sofrem de histeria. Comparando os mecanismos adotados pelos doentes de histeria com os utilizados pelos profissionais de relações públicas,verifica-se que são muito semelhantes, sendo que para os que sofrem de histeria a busca da visibilidade representa uma expressão de uma situação patológica, enquanto para os assessores a busca e o controle da visibilidade constitui uma expressão de poder político ou económico.

Na sequência, trata-se da natureza do jornalismo e da sua relação com as assessorias de imprensa. Procura-se tipificar as três formas de trabalho dos assessores: voltadas para o gatekeeping, para a construção da agenda e para a elaboração da narrativa social dos acontecimentos. Por fim, a parte teórica volta-se para a profissionalização das fontes, culminando com o o caminho adotado para o desenvolvimento das assessorias de imprensa em Portugal.

No que diz respeito à metodologia do estudo empírico, o primeiro passo foi o levantamento do conjunto dos assessores de imprensa que trabalharam durante o período de 2002 a 2011 junto aos ministros do governo português e o levantamento das suas biografias, de forma a verificar os seus percursos profissionais. Trata-se de um trabalho de pesquisa de dados que inclui o conjunto das informações oficiais respeitante a cada um dos assessores que se encontram no Diário da República ao longo do período em análise e – se voltaram ao governo posteriormente – também o que foi publicado em outros momentos. Isso inclui nomeações, exonerações e, caso haja, louvores – a importância dos louvores deve-se a que, em alguns deles, é possível verificar a forma como o governante concebe a relação entre jornalistas e assessores, o principal eixo do trabalho desses profissionais. Para os que não têm a biografia publicada no Diário da

República, o caminho foi buscar através da Internet informações, sendo que muitas foram

encontradas na plataforma social de profissionais Linkedin. Para os que não dispunham de um página nessa rede, foi pedida individualmente a cada um deles o fornecimento de uma biografia ou dos dados que eram procurados na biografia. Por fim, procurou-se nos canais de busca da Internet informações sobre os assessores não incluídos nos casos acima – ainda que parciais. Assim, o número de assessores sobre os quais não foram conseguidos todos os dados foi de menos de 10% do total.

O passo a seguir foram as entrevistas semi-estruturadas com 30 desses assessores, uma forma de obter informações "voltadas para o desenvolvimento de conceitos, o esclarecimento de situações, atitudes e comportamentos, ou o enriquecimento do significado humano deles" (Mattos, 2005: 825). As questões, que buscavam informações

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sobre os percursos profissionais, a relação anterior com os governantes que serviram como assessores, o que fizeram depois e o motivo por que tiveram esse percurso profissional.

Dividindo-se os respondentes em quatro grupos, foi possível verificar que o que reunia maior número de jornalistas que passaram para a assessoria de imprensa permaneceram ligados profisisonalmente às estruturas do poder político, tanto diretamente ao Estado, como a empresas públicas, ao partido e até a fundações. Em segundo lugar veio o grupo dos que retornaram ao jornalismo. O terceiro foi o conjunto de ex-assessores governamentais que se dedicaram à comunicação empresarial. E, por fim, com menor número, encontram-se os que decidiram sair do campo da comunicação.

A partir das entrevistas, foi possível compreender melhor o percurso profissional, as suas ligações aos governantes com quem trabalharam e como lidaram com as questões éticas da passagem e do trabalho como assessores de imprensa, após terem saído do jornalismo.

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Capítulo 1

Por uma conceitualização do espaço público

A dimensão do debate que é realizado em torno do significado do conceito de espaço público revela uma tentativa das várias linhas de pensamento de se apropriarem dessa construção teórica. Ao atribuir um significado ao conceito, busca-se uma forma de enquadrá-lo segundo os parâmetros de uma linha filosófica, fazer com que este sirva como embasamento teórico para abordagens específicas à realidade. Resultado disso é o surgimento de uma série de posições contraditórias, de definições que entram em choque pelos seus significados.

O cerne da discussão a respeito da esfera pública diz respeito ao que ela inclui. Em linhas gerais, a maior parte dos teóricos considera que esta inclui a sociedade civil. Alguns, também inserem no âmbito da mesma o Estado. Uma terceira visão, apresentada por Castells, concebe a esfera pública como intermediária entre a sociedade civil e as estruturas do Estado, sendo que esta pode ser considerada como um atributo da sociedade civil: "The public sphere is the space of communication of ideas and projects that emerge from society and are addressed to the decision makers in the institutions of society.(...) The relationships between government and civil society and their interaction via the public sphere define the polity of society" (Castells, 2008: 78).

Schudson, ao tratar deste tema, afirma que "A 'esfera pública' constitui não um espaço propriamente dito, mas sim um conjunto de atividades que constituem a auto-reflexão e o autogoverno numa sociedade democrática. Numa esfera pública, as pessoas individualmente consideradas juntam-se para deliberar e decidir questões políticas" (Schudson, 1995: 150/151).

