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Narrativas que ensinam: representações de gênero em livros do PNLD Literário

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Academic year: 2021

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE EDUCAÇÃO CURSO DE PEDAGOGIA

JÚLIA MARIA SILVA LOPES

NARRATIVAS QUE ENSINAM: representações de gênero em livros do PNLD Literário

NATAL/RN 2019

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2 JÚLIA MARIA SILVA LOPES

NARRATIVAS QUE ENSINAM: representações de gênero em livros do PNLD Literário

Artigo apresentado ao Curso de Pedagogia, na modalidade presencial, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Pedagogia.

Orientadora: Profa. Dra. Vândiner Ribeiro

NATAL/RN 2019

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5 NARRATIVAS QUE ENSINAM: representações de gênero em livros do PNLD Literário

Júlia Maria Silva Lopes¹ UFRN

RESUMO

As identidades de gênero não são dadas biologicamente. Na verdade, construídas culturalmente, os aspectos tidos como femininos ou masculinos são instituídos por meio de diferentes aprendizagens reforçadas socialmente. Nesse sentido, a literatura infantil se configura como uma das muitas pedagogias culturais presentes nos meios de convívio, ou seja, é um currículo veiculador de diferentes discursos que, ao representarem feminilidades e masculinidades, incitam a produção de representações de gêneros. Assim, têm-se como objetivo analisar como as representações de feminino e masculino presentes em livros do PNLD Literário ensinam modos de ser menina e menino. Para isso, utilizou-se como referencial teórico os estudos de currículo em uma perspectiva pós-crítica, os estudos de gênero e os estudos de Michael Foucault. Metodologicamente, associou-se à análise de caráter documental a análise do discurso de inspiração foucaultiana. Os resultados demonstram que os livros apresentam discursos que reiteram formas padronizadas e “dominantes” de ser homem e mulher, posicionando tais sujeitos em espaços e comportamentos binários. Portanto, o estudo contribui no sentido de problematizar os significados produzidos e compartilhados acerca dos gêneros por meio da literatura, possibilitando novos olhares e compreensões no tocante a essa questão.

Palavras-Chave: Gênero; Literatura Infantil; Currículo;

ABSTRACT

The gender identity are not biological. Actually, culturally builded the female and male aspects are acquired through many learnings socially reinforced. In that way, children’s literature becomes one of the many cultural pedagogies presentes in the socializing, that is, is a curriculum in which many discourses that, by representing ways of being female or male, result in the production of gender representations. With so, the point of that paper is to analyze how female and male representation in the PNLD Literario’s books teach ways of being girl and boy. For that, is used as teorical reference the curriculum studys in a pos-critical perspective, gender study’s and Michael’s Foucault study’s. Methodologically, the documental analyses is associate to the discourse analyse inspired in foucault’s. Therefore, this research contributes in a way of problematizing the meanings produced and shared about the gender through literature, enabling new looks and comprehensions into that matters.

Keywords: Gender; Children’s Literature; Curriculum;

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6 INTRODUÇÃO

Era uma vez, em um reino não tão distante, meninas que nem sempre desejavam ser princesas. Outras que eram felizes sozinhas. Haviam ainda aquelas que não aceitavam as representações para elas criadas. Esta era uma terra em que as construções de gênero eram as mais variadas possíveis, não mais havendo tentativas de dar nomes aos corpos, tornando-os não apenas mais respeitados, mas especialmente livres.

Esse “reino”, em que inexistem as desigualdades de gênero, é o que utopicamente gostaríamos de se ver tornando realidade. Entretanto, muito distante do mundo ideal, as construções de gênero continuam a serem ensinadas nos diversos artefatos culturais. Aqui, tomaremos um deles para análise: a literatura infantil. Caracterizada como “um gênero literário definido pelo público a que se destina. Certos textos são considerados pelos adultos como sendo próprios à leitura pela criança e é, a partir desse juízo, que recebem a definição de gênero” (CADEMARTORI, 2014, s/p), diferencia-se de outros textos. É comum encontrá-la nas propostas pedagógicas, seja como leitura deleite ou como contextualização ao ensino de um conteúdo. Além disso, a instituição escolar se configura como espaço privilegiado de acesso e consumo desse material. Com isso, o livro literário se encontra como elemento inerente nas listas e orientações curriculares das escolas e dos documentos oficiais.

Entretanto, para além de um recurso didático ou de mais um item no currículo, a literatura infantil se caracteriza por sua vertente pedagogizante. Isto é, se constitui como espaço, como meandro por meio do qual ocorrem e se depreendem diferentes ensinos e aprendizagens. A literatura infantil é, pois, ela própria um currículo.

É Daniela Amaral Silva Freitas (2014) quem traz tal conceptualização. De acordo com a autora, a literatura não é apenas parte de uma estrutura curricular tradicional, mas “se pode dizer que a literatura infantil constitui, por si só, um currículo” (FREITAS, 2014, p. 66). Essa noção é possível ao compreender o currículo não como uma lista de conteúdos, mas como pertencente “da ordem do contingente, do histórico, do dinâmico, do discursivo.” (FREITAS, 2014, p. 65).

Dessa maneira, a literatura infantil, como artefato cultural, mas, especialmente como currículo, se configura como espaço em que circulam e interagem sentidos e significados, possuindo efeito nas práticas sociais e nos próprios sujeitos, incitando a própria produção identitária (FRANGELLA, 2009).

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7 Portanto, ao tratar especificamente das construções de gênero, é que o livro de literatura para a infância, ao ser lido, consumido autonomamente ou trabalhado em sala de aula, se configura como potente instrumento de educação, uma pedagogia cujo currículo transmite valores, saberes, significados, sentidos e que ao serem apreendidos, recusados ou ressignificados pelas crianças produzem efeitos em suas vivências e em sua formação como meninas e meninos, homens e mulheres.

Desse modo, se faz pertinente “problematizar as poderosas redes de disciplinamento e de controle social” (MEYER, 2000, p. 131) que normatizam os corpos em categorias fixas e imutáveis, consequentemente instituindo relações desiguais entre os gêneros. Logo, ao desenvolver uma análise crítica e incisiva da literatura, denotando as representações que nela circulam, “poderemos traçar linhas de fuga para pensarmos em novas formas de nos construirmos enquanto sujeitos” (BOTTON, 2015, p. 192).

