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O feminino na Bossa Nova pelos rastros de Heloísa Maria Buarque de Holanda, a Miúcha

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Academic year: 2021

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LILIANE REIS SOUZA

O FEMININO NA BOSSA NOVA PELOS RASTROS DE HELOÍSA

MARIA BUARQUE DE HOLANDA, A MIÚCHA.

Paris - Niterói Março, 2019

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LILIANE REIS SOUZA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação - PROSEDUC, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, para obtenção do título de Mestra em Educação na linha de Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação (DDSE). .

Orientadora: PROF.ª DRA. MARÍLIA ETIENNE ARREGUY

Paris - Niterói Março, 2019

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LILIANE REIS SOUZA

O feminino na Bossa Nova pelos rastros de Heloísa Maria Buarque de Holanda, a Miúcha

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense – UFF, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Educação, na Linha de Diversidade, Educação e Desigualdades Sociais.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Marília Etienne Arreguy – Orientadora Programa de Pós-Graduação em Educação - UFF

Prof. Dr. José Antônio Miranda Sepulveda – Presidente Programa de Pós-Graduação em Educação – UFF

Profa. Dra. Camila do Valle Fernandes – Membro da Banca Instituto Multidisciplinar de Letras – UFRRJ

Profa. Dra. Fabricia Walace Rodrigues – Membro da Banca Programa de Pós-Graduação em Literatura - UNB

Dra. Elisa Mares Guia Menéndez – Suplente Participante Titulada pela Université Paris Diderot

Niterói - Paris Março, 2019

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R375f

Reis Souza, Liliane

O feminino na Bossa Nova: Pelos Rastros de Heloísa Maria Buarque de Holanda, a Miúcha / Liliane Reis Souza; Marília Etienne Arreguy, orientadora.

Niterói, 2019. 151 f. : il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSEDUC.2019.m.87032260500 1. Estudos de Gênero. 2. Biografia de Miúcha.

3. Desconstrução em Jacques Derrida. 4. Música Popular Brasileira - MPB. 5. Produção intelectual. I. Etienne Arreguy, Marília, orientadora. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

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Dedicatória

Miúcha, a você dedico a nossa pesquisa compartilhada. Obrigada por se entregar ao riso e ao risco da dúvida.

Quero me perder Quero me encontrar Quero me soltar Perto de você

Quando a loucura começar

Segura coisa

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Agradecimento

Meu imenso obrigada:

À minha orientadora e parceira Marília Etienne Arreguy, pelo interesse vibrante, integridade intelectual e respeito nesta caminhada.

A Daniel Zarvos Guinle, pela dança e pela desconstrução e construção diária do amor.

Aos pequenos-grandes Nicolas (Nikos) e Iolanda (Lola) Mutti Reis Zarvos Guinle por me ensinarem o “ouvido interior” como Villa-Lobos.

À Norma Lúcia Reis Souza, pela vida e revisão ortográfica precisa.

A Leandro Reis Souza, Clóvis Figueiredo Souza Filho, Clóvis Figueiredo Souza (in memoriam), por acreditarem em mim sempre que eu hesito.

À Adriana Zarvos de Medicis pelo suporte com os netos enquanto escrevia.

À Yolanda Cvitak, pela dedicada tradução do alemão para o português para esta pesquisa. Ao Centre International Les Récollets (Centro de Artistas e Pesquisadores de Paris), na figura de Chrystel Dozias, pela acolhida afetuosa, e a todos que torcemos uns pelos outros nesse espaço tão potente.

Aos amigos Ana e Luciano Rodrigues e o erê Davi pela companhia nas bibliotecas e parques; À professora Liv Sovik, da ECO-UFRJ, a quem acompanho e me inspira desde a minha graduação na UFBA.

Ao professor João Camillo Penna, Letras da UFRJ, pelas indicações de textos e músicas. Aos professores da banca de qualificação, poetas & intelectuais Camila do Valle, Paula Glenadel e Paulo Carrano, pelas marcações valiosas.

Às mestras Anne E. Berger e Marie-Dominique Garnier, pelos Seminários em Estudos de Gênero articulados com psicanálise, literatura e política da diferença, na Universidade Paris 8 - Vincennes Saint Denis.

À banca da defesa, pela presença e precioso tempo da leitura.

Ao corpo docente, discente e funcionários da Universidade Federal Fluminense - UFF, do Departamento de Psicanálise da Université Paris Diderot, do IHEAL – Instituto de Altos Estudos da América Latina - Sorbonne Nouvelle Paris 3 e ao Departamento de Literatura Comparada da Université Sorbonne IV, pelo exemplo de generosidade e luta intelectual.

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RESUMO

Este estudo surge inspirado no pensamento da desconstrução, na perspectiva de Jacques Derrida, para pesquisar os deslocamentos e errância pelo feminino na sociedade falogocêntrica. Para pensar as condições nas quais os deslocamentos podem se dar, a pesquisa se dedica a acompanhar os rastros de vida da cantora Heloísa Maria Buarque de Holanda, de apelido Miúcha. Observa-se essa mulher como sujeitA e autora, ao narrar suas ações de afastamento e aproximação do feminino convencionado. Suas escolhas de mudança de país, casamento, separação e maternidade são tratadas nesta pesquisa como deslocamentos pela différance. A artista transita por entre-lugares ao afirmar-se como protagonista do movimento da Bossa Nova. A partir da sua experiência corpórea, da sua voz, dos seus desejos e das suas memórias, busca-se entender como uma mulher torna-se sujeitA da sua história. A experiência dessa artista que atravessou o século XX para o XXI - seu percurso escolar, suas viagens, seu lugar na música -, pode contribuir para desafiar os papéis estereotipados e hierarquizados por gênero na alta contemporaneidade?

Palavras-chave: Desconstrução. Différance. Falogocentrismo. Música Popular Brasileira

– MPB. Público X Privado.

RESUMÉ

Cette étude émerge inspirée par la pensée de la déconstruction, dans la perspective de Jacques Derrida, pour enquêter sur les déplacements et les errances du féminin dans la société phallogocentrique. Pour réfléchir aux conditions dans lesquelles les déplacements peuvent avoir lieu, la recherche se consacre à accompagner les traces de vie de la chanteuse Heloísa Maria Buarque de Holanda, de surnom Miúcha. On observe cette femme en tant que sujet(E) et autrice en racontant ses actions d’éloignement et son approche de la convention féminine. Ses choix de changement de pays, de mariage, de séparation et de maternité sont traités dans cette recherche comme des déplacements par la différance. L'artiste se déplace entre les lieux en s'affirmant comme la protagoniste du mouvement Bossa Nova. A partir de

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son expérience corporelle, de sa voix, de ses désirs et de ses mémoires, on cherche comprendre comment une femme devient soumise à son histoire. Comment l'expérience de cette artiste qui a traversé le XXIe siècle pour le XXI - son parcours scolaire, ses voyages, sa place dans la musique - peut contribuer à remettre en question les rôles stéréotypés et hiérarchisés par genre dans la haute contemporanéité ?

Mots-clés : Déconstruction. Différance. Phallogocentrisme. Musique Populaire

Brésilienne. Public X Privé.

ABSTRACT

This study is inspired by the process of deconstruction, from the perspective of Jacques Derrida, investigating the displacement and wandering by the feminine in the phallogocentric society. To think about the conditions in which this displacement takes place; this research is dedicated in following the traces of the life of the singer Heloísa Maria Buarque de Holanda, nickname Miúcha. One observes this woman, as subject and author of her own history, narrating, actions of estrangement in her approach towards feminine conventions. Her choices, of country, marriage, separation and motherhood, are identified in this research as displacements marked by her différance. The artist transits between places and affirms herself as a protagonist in the Bossa Nova movement. From her bodily experience, her voice, desire and memories, she seeks to understand how a woman can become subject to her own history. How can the experience of this artist who has crossed the XXI century for the XXI - her school career, her travels, her role in music - can contribute to challenge the stereotyped and hierarchical roles by gender in the high contemporaneity??

