• Nenhum resultado encontrado

A Constituição e a dimensão privada do existir

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "A Constituição e a dimensão privada do existir"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

A Constitui ção e a dim ensão pri vada do existir

Felipe Peixoto Braga Netto (peixoto@prmg.mpf.gov.br)

Procurador da República. Mestre em Direito Civil pela UFPE. Professor de Direito Civil da ESDHC. Procurador Regional Eleitoral substituto em Minas Gerais. Autor, entre outros, de “Responsabilidade Civil” (São Paulo: Saraiva, 2008) e Manual de Direito do Consumidor (Salvador, Juspodivm, 2a edição, 2008).

Falar no direito civil é falar de mudanças. O direito civil passou, está passando, por um tempo de transformações tão rápidas quanto intensas.

Para quem, como nós, está no meio da viagem, está no barco histórico das mudanças, é muito difícil compreender, verdadeiramente, o que está acontecendo. Sabemos que vivemos dias incertos, mas não sabemos, exatamente, em que direção apontam essas mudanças, qual o seu sentido, o seu significado.

A própria quantidade de informação disponível, no mundo de hoje, é algo que causa perplexidade. Muita informação não significa, necessariamente, aumento da nossa capacidade de absorção. Às vezes, a informação em excesso não esclarece, confunde. Além disso, mais espantoso que a quantidade de informação disponível é a facilidade de sua transmissão. O mundo virou um lugar pequeno: sabemos, quase que de forma instantânea, o que acontece no Japão, na Malásia, não há lugares distantes para a informação.

Por outro lado, a ciência parece ter assumido sua dimensão iconoclasta.

A cada dia somos forçados a rever nossas certezas, porque as novas descobertas científicas nos põem frente a novas realidades, e novos dilemas, muitas vezes morais. A biotecnologia, a biogenética, os transplantes, os embriões humanos, as inovações ambientais, tudo isso contribui para a formação de um cenário novo, um cenário inédito, desconhecido para os padrões clássicos.

(2)

Nesse contexto, é algo fora de qualquer dúvida razoável que o direito civil não poderia permanecer o mesmo. Como continuar a falar a mesma linguagem de Napoleão, dos nossos antepassados do século XIX, se a nossa vida, os nossos conflitos, os nossos problemas, são inesperados e inéditos, até para quem já nasceu perto do final do século XX? O professor Godofredo Telles Júnior dizia que a desordem é a ordem que não conhecemos. Talvez não conheçamos a ordem que emerge nessa multiplicidade confusa de sinais, talvez haja algo, por trás de tudo isso, um fio unificador, que explique a profusão de sentidos dispersos.

Enfim, a grande tarefa, que se põe ao civilista do século XXI, é buscar um sentido unificante para as transformações havidas. Não apenas fotografar a realidade, mas buscar, em certa medida, compreendê-la, até porque a história depende do nosso olhar, a história não é neutra, a história é, em certo sentido, uma reinvenção do passado sob os olhos do presente.

Buscar esse olhar diferenciado é o desafio do direito civil contemporâneo. Construir uma nova ética para as relações privadas, uma ética cuja chave de leitura seja a pessoa, e não mais, como antes, o patrimônio, que deve ser sempre enxergado como um instrumento para a realização da pessoa humana, e não como um fim em si mesmo.

Por isso tanto se fala, atualmente, em repersonalização, funcionalização, socialização do direito civil. São expressões que denotam a fuga, o abandono dos caracteres clássicos, e a progressiva aproximação com um direito que ainda não existe, um direito cuja tecnologia, por assim dizer, está em construção.

Nos séculos passados, com a separação absoluta entre a sociedade civil e o Estado, tínhamos, de um lado, o direito público, regido pela Constituição, e do outro o direito privado, regido pelo Código Civil. O Código Civil era considerado a “Constituição” do direito privado.

(3)

Em razão disso, nenhum ramo estava mais distante do direito constitucional do que o direito civil. Pensava-se da seguinte forma: o direito civil, com sua multi-secular história - que em tantos aspectos se confunde com a própria história humana – não precisa do direito constitucional, o direito civil se basta, até porque, em termos cronológicos, o chamado constitucionalismo não alcança um décimo do tempo histórico do direito civil.

Essa oposição no passado se transformou em convergência no presente.

E por que convergência? Porque se percebeu que a força normativa dos princípios exige que os diversos ramos do direito convivam com a Constituição. E essa convivência acaba por implicar numa convergência, pois as fontes de normas deixam de ser setorizadas, fechadas, auto- referentes, e passam a ser, cada vez mais, abertas, múltiplas, plurais.