Seguindo esse caminho, apresentamos neste texto resultados que, para pensar essas possíveis construções de gênero, bem como traçar possibilidades de rupturas, tomamos como objeto de investigação as produções de gênero disponibilizadas em sete livros de literatura distribuídos pelo Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) literário. Os títulos analisados, como mostra o quadro a seguir, são:

Quadro 1: livros selecionados

LIVRO AUTORIA ANO

História Meio ao Contrário Ana Maria Machado 1986

As Cocadas

Cora Coralina (autora) e Alê

Abreu (ilustrador) 2018

Apenas Diferente

Anna Claudia Ramos (autora) e Juliane Assis

(ilustradora)

2018

O Menino do Dinheiro em Cordel

Reinaldo Domingos e José Santos (autores) e Luyse

Costa (ilustradora)

2018

A Moça Tecelã

Marina Colasanti (autora e

ilustradora) 2018

A Mulher Ramada

Marina Colasanti (autora e

ilustradora) 2018

Lili Inventa o Mundo

Mario Quintana (autor) e

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8 Para tal, o objetivo central é analisar como as representações de gênero, presentes nas narrativas, ensinam determinados modos de ser menina e menino, por meio de objetos, marcas físicas e comportamentos que são atribuídos distintamente a essas duas categorias de gênero. Nesse sentido, o argumento central desenvolvido aponta que, mesmo quando os textos apresentam aparente ruptura com as representações padrões de gênero, as narrativas mantêm binarismos e desigualdades.

Posto isso, com propósitos de efetivar tal objetivo, metodologicamente tomamos como instrumento investigativo a análise documental cuja principal característica é “o fato de que a fonte de dados, o campo onde se procederá a coleta de dados, é um documento (histórico, institucional, associativo, oficial etc.)” (TONOZI-REIS, 2009, p. 41), nesse caso, os livros do PNLD-literário. Aliado à isso, utilizou-se o modelo de análise do discurso de inspiração foucaultiana.

Assim, percorremos alguns caminhos. Inicialmente, fizemos um recorte do nível de ensino a que os livros destinavam-se, optando-se por aqueles de 4ª e 5ª ano, compreendendo que nessa etapa as crianças já possuem maior autonomia na leitura, manuseio e compreensão das obras. Em seguida, começamos as buscas pelos livros nas escolas públicas do município de Natal-RN. No entanto, apesar de terem sido aprovadas cerca de 704 obras, em decorrência da corrente efetivação da política, muito recente em sua atuação, por um lado, muitas instituições ainda não possuíam os materiais do programa. Por outro, quando já haviam recebido os livros, o acervo era reduzido à uma ou duas obras. Como resultado, apenas dez livros foram obtidos e, dentre esses, sete foram selecionados para utilização na pesquisa.

Em relação à seleção de quais livros fariam parte do estudo, a etapa de leitura foi fundamental. Nesse momento, as escolhas foram subjetivas, em que buscamos perceber nas narrativas quando questões de gênero estavam em maior evidência. A fim de desenvolver tal análise, utilizamos como referencial teórico a abordagem pós-estruturalista, em especial, os conceitos de relações de poder, norma e discurso, cuja centralidade encontra-se nos postulados de Michel Foucault, os estudos pós-críticos de currículo e os estudos de gênero.

Enfim, o trabalho está organizado em cinco seções. Esta primeira, na qual estabelecemos os direcionamentos gerais que orientam o presente estudo. Na segunda, de título “PNLD literário: a nova política do livro de literatura” apresentamos um panorama geral do PNLD Literário, promovendo apontamentos quanto sua operacionalização, além de uma breve

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9 apresentação dos livros analisados. Na terceira, cujo título é “Cerceamentos de gênero: o feminino e o masculino em análise” surge a primeira categoria de análise em que discorremos acerca das representações que reiteram discursos normatizados acerca dos gêneros. Em uma quarta seção, intitulada “A poda do corpo: formas de controle e subjugação do corpo feminino” desenvolvemos a segunda categoria de análise em que se examina as representações acerca do controle sobre o corpo generificado. E, por fim, em “E viveram felizes para sempre? apontamentos e considerações finais” desenvolvemos breves ponderações acerca do trabalho. 1 PNLD LITERÁRIO: a nova política do livro de literatura

O Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) se configura, atualmente, por meio de seu seguimento, PNLD Literário, como uma das principais políticas públicas de distribuição e aquisição de obras de literatura nas escolas públicas do país. As instituições das redes municipais, estaduais e federais, além daquelas comunitárias e filantrópicas em relação de convenio com o estado, que aderem ao programa, obtêm o benefício de recebimento gratuito e sistemático de materiais literários para composição de seus acervos.

Dessa maneira, o PNLD para a literatura tem, dentre outros, por objetivos o fomento do incentivo à leitura e a democratização de acesso a fontes culturais e informacionais. Por conseguinte, é realizado de modo a garantir a aquisição de materiais não apenas para as bibliotecas escolares, mas ainda para as salas de aula e para os alunos de forma particular, atendendo à todos os níveis da educação básica.

No entanto, apesar de atualmente central no que tange as oportunidades de acesso a obras de literatura, o PNLD Literário, idealizado no ano de 2017, emergiu num contexto político e econômico fragilizado em que diferentes setores do poder público foram afetados, em especial, a educação. Nesse período, “uma crise orgânica e geral do capitalismo” (MANCEBO, 2017, p. 884) eclodiu em 2008, reverberando posteriormente nos países da América Latina. Não distante de tal espectro, o Brasil iniciou a década de 2010 não apenas com problemas do meio econômico, mas instável em sua política - a insatisfação popular e a disputa de interesses partidário gerou um quadro de árdua reeleição da então Presidenta da República, Dilma Rousseff, e seu posterior impeachment em 2016.

Esse cenário turbulento teve seus efeitos nos mais diferentes setores de atuação do governo e, consequentemente, a educação se viu diante de instabilidades. O então Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), que desde 1997 atuava como principal canal de

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10 distribuição de literatura nas escolas públicas, teve seu último edital publicado no ano de 2014 e foi finalmente “extinto” com o decreto nº 9.099 de 2017.

Em termos mais específicos, o PNBE, criado de modo a substituir ações antigas do estado voltadas para aquisição de livros de literatura para as escolas, em seus primeiros anos atendeu de forma direta às/os alunas/os, não compondo as bibliotecas escolares. É somente no ano de 2005 que essa sistemática é alterada, tornando-se responsável pela garantia de obras de literatura tanto nos espaços das bibliotecas quanto das salas de leitura, além de abranger ainda a distribuição de “materiais de apoio, materiais periódicos, materiais de pesquisa, materiais de referência a professores e a alunos, promovendo o acesso à cultura” (SILVA, 2016, p. 11). Os critérios de seleção levavam em consideração a “qualidade do texto, adequação temática e projeto gráfico” (SILVA, 2016, p. 14).

Contudo, diante do contexto anteriormente exposto, o programa passou a existir de forma incerta, tendo em 2015 o Ministério da Educação (MEC) declarado que não haveria novas aquisições de materiais para o ano seguinte, 2016. Sua retomada voltou a ser discutida dois anos depois, em 2017, quando o governo anunciou seu funcionamento por meio de reformulações. Porém, no mesmo período, o estado de incerteza quanto ao PNBE se consolidou com a expansão do PNLD e a criação do PNLD Literário. O decreto nº 9.099 instituiu:

Art. 1º O Programa Nacional do Livro e do Material Didático - PNLD, executado no âmbito do Ministério da Educação, será destinado a avaliar e a disponibilizar obras didáticas, pedagógicas e literárias, entre outros materiais de apoio à prática educativa, de forma sistemática, regular e gratuita, às escolas públicas de educação básica das redes federal, estaduais, municipais e distrital e às instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o Poder Público. (BRASIL, 2017)

Como resultado, o PNBE é absorvido na consequente ampliação do PNLD, que se torna o principal mecanismo de incentivo à leitura e de garantia de acesso a obras de tal natureza por meio da instituição escolar. E, no ano seguinte ao decreto, 2018, o primeiro edital é publicado².