Keywords: Deconstruction. Différance. Falogocentricism. Brazilian Popular Music. Public

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – Diário da Pesquisa...11

Impressões, premissas e perspectivas...12

Método: a narrativa compartilhada...16

O luto na pesquisa...23

CAPÍTULO 1 – Narrando com Miúcha...24

1.1 – Ela entre eles...32

1.2 – A mãe, o pai, as tias...37

1.3 – Errância e flânerie...47

1.4 – Casamento, maternidade e estranhamento...55

1.5 – O amor como interdito?...60

CAPÍTULO 2 – A “boa educação” e a mulher no século XX...65

2.1 – O doméstico e a escola: ferramentas de controle?...77

2.2 – Cartas de amor ou aulas para uma “boa-esposa”?...79

2.3 – Rainha por consentimento...83

2.4 - Educação segregada por gênero...86

2.5 – A invenção da hierarquia por gênero...97

2.6 – Controle social X controle sexual...99

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CAPÍTULO 3 – Desconstrução pelo feminino na música...110

3.1 – De quem é palco, de quem é a palavra?...114

3.2– A escrita pelo corpo discursivo...117

3.3 – A boêmia como entre-lugar...125

3.4 - A Bossa descolonial, desafiando universalismos...130

Uma (quase) conclusão...139

Referências bibliográficas...147

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Diário da pesquisa

Escrevo em plena greve dos trabalhadores e estudantes da França. Os ventos, as imagens e o tempo me chegam pela janela. As primeiras definitivas linhas surgem em 2018, exatos 50 anos após a insurreição dos estudantes deste país, em sintonia com outros levantes pelo mundo. Em 1968, a mobilização estudantil foi deflagrada a partir de uma bandeira de luta atravessada pela questão de gênero: o desejo dos estudantes de ambos os sexos de compartilharem residências estudantis mistas. Um levante contra a repressão sexual na Universidade de Nanterre, na Île-de-France, seria o estopim para dividir os tempos em antes e depois. Essa fagulha, que à primeira vista pode parecer uma quimera juvenil, foi capaz de provocar convulsões coletivas, ações concretas e quebras de paradigmas sobre qual contrato social e sexual a sociedade da segunda metade do século XX desejava viver.

Vim para Paris seguindo os rastros das memórias errantes de Miúcha, a cantora de Bossa Nova e a mulher, se é que, para o feminino, é possível dissociar essas duas identidades. O tempo de Miúcha se insere nos paradigmas sexuais da sua época, e o seu presente constituiu a reescrita da sua experiência. Antes da viagem para realizar o segundo ano do mestrado em mobilidade acadêmica internacional, concluí o campo da pesquisa. Nas nossas entrevistas, Miúcha me relata os anos da sua juventude em Paris. Na década de 60, ela conhece Violeta Parra, a cantora chilena que lhe abriria as portas da capital francesa. Da troca entre essas duas mulheres, desdobrar-se-ia o encontro de Miúcha com o cantor João Gilberto, com quem viria a se casar e ter a sua única filha. Essa lembrança que trago de um tempo que não vivi me inspira e constitui a presença deste estudo.

Uma passagem da vida de Miúcha, que surge no depoimento colhido por esta pesquisa, me chama especial atenção. Ela me conta sobre as regras no seio da sua família, as quais impunham diferentes códigos para as irmãs e os irmãos. Mesmo sendo a filha mais velha, ao contrário do irmão e também cantor Chico Buarque de Holanda, Miúcha não tinha a chave de casa. Assim foi até viajar sozinha para a Europa, aos 24 anos. Na casa da família, a primogênita devia respeitar horários para voltar à noite, e, sobretudo, não lhe era permitido chegar acompanhada apenas de um único rapaz: “-Imagina se fosse um namorado?!”, indaga imitando o tom de voz da sua mãe. Então, para disfarçar as saídas noturnas e a

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boêmia regada à música, romances, bebida, cigarro, Miúcha usa o artifício de voltar sempre acompanhada de um grupo heterogêneo de amigos, para a tranquilidade da sua mãe. Misturados a eles, estiveram camuflados alguns de seus namorados. No que Miúcha me conta com picardia, às gargalhadas: “-Mamãe não acreditava em suruba!”.

Impressões, premissas e perspectivas

Pergunto-me por que os rastros de Miúcha me mobilizam como o corpo desta pesquisa. Fui criada por mulheres. Uma rede de mulheres formada por minha mãe, minha tia - irmã mais velha da minha mãe que não teve filhos -, minha avó, minha madrinha e a minha irmã adotiva. Minha mãe trabalhava três turnos e educava os três filhos. Uma imagem oposta à donzela na torre do castelo à espera do príncipe. Meu pai passava a maior parte do tempo na biblioteca, dedicado à medicina ou à política pública. Minha mãe era, então, a representação da (pseudo) autonomia da mulher-maravilha. A quem favorece esse papel feminino da mãe-super-heroína? À custa de quanta anulação dos desejos do indivíduo mulher? Pode a mãe ser mulher-sujeitA 1-desejante?

Se me permito essa curva pessoal na narrativa, é para afirmar o que, à primeira vista, pode

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1– A escolha de feminilizar a palavra sujeito (A) parte da urgência de revisões linguísticas propostas por Luce

Irigaray no artigo Sexes et genres linguistiques (1990, pp.83-92), publicado no livro Je, tu, nous – pour une culture de la différence, obra não traduzida para o português. A autora argumenta que a entrada da mulher no espaço público exige mutações culturais e idiomáticas. Irigaray analisa as marcas sexuais nos discursos, registradas em situações cotidianas e terapêuticas. A autora pediu a homens e mulheres que fizessem uma frase simples com palavras como “casamento”, “criança” e “sexualidade”. A conclusão é de que o masculino domina toda a sintaxe da língua francesa, mesmo quando as protagonistas da ação são mulheres. O mesmo se passa no idioma português: ils sont mariés (eles são casados), ils s’aiment (eles se amam). No francês, o pronome neutro ou impessoal se masculiniza com o uso do il faut (você tem que) e não elle faut (1990, p.37). A feminilização surge nesse estudo, ainda, como política de subjetivação. O tornar-se sujeitA, aqui, baseia-se na obra Micropolítica e cartografia do desejo, de Felix Guattari e Suely Ronik. Eles introduzem o conceito do devir-feminino (1982, pp. 86-87) que trata do falar de um lugar singular, em oposição às estratificações dominantes no mundo ocidental, construído a partir da subjetividade masculina. O feminino autônomo então seria um devir, e os deslocamentos fazem parte dessa contra construção do feminino hegemônico, historicamente tecido a partir do masculino como centro. A grafia com “A” em maiúsculo em destaque na palavra “sujeitA” visa ainda colaborar para uma nova arqui-escritura da linguagem (DERRIDA, 1972, pp.36-37), um exercício da desconstrução valorativa das palavras pelo masculino, ressignificando o sentido, muitas vezes, negativo que o neologismo “sujeitA” pode evocar.

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soar banal o fato de os sujeitos em diálogo serem sujeitAs, sendo esse A maiúsculo constitutivo da experiência desta pesquisa. Na minha trajetória, me vi, como jornalista, no campo externo a casa, viajando e circulando em um mundo masculino. Assim, Miúcha também me descrevia o seu métier profissional. Onde estavam as outras? Elas raramente estavam no centro do palco como autoras, reverberando suas ideias, palavras e sensibilidades. Às vezes, as cantoras selecionavam o seu repertório como intérpretes, espaço onde o feminino era/é mais presente. Essa ausência de pares me fazia, nos fazia, um tanto estranhas. Às vezes, também envaidecidas, porque ser estranho é uma maneira de se destacar. Estaria essa performance no espaço público pautada por máscaras do feminino para o masculino, atendendo, sem nos darmos conta, a um jogo externo?

As escolhas de Miúcha não são totalmente singulares ou puras, mas também foram essas e não outras. Ela agiu entre a boemia, a coxia, os estúdios, ora no palco, ora fora dele. Dessa maneira, ela esteve presente em shows, turnês e gravações, às vezes com destaque, outras, sem receber cachê ou crédito da publicação do seu nome em capas de discos ou fichas técnicas. Miúcha também promoveu encontros entre atores da Música Popular Brasileira - MPB, sendo ela uma sujeitA constante na cena, fomentando amizades que evoluíam para parcerias criativas. O lugar ocupado por Miúcha parece-me um entre-lugar, de uma mulher entre eles. Esse é um lugar excepcional: não existiu outra como ela no centro da apelidada tríade de ouro da Bossa Nova 2. Esse trio de poetas, músicos, cantores e letrados é formado

por João Gilberto, Vinícius de Moraes e Tom Jobim.