A busca desse conceito tem como origem a insuficiência da proposição apresentada por Habermas, que vê o espaço público como algo que deveria tender para a harmonia social, espaço de debate entre iguais. Em alemão, o título original do livro que estabeleceu os marcos do que atualmente se chama esfera pública é Strukturwandel der

Offentlichkeit (A Transformação da Esfera Pública, em português). Na construção do

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traduzido por aberto. Assim, o sentido de abertura faz parte da própria génese da esfera pública.

No entanto, um olhar mais aprofundado em relação ao que se entende por esfera pública revela que a abertura é apenas uma das facetas desse conceito. Há, na realidade, um jogo permanente entre abertura e fechamento, entre inclusão e exclusão, entre centro e periferia, sendo que o centro não é estático, mas move-se segundo a dinâmica própria da sociedade, com a ascensão e queda dos protagonistas, o reforço ou a perda de poder por parte dos diversos grupos de influência.

Habermas relaciona o surgimento da esfera pública ao nascimento da imprensa independente. "Só com o estabelecimento do Estado de direito burguês e a legalização de uma esfera pública que desempenha funções políticas, a imprensa crítica pode libertar-se das pressões ideológicas; pode então abandonar a sua posição polêmica e tirar partido das oportunidades lucrativas próprias de qualquer empresa comercial" (Habermas, 2012: 316).

Esta visão do espaço público como um conjunto de instituições de relacionamento social e convivial que asseguram a coesão do público que faz uso da sua razão (Habermas, 2012: 343), acaba por ser uma concepção utópica de uma sociedade sem conflitos. Um exemplo dessa visão é o artigo de Blotta que, após citar o texto "O Caos na Esfera Pública", de 2006, de Habermas que propõe que o Estado, assim como garante que os cidadãos tenham acesso à energia elétrica – que é fundamental para a sobrevivência na sociedade – deveria também garantir a energia comunicativa, que é "gerada com um meio ambiente informacional independente de anunciantes ou flutuações do mercado" (Blotta, 2016: 17).

Assim, busca-se aqui uma compreensão da forma como surge a construção teórica

espaço público como forma de encontrar a melhor definição para esse conceito,

normalmente usado por múltiplos autores com significados distintos. Buscou-se uma definição que conseguisse abarcar as suas principais características, num esforço de síntese. Nesse sentido, num exercício conceitual procurei o que poderia ser definido como uma arqueologia filosófica do espaço público.

A formulação encontrada que foi capaz de realizar essa síntese pode ser resumida como se segue: esfera pública é o território coletivo em que ocorrem as interações

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humanas, quer diretamente, quer através das suas instituições. Nesta formulação, a expressão território não se refere especificamente a um espaço físico – ainda que também o possa ser – mas a uma construção social que estabelece balizas para que esses relacionamentos ocorram.

A crítica à concepção do espaço público como espaço neutro, de igualdade entre os seus participantes, foi realizada por diversos teóricos e estudiosos. Esteves, por exemplo, afirma:

"É (...) indispensável que a investigação tenha em conta as ambivalências intrínsecas [do espaço público] e, consequentemente, recuse fechar-se em juízos precipitados e conclusões fatalistas que projetam imagens puramente ideais e falseadas da realidade, como sejam a de um espaço público reificado ou a de um espaço público totalmente neutralizado" (Esteves, 1995: 99)

Por outro lado, há muitas visões do que seria a esfera pública. Schudson criticou a tentativa de apresentar a esfera pública como sinónimo de sociedade civil, ou seja, "aquelas instituições, espaços e fóruns que não pertencem à 'vida privada' (a família), nem constituem parte do Estado enquanto tal, nem fazem parte da economia" (Schudson, 1995: 151).

Neste sentido, ele argumenta que o Estado constitui parte integrante da esfera pública, invocando para isso seis argumentos: que "a estrutura do Estado ajuda a configurar a estrutura da sociedade civil e o caráter de um povo" (1995: 152); que o sistema de governo parlamentar é, em si, um fórum público; que as instituições da sociedade civil encontram-se ao mesmo tempo dentro e fora do Estado; que o governo é parte integrante da construção da personalidade e da fisionomia da vida pública; que não existe opinião fora do Estado; e que o governo proporciona aos cidadãos fóruns múltiplos e várias formas de acesso (Schudson, 1995: 153-157).

Relativamente aos argumentos apresentados por Schudson, a afirmação de que não existiria opinião fora do Estado constitui a mais discutível. É correta no sentido de que este autor considera os partidos como participantes permanentes da esfera pública, mas a nesse sentido seria talvez mais correto afirmar que não existe opinião organizada fora da esfera pública.