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11 De responsabilidade do MEC, através da Secretaria de Educação Básica (SEB) e pela, hoje extinta, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), em cooperação com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o PNLD Literário funciona similarmente àquele destinado aos livros didáticos. Ou seja, sendo operacionalizado de forma a avaliar as obras submetidas pelas editoras e, em seguida, disponibilizá-las para avaliação das escolas e professoras/es, para somente então, dentre as selecionadas, distribuí-las. Além disso, os conteúdos temáticos dos livros deverão estar em diálogo com os estabelecidos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que, aqui se ressalva, não realiza orientações no que diz respeito às questões de gênero.

A princípio, o edital 02/2018 – CGPLI/SEB/MEC priorizou a aquisição de materiais destinados às etapas da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, pontuando que, para os primeiros dois ciclos, os livros deveriam ser escritos em Língua Portuguesa, e para, o último, poderiam ser também em Língua Inglesa, estando em consonância com as faixas-etária, com a BNCC e as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio.

Dessa forma, os livros, inscritos pelas editoras e autoras/es, deverão ser analisados, inicialmente, pelos próprios órgãos responsáveis pela iniciativa de equipes de avaliação. Aprovados, com resultado divulgado no Diário Oficial da União e nos portais online do MEC e do FNDE e tendo suas resenhadas publicadas no Guia Digital do programa, as escolas, em seguida, (professoras/es, gestoras/es e diretoras/es) poderão realizar a escolha das obras. O processo é finalizado com a compra do material e subsequente envio às instituições.

Em relação às especificidades e categorização dos livros disponibilizados, estes são organizados de acordo com os níveis a que se destinam, respeitando a idade dos alunos. Com efeito, são seis categorias, estando os níveis da Educação Infantil agrupados nas Categorias 1, 2 e 3 (creche I e II e pré-escola); a Categoria 4 diz respeito aos primeiros anos do Ensino Fundamental I (1ª ao 3ª ano); por fim, as Categorias 5 e 6 agrupam, respectivamente, as obras destinadas aos anos finais do Ensino Fundamental I (4ª e 5ª ano) e ao Ensino Médio. Cada categoria poderá trabalhar uma sugestão de tema estabelecido no edital e que dialoga com as competências expostas pela BNCC.

Nesse sentido, as temáticas explicitadas para a Categoria 5 (4ª e 5ª ano do Ensino Fundamental) são, por exemplo, “a) Cultura digital no cotidiano do adolescente; b) Conflitos da adolescência; c) Encontros com a diferença; d) Sociedade, política e cidadania; e) Diálogos com a história e a filosofia f) Ficção científica, mistério e fantasia; g) Outros temas.” (BRASIL,

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12 2018, p. 4). Tais proposições poderão, ainda, ser viabilizadas por meio de gêneros diversos, tais como “a. poema; b. conto, crônica, novela, teatro, texto da tradição popular; c. romance; d. memória, diário, biografia, relatos de experiências; e. obras clássicas da literatura universal; f. livros de imagens e livros de histórias em quadrinhos. g. livro-brinquedo.” (BRASIL, 2018, p. 5). Essa variedade de assuntos e gêneros tem como objetivo contribuir com o desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e competências, dialogando diretamente com o que é proposto nas diretrizes curriculares nacionais.

Ademais, os livros deverão compor não apenas o acervo das bibliotecas escolares, mas ainda os espaços de leitura das salas de aula e ser disponibilizado de forma direta aos alunos, a serem consumidos de forma individual. A tabela a seguir (disponibilizada no portal do FNDE) demonstra como se dará a distribuição das obras nos espaços da escola de acordo com o sistema de categorias:

Tabela 1: distribuição dos materiais

FONTE: fnde.gov.br

Esse material, diferentemente dos livros didáticos que possuem um ciclo de validade restrito a três anos, será renovado a cada quatro anos para a Educação Infantil, cinco para o Ensino Fundamental e apenas três para o Ensino Médio, caracterizando-se, assim, como uma ação periódica, regular e sistemática.

Portanto, diante do exposto, escolhemos para análise sete literaturas disponibilizadas pelo PNLD Literário 2018, sendo todas destinados às bibliotecas e referentes ao 4ª e 5ª ano (Categoria 5, temática “encontro com a diferença”), sendo estas, como já mencionado: História Meio ao Contrário de Ana Maria Machado cuja narrativa trata de um rei que, num dia, acredita que o sol sumiu e a explicação encontrada para tal problema é a existência de um Dragão Negro

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13 que todos os dias “rouba” o sol; O menino do dinheiro em cordel de José Santos e Reinaldo Domingos conta a história de um garoto que, ao viajar para conhecer a família no Nordeste, acaba aprendendo muito sobre a cultura popular e sobre lidar com o dinheiro; As Cocadas de Cora Coralina conta sobre uma passagem da vida de uma menina de dez anos que costumava fazer cocadas com sua prima, mas que não podia comê-las;

Além dessas, selecionamos ainda Apenas Diferente de Anna Claudia Ramos que trata sobre a história de um garoto considerado “esquisito” por não se comportar como os outros meninos de sua idade, buscando lidar com a perda do avô; A mulher ramada de Marina Colasanti narra a história de um jardineiro e sua mulher feita de ramos de flores e a incessante tentativa dele em mantê-la perfeita; A moça tecelã, também de Marina Colasanti, conta sobre um mulher cujo poder é tornar real tudo o que tece e, estando solitária, tece para si um marido; Lili inventa o mundo de Mario Quintana se constitui em uma coletânea de poemas do autor que retratam especialmente as narrativas inventadas pela personagem Lili.

Em suma, o PNLD Literário se configura como ação recente, ainda em processo de consolidação como estratégia e política efetiva na distribuição de livros de literatura. Entretanto, não impassível de avaliação, os sete livros selecionados constituem um forte meandro na veiculação de verdades e saberes acerca dos gêneros e seu consumo pelos alunos acaba por produzir corpos, modos de pensar e viver. Nesse sentido é que analisamos tais obras, buscando mostrar o que a literatura ensina sobre o gênero a meninas e meninos.

2 CERCEAMENTOS DE GÊNERO: o feminino e o masculino em análise

Ao folhearmos os livros selecionados, é possível identificar diferentes personagens, espaços e tempos que, inseridas/os e apresentadas/os nas histórias, movem e desenvolvem as narrativas. Entretanto, apesar de particulares, a representação das/os personagens, cada qual inserida/o no contexto de sua própria realidade ficcional, compartilham entre si atitudes e comportamentos, estabelecem relações e diálogos próprios de uma dada noção de gênero. Em termos mais específicos, em todo o material selecionado, a compreensão dos gêneros limita-se a duas categorias: feminino e masculino.