Chamava-me atenção o silenciamento literário de Miúcha, não encontrando nenhuma

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2 - O termo Bossa Nova, inicialmente, referia-se a um jeito de cantar e tocar, até tornar-se sinônimo de um dos

gêneros musicais brasileiros mais conhecidos em todo o mundo. Considerada uma nova forma de tocar samba, a bossa nova foi criticada pela forte influência norte-americana, traduzida nos acordes dissonantes comuns ao jazz. As letras das canções contrastam com as das canções de sucesso até então, abordando temas leves e descompromissados, definidos através da expressão "o amor, o sorriso e a flor", que faz parte da letra de Meditação, de Tom Jobim e Newton Mendonça. Outra característica é a forma de cantar, também destoante com a que se tinha na época. O 'canto-falado' ou do 'cantar baixinho', o texto bem pronunciado, o tom coloquial da narrativa musical, o acompanhamento e canto integrando-se mutuamente, em lugar da valorização da 'grande voz' (MEDAGLIA, Júlio. in CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 72). Porém, Miúcha não é muito afeita às definições enciclopédicas sobre o gênero musical. Ela traz uma definição mais concisa da Bossa Nova, parafraseando o marido: “A Bossa Nova é o samba lento. Para João Gilberto nunca existiu Bossa Nova, só existe samba”. Já a expressão “tríade de ouro” aparece com frequência nas críticas musicais da impressa dos anos 60.

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biografia direta sobre ela. Então, decidi começar pelas entrevistas 3 que viriam a compor

esta pesquisa e, em seguida, reunir as ferramentas teóricas para essa análise. O campo dos estudos de gênero me pareceu o mais apropriado, por articular a transdisciplinaridade inerente para ensaiar traduzir uma vida. Psicanálise, filosofia, linguística, estudos culturais, pós-coloniais, antropologia, essas leituras alimentavam e mostravam caminhos, mas ainda faltava algo. Como chamar o que me parecia inominável? Tinha uma hipótese: Miúcha rompeu e se aproximou do feminino padrão. Ela foi protagonista e sombra da Bossa Nova. Como conceituar esse duplo movimento?

Das leituras da obra de Jacques Derrida, surge o fio condutor desta pesquisa. Parto para observar o que chamo de deslocamentos 4 pela différance 5 em Miúcha; a sua particularidade de se diferir por dentro da economia do mesmo (DERRIDA, 1967a, p.295). Entre o significante (perceptível) e significado (representação) a différance emerge como uma relação de fricção da ação com o enunciado. Assim, produz um deslocamento do signo fixo, no caso, a feminilidade convencionada. Ao viajar, Miúcha pôde se reinventar como sujeitA. Ao fazê-lo, contribuiu para criar outro lugar para ofeminino. O “quase conceito”

différance, como o autor preferia chamar, me orienta a observar as escolhas desta mulher

pelas margens e dentro da Bossa Nova. ________________________________

3 - HOLANDA, Heloísa M. Buarque, em entrevista para esta pesquisa, Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 2017,

15 de julho de 2018 e 27 de outubro de 2018. Arquivo 1, 2 e 3 - vídeo HD (240min.).

4 – Os deslocamentos podem ser ilustrados pela literatura como descrição de atuação fora do convencionado.

Em um exemplo inverso, do masculino para o feminino, evoco uma passagem da Odisseia sobre o momento em que Ulisses escuta o aedo cantar suas aventuras. Nesse momento, a personagem baixa a cabeça e começa a chorar. Esse gesto, o choro público, era comumente associado ao feminino. As mulheres eram as que choravam, em situações como quando, após longas viagens para aventuras e frentes de batalha, elas recebiam o cadáver do marido. Nota-se nessa metáfora, do homem que chora em público, um deslocamento dos estereótipos de gênero do feminino para o masculino.

5 - O temo différance surge trazido por Jacques Derrida no contexto do movimento do pós-estruturalismo

francês e recebeu diferentes traduções no Brasil. Opto aqui por manter a versão original do autor. Ao deslocar a palavra différance da semântica original no idioma francês - trocando o "e" pelo "a" no meio da palavra différence, Derrida inaugura uma arqui-escritura, permitindo a articulação em um só termo de ideias de diferença e errância, essa última provocada pelo som de errance. O pensamento na différance sugere um exercício de pensar a desconstrução de verdades dadas como ontológicas e canônicas. Nesta pesquisa, o termo différance é trazido como ação de deslocar-se por entre o feminino naturalizado, se encontrando não no meio, mas dentro do meio (DERRIDA, Jacques & BENNINGTON, Geoffrey, p.151). A expressão entre-lugar, no Brasil, aparece no livro Uma literatura nos trópicos, de Silviano Santiago, 1978, referindo-se ao lugar da arte brasileira em um mundo eurocêntrico. Aqui, por sua vez, serve para observar essa mulher e artista além dos binarismos. A perspectiva deste estudo é narrar a sujeitA sem classificações reducionistas, como esposa-dedicada ou uma mulher-outsider, buscando traduzi-la sem o recurso de adjetivos binários.

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Ao longo deste estudo, tenho uma pergunta-guia: onde estariam os pontos de virada da sujeitA ao se deslocar do falogocentrismo 6 ? Seria Miúcha uma flâneur(e) 7 experimentando

novos femininos pela presença do corpo? O que leva uma mulher a provocar ações de desconstrução dos estereótipos degênero? Como contraponto, quais seriam os interditos aos deslocamentos, capazes de provocar desvios, configurando um fluxo de aproximações e recuos entre o feminino convencionado e o feminino autônomo? Assim, busco identificar seus deslocamentos do feminino 8 estabelecido, sejam eles territoriais ou simbólicos; a sua

normatização, quando ela se ajeita e se encaixa nas regras do sistema falogocêntrico; e suas mascaradas, quando transita pela representação do que se institucionalizou como feminino. Quais seriam as condições objetivas e subjetivas para se deslocar?

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6 – A palavra falogocentrismo expõe o centralismo do falo como o ponto de referência discursivo, um modo de

validação da cultura para pensar a sociedade sob pretexto de uma neutralidade transcendental, que coloca um privilégio pelo masculino (BENNINGTON & DERRIDA, 1991, p. 146). Uma antologia da palavra falogocentrismo obriga a recorrer a diferentes atores do século XX. O termo logocentrismo surge no início do século XX, pelo filósofo alemão Ludwig Klages, para se referir à tendência no pensamento ocidental de colocar o logos (palavra de origem grega que pode significar verdade; razão) como o centro do discurso. Na mesma época, Sigmund Freud, interessado em literatura, teatro e na arte dos povos antigos, utiliza a palavra phallus (do grego phallós, do latim phallus) nos estudos sobre sexualidade. A palavra serve, em certa medida, para Freud distinguir o pênis, órgão genital, do falo, que seria o símbolo representativo da virilidade. Mais tarde, na década de 60, Jacques Lacan traz a palavra “falocentrismo” no seminário sobre o conto de Edgar Alan Poe The Purloined Letter, expandindo o conceito simbólico do falo. Logo em seguida, Jacques Derrida funde os dois termos: “logocentrismo” e “falocentrismo” e cria, então, um neologismo: “falogocentrismo”, acrescentando o lo(go) ao falocentrismo. Para Derrida, o movimento é sempre duplo. Mas do que utilizar um nome do “o” ou “um” falo, devemos falar do movimento fálico (...) ele existe na presença, no fetiche previsível e calculável – e no risco da significação, uma corrida infinitamente aberta, dispersa e incalculável (DERRIDA, 1972, pp. 54-55). Derrida usou o termo para referir-se ao pensamento ocidental desde Platão. Estaríamos desde o platonismo até a alta contemporaneidade, regidos pela busca constante da "verdade" e da “origem”. Desconstruir o falogocentrismo, em uma perspectiva derridiana passa por questionar as ditas verdades binárias, como: homem/ativo; mulher/passiva, homem/sádico; mulher/masoquista; homem/viril, mulher/castrada (DERRIDA, 2000, p.20).