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Ao não considerar a organização da opinião e apenas a opinião em si como participante da esfera pública – deixando de valorizar o que seria a constituição e desintegração dos partidos como parte integrante do processo histórico da própria esfera pública – , Schudson cai no que poderia ser chamado de uma armadilha habermasiana: não compreendendo o processo de formação da esfera pública, concebe uma esfera pública ideal, que "permitira a participação integral e igualitária de qualquer pessoa numa sociedade atingida por decisões políticas, e permitiria também a livre intervenção dos participantes de forma a que as decisões tomadas representem as suas opiniões" (Schudson, 1995: 160).

Esta visão poderia ser comparada a uma utopia irrealizável, uma vez que, pela própria natureza dos fluxos de informação, os indivíduos têm graus diferentes de conhecimento da realidade, o que limita a sua capacidade de intervenção. Ao mesmo tempo, a inserção dos indivíduos em graus diferentes nas hierarquias das instituições também dá a eles maior ou menor amplificação das suas opiniões em relação aos temas que se encontram em debate na esfera pública. Assim, na linha do que Miguel refere, "as instituições são simultaneamente resultados da disputa política, arenas da disputa política e partícipes da luta política" (Miguel, 2016).

A própria ideia dominante de espaço público está relacionada a um conceito histórico. Assim como Habermas situa o seu surgimento na Alemanha no período de fortalecimento da burguesia nacional, no século XIX, Wolton indica que a forma moderna do espaço público teria surgido no século XVIII: "Era ainda restrito, ligado à existência de uma elite iluminada, pequena em número, homogénea no plano social e cultural, que debatia entre si, em pequenos círculos, informada pelos seus contatos pessoais e por uma imprensa escrita e uma edição livreira ainda confidenciais nas suas tiragens" (Wolton, 1995: 167)

Desta forma, Wolton acaba por definir como moderna uma determinada estruturação do espaço público que teve seu início no período de crescimento do capitalismo industrial. As modificações nas formas de atuação individual e coletiva que ocorreram desde esse período – incluindo as atuais redes sociais – certamente provocaram uma transformação do que foi essa visão datada do espaço público, exigindo uma conceitualização mais abrangente, que abarcasse não apenas um determinado momento da história humana, mas que pudesse sobreviver às modificações sociais.

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Assim, é necessário dar um passo adiante em relação ao proposto por Thompson, que no prefácio à décima segunda edição do seu livro Teoria Social da Mídia – uma avaliação da sua contribuição realizada cerca de 20 anos após tê-la publicado originalmente – apresentou como sendo o que chamou de "teoria interacional da mídia": "Sempre que indivíduos usam meios de comunicação – seja escrevendo uma carta, telefonando para um amigo, lendo um jornal ou vendo televisão – eles estão se envolvendo em formas de ação e interação que diferem, de certas maneiras básicas, do tipo de interação face a face que caracteriza a maioria dos encontros da vida diária." (Thompson, 2010: 10)

A elaboração aqui proposta coloca no centro a mensagem e não os média, o que permite encontrar o que há de comum ao conjunto das interações, independentemente da forma utilizada, da sua tecnologia. O ponto de partida para a elaboração foi o termo jogo de linguagem, na forma como foi concebido por Wittgenstein:

"Imagine-se um jogo de linguagem em que A pergunta e B relata o número de lajes ou blocos que se encontram num monte ou as cores e formas de pedras de construção que estão arrumadas num determinado lugar. – Esta informação pode ser 'Cinco lajes'. Agora, qual a diferença entre a informação ou declaração 'Cinco lajes' e a ordem 'Cinco lajes!'? – Bem, é o papel que a forma de dizer estas palavras tem no jogo de linguagem." (Wittgenstein, 2001:9)

Wittgenstein parte do pressuposto de que são os participantes que determinam as regras do jogo, mesmo que essas possam mudar ao longo desse jogo (Wittgenstein, 2001: 33/35). A partir dessa ideia de jogo de linguagem, proponho uma inversão à forma como é usualmente visto. Inversão, abandonando a ideia de que sejam os participantes a decidir quem estará incluído, mas sim que é o jogo que determina quem serão os seus participantes.

Nesse sentido, considere-se, por exemplo, um jogo de linguagem – ou uma comunicação – em que se exprime algumas ideias em francês em meio a uma plateia com vários níveis diferentes de domínio da língua francesa. Aí, será a compreensão da língua francesa que vai determinar quem toma parte ou não no jogo de linguagem – ou seja, no ato de comunicação.

O mesmo ocorre com uma anedota que tenha o objetivo de fazer rir. Poderá haver, pelo menos, três reações a ela: quem acha graça e ri; os que não acham graça ou não

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entendem e se excluem do jogo de linguagem; e os que sem achar graça ou sem entenderem a anedota podem fingir que riem.

Cria-se, assim, um jogo de linguagem que se organiza em círculos concêntricos de maior participação (centro) para a menor participação (periferia). Uma comunicação, por abarcar múltiplos jogos de linguagem, acaba por estabelecer formatos irregulares de participação, em que algumas pessoas tomam parte mais ativa em alguns desses jogos e não em outros.