Apropriadas de um discurso dominante do que é ser homem e mulher, as histórias alocam suas/seus personagens no feminino e no masculino de forma padronizada, refletindo comportamentos tidos como “normais”. Em As Cocadas de Cora Coralina a personagem central, uma menina de dez anos, é representada em grande parte do tempo no espaço da cozinha

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14 em que auxilia e aprende não apenas a fazer as cocadas, mas especialmente a função do preparo do alimento, responsabilidade historicamente feminina e passada de uma mulher à outra, como mostra a imagem que segue

Figura 1: produzindo cocadas

Fonte: CORALINA; ABREU, 2018, p. 6.

Soma-se às imagens, falas que expõem o caráter regulatório do meio social, quando diz, por exemplo: “Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.” (CORALINA, 2018, p. 5). Seu “trabalho” era ajudar no ambiente doméstico, especialmente o âmbito da cozinha em que auxilia na tarefa de produzir cocadas. Ela “Batia os ovos, segurava a gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze” (CORALINA, 2018, p. 14). Coralina, nascida em 1889, torna explícito em seu texto a percepção que trazia consigo do feminino: doméstico, proativo e exemplar.

Nesse sentido, Scott (1995) corrobora na percepção dessa questão ao pontuar o conceito de gênero, argumentando que esse se refere ao conhecimento que uma determinada sociedade, situada em um espaço-tempo específico, depreende acerca das diferenças corpóreas percebidas. Nas palavras da autora, “gênero significa o saber a respeito das diferenças sexuais.” (SCOTT, 1994, p. 12). Aponta que

[...] gênero é a organização social da diferença sexual. O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada no corpo, incluídos aí os órgãos reprodutivos femininos, determina univocamente como a divisão social será definida (SCOTT, 1994, p. 13).

Logo, Cora Coralina evidencia, em seu texto, o discurso binário de seu tempo - homem/público e mulher/doméstico. Essa associação da mulher ao ambiente doméstico é vista

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15 ainda em outros livros. Em Apenas Diferente de Anna Cláudia Ramos, as atividades relacionadas ao preparo do alimento, cuidado da casa e das/os filhos é sempre de responsabilidade da mulher, nesse caso, da mãe: “Luísa tinha preparado um lanche pros filhos. A mãe de Ricardo e Rafael tinha feito um bolo, e a de Jonas separou frutas e ovos cozidos.” (RAMOS, 2018, p. 24). Em outro momento, a mãe é quem se dirige a escola do filho para conversar com a coordenadora da escola e é ela quem é responsabilizada para resolver o problema de “comportamento” desse: “[...] Mas foi tudo em vão. D. Carmem não quis conversa. E foi logo avisando que se Luísa não tomasse providências, o menino teria sempre problemas na escola.” (RAMOS, 2018, p. 14).

Essa normativa que objetiva estabelecer relação direta entre feminino e doméstico, feminino e maternidade, é reiterado outras tantas vezes, nos livros aqui analisados e na sociedade como um todo. Não é incomum, por exemplo, encontrar propagandas publicitárias de produtos de uso doméstico cujo público alvo são as mulheres, como no anúncio a seguir que, em comemoração ao dia da mulher, a oferta é voltada para a máquina de lavar, garantindo “tempo mais livre”.

Figura 2: anúncio “semana da mulher”

Fonte: CATRACALIVRE, 2015.

Evidencia-se assim a dispersão do discurso que define papéis, espaços e desejos a homens e mulheres. Essas construções de gênero iniciam antes mesmo da criança nascer. Num outro caso, em uma propaganda direcionada às crianças, mais especificamente meninas, a boneca “Little Mommy” (pequena mamãe, em português) promete uma vivência cada vez mais real do papel de uma mãe - limpar, cuidar, botar para dormir. O comercial ainda finaliza com a frase “por trás de cada pequena, há uma grande mamãe”.

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16 Figura 3: anúncio “Little Mommy”

Fonte: REVALATACADO (Youtube), 2016.

A reiteração do feminino vinculado ao privado e à maternidade também é marcante em História Meio ao Contrário de Ana Maria Machado, em que a atitude da Rainha em continuamente comunicar o Rei da hora de se alimentar e tomar banho reflete a atitude de uma mãe para com o filho, constantemente preocupada se a criança está bem cuidada, como na cena que segue:

Daí a pouco, um criado veio lá de dentro:

- Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa Majestade vir logo tomar seu real banho, que a real banheira já está cheia e a real água vai acabar esfriando. (MACHADO, 1986, p. 5)

E mais uma vez, logo em seguida:

- Majestade, Dona Rainha está chamando. Disse para Vossa Majestade vir jantar, que a real comida já vai para a real mesa e está realmente deliciosa. (MACHADO, 1986, p. 6)

No tocante à essa questão, Valéria Walkerdine (1995) aponta o disciplinamento histórico da mulher em direção à maternidade. Em outros termos, a autora argumenta que o feminino é compreendido como o responsável pelo cuidado, pela educação das crianças, assim garantindo o sucesso da sociedade. Afirma que

[...] a mulher é sistematicamente posicionada, governada e regulada de duas formas: como mãe que deve estimular a criança autônoma em desenvolvimento e como mãe culpada por qualquer fracasso tanto da autonomia individual quanto do corpo social [...] (WALKERDINE, 1995, p. 213).

Logo, no campo das relações de poder, torna-se necessário, aos propósitos políticos, econômicos e sociais hegemônicos, garantir que as meninas/mulheres continuem no “interior de uma série de ficções e fantasias que consistem em mantê-las seguras como mães”

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17 (WALKERDINE, 1995, p. 216). Assim, tanto os recortes dos livros anteriormente analisados quanto os exemplos da realidade apresentados, contribuem nesse sentido.

Em Lili Inventa o Mundo de Mario Quintana, essa imagem do feminino/materno é, semelhantemente, reforçada em diferentes momentos, como na figura a seguir:

Figura 4: “Canção de junto do berço”

Fonte: QUINTANA; SUPPA, 2018, p. 15.

Além disso, em funções relacionadas ao doméstico sempre são utilizados substantivos femininos: “chega a voz irritada da arrumadeira” (QUINTANA, 2018, p. 18), “a varredeira varre o cisco [...] a lavadeira bate roupa” (QUINTANA, 2018, p. 19) e “Logo que chegou em casa, começou a deitar sabença em cima da cozinheira” (QUINTANA, 2018, p. 32).

Tais práticas discursivas, isto é, “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2008, p. 55), estabelecem a noção, primeiramente, linear de mulher/feminino e, em seguida, lhe atribuem comportamentos e espaços. Metodicamente repetidas, esta é uma “lógica que parece apontar para um lugar "natural" e fixo para cada gênero.” (LOURO, 1997, p. 32)

Entretanto, sendo os gêneros efeitos dos discursos circulantes, produzidos no interior de relações marcadas por avanços e recuos, diálogos e negociações entre os diferentes grupos, setores e instâncias da sociedade, “as tentativas de naturalizar o significado, de fechar o processo de significação [...] têm de enfrentar sempre a tendência do significado ao deslizamento, à disseminação [...], sua resistência ao aprisionamento” (SILVA, 1995, p. 20 apud FERNANDES; RIBEIRO, 2018, p. 75).