7 – No século XIX, na obra de Charles Baudelaire, surge o termo flâneur como um personagem da literatura,

errante, vadio, caminhante. Com esse termo, usado também para designar o artista independente, comumente no masculino, o autor inaugura um novo verbo, sem tradução do original francês para outras línguas, que passa a definir uma forma de habitar o espaço público, em especial a cidade. Essa pesquisa identifica que o termo dialoga bem com a errância de Miúcha no percurso da sua vida. Ela praticaria a flanerie, e seria, portanto, uma flâneur(e), feminizando a palavra. Isso se daria ao se mudar do Rio de Janeiro para Paris, sem um roteiro de vida pré-determinado, embalada pela Bossa Nova e buscando mais do que cantar: experimentar a liberdade de fazer escolhas sem amarras familiares ou expectativas sociais. O fato de ser uma desconhecida na cidade permitiria se reinventar como bem quisesse, no seu caso ser cantora de Bossa Nova.

8 - Este estudo trabalha com as palavras “feminino” e “feminilidade”, analisadas como termos em disputa. Seus

sentidos estão, portanto, em combate discursivo entre o que seria dito como próprio do gênero feminino e sua desconstrução e autoconstrução pelas entranhas da lógica falogocêntrica. Isso se traduz entre a feminilidade como uma representação da mulher sobre o que lhes foi dito ser constitutivo do feminino e dos femininos autônomos a serem ainda inventados.

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Quando uma mulher se desloca, complexifica os olhares do que seria o feminino? A memória individual pode ser vista como uma memória coletiva, entendendo esta como uma coletânea de rastros que afetam o curso da história dos grupos envolvidos (RICŒUR, 2016, p.128)? Pode a fala de uma mulher ajudar a pensar plurais femininos?

Método: a narrativa compartilhada

A gente escreve o que ouve, nunca o que houve 9

Oswald de Andrade

Para a jornalista, diferente da artista, o eu é um terreno do oculto, velado pela objetividade imposta ao texto jornalístico. Estamos sempre narrando na terceira pessoa, contando uma experiência vivida por outrem; assim rezam os manuais de redação. Se evoco essa figura identitária da jornalista, é porque foi a partir desse emblema que estive habituada a me significar diante do mundo na vida adulta. Como mestranda do campo de educação e diversidade, dedicada a uma pesquisa de componente biográfico, esse lugar foi se mostrando poroso no meu percurso. Nas entrevistas com Miúcha, busquei fazer um exercício semelhante: onde você estava? O que você sentiu? O que você pensa? Meu desejo era tocar a alma, o ventre, a pulsão de vida dessa mulher artista.

No percurso das entrevistas, pós-escuta e escrita desta pesquisa, o que chamo de narrar

com se revelou susceptível a transferências e contras transferências entre a sujeitA que

narra e a sujeitA que traduz. Parece-me ainda mais claro que o que apresento é o resultado de uma “pesquisa tradução”, por me sentir como um filtro ao transcrever com minhas palavras o dito por Miúcha. Portanto, como é inerente à tradução, não existe neutralidade, o tradutor inevitavelmente faz escolhas a partir da sua experiência na relação com a sujeitA e o mundo.

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9 – Citação atribuída ao modernista Oswald de Andrade, extraída do livro Oswald de Andrade, o homem que

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Escolhi começar pela narração por ser um verbo substantivo para este estudo. Um mergulho na epistemologia da palavra “narrar” ajuda a clarear o que vejo quando escuto. A palavra “narrar” vem do verbo latino narrare, cujo significado além de contar e relatar, é também expor, tornar conhecido. Assim observei Miúcha enquanto tecíamos esta pesquisa desejosa de contar o que viveu, como alguém que arrasta a sua história para além da vida.

Falar das memórias alheias suscita as nossas próprias memórias. Por isso, acrescento à frase “a gente escreve o que ouve, nunca o que houve”, do modernista Oswald de Andrade, o

como, quando, quem e de quem ouve. Assim, a atmosfera da tecelagem do corpo desta

pesquisa revela tanto. As entrevistas se desenvolveram com visitas à residência de Miúcha, no bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro. Na sua casa, ela guardava objetos que herdou ou acumulou ao longo da vida. Era o seu museu íntimo, composto por cartas, fotos, guardanapos, diários, que contam passagens da sua vida entrecruzada as histórias da Bossa Nova. Esta pesquisa trabalha, então, fundamentalmente, a partir dessas fontes primárias: a sujeitA e as suas coisas, as quais identifico como os objetos falantes. Os elementos do seu acervo ajudaram a provocar as conversas objetivadas para este estudo. Através deles, segui costurando contextos e garimpando sutilezas.

Quem narra comigo esta pesquisa é a Miúcha nos seus 80 aos 81 anos, idade em que se encontrava quando transcorreram as entrevistas. Uma nova Miúcha lembra aquilo que outra viveu, gerando uma narrativa vista pela maturidade. Nestes momentos, surgem narrativas particulares nas quais se concentram os principais Acontecimentos 10, dos anos 60 e 70,

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10 – Esta pesquisa trabalha a noção de Acontecimento como um cronotopo, da semântica grega crono/tempo e

topo/espaço. O Acontecimento é algo que acontece em certo instante, como no momento da enunciação ao ser narrado. O conceito surge a partir dos estudos de análise do discurso, do filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin, que diferencia o acontecimento histórico do acontecimento discursivo. Em uma perspectiva da desconstrução, o Acontecimento neste estudo é visto nessa dupla direção e inclui ainda o que Derrida chama de “invenção performativa”, compreendendo que o Acontecimento se apropria dele mesmo, na sua performatividade. Derrida, no entanto, utiliza a expressão “Événement”. Porém, opto pelo termo Acontecimento por acreditar ser mais adequado na língua portuguesa. Para este estudo biográfico interessa observar a vida da sujeitA por seus rastros, como uma trama composta por casualidades e marcada em um arco temporal, um lugar onde se dão as transformações de sentido (DERRIDA, 1967b, p.77; p; 86; p.105; p.323). Assim, uma sujeitA contém em si inúmeras e inesgotáveis combinações biográficas. Existem várias narrativas possíveis para Miúcha, essa é uma, resultado de um encontro de Acontecimentos, que incluem as entrevistas. Para destacar os Acontecimentos que têm a potência de ponto de virada, usarei o A maiúsculo na palavra Acontecimento marcando a presença da sujeitA. A expressão “ponto de virada”, também recorrente neste estudo, por sua vez, tomo emprestada das narrativas literárias para descrever um incidente capaz de mudar o curso da ação dramática, criando novos obstáculos ou apontando soluções para a sujeitA.

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diferentes daquelas que teriam sido narradas no período em que transcorreram. Viver e narrar se amalgamam, e isso traz uma intensa sensibilidade para o processo das entrevistas. Ao narrar, Miúcha revive com outro corpo, aquilo já vivido, e me leva a observar que aquilo que é narrado é estruturante das lembranças, reelaborando um evento passado, que ganha um sopro de vida ao serem rememorados.

Faço a escolha por respeitar a atmosfera dos instantes das entrevistas, por isso privilégio o tempo verbal do presente do indicativo, em uma leitura de que a artista continua viva na sua obra e esta mulher deixa seus rastros no presente. Conservo também certo embaralhamento na narrativa, inerente à fala, que não segue a cronologia histórica dos Acontecimentos. Por esse motivo, alguns assuntos vão e voltam acrescentando uma nova entonação ou trazendo diferentes reflexões. O a-cronológico surge para marcar que esta pesquisa não trabalha com o princípio evolutivo da experiência e, sim, com uma perspectiva não cartesiana dos rastros de uma vida, como uma imagem espiral.

Falamo-nos pessoalmente ou por telefone, informalmente ou gravando, durante dois anos. Seis anos antes de iniciar esta pesquisa, tínhamos nos encontrado no Quartier Latin, em Paris, sem combinar. Nesse dia, sentamos no Café Danton, na Praça Odéon, para brindarmos aos encontros. Ela, em meio à conversa, aponta para a esquina do Saint-German des Près e começa a contar despretensiosamente: “-Era ali que ficava o La Candelária, um bar com música ao vivo, onde comecei a cantar Bossa Nova”. Nele estaria, pela primeira vez, ocupando o palco como atração principal. É lá que conhece João Gilberto, e ela diz que já se sentiram namorados desde o primeiro instante. Percebo um encantamento pelo “herói” - palavra trazida por ela. Miúcha me diz que percebeu a sua vida sendo dividida em antes e depois daquele primeiro encontro com o futuro marido. Esse Acontecimento tem a potência de ponto de virada, como pude confirmar depois nas entrevistas formais.