Por uma conjugação de fatores, que pode ser relacionada ao acaso, existe a possibilidade de essas comunicações ou jogos de palavras perdurarem para além do ato comunicacional, institucionalizando-se. Assim, algumas pessoas que se reúnam em torno de algumas ideias – um jogo de palavras – podem tirar como consequência do jogo a formação de um grupo político, uma tertúlia, uma agremiação esportiva, um coletivo de intervenção política ou outras formas. Nesses casos, o processo será semelhante, o que os distingue reside o objetivo.

Ao utilizar acima o termo acaso, refiro-me ao facto de que esses fatores não dependerem de condições que possam ser consideradas objetivas ou mensuráveis. Entre as razões para uma conjugação de fatores que permitam a institucionalização de um jogo de palavras estão uma necessidade histórica, a existência de grupos rivais, mimetização, entre outras. No entanto, entram em consideração elementos como a capacidade de liderança, os objetivos pessoais dos proponentes, a clareza quanto aos passos a serem dados e mesmo condicionantes de contexto, como eventos históricos anteriores ou conflitos entre os seus membros poderem ter o papel de impulsionar ou impedir a concretização da transformação dessa interação em algo com maior permanência.

Uma vez institucionalizado o jogo, este passa a seguir regras próprias, que não obrigatoriamente estão relacionadas com as regras do jogo inicial. Terá que conviver, e interagir, com outros jogos institucionalizados e não institucionalizados existentes ou a serem realizados, podendo ter relações de cooperação ou de conflito – ou mesmo ambas simultaneamente. No processo, poderá ocorrer a perda do objetivo inicial, passando a adotar outros objetivos entre os participantes dos jogos de linguagem.

Esta visão a partir do jogo de palavras coloca em questão a dicotomia entre os conceitos de esfera pública e esfera privada, na forma como esta é apresentada por Jürgen

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Habermas. O que Habermas chama esfera pública, e é caracterizado pelo que ele denomina como "acontecimentos 'públicos', contrariamente a eventos sociais que ocorrem à porta fechada, quando os mesmos são acessíveis a todos – tal como falamos de lugares públicos ou casas públicas" (Habermas, 2012: 69/70), acaba por ser uma construção intelectual que não se encaixa totalmente na realidade, uma vez que nem todos podem participar destes acontecimentos.

Ainda que possa existir uma distinção clara entre o socializado e o exclusivo, o que se coloca em questão é o termo público, no sentido de generalizado. Como o próprio Habermas indica, o público e o privado constituem dois conceitos que se encontram determinados historicamente, sendo que o seu significado foi sujeito a variações ao longo da história. O espaço público da ágora grega não era aberto aos escravos, assim como o espaço público no império colonial inglês na China não era aberto aos chineses da mesma forma como o era para os colonizadores e o espaço público das sociedades ocidentais do século XX foi se abrindo à participação feminina e mesmo assim continuou sendo um espaço público. Habermas indica que a ideia de um espaço público aberto a todos constitui uma construção recente, da sociedade burguesa, argumentando que, na Alemanha, o seu surgimento teria ocorrido no final do século XVIII (Habermas, 2012, 71). No entanto, o sufrágio feminino na Alemanha apenas foi decidido em 1918 e não se pode falar da inexistência de um espaço público, anda que fortemente condicionado, durante o período nazi na Alemanha, em que foram alijados da sua participação pessoas por motivos étnicos, religiosos e de orientação sexual.

Acaba por constituir uma ilusão a possibilidade de um espaço público aberto a todos – ainda que este possa ser um objetivo (e tema de debates éticos e políticos), não há forma de se garantir uma recepção igualitária das mensagens ou uma recepção das mensagens que tenha em consideração as diferentes capacidades de recepção dos vários indivíduos que constituem a sociedade. Como avalia Bucci, o que está em questão é o "abandono da utopia do consenso em favor da ordem anárquica do conflito – e, sim, pode-se falar em ordem anárquica, pela mesma razão que pode-se pode falar em anarquia da produção no capitalismo" (Bucci, 2006b: 2). O empenho no sentido de uma maior inclusão pode constituir uma arma política no sentido em que quanto maior o número de pessoas que se sente participante do jogo de uma mensagem, maior tende a ser a sua força.

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Neste sentido, o espaço público pode ser considerado como uma estrutura social de convívio e legitimação – um território coletivo de inter-relações humanas – formada pela acumulação histórica de camadas de mensagens, institucionalizadas ou não. O motor desta concepção reside na ideia de identidade.

Ou seja, na base da relação do indivíduo com o espaço público encontra-se o sentimento de pertença – ainda que a imagem daquilo a que se pretenda pertencer seja uma construção própria de cada indivíduo. O movimento intelectual em que o indivíduo busca aproximar-se do que considera ser o centro de onde é irradiada a mensagem é o que pode ser denominado de imperativo ético. Ou seja, dentro de um espaço público multipolar, com várias mensagens com significados distintos e com diferentes pesos sociais, o indivíduo se define pelas escolhas que realiza.