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18 Nesse sentido, a charge a seguir explicita essa questão, ao buscar, humoristicamente, contrapor as noções de feminino e masculino mais “comuns”, retratando o homem caracterizado num avental e servindo à mulher uma cerveja, que assiste ao jogo de futebol despreocupadamente. A inversão de papéis expõe o caráter cultural da construção dos sexos.

Figura 5: inversão de papéis

Fonte: DOMTOTAL, 2012.

Em relação a isso, o masculino também é reforçado na perspectiva padronizada, constituindo-se opostamente ao feminino. Walkerdine (1995, p. 217) aponta que “a masculinidade é uma ficção tão histórica e culturalmente construída quanto a feminilidade, mas vivida de forma bastante diferente.” Essa diferenciação é experienciada por meio de comportamentos, atitudes e responsabilidades destinados ao masculino que exprimem valentia, inteligência e virilidade.

Em História Meio ao Contrário a solução encontrada pelo Rei para solucionar o problema de desaparecimento do sol é chamar um príncipe, intitulado na narrativa de Príncipe Valente em que é adjetivado por suas bravura e coragem, construindo a imagem tradicional dos heróis de contos de fada: “Era o Príncipe Encantador e Valente, que vinha com toda a sua coragem enfrentar o monstro. Só com a coragem, não. Vinha também com sua lança, sua espada, seu escudo. Com armadura, elmo e tudo.” (MACHADO, 1986, p. 15).

A exaltação do masculino da força, coragem, inteligência e autonomia é contraposta ao feminino, submisso e frágil. Ainda na mesma história, a Princesa é mostrada sem protagonismo na resolução da problemática central e, na maior parte do tempo, aparece como alguém assustada, como no trecho a seguir:

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19 - Mamãe, que escuridão! Cadê tudo? Onde estão os jardins? A aldeia? Os campos? Tudo sumiu... - choramingava a Princesa. (MACHADO, 1986, p. 7).

Além disso, enquanto ao masculino são atribuídos sentimentos como raiva, fúria e exaltação, à mulher, sempre doce e gentil, cabe à função de pacificar. Num dado momento da narrativa, o Rei escandalosamente entra no palácio gritando palavrões, e a Rainha busca tranquilizá-lo:

E no meio de tudo, a voz calma da Rainha, tentando entender exatamente qual era o problema do seu adorado Rei:

- Majestadinha do meu coração, conta para mim, conta... Que foi que aconteceu, meu real amor? (MACHADO, 1986, p. 7).

É reforçado, portanto, o discurso que institui um feminino frágil e um masculino forte, demandando-se “força, destreza e potência aos homens, e delicadeza, fraqueza e fragilidade às mulheres.” (FERNANDES; RIBEIRO, 2018, p. 75). Criam-se, pois, marcas generificadas, “marcas que enquadram o que é supostamente da natureza feminina e da natureza masculina.” (FERNANDES; RIBEIRO, 2018, p. 65).

Consonante a isso, em O Menino do Dinheiro em Cordel de Reinaldo Domingos e José Santos se reforça, mais uma vez, a ideia do homem/masculino como corajoso, mas principalmente inteligente e independente. Ainda na apresentação da história, os autores colocam: “O menino do dinheiro em cordel sempre foi curioso, observador e determinado. Agora crescido, criou asas, alcançando voos mais longos” (DOMINGOS; SANTOS, 2018, p. 3).

A não presença de personagens femininos, a não ser por meio de uma ou outra imagem, fortalece o protagonismo masculino em sua associação com atividades de natureza lógicas como a financeira, sendo o objetivo do livro ensinar sobre o lidar com o dinheiro. Quanto à isso, é Walkerdine (1995) quem expõe os processos históricos que buscam, insistentemente, em distanciar a mulher da logicidade, subordinando-a “a um modelo de cultivo natural que proteja a razão”. (WALKERDINE, 1995, p. 213).

Assim, a não representatividade feminina nesse tipo de narrativa solidifica a ideia de que “nós podemos ser boas operárias, boas secretárias, assistentes de pesquisa, mas nunca grandes pensadoras ou gênios.” (WALKERDINE, 1995, p. 215).

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20 Essa perspectiva permeia todo o livro, e, em dado momento, o protagonista conhece dois cantadores, e, um deles diz:

- Você diz viver de renda… Isso é mentira matreira.

Quem lhe sustenta é Aninha, De segunda a sexta-feira, Trabalhando o tempo todo No serviço de rendeira

(DOMINGOS; SANTOS, 2018, p. 20)

Apesar de parecer converter a relação tradicional em que é o homem que sustenta a casa, ao tempo em que a mulher permanece cuidando do lar, a narrativa logo reverte o quadro, ao tratar tal situação como uma vergonha para o outro personagem que responde:

- Não precisa o amigo Abrir caixão de defunto.

Não fale da minha casa, É melhor mudar de assunto [...] (DOMINGOS; SANTOS, 2018, p. 21)

A norma, a partir do “princípio de comparação” (LOURO, 2008, p. 22) é estabelecida de modo a determinar diferenças, naturalizando o que é “certo/normal” e o que é “errado/estranho”. A fuga às normativas gera envergonhamento, sentimento de humilhação, como no caso do personagem anteriormente citado, mas também deslocamento, como acontece com Nicolau, personagem principal de Apenas Diferente. O próprio título alude à sua personalidade, diferenciada a dos outros meninos de sua idade.

Sensível, apegado à família e envolvido com atividades sentimentais, tais como escrever, Nicolau é tido como esquisito. O pensamento da mãe explicita tal questão:

Ô menino esquisito esse meu filho. Ariel é levado, mas não inventa histórias malucas. Brinca com os amigos sem problemas. Está sempre de bem com a vida. Já Nicolau, não. Vive sozinho, grudado na caixinha de música que era de papai. (RAMOS, 2018, p. 7).

Logo, a normativa é utilizada para estabelecer o que é adequado ou não para determinado corpo. O que não se acomoda a tal padrão, é tido como diferente, anormal; um

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21 regime do “normal e do patológico” (FOUCAULT, 1988, p. 65). As características tidas masculinas ou femininas não são inerentes aos corpos, mas produzidas, pois “o sujeito não é anterior ao que ele expressa, mas é justamente um efeito do que ele expressa.” (FIRMINO; PORCHAT, 2017, p. 57). Os sujeitos são produtos dos discursos. Em relação a isso, Butler (2003) aponta que

[...] o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e importo pelas práticas reguladoras da coerência do gênero [...] o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente à obra. (BUTLER, 2003, p. 48)

Diante disso, ainda na narrativa de Apenas Diferente ao tempo em que é julgado por seus comportamentos “diferentes”, Nicolau é admirado em outros, quando suas atitudes dialogam com as normas estabelecidas para o masculino. Num certo momento, Nicolau e seus amigos encontram uma cobra. Prontamente, o menino a segura sem demonstrar medo algum:

E levantou a cobra, para que todos pudessem vê-la [...] Ariel ficou estranho. Não sabia se sentia orgulho pela coragem do irmão, ou medo por ele correr o risco de morrer picado pela cobra. Será que Nico era tão corajoso assim, ou era maluco mesmo? - Larga essa cobra, Nico! Ela vai te picar.

