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Cartografias da diferença na arte de Clóvis Irigaray - Uma (re)leitura queer

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Academic year: 2021

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Cartografias da diferença na arte de Clóvis Irigaray - Uma (re)leitura queer

Antonio Ricardo Calori de Lion

Assim como o sonho é o fator de equilíbrio mental, um país sem arte é um país enfermo, louco. A arte é o ouro das nações, seu lastro, seu conteúdo mais profundo. Uma nação que não tenha artistas vivendo intensamente seus processos criativos, criando livremente, está doente. A função da arte é permitir às nações sonharem, buscarem seu próprio destino. Cabe, portanto, àqueles que detêm o poder, àqueles que têm a responsabilidade de conduzir os destinos da nação, observar e interpretar o sonho dos artistas, integrando-os ao seu projeto. Uma nação que não sonha não tem futuro, nem passado. Está fadada a morrer.

- Frederico Morais, 1977.

Almeja-se aqui trazer alguns momentos da trajetória do artista plástico Clóvis Irigaray a partir de um olhar queer, ou seja, uma leitura acerca das corporeidades desnaturalizadas das quais o artista apresenta em sua abordagem pictórica, seja em composições inéditas ou em releituras. O trabalho do artista passou por momentos distintos da história brasileira na segunda metade do século XX, apresentando principalmente relação com o estado de Mato Grosso, seu local de origem. Sua prática artística começa nos anos 1960 e vem até os dias de hoje, contudo as obras que interessam para a reflexão deste texto não abrangem toda sua carreira, senão em momentos específicos e escolhidas a partir da transversalidade entre diferenças sociais; decolonialidade; crítica à padronização da representação corpórea e sexo/gênero. Este recorte foi delimitado pela interpretação lançada à sua obra, como um fazer artístico interessado na relação espaço, corpo e tempo criticando – em muitos aspectos pictóricos – um pensamento colonialista e normatizador.

As ambiguidades e releituras em algumas de suas pinturas trazem marcadamente o corpo indígena representado em deslocamentos performáticos, como no próprio espaço, mas também no tempo e na corporeidade. Estes deslocamentos estratégicos do pintor/performer

Discente do doutorado em História na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista

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instigam a pensar sobre questões pautadas em conceitos como “progresso”; “desenvolvimentismo” e “imperialismo”. A profundidade de sua pincelada vai para além da bidimensionalidade de suas imagens, o seu corpo estabelece um diálogo entre o seu lugar e seu tempo histórico, tornando sua própria existência também uma obra de arte.

Clóvis Irigaray transita entre pintura e performance pela sua própria prática/função artística. Pela estética do seu corpo e pela relação estendida aos seus trabalhos com questões de sua terra de origem vislumbra-se um rico campo interpretativo do qual se conecta as atuais discussões (ataques) a respeito de uma “arte degenerada” e a perseguição à arte que desmonta e desconstrói os paradigmas estéticos que (hetero)normatizam a sociedade. Desta maneira, por uma abordagem histórica interpretativa será mostrado que Clóvis Irigaray já vêm trazendo há algum tempo o que se pode chamar de queer na sua prática artística.

Do corpo do artista ao corpo das imagens

O artista é mato-grossense e começou sua carreira em exposições artísticas nos anos 1960. Nos anos 1970 compôs uma série chamada Xinguana que o colocou como um artista “hiper-realista”. A característica das imagens criadas pelo artista está na presença dos corpos e as variações com que pensa a representação deles. A temática indígena toma o centro do seu trabalho e também tomou seu próprio corpo, já que com a tatuagem pôde gravar em sua pele grafismos indígenas. Seu rosto tatuado em azul caracteriza o artista com sua especificidade entre artista plástico e performer, suas telas parecem manterem uma ligação com seu corpo, dialogicamente. A crítica de arte Aline Figueiredo assim descreveu o seu trabalho de projeção, nos aos 1970, com a sua prática:

Há que considerar o do desenho hiper-realista de Clovis Irigaray, da série Xinguana, realizada no biênio 1975-1976, em que, com novo enfoque, redesenhou o índio brasileiro na plenitude utópica de sua presença na sociedade de consumo no mundo contemporâneo. Após tal contribuição plástica, Irigaray, por mais 20 anos, incorporou o comportamento de um personagem social lúmpen, pela radicalidade com que se tatuou, travestiu, agrediu e transgrediu, com o próprio corpo, a ideia de ser devorado pelo sistema. Atitudes que só o fenômeno da arte contemporânea (body art) poderia liberar e mesmo compreender. (GONÇALVES, 2010: 28)

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A representação indígena proposta por Irigaray na série Xinguana pode ser interpretada de várias maneiras, diante da temporalidade em que fora produzida. As políticas do governo federal nos anos 1970 para com o Centro-Oeste brasileiro reformulou políticas públicas da Era Vargas, mais precisamente durante o Estado Novo, provinda da Marcha para o Oeste e a ideia de integralização do país, pensando a ocupação de áreas “desabitadas” e investimento na produção agrícola. Desde os anos 1940 vários grupos indígenas já sofriam com a presença de pessoas não-indígenas levadas para aquelas paragens justamente para a criação de colônias agrícolas e ocupação de mão-de-obra para a produção, havendo aldeamentos e dizimação de grupos indígenas pelo contato com doenças provindas de lugares urbanos, além de conflitos armados.