O centro do jogo de linguagem é o que estabelece as regras do seu funcionamento. Conforme a elaboração de Wittgenstein, as regras podem ser mudadas durante o jogo – no entanto, havendo concepções diferentes dessas regras, até por estas poderem não estar institucionalizadas, as suas mudanças podem não ser processos lineares, mas de conflitos, negociações e cedências.

Enquanto círculos de pertença, as estruturas sociais de convívio estabelecem as bases para a ética individual dentro da coletividade, sendo que a forma como os indivíduos se definem deriva da adesão ou oposição aos vários conjuntos de regras propostos pelas coletividades construídas em torno das várias mensagens no espaço público. Em diferentes graus, essa oposição aos outros círculos dá azo ao que se pode denominar sentimento de barbárie – no sentido etimológico da palavra bárbaro (Machado, 1977: vol. 1, 390), ou seja, aquele que fala uma língua (ou, como aqui se propõe, está ligado a uma estrutura de mensagens) diferente da que é utilizada como referência.

Vetores da institucionalização

A partir da constatação de que uma vez institucionalizada a mensagem, a recém-criada instituição passa a ter regras próprias – não obrigatoriamente relacionadas com as

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regras do jogo que lhe deu origem – é possível compreender melhor o funcionamento da mesma. Identifico quatro vetores da institucionalização da mensagem, que determinam lógicas distintas das que motivaram o surgimento desta: a permanência, a complexificação, a patrimonialização e a hegemonização.

1) A permanência constitui a tendência de o jogo ultrapassar o seu universo temporal inicialmente previsto. Por exemplo, de uma proposta de mobilização política para uma causa específica, parte-se para a constituição de um grupo de intervenção a esse respeito, um jornal, um partido; de um grupo de pessoas que se reúne periodicamente para jogar futebol, cria-se um clube desportivo; de uma ideia para produzir algo novo, cria-se uma empresa.

2) Um segundo vetor, que vai determinar os rumos da institucionalização, é o que pode ser chamado de processo de complexificação. Surgem especializações entre o/os proponente/s e os participantes do processo, normalmente mais ligadas ao processo de institucionalização do que ao intuito inicial. Áreas como a das questões jurídicas, a responsabilidade pelo patrimônio, as relações com outras instituições existentes tornam cada vez mais complexas as entidades em processo de institucionalização.

3) O termo patrimonialização refere-se à aquisição ou construção de bens materiais que estejam ou não diretamente relacionados com a atividade para a qual a instituição foi criada. Inclui a constituição de sedes, subsedes, a compra de meios de locomoção, o acúmulo de capital e outros bens.

4) O quarto vetor, que muitas vezes vai determinar a forma como os outros três serão desenvolvidos, trata-se da hegemonização, ou seja, a busca de um papel preponderante – se não único – no espaço público. Nesse vetor, procura-se ser o principal partido, o jornal mais lido, a empresa líder, o clube de futebol campeão, por processos direta ou indiretamente ligados à atividade principal. Assim, tornar-se o principal partido pode ocorrer pela escolha dos eleitores ou pela impugnação ou proibição dos concorrentes; ser o jornal mais lido pode ser pela escolha dos leitores ou por apoios por parte do poder público; a empresa líder pode sê-lo em situações de concorrência igual ou desigual; e um clube campeão pode receber o título tanto em campo quanto através de manobras de bastidores. A hegemonização normalmente provoca um aumento da complexificação e da materialidade da instituição, que funcionam como garantias de sua manutenção e como demonstração de força no espaço público.

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17 Para a análise do jogo de palavras

Nem todas as instituições criadas são iguais, nem no que diz respeito à sua forma, muito menos no que diz respeito ao objetivo. Um traço fundamental para compreender o papel social da instituição e o campo em que vai atuar é a própria mensagem que a cria, o jogo de palavras a partir do qual é construída.

Com o objetivo de compreender o jogo de palavras, ou o que está envolvido na mensagem que o cria, recorro ao conceito de desconstrução, criado por Jaques Derrida. O conceito surge inicialmente no livro De la grammatologie, de 1968, mais especificamente na segunda parte desse livro, "Nature, Culture, Ecriture", que trata sobre os escritos de Jean-Jacques Rousseau. Na busca de desvendar as intenções e as intencionalidades envolvidas na elaboração do texto de Rousseau, Derrida lançou as bases para o que seria a desconstrução.