- Não se preocupe, Ariel. Ela não vai me morder. Eu não tenho medo dela, não. Ela nem é venenosa.

E, para mostrar que não era mesmo, mordeu o rabo da cobra. Depois, enterrou-a e continuaram a caminhar de volta para casa. Nenhum dos meninos conseguia parar de pensar no acontecido. Estavam impressionados. Nunca tinham visto Nico fazer uma coisa daquelas. (RAMOS, 2018, p. 29).

Novamente, o masculino é associado a adjetivos de força e bravura, tais como a coragem demonstrada por Nicolau, exaltado e admirado por seu ato. Em diálogo com tal questão, a compreensão de performatividade, apresentado por Butler (2000), contribui no sentido de perceber como certas representações são reiteradas. De acordo com a autora, o gênero é construído performativamente, isto é, se constitui em um processo de “reiteração de uma norma ou conjunto de normas.” (BUTLER, 2000, p. 121).

Por conseguinte, ao reproduzir atos e gestos performáticos do masculino, tão repetidos discursivamente no meio que “adquire a aparência de substância” (FIRMINO; PORCHAT, 2017, p. 60), Nicolau assume um perfil de normalidade. Todavia, ainda é estranho por não possuir outros comportamentos “normais” de um menino. Assim, pode-se compreender que as representações de gênero não são universais, tão menos inertes. No que diz respeito a essa

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22 questão, Scott (1995) defende que é preciso rejeitar o “caráter fixo e permanente da oposição binária” (SCOTT, 1995, p. 18).

Ao tomar tal perspectiva, torna-se possível elucidar o caráter plural dos gêneros. Não há um modelo universal de ser mulher ou homem, ou um modelo constante, mas formas diversas de se constituir feminino e masculino que estão em contínua transformação. Isto é, os sujeitos possuem “identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem, até mesmo, ser contraditórias.” (LOURO, 1997, p. 24).

Dialogando com tal proposição, a imagem a seguir, retirada da plataforma Pinterest, busca romper com determinadas normas acerca do masculino, tais como “homem não chora”, mostrando as diversas possibilidades de vivências, independente do gênero.

Figura 6: meninos podem ser

Fonte: PINTEREST, 2019.

Nos quatro materiais analisado nessa seção, História Meio Ao Contrário, O menino do Dinheiro em Cordel, Lili Inventa o Mundo e Apenas Diferente, diferentes tempos, espaços e problemáticas foram apresentadas. Entretanto, apesar de particulares, as representações, isto é, as “formas culturais de referir, mostrar ou nomear” (LOURO, 1997, p. 98) o feminino e o masculino são reiterações de noções padronizadas, pois reafirmam uma compreensão binária das relações de gênero, instituindo o feminino como o privado, o materno, doce, gentil e emotivo, e o masculino, de maneira oposta, como o público, independente, forte,

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23 corajoso e racional. A seção seguinte dá continuidade a tais analises, em que desenvolvemos leituras das representações do corpo e seu disciplinamento.

3 A PODA DO CORPO: formas de controle e subjugação do corpo feminino

O corpo é matéria. É biológico em sua natureza. Indubitavelmente, é preexistente ao ser, definido por meio de um processo evolutivo anterior as próprias relações sociais. Todavia, não se mantém inerte, pois apesar de ser naturalmente moldado, são as configurações culturais que o significam e lhe dão vida. É Michael Foucault (1987) quem concebe o corpo como invólucro do disciplinamento, isto é, o corpo, para além da massa orgânica, é locus das relações de poder. Segundo o autor,

Os historiadores vêm abordando a história do corpo há muito tempo. Estudaram-no no campo de uma demografia ou de uma patologia históricas [...] Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. (FOUCAULT, 1987, p. 29) Logo, diferentemente do que postulava o discurso científico por volta do século XVIII, ao declarar que as diferenciações de gênero se davam por seu caráter biologicamente definido, imutável e fixo, o corpo é, na verdade, significado, compreendido culturalmente e marcado, disciplinado, ensinado no jogo de poder socialmente estabelecido. Assim, numa gestação, por exemplo, é o saber sobre o corpo que definirá diferentes aspectos sobre a vida do sujeito: seu nome, as cores de decoração do seu quarto, os brinquedos com as quais irá brincar, as expectativas em relação a seu comportamento. Nessa direção,

A declaração “É uma menina!" ou "É um menino!" [...] instala um processo que, supostamente, deve seguir um determinado rumo ou direção. A afirmativa, mais do que uma descrição, pode ser compreendida como uma definição ou decisão sobre um corpo [...] Afirma-se e reitera-se uma seqüência, de muitos modos já consagrada, a seqüência sexo-gênero-sexualidade. (LOURO, 2004, p. 15)

Diante disso, o arcabouço literário selecionado para análise também apresenta em seu texto diferentes corpos. Estes, descritos e tratados de maneiras diversas, representam as formas como os corpos femininos e masculinos são definidos, subjugados e silenciados. Tratando dessas questões por meio de seus contos fantásticos, Marina Colasanti explicita a padronização do corpo feminino em A Mulher Ramada.

Na narrativa, um jardineiro, sentindo-se solitário, “encontra” para si uma companheira a partir de mudas de rosas, as quais planta e “constrói” uma mulher ramada. O trabalho do homem exige cuidado, pois sua companheira (por ele criada) deve atender à uma forma perfeita; seu corpo deve ser delineado a moldes específicos:

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24 Durante meses trabalhou conduzindo os ramos de forma a preencher o desenho que só ele sabia, podando os espigões teimosos que escapavam à harmonia exigida. E aos poucos, entre suas mãos, o arbusto foi tomando feitio, fazendo surgir dos pés plantados no gramado duas lindas pernas, depois o ventre, os seios, os gentis braços da mulher que seria sua. Por último, cuidado maior, a cabeça, levemente inclinada para o lado. (COLASANTI, 2018, p. 27)

Tal noção de “belo” pode ser percebido na imagem a seguir, que expõe o resultado final do corpo “ramado” construído pelo homem:

Figura 7: a mulher ramada

Fonte: COLASANTI, 2018, p. 31

O corpo feminino é, pois, objeto de controle, de moldagem às normativas postuladas. No jogo de poder entre os diferentes grupos sociais (étnico, religioso, de sexo, de gênero, entre outros), enunciados são compartilhados sobre o corpo, especialmente o feminino, que sofre com os comandos de como esse deve ser em seu formato, como deve se movimentar e quais adereços devem acompanhá-lo.