Fonte: GONÇALVES, 2010: p. 65.

Diante dos problemas entre os interesses capitalistas na região, entre o governo brasileiro e elites rurais dos estados de Mato Grosso (que já caminhava para se dividir) e Goiás (que também mantinha conflito divisionista com o seu norte, culminando na criação do estado do Tocantins) a entrada de hábitos da sociedade modernizada e o consumo de produtos de marcas multinacionais são retratados por Clóvis Irigaray em imagens consideradas pela crítica como hiper-realista.

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A decolonialidade está, assim, no pensamento do artista que pode interrogar a relação da sociedade de consumo moderna, capitalista colonizadora a partir da inserção de indígenas em situações associadas às sociedades colonizadas pela Europa, como um piquenique em que a Coca-Cola centralizada representa a consumo provindo de relações imperialistas norte-americana com o Brasil. “[...] o pensamento pós-colonial articula-se na perspectiva de demonstrar as dessemelhanças antagônicas existentes entre colonizador e colonizado, denunciando essa discrepância como um projeto de domínio e opressão” (REIS; ANDRADE, 2018: 3).

Fonte: Disponível em: <http://www.santoandre.sp.gov.br/pesquisa/con_detalhe.asp?ID=112696>. Acesso em: 07 set. 2018.

O indígena como um astronauta passa a figurar de igual para igual com um sujeito branco estadunidense agente da revolução dos estudos astrofísicos durante a Guerra Fria. Aline Figueiredo, ainda sobre esse momento do artista, comenta:

Irigaray, com desenhos hiper-realista da série Xinguana (1976 e 1977), registra preocupação visual e filosófica ao colocar o índio em diversas situações da sociedade de consumo ou “civilizada”, trazendo a política indigenista para o questionamento artístico de Mato Grosso, estado de maior número de nações indígenas, no entanto ainda insensível para com a causa. (GONÇALVES, 2010: 55)

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Nota-se, pelo apontamento de Aline Figueiredo, que a preocupação do artista em uma ordem já ética em relação ao povo indígena se fazia na crítica a um legado colonial, mas sem a terminologia “pós-colonial” ou “decolonial”. Os estudos mais abrangentes sobre essa questão provém do debate da coletânea Epistemologias do Sul, frisando que:

A ideia central é, como já referimos, que o colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e/ou nações colonizados. As epistemologias do Sul são o conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam essa supressão, valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. (SANTOS; MENESES, 2009: 13)

As relações entre o colonizado e o colonizador, no contexto retratado pelo artista, insere o observador a pensar sobre o deslocamento da/o indígena para lugares e situações em que tais indivíduos não ocupam. A experiência plástica oferecida [hiper-realismo] por Clóvis Irigaray na imagem produzida é direta e precisa naquilo que pretende retratar, ou seja, indígenas em situações da sociedade modernizada. O confronto entre os corpos chamados pelos colonizadores de primitivos com a sociedade moderna traz a contradição sócio-histórica enraizada pelo colonialismo, um preconceito que coloca o corpo de pessoas indígenas à margem.

Fonte: Disponível em: <http://falandodeartenaescola.blogspot.com/2011/11/arte-no-ensino-medio-3ano-4-bimestre.html>. Acesso em: 7 set. 2018.

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Aline Figueiredo afirma que após o artista estabelecer seu personagem que seria representado (o índio brasileiro) ele aguçou uma discussão filosófica sobre o lugar em que esses representados estavam e poderiam ocupar:

Índios frequentando universidades, dando aulas, sobre a Amazônia Legal, por que não? Com todas as oportunidades, como não? Assim, como já dissemos em outros momentos, Clovis Irigaray desenhou uma utopia ao configurar o índio como personagem inteiro e íntegro a contribuir para a sociabilidade do nosso convívio. (GONÇALVES, 2010: 66)

Essas obras podem render uma ampla discussão sobre a decolonialidade, já que se “questiona não somente os espaços de poder em que as tensões acontecem, mas também os territórios geopolíticos em que as relações de poder se materializam” (REIS; ANDRADE, 2018: 6), pois o pensamento do sujeito cartesiano pós Revolução Francesa se coloca enquanto homogeneizador para pensar qualquer experiência no mundo. A crítica está justamente nessa noção universal da epistemologia moderna eurocentrada.