Derrida não procurou facilitar a compreensão do que pretendia dizer como desconstrução para quem pretendia seguir o curso dos seus pensamentos. Exemplo disso foi a resposta que deu em 1983 ao professor Izutsu, que fez a tradução para o japonês do livro De la grammatologie. Questionado numa carta a respeito de como poderia definir o conceito de desconstrução, para poder ajudar na elaboração da versão em japonês, o filósofo francês foi evasivo:

"A desconstrução não é nem uma análise nem uma crítica (...). A desconstrução não é um método e nem pode ser transformada em método. (...) a desconstrução não saberia reduzir-se a uma instru-mentalidade metodológica a um conjunto de regras e de processos transponíveis. Não basta dizer que cada 'acontecimento' de desconstrução permanece singular ou, em todos caso, o mais perto possível de qualquer coisa como um idioma ou uma assinatura." (Derrida, 1998: 22)

Sem apresentar uma definição, na mesma carta Derrida revela o caminho que fez para chegar ao termo "desconstrução", deixando claro que, no momento em que escreveu o texto sobre a obra de Rousseau, não considerava a desconstrução como um ponto central de sua contribuição filosófica, nem sequer um aspecto central do que seria a sua mundivisão:

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18 "Quando escolhi esta palavra, ou quando ela se impôs a mim, acredito

que foi em Gramatologia, não pensava que se lhe reconheceria um papel tão central no discurso que me interessava naquele momento. Entre outras coisas, desejava traduzir e adaptar a meus propósitos as palavras heideggerianas Destruktion ou Abbau. Ambas significavam, nesse contexto, uma operação relativa à estrutura ou à arquitetura tradicional dos conceitos fundadores da ontologia ou da metafísica ocidental. Mas, em francês, o termo destruction ('destruição') implicava, demasiado visivelmente, uma aniquilação, uma redução negativa, talvez mais próxima da 'demolição' nietzchiana do que da interpretação heideggeriana ou do tipo de leitura que eu propunha. Lembro-me de ter procurado se essa palavra, desconstrução (vinda a mim de maneira aparentemente muito espontânea), era mesmo francesa. (...) Os suportes gramatical, linguístico ou retórico encontravam-se, aí, associados a um suporte 'mecanicista'."1 (Idem:

19/20).

Mesmo para Derrida, o termo foi sendo construído e ganhou sentido ao longo do tempo, conforme a entrevista que deu a Antoine Spire, em 2002, anos após o reconhecimento da sua contribuição teórica:

"Há uma história da 'desconstrução', em França e no estrangeiro, há mais de trinta anos. Este caminho, não digo este método, transformou, deslocou, complicou a definição, as estratégias, os estilos, que variam eles mesmos de país para país, de indivíduo para indivíduo, de texto para texto. Diversificação essencial à desconstrução, que não é nem uma filosofia, nem uma ciência, nem um método, nem uma doutrina, mas sim, como muitas vezes digo, o impossível e o possível como o que

acontece"2. (Derrida e Spire, 2008: 17)

Portanto, pode-se considerar a formulação da desconstrução apresentada no livro

De la grammatologie como um conceito em fase de elaboração, sem estar acabado.

Pode-se creditar a isto a existência de duas afirmações que, apesar de terem um Pode-sentido aproximado, revelam sentidos distintos: "Il n'y a pas hors-texte"3 (1979: 227) e "il 'y a rien hors de texte" (1979: 233)

As expressões "não existe o fora do texto" e "não há nada fora do texto" limitam a observação do leitor a tudo o que não faz parte do texto, como se nada devesse ser visto fora daquilo que se encontra expresso no texto. No entanto, a interpretação que acredito que seja mais próxima do que pretendia Derrida seria: tudo o que contribui para a

1Em itálico no original. 2Em itálico no original. 3Em itálico no original.

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19 construção do texto deixa nele as suas marcas, os seus rastros e os seus indícios. Tudo

o que importa para a leitura de um texto estaria dentro desse texto por deixar nele traços de sua presença. A desconstrução torna-se, assim, a desmontagem no sentido de compreender o que contribuiu para a elaboração do texto, a intenção e a intencionalidade do autor, os condicionalismos históricos e sociais a que está submetido. Na já citada "Carta a um amigo japonês", Derrida refere: "A palavra 'desconstrução', como qualquer outra, não extrai seu valor senão de sua inscrição em uma cadeia de substituições possíveis, naquilo que se chama, tão tranquilamente, de um contexto'." (1998: 24).

Então, se é possível e necessário substituir o que está contido no texto, não se pode tomar o "não há nada fora do texto" no sentido literal. Nesse sentido, a desconstrução constitui uma forma de buscar os indícios deixados pelos elementos que, consciente ou inconscientemente, entram na elaboração do texto.

Toda a desconstrução tem como ponto de partida o que Derrida chama de "dupla leitura" (Derrida, 1979: 145). Explicando, para além do que ele denomina interpretação dominante – a primeira leitura, que busca o que o texto quer dizer – Derrida propõe uma outra leitura que abra o texto para os seus pontos cegos e as suas elipses, a que atribuiu o nome de suplementos.

A identificação dos suplementos abre espaço para que o leitor possa descortinar a lógica que permite ultrapassar o âmbito das intenções, alcançando uma posição textual distinta do que Derrida denomina conceitualidade logocêntrica. Ou seja, a dupla leitura ocupa um espaço entre as intenções do autor e o texto, ou entre o que o autor controla e o que ele não consegue controlar no texto. É neste espaço, entre intenções e texto, que Derrida insere o que chama de estrutura significante da leitura.