De fato, os discursos que formatam o corpo da mulher estão dispersos na sociedade, em diversos espaços e artefatos culturais. Na produção fílmica de Frederic Doazan “Supervenus”, por exemplo, a narrativa animada tem por propósitos expor os meandros sociais de construção do corpo da mulher. Invadido, cortado, queimado, costurado, expandido e afinado, a matéria (o corpo feminino) torna-se reconfigurada numa busca pelo encaixe no “perfeito”, no “belo”.

Assim, ao longo do filme, esse corpo é remodelado pelas mãos de um cirurgião (não visto) e transformado a um ponto que se torna irreconhecível numa tentativa irrefreada de

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25 adequar-se a um “padrão” estético. A imagem a seguir foi retirada da obra e expõe a personagem ainda em seu estado “natural”.

Figura 8: o corpo feminino

Fonte: DOAZAN, “Supervenus”.

A segunda imagem, entretanto, expõe um corpo já completamente diferente: Figura 9: a “supervenus”

Fonte: DOAZAN, “Supervenus”

Portanto, assim como o jardineiro que poda “Rosa-Mulher” (COLASANTI, 2018), temendo “romper tanta beleza” (COLASANTI, 2018, p. 30) também o fazem, em outros espaços, os discursos médicos, midiáticos e estéticos, tal como na capa da revista a seguir que oferece diferentes “dicas” para conquistar uma “barriga chapada” ou emagrecer, considerados os ideais da perfeição.

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26 Figura 10: -4kg em 1 mês.

Fonte: ego.globo.com

Diante disso, é possível perceber como os discursos, nesse caso o midiático e estético, configuram uma forma de ser, assumindo um caráter de verdadeiro e, consequentemente, aceitável e desejável, sendo que “os discursos de verdade na sociedade são aferidos por meio de comportamentos, linguagens e valores” (BORDIN, 2014, p. 230).

Consonante a isso, o controle não se dá unicamente na matéria do corpo, mas sobre todo ele, ou seja, sobre as formas de pensar, falar ou agir, a produção do ser como sujeito. Por meio de técnicas, manobras e táticas (FOUCAULT, 1987) o poder constitui os próprios gêneros, definidos de acordo com a interpretação de um dado meio acerca das diferenças corpóreas percebidas, pois “[...] não há como recorrer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais.” (BUTLER, 2003, p. 27)

Assim, é em A Moça Tecelã também de Marina Colasanti que pode ser denotada a subjugação da mulher a um outro, o homem. Semelhante ao que ocorre em A Mulher Ramada, aqui a figura feminina volta a atender aos desejos de um outro. O corpo é controlado não em sua forma, mas em suas ações, em seus desejos.

Sentindo-se solitária, a protagonista dessa narrativa decide tecer para si um marido. Esse, descobrindo o poder da mulher em transformar em realidade tudo aquilo que tece, passa a desejar bens materiais, limitando o trabalho de sua companheira à mercê de seu próprio querer. Assim, “[...] descoberto o poder, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar” (COLASANTI, 2018, p. 13). As palavras utilizadas no texto explicitam a

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27 natureza do comando, da submissão da mulher ao homem: “Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo [...] [e] Sem querer respostas, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata” (COLASANTI, 2018, p. 13).

Em dado momento, o marido reserva à sua esposa o espaço de uma torre - no castelo por ela construído - e lá a confina, presa ao quarto trancado por seu companheiro, assim tendo que, sem descanso, tecer “a mulher aos caprichos do marido” (COLASANTI, 2018, p. 14).

Em ambas as histórias, tanto em A Mulher Ramada quanto em A Moça Tecelã, a situação de controle tornou-se enrijecida a partir da relação amorosa selada pelo casamento. O distanciamento da solidão e, por consequência, a felicidade, objetivadas tanto pelo jardineiro quanto pela moça tecelã, só poderia ser suprida, de acordo com suas concepções, pela instituição do matrimônio e a formação da família.

Esse discurso amoroso, que estabelece mutualidade entre felicidade e casamento, se dá sob uma organização social de matriz heteronormativa. Ou seja,

Tal matriz pressupõe relacionamentos sexuais (e românticos) entre os dois polos sexuais biológicos e que estes devem acompanhar os polos de gênero, sendo qualquer relação desviante dessa regra uma aberração - mesmo aqueles indivíduos que não se obrigam às relações sexuais ou românticas, isto é, aqueles que assumem identidades assexuais. Ainda dentro dessa matriz, a relação entre os dois polos se situa em um regime de dominação/submissão – na qual o macho, homem e heterossexual supostamente tem direito de dominação sobre a fêmea, a mulher. (REIS; PINHO, 2016, p. 12).

Portanto, o casamento, compreendido como sinônimo de felicidade, estabilidade e status social, é, na verdade, mecanismo de controle por meio do qual mantêm-se as relações desiguais no âmbito das categorias de gênero. Assim, esse controle é percebido ainda em História Meio ao Contrário quando o Rei oferece àquele que derrotar o Dragão Negro a mão de sua filha em casamento, a Princesa. Desprovida de controle sobre suas próprias decisões e desejos, a figura feminina não é apenas subjugada, mas seu corpo é utilizado como “moeda de troca”, como uma “premiação” ao feito heroico do homem.

Como resultado, se têm uma relação em que o homem, o Rei, decide sobre a vida da mulher, a Princesa, percebido no trecho a seguir:

Mas o Rei não se atrapalhava. Ele já devia ter lido muitas histórias de reis, princesas e dragões, sabia direitinho o que dizer:

- Avise a todos que quem conseguir liquidar o monstro terá a mão de minha filha em casamento. (MACHADO, 2018, p. 11).

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28 A estrutura tradicional do conto de fadas é reafirmada. A princesa, silenciada, nesse caso expressamente por meio da fala da mãe quando diz “Cala a boca, menina” (MACHADO, 2018, p. 11), espera que o príncipe resolva os problemas e salve a todos, incluindo a si. O modelo heteronormativo e machista é utilizado como princípio na tomada de decisões; como solução para o fim dos problemas.

Na dispersão dos discursos, na música de Isabella Taviani, “A imperatriz e a Princesa”, esse modelo é subvertido. Na canção, diferentemente dos contos de fadas convencionais, não é o príncipe quem salva a princesa, mas a princesa quem salva a imperatriz, há tempos solitária e presa numa torre vigiada por um dragão, aqui utilizado como metáfora para sua tristeza. A melodia conta ainda que, depois de tantos homens tentarem enfrentar a terrível criatura, é a princesa quem tem sucesso e conquista a imperatriz, como é relatado na letra da canção:

Princesa, é teu meu coração Há tempos não sei o que é amar Pequena, tão grande a sua luz

E a princesa amarílis, sem cavalo e sem escudo Libertou a imperatriz da maldição

(TAVIANI, 2012)

A música apresenta uma ruptura com o instituído, diferenciando-se das narrativas literárias aqui analisadas. Na verdade, nos textos ficcionais selecionados, as normativas binárias de relacionamento são reiteradas, reforçadas por meio da não presença de outras configurações de relacionamento. Mais que isso, se enrijece o ideal de felicidade fundamentado no matrimônio heterossexual, como ocorre ainda na narrativa de História Meio ao Contrário na fala da Rainha que, espantada pela decisão da filha em não se casar, diz que “todas as princesas das histórias casam com os príncipes que vencem os dragões e os gigantes. E que os dois vivem felizes para sempre.” (MACHADO, 2018, p. 18).