Essas conversas livres serviriam para aguçar minha curiosidade e construir a hipótese dos atravessamentos do feminino pelo masculino como produtor de interditos consentidos pela interditada. Esses Acontecimentos na vida de Miúcha também seriam produtores de deslocamentos, como a decisão, anos mais tarde, de ter uma única filha, romper a relação amorosa e não voltar a se casar. A sua carreira viria também a alcançar o auge depois de

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voltar a morar no Brasil, perto dos 40 anos de idade, após a separação. A problematização do métier da música como espaço com distinções hierarquizadas por gênero foi minha observação inicial. Os papéis do masculino e do feminino me pareciam marcados nas letras das canções, nas capas dos discos, no espaço do palco. Estariam também nas lembranças e impressões de Miúcha?

Sua primeira resposta sobre os possíveis estereótipos de gênero na Bossa Nova foi “– Não!”. Para e em seguida, ainda no primeiro encontro formal, me guiar a ver como foi difícil conciliar ser mulher, cantora e mãe. E como era bem mais custoso para elas do que para eles, os cantores, artistas e pais. Procuro trazer esses Acontecimentos íntimos em diálogo com a música, as que ela cantou e as que compuseram seu universo de referências. A música é constitutiva de Miúcha, que cantarola durante os depoimentos, por isso as canções significativas estão com os versos na íntegra ou letras completas, nas quais faço as marcações da pesquisa.

Neste estudo, a catalogação dos documentos exclui aqueles que Miúcha manifestou não estar certa de desejar torná-los públicos, como cartas onde descrevia suas questões com o casamento. Nelas, estariam os motivos da sua decisão de se separar, que surgem na fala associada ao não, ou ao pouco reconhecimento do trabalho dela em certas passagens da Bossa Nova. Na fala mais livre da oralidade, aparecem com força os Acontecimentos profissionais delicados, demonstrando como os espaços da intimidade e da carreira se atravessam. Assim, algo lhe escapa. Esse escape seria um ato falho? Uma manifestação do seu inconsciente ávido por externalizar algo guardado por tanto tempo e que não lhe caía bem?

Esta seleção controlada dos arquivos esbarra no Acontecimento das entrevistas, onde agem forças como a representação contida neste ritual e os escapes típicos da presença desconcertante do outro. Para Hannah Arendt, a palavra também é uma forma de ação. Eis, então, o primeiro risco. O segundo é da esfera do acaso: nós começamos alguma coisa, jogamos nossas redes em uma trama de relações, e nunca sabemos qual será o resultado. Isso vale para qualquer ação, e é simplesmente por isso que a ação se concretiza – ela escapa às previsões (ARENDT, 1993, p.143). Sigo atenta aos acasos, sem abrir mão do

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propósito científico desta pesquisa. Por isso, parte da poética dos nossos encontros deve ser transformada em filme 11. Identifico nela um desejo da autocriação como sujeitA, como

alguém que buscou a autoria sobre a sua imagem.

Ao começar as entrevistas, não sabia para onde elas me levariam, mas tinha um ponto de partida: como as experiências dessa mulher e mãe se atravessam com a da cantora de Bossa Nova? Para ensaiar responder essa questão, concentrei as perguntas feitas à Miúcha no seu cotidiano doméstico, familiar e amoroso, inevitavelmente, intricados à sua persona pública como artista. Esse entre-lugar do público com o doméstico na experiência desta sujeitA me fez decidir pela utilização do seu nome de família e artístico no título: “O feminino da Bossa pelos rastros de Heloísa Maria Buarque de Holanda, a Miúcha”.

No título, existe uma vírgula oculta entre o seu nome composto Heloísa e Maria, marcada sutilmente pela linha que quebra na frase. Com essa diagramação da capa busco comunicar visualmente que ela é célebre como artista e comum como tantas outras Marias. A primeira linha terminando com Heloísa, justifica-se ainda por ser esse o nome como João Gilberto a chamava, o mesmo usado pela sua mãe em momentos nos quais essa lhe chamava a atenção. Segue-se o nome Maria e o sobrenome da família paterna, que ela nunca substituiu pelo do marido. Por fim, Miúcha o seu nome artístico, o mesmo como era chamada pelos familiares e amigos. O apelido Miúcha foi dado pelos pais logo que ela nasceu, como uma corruptela da sua característica de uma criança “miúda”. Para o título, pelo ainda emprestado do glossário da desconstrução, o termo rastro (DERRIDA, 1967a, pp.76-77) como traço impresso entre as diferentes esferas, pública e privada, de Miúcha.

Esse recorte embutido no título permite localizar a consubstancialidade 12 da sujeitA Miúcha.

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11 – Link do compacto do material audiovisual produzido por esta pesquisa com legendas em francês.

Disponível no site: https://vimeo.com/261684307, senha: bossanova. Acesso feito em 06 de agosto de 2019.

12 – A consubstancialidade introduz a perspectiva de que as opressões além de se acumularem, como aposta a

perspectiva da interseccionalidade, também se realizam umas nas outras, dando substância e formando o tecido social. Esse tecido social deve ser entendido na sua totalidade, sendo que seccioná-lo, mesmo para fins analíticos, pode atrapalhar a análise do dinamismo inerente a esses fenômenos. A perspectiva da consubtancialidade é usada neste estudo por identificar os movimentos entrelaçados como constituidores e reiteradores do falogocentrismo. O termo consubstancialidade é atribuído a Françoise d’Eaubonne, biógrafa e eco-feminista, autoidentificada assim antes da popularização da expressão “eco-feminismo”, o que (...)

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Se a sua condição de artista e o seu sobrenome de família de destaque público a colocam no lugar social de privilegiada, a combinação de mulher, mãe, artista brasileira e latina vivendo na Europa e nos Estados Unidos, a empurra para a borda. A presença do corpo feminino no palco, muitas vezes estereotipado em uma categoria antagônica ao papel santificado de mãe, a restringe duplamente como uma habitante na margem do centro pelo masculino. Suas viagens e moradas por epicentros da cena artística marcadamente eurocêntrica e dominada pela cultura norte-americana, a colocam como uma exceção por transitar pelos holofotes da Europa e Estados Unidos. Uma demonstração do seu reconhecimento fora do Brasil foi o destaque dado pela mídia a sua morte, como a matéria do jornal francês Le

Figaro 13 com o título: ‘Miúcha, a rainha mãe da Bossa Nova morre aos 81 anos’.

No caminhar das transcrições das entrevistas, sigo me perguntando em que medida Miúcha não queria contar algo que contou. Ela demonstra haver ali uma autoria dela sendo tecida, em cada palavra é possível ler suas escolhas de como gostaria de ser lembrada. Algumas vezes, deixa a sensação de que estava cansada do script que escreveu para si mesma. Dentro dessa teia de intersubjetividades, busquei me colocar como um exotopo, o lugar da estrangeira, no qual reconheço meu estranhamento temporal e espacial ao investigar um tempo que não vivi. A exotopia compreende um desdobramento de novos olhares a partir de um lugar exterior, externo ao sujeito narrado, que inclui algo que o próprio sujeito não pode ou não quer vê.

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12 - (...) acontece a partir de 1978. No livro Le feminisme ou la mort – femmes em mouvement (Ed. P. Horay,

1974), Euabonne utiliza o termo consubstantialité em francês. Para a autora, através do apartheid sexual, o sistema falogocêntrico (Euabonne utiliza o termo falocracia) extrai das mulheres o trabalho reprodutivo necessário à manutenção da estabilidade social, ao mesmo passo que garante aos homens o poder sobre a sexualidade feminina. Através do racismo (e esse estudo acrescenta as relações de poder sobre as colônias), conseguiria mão de obra para realização de trabalhos que os dominantes julgam inferiores, como toda a gama de cuidados: com a casa, com as crianças, com a comida, com a sexualidade masculina. Ainda segundo a autora, ao apropriar-se da fertilidade (das mulheres) e da fertilidade (do solo), os homens e a sociedade “falocrática” as conduzem para a catástrofe. Por isso, o reconhecimento da feminitude -, como chama a infelicidade de ser mulher em uma sociedade governada por homens -, pode salvar a espécie humana ameaçada. A única alternativa seria então: “feminismo ou morte”, como sugere o título do seu livro. Apesar de sua obra ter sido publicada na segunda onda do feminismo francês, o conceito de consubstancialidade pode ser visto como uma teoria pós-interseccional do século XXI.