É claro que no século XIX, o século das grandes certezas, o século no qual o direito civil nutria a utopia da completude e da perfeição técnica, não havia espaço para a convergência que hoje observamos. Havia uma cisão: de um lado a pandectística alemã, que construiu, a partir dos modelos romanos, as grandes teorias do negócio jurídico, da propriedade, do contrato. Do outro lado, o publicismo, relativamente recente, e que era visto com desconfiança pelos privatistas que nele enxergavam um fenômeno mais político do que jurídico.

O direito público e o direito privado sabiam da existência um do outro, mas eram como aqueles parentes distantes, que nós sabemos que existem, mas com os quais não convivemos, sequer visitamos.

Nesse contexto cabia ao direito civil, através dos Códigos Civis, reger as relações entre os particulares, cuja maior preocupação, cujo maior valor a ser preservado era a segurança.

Hoje, embora a segurança continue sendo um valor fundamental do direito, ela não é mais, seguramente, o valor, o valor por excelência.

(4)

Mesmo porque a segurança é um valor relativo, como aliás o são todos os valores. A segurança depende do prisma do observador. Para quem deseja manter o status quo, um direito formado por princípios é uma fonte de insegurança. Mas para quem deseja mudança, essa insegurança não é tão importante assim, mais importante são as potencialidades transformadoras dos princípios. Enfim, a segurança depende do ângulo de observação.

Por outro lado, a estabilidade das relações sociais, que antes caracterizava o direito, hoje é algo impensável. Se atualmente algo nos caracteriza, esse algo é justamente a instabilidade, as constantes mudanças, que redefinem, a cada instante, a feição da sociedade em que vivemos. O professor José Carlos Barbosa Moreira disse, certa feita, que a atualmente a única certeza que nós temos é a mudança.

Hoje, há um diálogo das fontes. Não se pode pensar o direito civil sem pensar na Constituição. A concepção clássica, que apartava, em mundos distintos, o direito público e o direito privado, envelheceu. Pode ter alguma valia didática, mas já não serve para explicar o que se passa na sociedade em que vivemos. Hoje, as fontes normativas são plurais, públicas e privadas, nacionais e internacionais. Há uma interpenetração progressiva das fontes normativas, o que faz cair por terra as dicotomias jurídicas clássicas: direito público e direito privado; direito interno e direito internacional.

Por outro lado, não podemos alimentar uma hostilidade automática ao Novo Código Civil. É certo que juristas brilhantes argumentaram, com boas razões, que a aprovação de uma nova lei civil não guardaria compatibilidade com o contexto histórico atual. Houve até quem dissesse, com fina ironia, que o Código de 2002 era um “engenheiro de obras feitas”. Mérito à parte, gostemos ou não, temos um Novo Código.

Podemos desconsiderá-lo? Claro que não. Então, a atitude mais prudente e mais razoável é procurar extrair, da nova lei, as

(5)

potencialidade de realizar uma sociedade mais justa, menos desequilibrada e menos desigual.

Não devemos tampouco esquecer que a ordem econômica, no Brasil, está subordinada aos ditames da Justiça Social. É preciso que aprendamos a preferir a Constituição aos regulamentos e decretos. É preciso também que aprendamos a preferir a Constituição ao próprio Código Civil, caso haja incompatibilidade. As relações entre ambos, se apresentaram, nos séculos passados, uma carga de recíproca repulsa, hoje exigem uma convivência necessária, permanente, e tanto quanto possível, harmônica.

Atualmente, é na Constituição, e não no Código Civil, que estão os paradigmas hermenêuticos fundamentais. É na Constituição que está a função social da propriedade, os limites da atividade econômica, a nova configuração da família, baseada no afeto mútuo.

É na Constituição que está o princípio que norteia toda a interpretação e aplicação do direito civil contemporâneo, que é o macro-princípio da dignidade da pessoa humana.

Então, mudamos muito. Não sei se essas mudanças podem ser creditadas a um novo diploma civil. Creio que não. A renovação - profunda - pela qual passou – está passando – o direito civil não deve ser conectada ao Novo Código. A contribuição dele, nesse amplo espectro de mudanças, me parece pequena.

O que mudou – do começo do século passado pra cá – foi a sociedade, e com ela o direito civil. Quando o Código de 1916 foi editado, a constituição então vigente vedada que os mendigos se habilitassem para o processo eleitoral. Observem que não se trata de analfabetos, o que supõe uma discussão mais profunda. Mas mendigos: o ter preponderando sobre o ser. A ausência de bens materiais implicava na ausência de capacidade política.