Contrariamente a isso, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) quanto ao registro de casamentos civis no ano de 2016, há uma queda de 3,7% no quantitativo de casamentos civis em relação ao ano de 2015. No mesmo documento, é possível ainda observarmos que a idade dos sujeitos quando oficializada a união é uma média de 28 para mulheres e 30 para os homens, demonstrando que os indivíduos casam-se cada vez mais velhos.

Esses números se dão em resultado das transformações sociais, especialmente com as conquistas femininas em sua escolarização e inserção no mercado de trabalho. Todavia, a

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29 grande maioria dos discursos veiculados aloca a mulher solteira no lugar da incompletude, da infelicidade e desespero. O medo de ser julgada, de “ficar para titia”, move meninas, jovens e mulheres adultas a definirem como objetivo de vida a realização de um casamento e a constituição de uma família, ainda que esse não seja seu desejo.

A imagem a seguir objetiva, de forma irônica, inverter os papéis de gênero, ao direcionar as pressões historicamente femininas ao homem.

Figura 11: solteiro aos 35

Fonte: Autoria Desconhecida.

O discurso amoroso que afirma a necessidade de casamento e maternidade, ao interagir com os sujeitos, pode ser assumido ou negado, pois, “os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas. Ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens — reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente.” (LOURO, 1997, p. 61).

Desse modo, retomando a narrativa de A Moça Tecelã que, inicialmente, decide ter para si um marido e filhas/os para ser feliz, ao final da história passa a rejeitar esse modelo, rebelando-se quando “tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.” (COLASANTI, 2018, p. 14).

Portanto, diante do que foi exposto, é possível perceber as representações que reiteram os modos de controle dos corpos femininos e masculinos - no âmbito não apenas da matéria, mas ainda do agir, pensar e falar - presentes nos textos literários analisados. Sua leitura permite depreender o olhar crítico e analítico quanto aos discursos que subjugam e silenciam.

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30 E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE? apontamentos e considerações finais

A literatura infantil é um artefato cultural que circunda o imaginário. Com suas narrativas fantásticas, provoca diferentes sentimentos e sensações, envolvendo suas/seus leitoras/es nos contos de fadas, nas histórias em outros espaços e tempos, em realidades sem fronteiras. Entretanto, apesar desses aspectos, tais textos não podem ser percebidos de forma ingênua, isto é, de forma a desconsiderar seu caráter social e político. Na verdade, analisamos que, a partir da leitura do material selecionado, a literatura infantil, como um currículo, veicula diferentes saberes e valores, de modo que “os sujeitos e os significados das práticas são elaborados na medida em que são mencionados, posicionados e representados discursivamente.” (FRANGELLA, 2009, p. 5).

Dessa maneira, pudemos perceber situações, comportamentos, diálogos, características, relações e posicionamentos nos livros do PNLD Literário analisados que alocam as personagens em categorias de gênero de forma binária e padronizada, apresentando pequenas rupturas. Em outros termos, o feminino e o masculino foram representados de modo a reiterar discursos que os caracterizam, em maioria, de forma imutável.

Nesse sentido, a mulher foi mostrada em espaços privados, realizando atividades domésticas, como cozinhar e/ou cuidar das/os filhas/os. Ademais, representada quase sempre de modo dócil, gentil, complacente e pacifista. Opostamente, o homem é descrito numa posição de liderança, de poder, em que surge depreendendo força e virilidade. Seu comportamento é da bravura, destreza e logicidade.

Todavia, em algumas narrativas, há cenários de “fugas” a essas representações. Isto é, discursos de outras ordens que possibilitam construções distintas, pois, “o currículo como enunciação é a zona fronteiriça de interrogação, enfrentamento, negociação e contingência.” (FRANGELLA, 2009, p. 13).

Assim, em História Meio ao Contrário, por exemplo, a personagem feminina, a Pastora, adquire certo protagonismo, desenvolvendo soluções para a problemática posta, assumindo uma postura determinada, heróica e de bravura - características normalmente atribuídas ao homem/masculino - em diferentes momentos, como no trecho que se segue: “A Pastora, porém, não desistia. Era uma moça muito decidida e não gostava de largar pelo meio as coisas que queria fazer. Nem desistia de uma boa idéia só porque a situação estava meio preta.” (MACHADO, 2018, p. 5).

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31 Ademais, no mesmo conto, a Princesa, na maior parte do tempo subjugada e silenciada, também rompe com discursos “dominantes” ao, independentemente, tomar a decisão de não se casar - a não ser que ela mesma quisesse - e opta por viajar, conhecer outros lugares.

Um outro texto que promove “rupturas” é A moça tecelã. Nessa narrativa, a mulher ao perceber que se sentia infeliz após ter se casado, deseja retornar à sua vida anterior de solteira. Logo, a personagem passa a rejeitar um dado discurso e a aceitar outro. Quanto à isso, Louro (2004), aponta que “mesmo que existam regras, que se tracem planos e sejam criadas estratégias e técnicas, haverá aqueles e aquelas que rompem as regras e transgridem os arranjos.” (LOURO, 2004, p. 16).

Noutros momentos das histórias, as/os personagens levantam questionamentos acerca de certas normativas, como Nicolau de Apenas Diferente que não entende porque é considerado “esquisito”. Ou a protagonista de As Cocadas em que ao final do conto se sente “revoltada” com certas regras de comportamento. Entretanto, apesar de tais reflexões, não há rupturas acentuadas, mas, na verdade, há muito mais conformismo, insurgimento que é interno, que não ultrapassa a barreira do pensamento para se tornar concreto.

Portanto, diante do que discutimos durante este estudo, denota-se que a literatura infantil, apesar de seu caráter lúdico, não é inocente, mas se configura como uma pedagogia, um espaço do ensino e da aprendizagem em que se torna possível depreender diferentes valores e saberes. E, dentre estes, enunciados que remetem aos gêneros, provocando a constituição de modos de falar, pensar e agir.

Em síntese, os textos analisados, apesar de apresentarem algumas rupturas, representam os gêneros de forma binária, isto é, os limitam em duas categorias opostas e “fixas”: feminino e masculino. Como resultado, contribui com a manutenção de desigualdades, noções padronizadas e excludentes. Nesse sentido, buscamos problematizar tais narrativas como uma forma de depreender um olhar crítico e incisivo para as “verdades” de gênero veiculadas nas literaturas infantis, promovendo “fugas” aos discursos de aparência substancial e possibilitando a construção de novos caminhos para se constituir como sujeito.

REFERÊNCIAS

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Referências

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