13 – Link para reportagem Le Figaro, de título original do francês: ‘Miúcha, na reine mère de la Bossa Nova, est

décédée à l’age de 81 anos’, datada de 28/12/2018 – Disponível no site:

http://www.lefigaro.fr/musique/2018/12/28/03006-20181228ARTFIG00098-micha-la-reine-mere-de-la-bossa-nova-est-decedee-a-l-age-de-81-ans.php . Acesso feito em 06 de agosto de 2019.

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Coloquei abertamente a minha inquietação sobre como percebia o intrincamento entre a sua vida pública e a privada e, na minha hipótese, de como as duas se afetam de forma determinante para o seu percurso. Isso ajudou a quebrar uma possível resistência às perguntas estranhas ao universo da música. Este narrar com inclui o estado de entre-afecção13, no qual Miúcha se permitiu ser tocada pelas perguntas e as perguntas também

foram sendo adaptadas ao fluxo das respostas. Concordamos juntas que o talvez seria bem-vindo, então, peguei as diferenças de experiências, geracionais, profissionais, maternas, e sigo com elas. Propus as entrevistas com, e não de. São muitas as limitações e riscos embutidos na tradução do outro. Segundo Jacques Derrida, não podemos falar do outro, só podemos falar ao outro. Nessa máxima da alteridade radical derridiana, busquei me pautar no que defino este estudo biográfico como uma “pesquisa tradução”. Eu a traduzo falivelmente a partir do seu texto narrado sobre si mesma.

A divisão dos capítulos segue dois caminhos distintos e complementares. O primeiro capítulo assume o tom biográfico das entrevistas, portanto mais fluido e literário; o segundo articula os rastros no tempo e no espaço em diálogo com as matrizes teóricas que me orientam e inquietam; o terceiro dedica-se à contribuição de Miúcha e da Bossa Nova para os femininos com seus plurais e a cultura brasileira no mundo. Para buscar entender as escolhas de Miúcha, recorro à psicanálise, lendo especialmente na companhia do filósofo Jacques Derrida. Opto, ainda, por fazer uma análise do discurso de autores homens sobre diferenças de gênero, para identificar como a construção do feminino se deu no seu exterior e ensaiar apontar desconstruções possíveis. Como exemplo, trago o discurso da educação feminina rousseauniana pelo bom-comportamento e como complemento do homem. Como essa construção simbólica e real ecoa na alta-contemporaneidade, e como algumas mulheres conseguem desafiar essas heranças?

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13 – No livro Gramatologia, Derrida traz o tremo “autoafecção” como a experiência do tocante-tocado (...). Ao

dar-se uma presença ou um gozo, acolhe o outro na estreita diferença que separa o agir do padecer (1967, pp.201-202). Parto de Derrida, para trabalhar com o termo entre-afecção, buscando reforçar a dupla direção e entendendo a pesquisa como ação discursiva e pós-discursiva. Ao longo da sua obra, Derrida irá caminhar para se interessar pelos estudos sobre alteridade radical na relação como outro. O “entre” aqui serve para localizar os encontros das entrevistas entre as duas sujeitAs – Miúcha e esta pesquisadora - com suas diferenças, resultando não em uma síntese, mas em uma pesquisa tradução: como escuto Miúcha, como ela me permitiu escutá-la e como me foi possível lê-la. A palavra “afecção”, refere-se às sujeitAs em diálogo na pesquisa e nas esferas da sua vida pública e privada.

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O luto na escrita

Após quatro entrevistas presenciais, além das ligações telefônicas e alguns encontros casuais e festivos, dia 27 de dezembro de 2018 chega-nos a notícia da morte de Miúcha no Rio de Janeiro. Começa aí, mergulhada em um sentimento de luto e responsabilidade, a segunda etapa desta pesquisa. Era hora de ouvir todo o material novamente, para me certificar das escolhas feitas até aqui e do que eu possa ter deixado escapar. O que estava ali e não ouvi? Um respiro? Uma modulação na voz? Um riso mais significante?

Parece-me ainda mais claro que tornar pública a narrativa de Miúcha contribui para ressignificar a memória coletiva do feminino na Bossa Nova. A sujeitA e o coletivo são entidades em diálogo, somos indivíduos em relação com o outro, o que significa dizer, que existimos no outro. Com o nascimento da sua filha, nasce também uma nova Miúcha, sem que a antiga, que desejava cantar e circular pela boemia, estivesse morta. Os rastros entrecruzados entre o coletivo e a sujeitA tornam significantes às micro-histórias. O slogan que ecoou nas manifestações dos anos 60, quando o movimento feminista queimou sutiã nas ruas e reivindicou o direito ao uso da pílula anticoncepcional, segue atual e, arrisco, mais urgente do que nunca: “O pessoal é político” 14.

No caminhar de toda essa movência, foi significante o momento de autorização formal de Maria Heloisa Buarque de Holanda para esta pesquisa, em julho de 2018, após as suas falas. Ela assinou sem hesitar. Esse fato só aumentou a minha insistência em persistir, concluindo esta escrita pouco mais de um mês após a sua morte. Portanto, é em estado de resignação com o destino, que chego até aqui. Preciso me conformar que Miúcha não irá ler essas linhas, logo ela que desafiava e ria da morte vivendo sem freios, culpa ou julgamentos. A partir daqui, é jogar as palavras ao vento como música para quem sabe, contribuir com a sua experiência para amplificar vozes de outras artistas mulheres e somar mais aplausos ao seu merecido reconhecimento.

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Capítulo 1 –

Narrando com Miúcha

Miúcha se lembra da sua infância com uma nitidez espantosa. Suas memórias das casas por onde morou com a sua família Buarque de Holanda são sempre definidas como cheias de gente e muito alegre. Por lá passaram intelectuais e escritores como Antônio Cândido, Manuel Bandeira, Simone de Beauvoir, Sartre, Albert Camus, políticos como os presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Lá, frequentaram personalidade de diversas matrizes, em especial da literatura e da música, como Jorge Amado e Dorival Caymmi. Muitos trazidos por Vinícius de Moraes, que, como conta Miúcha, chegava à casa da sua família “nunca com menos de dez pessoas e um violão”. A festa entrava pela madrugada. Ela diz: “- Vinícius de MoraES era o plural encarnado”, brincando com o sobrenome do poeta.

Miúcha: Vinícius (de Moraes) era aquele rapaz prodígio, dez anos mais novo do que o papai, muito

precoce e sedutor. O jovem poeta promissor. Vinícius chegou lá em casa antes de mim. Ainda no primeiro ano do casamento dos meus pais eles ficaram muito amigos. Ele estava sempre trazendo um verso novo para mostrar e adorava incluir as crianças, levando todos a cantar. Anos mais tarde, foi Vinícius que me apresentou as primeiras canções de Bossa Nova. Naquele momento, para mim, foi como se o cinema em preto e branco ficasse colorido.

Vinícius de Moraes conhece Miúcha ainda bebê. O poeta visita seus pais para parabenizá-los pela chegada da primogênita. E através dele, a música pré-Bossa Nova vai ocupando a sala de estar dos Buarque de Holanda. Antes de João Gilberto se consagrar como cantor, veio Dorival Caymmi, baiano que inspirou a batida e a harmonia no violão de João Gilberto, como Miúcha conta. Na mesma época, Dorival Caymmi já habitava o universo dos Buarque de Holanda 15, frequentando esporadicamente os saraus da família, levado por Vinícius de

Moraes. Sobre a importância da Dorival Caymmi na sua formação enquanto artista, Miúcha narra:

Miúcha: Eu não era uma criança bonitinha, decorativa. Certa vez, quando fiz a minha primeira música,

devia ter uns oito anos, eu mostrei para papai e mamãe, e eles não deram muita bola. Acharam uma imitação de (Dorival) Caymmi, porque falava de mar e de pescador. Agora veja só, se uma criança nessa idade já teria a noção de estar copiando alguém. Fiquei muito chateada!