(6)

A discriminação econômica, consagrada na Constituição, ia além: só poderia ser eleito quem auferisse uma renda mensal superior a tantos mil réis, patamar esse progressivamente elevado à medida da importância do cargo.

Era essa a nossa sociedade, e era essa a nossa constituição. Uma constituição que consagrava a discriminação, o voto censitário, e uma sociedade agrária, patriarcal, para a qual mais importava ter do que ser.

Além do mais, havia uma overdose de autonomia da vontade. O contrato era considerado tradutor de justiça. O que fosse acordado através de um contrato seria justo, e deveria ser cumprindo, pouco importando o seu conteúdo. Apenas recentemente se percebeu que essa liberdade, puramente formal, causou, claro, mais miséria e mais desigualdade. Até porque, segundo a fórmula clássica de Lacordaire, entre o forte e o fraco, é a liberdade que escraviza, e a lei que liberta.

Por tudo isso, que nos chega, hoje, como sombras de uma época passada, o diploma civil de 2002, não há dúvida, encontra um ambiente profundamente renovado. A sociedade é preponderantemente urbana, as entidades familiares são plurais, e, pelo menos para o direito, a pessoa humana deve receber uma consideração diferenciada em relação aos bens patrimoniais.

Principalmente nos dias atuais, que já foram batizados como a “era da informação”, a desigualdade mais odiosa – afirmou Pietro Perlingieri – não se estabelece entre quem tem e quem não tem, mas entre quem sabe e quem não sabe.

Superada que foi a igualdade formal, não podemos, sob a égide da igualdade material, desconhecer que as pessoas são diferentes, têm oportunidades de vida diferentes, e por isso hão de ser diferentemente tratadas. O direito civil neutro e formal ficou pra trás: pertence ao

(7)

museu das idéias. Hoje as categorias básicas do direito civil são funcionais. O que significa isso?

Significa que são instrumentos para a realização das opções valorativas da Constituição. O contrato, ao contrário do clássico dito francês, o contrato não é justo por si mesmo, não é justo porque foi celebrado entre pessoas formalmente iguais, já não nos basta uma justiça de olhos fechados para as diferenças.

A propriedade, todos sabemos, não é mais um direito como nos séculos passados, que vai até onde o egoísmo do proprietário achar que deve ir.

Não é um direito de exclusão. É um direito – como aliás qualquer outro – que tem sua feição delineada à luz das ponderações efetuadas frente a outros valores. Ela é não só aquilo que o proprietário quer que seja, mas o que resultar do encontro com outros direitos, dos condicionamentos recíprocos porventura existentes.

Por isso se fala, em expressão dotada de forte valor simbólico, em função social da propriedade, o que significa, basicamente, para o civilista, que a propriedade, para ter legitimidade constitucional, deve proteger também os interesses dos não proprietários.

Um caso sempre citado pela doutrina alemã é emblemático. Tratava-se de um proprietário de um castelo que, tendo falecido-lhe a esposa, a enterrou dentro de sua propriedade. O filho do casal, anos depois, tentou visitar o túmulo da mãe, mas foi proibido pelo pai, com quem estava brigado. Ora, não é preciso muita argumentação para demonstrar a evidência do abuso do direito de propriedade no caso, e foi nesse sentido que decidiu a justiça alemã, reconhecendo a desproporção da proibição.

O curioso é que, nesse caso, a decisão foi criticada pela avançadíssima doutrina alemã, ao argumento de que o § 226 do BGB – a norma que prevê o abuso de direito no Código Civil alemão - exige que o intuito de

(8)

causar dano seja o único fim buscado pelo agente. Como no caso o filho não logrou provar, nem sequer tentou, que a proibição à visita do túmulo era motivada por um propósito meramente ardiloso, egoísta e mesquinho, não poderia a ação – segundo a doutrina alemã - ter sido julgada procedente, como o foi.

O que é certo é que a propriedade e o contrato, por muito tempo, foram os eixos fundamentais – normativos e conceituais – em torno dos quais orbitavam as relações civis. Além, claro, da família, cuja configuração pressupunha o casamento, e o marido a chefiá-la, com um poder incontrastável. Porém, em todos esses casos, mesmo na família, por incrível que pareça, era a dimensão financeira, e não a dimensão sentimental, que importava. O direito protegia a família não porque ali havia uma reunião de pessoas unidas pelo afeto mútuo, mas porque ali havia um patrimônio a ser protegido.

Hoje, o direito de família está cada vez mais longe do seu passado patriarcal. E é bom perceber que pode ser assim, que o direito civil não precisa ser o reduto do conservadorismo e do preconceito. Se a sociedade aceita novas formas de composição familiar, a ordem jurídica não tem legitimidade para negar-lhes o amparo.