Os corpos queer por Clóvis Irigaray

O principal objetivo é partilhar a arte como uma forma de produção de conhecimento, para um processo de subjetivação autônomo. Ora, autonomia não significa uma prática artística alienada dos problemas de uma cultura. Os processos de afirmação identitário brancos permeiam na estetização acrítica das práticas artísticas.

- Rosa Blanca, Artes visuais: diálogos com os estudos feministas, trans e queer, grifos da autora.

A centralidade do personagem indígena nas obras do artista desde os anos 1970 também pode ser lida pelo corpo diferente, sexuado, generificado, marginalizado e estigmatizado de indígenas em suas imagens. A diferença é marcada, sobretudo, pelo binarismo colonizado/colonizador; ou, primitivo/moderno. Essas marcas são postas em torno do pensamento queer a respeito do corpo, das/os sujeitas/os representadas/os pelo artista que se

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mostra e que quer mostrar vidas por uma estética particular, pautada pela cor ocre, linhas de pintura indígena, silhuetas às vezes estilizadas. De acordo com Guacira Lopes Louro:

Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro e não o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível. Queer um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2004: 7-8)

Esses corpos representados por Irigaray se tornam abjetos pelo olhar do não-índio. A marginalização por classificar a experiência indígena como sendo primitiva e atrasada, na visão colonizadora, revela a ignorância em não aceitar o conhecimento desses povos enquanto tradição oral e entendê-los e compreendê-los a partir da epistemologia eurocentrada. O próprios pressupostos queer são discutíveis, deve-se pensar a partir da própria relação entre sujeito, espaço e tempo ao qual se está inserido, propor epistemes a partir dali.

Fonte: BERTOLOTO, 2001: 25.

A fase em que o artista insere corpos desnudados em sua produção pictórica mostra-se como eroticamente vinculada a sujeitas/os desejantes fora da norma. Há uma sensibilidade entre

Figura 4 - Homens trabalhando. Acrílico sobre tela, 70x100cm, 1995.

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homoerotismo e marginalidade nas figuras, sexuadas e providas de tonalidades que estão entre cores frias e quentes.

Nos anos 1990 sua produção em torno de figuras ambíguas ou eroticamente centradas em um padrão binário ganha força e expõe indivíduos que transbordam para além do gueto. Sapatonas, bichas, intersexos tomam o lugar de destaque em sua pintura. A Hermafrodita (fig. 5) vê enquanto está sendo vista, observando o observador, se deixa ver como num ato de visibilidade, para que saibam que existe.

Fonte: BERTOLOTO, 2001: 45.

Sua forma, captada e transposta em tinta para a tela, recria o ambíguo pela estética um tanto neoexpressionista de Irigaray.

As diferenças marcadas na obra de Clóvis Irigaray poderia ser facilmente colocada dentre as inúmeras obras da Queermuseu, que acontece – enquanto esse texto é escrito – no Parque Lage, no Rio de Janeiro. Após a polêmica evolvendo a exposição originalmente iniciada

Figura 5 - Hermafrodita. Acrílico sobre tela, 145x50cm, 1991.

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em Porto Alegre – RS, em 2017, o curador Gaudêncio Fidelis juntamente com um grupo de pessoas interessadas na discussão democrática das artes realizaram um Crowdfuding online durante o ano de 2018 e conseguiram arrecadar mais de um milhão de reais para que a exposição pudesse ser reaberta.

A leitura realizada pela curadoria da Queermuseu era justamente mostrar ideias e proposições estéticas ao longo da história da arte brasileira com marcadores que revelassem a diferença sexual, de gênero, de representações do corpo. A intepretação dada a obras de arte realizadas nos anos 1950, por exemplo, mostrava as ideias e resistências que existiam pela insurgência de artistas conectadas/os com discussões políticas e sociais de seu tempo, revelando outras experiências possíveis, para além da heternorma.

Clóvis Irigaray, assim, poderia ser relido desta forma, trazendo uma discussão pós-colonial, depós-colonial, queer onde os agentes estão inseridos na sociedade que os exclui cotidianamente, mas não em suas obras. Entre a ditadura civil-militar e a fase neoliberal dos anos 1990, no Brasil, o que pode ser visto da trajetória do artista é o seu engajamento com outras estéticas e sujeitas/os que resistem e existem, mostram seu corpo.

Referências

BERTOLOTO, José Serafim. Clóvis Irigaray: arte-memória-corpo. Cuiabá: Edição do Autor, 2001.

BLANCA, Rosa. Artes visuais: diálogos com os estudos feministas, trans e queer. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 177- 180, jan./abr. 2015.

GONÇALVES, Laudenir Antonio (Org.). Aline Figueiredo. Rio de Janeiro: Funarte, 2010. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

REIS, Maurício de Novais; ANDRADE, Marcilea Freitas Ferraz de. O pensamento decolonial: análise, desafios e perspectivas. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 202, ano XVII, mar. 2018.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.

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