"Nós pretendemos alcançar o ponto de uma certa exterioridade em relação à totalidade da época logocêntrica. A partir desse ponto de exterioridade, uma certa desconstrução pode ser empreendida dessa totalidade, que é também um caminho traçado dessa orbe (orbis) que também é orbitante (orbita).4 Ou o primeiro gesto desse tipo e dessa

desconstrução, ainda que seja submetido a uma certa necessidade histórica, não pode dar as garantias metodológicas ou lógicas intraorbitais." (1979: 231)

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Mais adiante, Derrida explica o que entende como suplementos, na tentativa de encontrar os pontos cegos dos textos, aplicando ao texto analisado de Rousseau:

"O conceito de suplemento é uma espécie de ponto cego dentro do texto de Rousseau, o não visto que abre e limita a visibilidade. Mas a produção, se ela tenta permitir ver o que não é visto, não deixa de ser parte do texto. (...) E o que nós chamamos a produção é necessariamente um texto, o sistema de uma escrita e de uma leitura em que nós sabemos,

a priori,5 mas somente agora, e de um saber que não é um, que se

organiza em torno de seu próprio ponto cego." (1979: 234)

Portanto, o processo de desconstrução passa por encontrar o ponto da alteridade, dentro da conceitualidade filosófica ou logocêntrica e, então, desconstruir essa conceitualidade a partir dessa posição. É a partir desse ponto de alteridade que o conceito de dupla leitura pode ser compreendido. Para Derrida, num primeiro momento, trata-se da reconstrução rigorosa, ou seja, sua intenção como comentário. Um segundo momento é a desestabilização da interpretação dominante, tendo como referência esse ponto de alteridade.

Em outras palavras, ao identificar um ponto de alteridade, delimita-se o espaço – no campo das ideias – de onde o texto é emitido. Como a identificação de um púlpito de onde é pronunciado um discurso, a partir do qual pode-se questionar por quê encontra-se esse púlpito nesse local, qual a relação que se busca entre o discurso e os seus ouvintes – e entre quem emite o discurso e os seus ouvintes – como se constitui esse púlpito e qual a sua história.

Trata-se de um conjunto de informações que se encontram no texto e que acompanham o que Derrida denomina interpretação dominante do texto, ou seja a intenção expressa pelo significado da sequência de palavras que o constitui. É a partir desse ponto cego – ou seja, desse local que o emissor do discurso não tem o controle total, e não pode tê-lo, pois razões históricas, sociais e até o acaso têm influência sobre ele – que é possível fazer a leitura não apenas da intenção (expressa) do texto, mas dos vários níveis da sua intencionalidade. Esta intencionalidade pode ser parcialmente consciente, mas sempre haverá elementos não conscientes que contribuem para a sua formação.

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Segundo Derrida, para conhecer todos os níveis de intencionalidade de um texto seria necessário, além da competência na leitura, na compreensão e na escrita, ter conhecimento do conjunto das obras do autor na sua língua original, e ter em conta os múltiplos contextos que determinam um texto – políticos, literários, filosóficos, históricos e outros. Desta forma, torna-se praticamente impossível o conhecimento de todos os níveis de intencionalidade de um texto, antes de tudo pela impossibilidade de reprodução do momento específico em que foi escrito. Ainda que seja possível atender a algumas das condições da sua feitura, sempre vão escapar algumas camadas do seu processo de elaboração.

Volta-se aqui à questão: a desconstrução, não sendo uma interpretação do texto ou um comentário a seu respeito, constitui uma leitura. No entanto, esta leitura – no caso, uma dupla leitura – acaba por condicionar a realização da interpretação ou do comentário que se possa fazer a respeito do mesmo.

Críticas a Derrida

A elaboração realizada por Derrida provocou o surgimento de diversas críticas ao conceito de desconstrução. Habermas foi um dos nomes mais importantes, contrapondo-se a partir de duas perspectivas distintas. Assim, no contrapondo-seu O discurso filosófico da

modernidade, ele afirmava que se tratava de uma mistificação, por desligar o conteúdo

do texto da sua essência:

"Enquanto participante do discurso filosófico da modernidade, Derrida herda as fraquezas de uma crítica metafísica que não se afasta da filosofia da origem. Apesar da modificação no gesto, no fundo o que ele faz também é uma mistificação de patologias sociais bem perceptíveis; também ele desconecta o pensamento essencial, mais precisamente o pensamento desconstrutivo, da análise científica, indo desembocar na exortação, em fórmulas vazias, de uma autoridade indeterminada. Esta não é, porém, a autoridade de um ser deturpado pelo ente, mas a autoridade de uma escrita que já não é sagrada, de uma escrita exilada, à deriva, alheada do seu próprio sentido, que testemunha de modo testamentário a ausência do sagrado." (Habermas, 2000: 174)

A outra perspectiva crítica apresentada por Habermas relaciona a elaboração filosófica de Derrida à sua formação na tradição judaica: "Sem dúvida que Derrida (...) é inspirado pela tradicional compreensão judaica que, mais que a cristã, se afastou da ideia

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do livro e que, exatamente por isso, permanece vinculada um modo mais rigoroso à erudição da escrita" (Habermas, 2000: 160).