O que é interessante – e inegável – é que está havendo uma linha tendencial de expansão do conceito de família; a família não é só a matrimonializada, aquela formada pelo casamento, e sim quaisquer unidades de vivência nas quais estejam presentes a estabilidade e a afetividade.

Com a propriedade e o contrato, que nasceram para instrumentalizar trocas patrimoniais, essa indiferença em relação à pessoa era muito mais perceptível; a lei dizia: todos podem ser proprietários, todos podem testar, todos podem fazer contratos. Aí Anatole France acidamente ponderou: bela igualdade essa, bela igualdade, que proíbe

(9)

tanto ao rico como ao pobre dormir embaixo da ponte, furtar um pedaço de pão.

A igualdade formal, quando surgiu, lá pelo século XVIII, foi um avanço, pois representou a superação dos privilégios advindos da nobreza e do clero. Mas hoje seria ideológica e historicamente despropositado imaginar que podemos nos dar por felizes com a igualdade formal.

Imaginem – como eu testemunhei recentemente - uma pessoa simples, analfabeta, que junta dinheiro ao longo de anos para comprar uma passagem de avião para visitar o filho, e perde o bilhete porque a companhia área não cumpre, adequadamente, o seu dever de informar sobre a necessidade de estar no aeroporto com certa antecedência.

E o direito civil contemporâneo percebe isso: e está, progressivamente, estabelecendo diferenciações valorativas, protegendo com mais força quem mais precisa de proteção, e não deixando que as pessoas – diferentes que são: ricas e pobres, experientes e ingênuas, informadas e não informadas – enfim, não deixando que as pessoas, no uso da malsinada liberdade contratual, resolvam por si. Até porque – repito com Lacordaire - entre o forte e o fraco, é a liberdade que escraviza, e a lei que liberta.

O Código Civil de 2002 não poderia ser um código como o foram os códigos civis dos séculos passados. E por que não poderia? Porque a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, da Constituição da República, aliada ao princípio da solidariedade social, vedam leituras neutras e formais do direito civil.

Nas relações negociais, sejam ou não de consumo, o princípio da boa-fé objetiva impõe às partes o dever de agir com lealdade e cooperação, antes, durante e depois da relação. Quer dizer, os contratos não são o reino do egoísmo, ainda que haja tanto egoísmo nas relações. Não importa tanto o que está escrito, mas sim os comportamentos que as pessoas adotam, são os comportamentos que serão o parâmetro de

(10)

validade dos contratos. O princípio do equilíbrio econômico do contrato foi elevado ao patamar de base ética de todo direito obrigacional.

Não é a propriedade o bem maior do direito civil atual. O homem destinatário das codificações civis sempre foi o homem proprietário, o homem dotado de patrimônio. E havia toda uma justificação histórica e filosófica: para Hegel, a propriedade era a realização da pessoa. Hoje estamos redefinindo o foco para proteger, em linha de princípio, outros valores, valores que apontam para uma humanização do direito.

É curioso como não era assim. No direito privado, só tínhamos tutela preventiva para o patrimônio, com o interdito proibitório e a nunciação de obra nova, remédios que protegem, respectivamente, a posse e a propriedade.

E a pessoa humana, onde fica? Não tínhamos, no direito civil, uma figura semelhante ao mandado de segurança, que pudesse ser manejado de forma preventiva. Quer dizer, tínhamos no Projeto do Código do Consumidor, mas foi objeto de veto presidencial. O Código de 2002 prevê, no art. 12, a chamada tutela inibitória, oportunizando a concessão de uma tutela preventiva quando agredido direito da personalidade.

E a proteção à dimensão existencial ou é preventiva ou não é proteção.

Devemos abandonar, de uma vez por todas, e sem reservas, a ultrapassada postura que considera a indenização por dano moral a forma ótima de proteger a personalidade. Não é. É uma forma residual.

A forma ótima será a preventiva, eventualmente cumulada com o dano moral.

Esse ano, no carnaval de salvador – como aliás ocorre todo ano – os blocos mais elitizados foram acusados de impedir, de bloquear o acesso de pessoas negras. Claro, não é uma recusa explícita, é uma recusa oblíqua, velada. Em casos como esse uma indenização futura pode até

(11)

ocorrer, mas o que mais importa, a meu ver, é impedir que o dano ocorra, que o ilícito se perfaça.