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15 – Imagem abaixo: Foto do álbum da família Buarque de Holanda com Sergio Buarque de Holanda no centro

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Essa memória surge como algo muito familiar, como quando ainda na infância ganha o seu apelido de Miúcha.

Miúcha: Meu nome não era meu nome, era da vovó. Heloísa, Heloísa com trema (grafia do português

antigo). Aí comecei a ser chamada de Miúcha em casa, então não sei quem começou essa história, se foi meu pai ou minha mãe. Virei Miúcha porque eu era miúda. Era ágil, agitadíssima e muito pequena. Depois na escola, não queria que me chamassem de Miúcha. Ah! Foi aí que o apelido pegou mesmo! Heloísa ficou só quando mamãe dava bronca, se ela estivesse bravíssima era Heloísa Maria!”

Da infância, Miúcha tem uma recordação especial do nascimento da primeira irmã, em um tempo em que os pais não sabiam o sexo do bebê antes do nascimento. Ela conta:

Miúcha: Mamãe não aguentava mais menino (risos), foram três depois de mim. Então, quando nasceu

a Pí, a Maria do Carmo, foi uma surpresa. Levei o maior susto, acho que mamãe também. Eu mesma pensei: ‘-É mesmo? Pode nascer outra mulher nesta família?’. Depois mamãe ficou aliviadíssima e eu fiquei encantada.

Com o nascimento da irmã, Miúcha não perderia o posto de primeira filha e de primeira neta, mas passaria a ter uma garota na casa que jogava futebol melhor do que ela. Ela se

Figura 1 – Esta foto retrata a família Buarque de Holanda reunida em uma divisão espacial com as filhas mulheres próximas à mãe Maria Amélia e os filhos homens próximos ao pai Sergio Buarque de Holanda.

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lembra mais da infância: ‘-A gente jogava futebol todos os irmãos juntos, mas quando nasceu a Pí (Maria do Carmo), ela se revelou muito melhor com a bola do que eu”. Viriam ainda mais duas irmãs, Maria Cristina e Ana Maria. “-Todas são ‘Marias’. Era mamãe que queria colocar os nomes de Maria, dedicados a Nossa Senhora”.

É essa Miúcha que, ainda criança, manifesta para a família o que seria a primeira influência musical evidente, sem que ela própria percebesse qualquer interferência direta na sua música. Para ela, viria mesmo era da experiência de criança nas praias do Rio de Janeiro. Miúcha marca as passagens da infância e adolescência pelas diversas mudanças de residência da família. De Copacabana, bairro carioca onde nasce em 30 de novembro de 1937, se mudaria ainda criança para o bairro do Leme. Dessas duas casas do lado da praia, ela lembra as brincadeiras com os irmãos e as babás catando conchas do mar e tatuís. Ela conta:

Miúcha: Nasci em um prédio de arquitetura art nouveau, que ainda está lá de pé, na Avenida Nossa

Senhora de Copacabana, com a praia por perto. Lembro-me das brincadeiras com meus irmãos, de pegar vagalume com copo e depois destampar os vagalumes no quarto para ver aquelas luzinhas voando.

Essa poética pueril da infância contrasta com o que viria a ser a sua vida como artista. A canção Essa Mulher 16, cantada e escrita por duas mulheres, mães e artistas, casadas com

homens artistas, dá pistas sobre o universo da Música Popular Brasileira - MPB. A canção de Joyce e Ana Terra, que se tornou popular na voz da cantora Elis Regina, exemplifica a narrativa da condição feminina e o desejo de ser cantora.

A canção Essa Mulher descreve: De manhã cedo essa senhora se conforma

Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos

Ah, como essa santa não se esquece de pedir pelas mulheres Pelos filhos, pelo pão

Depois sorri, meio sem graça

E abraça aquele homem, aquele mundo ___________________________

16 – A canção Essa Mulher ficou popular na interpretação de Elis Regina e foi escolhida pela cantora para dar

nome ao seu disco lançado em 1979. Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=KvB7vyBrfdE.

Podcast da entrevista na qual cita outras mulheres mães e artistas:

http://www.ebc.com.br/cultura/galeria/audios/2013/03/elis-fala-sobre-a-musica-essa-mulher-composicao-de-joyce-e-ana-terra. Sites acessados em 04 de agosto de 2019.

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Que a faz assim, feliz

De tardezinha essa menina se namora Se enfeita se decora, sabe tudo, não faz mal Ah, como essa coisa é tão bonita

Ser cantora, ser artista Isso tudo é muito bom

E chora tanto de prazer e de agonia De algum dia qualquer dia

Entender de ser feliz

De madrugada essa mulher faz tanto estrago Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar Ah, como essa louca se esquece

Quanto os homens enlouquecem Nessa boca, nesse chão.

Depois parece que acha graça

E agradece ao destino aquilo tudo Que a faz tão infeliz

Essa menina, essa mulher, essa senhora Em que esbarro toda hora

No espelho casual

É feita de sombra e tanta luz De tanta lama e tanta cruz Que acha tudo natural.

(grifos meus)

Como dar conta de ser mulher sexualmente ativa, cuidar dos afazeres domésticos e ser cantora? Se isso não estava previsto pelo destino traçado ao nascer mulher, viria, como na letra da canção Essa Mulher, a resignação. No primeiro verso, ao descrever o cotidiano doméstico a partir de umapersonagem feminina, a canção não apenas explicita qual o papel é comumente reservado às mulheres, como revela a sua sina: “bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos”. A canção soa como a narração de um sonho, descrito como algo distante para o feminino materno. “Ser cantora, ser artista”, dito no segundo verso, seguido de um “algum dia, qualquer dia”, relata o inusitado desejo. A letra dessa música, embora feita para uma personagem fictícia, que não Miúcha, permite uma analogia e traduz esse paradoxo entre a família e o palco, o externo e o doméstico, ao que parece mais difícil de ser conciliado por uma sujeitA mulher.

A família Buarque de Holanda se mudou de casa algumas vezes no Rio de Janeiro. A família alternou de cidades, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, no período em que o pai de Miúcha,

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Sergio Buarque de Holanda 17, foi diretor do Museu Paulista do Ipiranga durante dez anos e

professor da Universidade de São Paulo - USP. As casas mudavam, mas os hábitos do lar onde Miúcha foi criada seguiam com a família. Miúcha recorda da época em que morou em São Paulo, quando ela e os irmãos ficavam à noite na escada, ouvindo e espiando as conversas. Ela conta que, até então, as crianças não podiam participar dos saraus. Em umas dessas noites regadas à música e poesia, ela finalmente consegue entrar na roda:

Miúcha: Era o Vinícius (de Moraes) que chamava as crianças, ele quebrava o protocolo imposto pela

minha mãe! Quando ele chegava, já sabíamos que ia ter música. Ele incluía todo mundo, inclusive os mais novos. Uma noite lembro bem a gente no topo da escada da casa da Rua do Buri (São Paulo) já na hora de criança dormir e Vinícius chamou a gente, não teve como mamãe dizer não. Eu adorava participar do coro, a gente imitava as Pastorinhas do Ataulfo Alves. Logo Vinícius (de Moraes) me ensinou as primeiras posições no violão e me deu a receita dele para fazer música: ‘-música é assim, conta uma historinha, depois repete a frase’. Todo mundo começou a fazer música lá em casa.

A iniciação musical de Miúcha surge então no seu cotidiano familiar, o que inclui brincadeiras com suas irmãs mais novas, que imitavam grupos vocais como os Everly Brothers. A partir das experiências de cada irmão, é possível acompanhar as distinções das subjetividades, nas quais as diferenças de gênero interferem, mas não é o único elemento de singularização.

Miúcha: Uma vez estava em casa, na sala, lendo e conversando com papai, devia ser umas onze horas

(da noite) quando vejo a porta abrir por fora. Era o Chico (Buarque) entrando em casa. Perguntei: ‘-Que diabo é isso, como você tem a chave?’ Ora, ele era o quarto de sete irmãos, sete anos mais novo do que eu, que devia ter quase uns 20 anos nessa época. Era um absurdo ele ter a chave de casa e eu não!