Ao tratar a desconstrução como uma abordagem ao texto datada, resultante dos movimentos que geraram as revoltas de maio de 1968 na França, Habermas considera que esta tem como objetivo a destruição de hierarquias articuladas de conceitos fundamentais, com a demolição dos contextos de fundamentação e das relações conceituais de dominação entre discurso e escrita, entre inteligível e sensível, entre natureza e cultura, entre interno e externo, entre espírito e matéria, entre homem e mulher e, por fim, entre lógica e retórica (Habermas, 2000: 181).

O centro da crítica habermasiana aos conceitos criados por Derrida tem como base o facto de considerar a busca dos pontos cegos como uma impossibilidade, ou seja, Habermas acredita que o autor tem o controle total sobre o texto: "Num texto filosófico é tão pouco possível identificar um ponto cego como num texto literário, considerado no plano dos conteúdos manifestos. (...) O procedimento da desconstrução aproveita-se desta crítica generalizada com o fim de fazer valer o recalcado excedente de significado retórico dos textos filosóficos e científicos." (Habermas, 2000: 181).

Ou seja, na visão de Habermas, a desconstrução constitui uma forma de, ao ressaltar o que seriam os pontos cegos, fazer com que os textos possam significar o contrário do que o autor pretenderia que seja o sentido que eles teriam. No entanto, esta avaliação não leva em conta que a desconstrução, na forma como foi concebida por Derrida, sempre tem em vista o que ele denomina "a interpretação dominante do texto", o que pode ser visto como um dever ético numa primeira camada da leitura.

Outro autor a se contrapor à proposição de Derrida é John Searle, que utiliza os seguintes termos para mencionar o criador da desconstrução: "Derrida tem uma propensão angustiante para dizer coisas que são obviamente falsas" (Searle, 1977: 203). Esta citação encontra-se num texto de Searle a respeito do ensaio "Signature Event Context", de Derrida, publicado no livro Limited Inc, em que o francês apresenta a sua leitura de um texto do filósofo britânico da linguagem J. L. Austin a respeito da comunicação e da emissão do discurso.

Passando à margem da deselegância dos termos dessa discussão filosófica, importa ter em conta as principais objeções que Searle apresenta à desconstrução. Em

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primeiro lugar, ele afirma: "Nos discursos sérios literais, as sentenças são precisamente a materialização das intenções" (Searle, 1977: 202).

A fragilidade desta crítica peca por acreditar que os chamados "discursos sérios literais" estejam isentos de artifícios retóricos, de referências, de fatores extra-texto, acabando por resultar numa visão a-histórica destes discursos.

Searle também se opõe a Derrida por este não considerar que a falha de um discurso seja uma das suas possibilidades. Aqui, ele usa o termo falha, no sentido de não conseguir exprimir o que se pretende (Searle, 1977: 204). No entanto, em objeção a Searle considero que mesmo um discurso que não consegue exprimir o que o seu autor pretende tem os seus pontos cegos, sendo que, por não ter a capacidade de expressar o que se pretende, um tal discurso pode revelar mais claramente os vários graus de intencionalidade inconsciente do que um discurso claro e cristalino.

Outra crítica de Searle refere que Derrida apenas trata dos textos escritos, deixando de lado o discurso oral, por não ter iterabilidade – a possibilidade de ser repetido – o que é essencial para poder ser feita a segunda leitura. Searle considera esta posição um erro de Derrida, uma vez que a iterabilidade é possível num discurso oral através da gravação. (Searle, 1977: 203).

Mesmo sendo correta esta observação – não pode ser considerada científica uma experiência que não possa ser reproduzida e verificada – acredito que não constitui uma objeção à desconstrução como forma de leitura de toda e qualquer atividade comunicacional dos seres humanos. Na realidade, acaba por ser a crítica que abre espaço para uma abordagem mais ampla do processo de desconstrução. Não é apenas o texto que pode ser desconstruído, mas todas as atividades humanas de comunicação permitem a utilização de duplas leituras.

Além disso, a segunda leitura não necessariamente implica ler duas vezes, ainda que isso possa ajudar, assim como uma terceira ou quarta leituras. A expressão segunda leitura está relacionada com a tentativa de encarar o texto a partir de duas perspectivas distintas, que se complementam. Nesse sentido, mesmo sem a possibilidade de ser reproduzida, a desconstrução poderá ser realizada, ainda que os seus resultados tenham de ser tomados condicionalmente, pela impossibilidade da sua verificação.

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