Até porque a pessoa discriminada pode não querer a indenização, e sim participar, como qualquer outra pessoa, do carnaval. Não podemos nos arvorar na condição de árbitros de escolhas alheias. As pessoas podem preferir – e várias preferem – não ser discriminadas, não passar por situações degradantes, ao invés de receber, por elas, uma indenização no futuro.

Guimarães Rosa escreveu que não convém fazer escândalo de começo. Só aos poucos que o escuro é claro. Não nos cabe super-dimensionar as mudanças do novo Código Civil, como se fossem a reinvenção da roda, nem nos cabe, no extremo oposto, advogar uma postura niilista, argumentando que nada se salva. Nem lá nem cá. A virtude, como sempre, está no meio.

E o meio, nesse caso, é buscar extrair, das leis civis, as potencialidades de uma realização privilegiada da dignidade. Não em discurso, não de forma puramente retórica, mas em cada caso concreto, em cada hipótese de ponderação de bens e valores.

Vivemos dias complexos. E o direito civil tem uma função importante na construção de um sentido para essa complexidade. Um sentido mais humano, um sentido que privilegie a dignidade concreta de cada ser humano, um direito que oriente seus esforços para resolver, de fato, os problemas humanos, e não perca tempo em jogos conceituais.

Nós somos acusados de ser conservadores - e falo aqui dos civilistas -, e essa é uma crítica, em grande parte, verdadeira. Só que esse conservadorismo, esse apego desmesurado à tradição, não nos pode tornar insensíveis às desigualdades, não pode fazer com que esqueçamos que a Constituição impôs uma dimensão material, substantiva, às nossas

(12)

tarefas, e não apenas um papel de reproduzir, no presente, estruturas do passado.

Superamos as castas, mas será que superamos mesmo? Há pouco tempo tive acesso a um estudo que informava uma hipotética jovem analfabeta, desempregada, morando no nordeste rural do país, tem 98,9% de probabilidade de continuar pobre.

Se a Constituição impõe ao Estado e à sociedade o compromisso de erradicar a pobreza e as desigualdades regionais, como pretender manter o direito civil imune a tudo isso?

É certo que, para avançar, somos levados a abandonar nossa tradição de passividade, de meros legitimadores do atual estado de coisas. O jurista sempre foi o Tabelião da História, como anotou, com fina ironia, um escritor. Por quê? Porque se limitava a reproduzir em suas lições, com muito atraso, velhas novidades, e sempre com má-vontade.

É preciso repensar essa função clássica. Será que não podemos assumir a vanguarda de certas mudanças? Será que a função civilizatória do direito não implica uma mudança de postura de seus intérpretes? Será que a história nos reservou, de maneira determinista, o papel de eternos coadjuvantes passivos nas transformações sociais?

Não se trata de defender funções milagrosas para o direito, como se ele pudesse, num passe de mágica, transformar a terra num paraíso.

Sabemos que não é assim. Porém, nem por isso podemos incidir no erro oposto de enxergar na ordem jurídica uma função puramente legitimadora do atual estado de coisas. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Como disse certa vez um escritor inglês, o sujeito pessimista reclama dos ventos, o otimista espera que eles mudem, e o realista ajusta as velas. Ajustemos as velas do direito aos novos tempos, e conseguiremos, quem sabe, um direito mais próximo das pessoas, de suas angústias e de seus problemas.

Referências

Documentos relacionados

- Método gráfico: correção de exercícios Casos especiais em Programação Linear - Resolução de problemas de Programação Linear através do algoritmo SIMPLEX

Não existe nenhuma “Realidade Quântica” concreta, os objetos e suas propriedades não têm valores definidos (não existem!) antes de serem medidos. • O ato de medir cria

Como parte de uma composição musi- cal integral, o recorte pode ser feito de modo a ser reconheci- do como parte da composição (por exemplo, quando a trilha apresenta um intérprete

Finally,  we  can  conclude  several  findings  from  our  research.  First,  productivity  is  the  most  important  determinant  for  internationalization  that 

O objetivo do curso é promover conhecimentos sobre as técnicas de gerenciamento de projetos, melhorando assim a qualidade do planejamento e controle de obras, visando proporcionar

Como já destacado anteriormente, o campus Viamão (campus da última fase de expansão da instituição), possui o mesmo número de grupos de pesquisa que alguns dos campi

O candidato e seu responsável legalmente investido (no caso de candidato menor de 18 (dezoito) anos não emancipado), são os ÚNICOS responsáveis pelo correto

a assistência de enfermagem durante um evento de PCRC,devido a predominância de mortes vinculadas ao tema em setores intensivos de saúde, sendo realizada com 10 enfermeiros,