Miúcha narra o tratamento dado ao seu irmão, o também cantor Chico Buarque de Holanda, completando que nesse dia perguntou ao pai deles o porquê das regras distintas, já que esse repetia sempre que mulheres e homens eram iguais.

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17 - Sergio Buarque de Holanda (1902-1982): Historiador, escritor, jornalista. Autor do clássico "Raízes do

Brasil". Em 1922 participou do Movimento Modernista, como correspondente da cidade do Rio de Janeiro, para a revista Klaxon, publicação mensal dedicada à propagação das ideias modernistas. Em 1945, foi um dos signatários da Declaração de Princípios, contrária à ditadura de Vargas. Em 1946, foi nomeado diretor do Museu Paulista. Foi catedrático da Universidade de São Paulo até 1969, quando se aposentou em protesto contra a cassação de professores da USP afastados pelo Ato Institucional nº 5. Disponível no site:

https://www.ebiografia.com/sergio_buarque_de_holanda/. Em 1980 foi membro fundador do Partido dos

Trabalhadores. Fonte: Apontamento da Cronologia de Sergio Buarque de Holanda, escrito por sua mulher Maria Amélia: Filme Raízes do Brasil II. Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=rPv65Xk_R8M

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Miúcha: Comecei uma briga com papai e perguntei: ‘-O que você acha disso? Você não diz que homem

e mulher, é tudo igual? No que ele me respondeu: ‘-É tudo igual, mas aqui em casa quem sabe é a sua mãe’. Sobrava para mamãe fazer a dureza!

Nessa narrativa, além de evidenciar a separação das regras entre o irmão e a irmã, nota-se a responsabilidade e a autoridade na educação dos filhos concentrada na figura da mãe. Essa autoridade incluía o gerenciamento do orçamento doméstico. Sergio Buarque tinha um código com a empregada da casa: quando chegava com livros novos, alguns muito raros e caros, ele os deixava na porta dos fundos e entrava em casa pela porta da frente sem os livros. Assim, Maria Amélia não viria, não tendo como reclamar do gasto extra, tendo o casal sete filhos para criar. Para esta pesquisa interessa problematizar como esse reinar da mulher em casa é consentido pelo marido, não ocupando o tempo do masculino com os afazeres diários, com o doméstico administrados pela mulher.

No espaço público, a visibilidade do pai de Miúcha alcançou diversas esferas e reverberou como uma voz ativa. O historiador Sergio Buarque de Holanda foi um intelectual, escritor e professor universitário que marcou o pensamento crítico brasileiro e influenciou todo um campo das ciências sociais dedicado a pensar a formação da identidade brasileira. Miúcha, a filha primogênita, era em muitos momentos a companheira do pai. Através do círculo social da família, formado principalmente por outros homens ilustres, tornou-se amiga de uma geração de artistas e intelectuais.

Nas famílias tradicionais pai-mãe-filhos, como a de Miúcha, o papel das filhas mulheres sofreu historicamente maiores limitações no acesso à rua, com horários rígidos para voltar para casa à noite. Essas distinções, muitas vezes sutis ou veladas nas dinâmicas das famílias, não representam uma característica particular da família Buarque de Holanda. Essas duas esferas, o doméstico e o público, historicamente tiveram códigos diferentes, mas, sobretudo, eram habitadas por indivíduos distinguidos por gêneros como um código de conduta. Miúcha nasceu e foi criada já sendo inserida nessa teia de relações, que, à medida que foi passando da infância para a adolescência, chegavam mais novos frequentadores à sua casa e, assim, ela foi herdando essas amizades.

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Entre as amizades herdadas dos pais, veio Vinícius de Moraes (1913-1980), de quem Miúcha se manteve amiga e parceira até o fim da vida dele. Mesmo a forte amizade entre os pais de Miúcha e Vinícius de Moraes não impediu que a mãe e a avó materna tivessem receio de ela circular fora de casa sozinha com o poeta. Quando a família foi morar na Itália, com convite feito ao pai para ele ensinar na Universidade de Roma, Miúcha ficaria no Brasil morando com as tias. Após o fim do seu ano letivo, surge a ideia de ela seguir para Europa acompanhada de Vinícius de Moraes, possibilidade que acabou sendo descartada. Então, uma tia foi escalada para levá-la. Ela conta: “-Com a fama de conquistador de Vinícius (Moraes), era melhor não facilitar, pensavam a mamãe e a vovó Maria do Carmo (mãe de mamãe)”.

A Bossa Nova foi o movimento dos homens charmants e das suas musas. Vinícius de Moraes encarnou o poeta porta-voz. Ao contrário do pai de Miúcha, casado até o fim da vida com a mesma mulher, que depois ficou viúva por 28 anos sem voltar a casar, Vinícius de Moraes casou e descasou oito vezes. A exceção foi a última e nona mulher, Gilda Mattoso, de quem não chegou a se separar. Miúcha define Vinícius de Moraes com três palavras: agregador, amigo e sedutor. O poeta não inventou a musa, que pode ser localizada nas civilizações mais remotas, mas tem um papel fundamental de ecoar o feminino pelo masculino na Música Popular Brasileira. É de Vinícius de Moraes uma das canções com uma das letras mais controversas do repertório da Bossa Nova e que aqui interessa analisar a sutileza do discurso sobre a figura da musa. Em Samba da Benção Vinícius de Moraes recita uma parte da letra e refere-se, no tempo verbal do subjuntivo, com ares de imposição, de dever, de obrigação, traçando e desenhando um modelo ideal de mulher submissa e servil. É o masculino ditando como a mulher deveria ser. Ele, então, define a existência dela a partir do lugar do masculino, como neste verso:

Uma mulher tem que ter

Qualquer coisa além de beleza Qualquer coisa de triste Qualquer coisa que chora

Qualquer coisa que sente saudade Um molejo de amor machucado Uma beleza que vem da tristeza

De se saber mulher Feita apenas para amar Para sofrer pelo seu amor E pra ser só perdão (grifos meus)

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Para “se saber mulher”, segundo essa canção de Vinícius de Moraes, tem que sofrer pelo seu amor e perdoá-lo, fazendo o poeta uso do vocabulário judaico-cristão: “sofrer” e “perdão”, para definir o lugar da mulher. Para Miúcha, Vinícius de Moraes foi um provocador. Ela se lembra de quando estavam definindo o roteiro do show do Canecão, baseado no repertório do disco dela com Tom Jobim, e Vinícius e seu uísque se expandiam pelo palco. Por vezes, tinha pequenas rusgas bem-humoradas com Tom Jobim, de personalidade mais introspectiva. A canção de Vinícius de Moraes mais conhecida na voz de Miúcha é Medo de

amar. A letra da canção diz:

Vire essa folha do livro e se esqueça de mim Finja que o amor acabou e se esqueça de mim

Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz

E que ter medo de amar não faz ninguém feliz Agora vá sua vida como você quer

Porém, não se surpreenda se uma outra mulher Nascer de mim, como do deserto uma flor

E compreender que o ciúme é o perfume do amor (grifos meus)

A música traz o rompimento da relação amorosa, marcada pela desconfiança e sentimento de posse do homem pela mulher. Essa mulher, então, responde que do deserto nasceria uma flor, como a figura de uma nova mulher pronta para escolher um novo amor. O abandono do feminino pelo masculino não é visto como um fim da estrada, ao invés disso, ela renasce no símbolo da flor que floresce como uma metáfora da sensualidade. O verso “você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz”, funciona como a resposta da mulher a esse sentimento tantas vezes usado como prova de amor, o que a letra sugere refutar. No verso “vá sua vida como você quer”, permite uma interpretação pelo feminino observando a mulher da canção como aquela que, cansada do ciúme do parceiro, parte em busca do seu desejo, deixando o parceiro e seguindo ela para viver a sua liberdade de fazer escolhas.

Sobre esta canção, Miúcha conta, aos risos, ser uma personagem, uma ficção das várias faces do poeta. Além do depoimento de Miúcha, a interpretação do repertório de Vinícius de Moraes, que compõe o ambiente musical de Miúcha sugere a existência de um eu-lírico feminino no poeta. Esse eu-lírico feminino, imaginado e escrito pelo masculino, posteriormente aparece diversas vezes nas canções de Chico Buarque. A canção Medo de

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