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[Tópicos especiais de filosofia da religião] A VERDADE DO SER NO PENSAMENTO DE PARMÊNIDES E HERÁCLITO, O MITO E O DIVINO.

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[Tópicos especiais de filosofia da religião]

Texto 1

A VERDADE DO SER NO PENSAMENTO DE PARMÊNIDES E HERÁCLITO, O MITO E O DIVINO.

O escopo do nosso curso é abrir um caminho de compreensão da presença do divino e do mythos no pensamento de Parmênides e Heráclito, a partir da verdade do ser como alétheia e como lógos.

Em vista disso, nos propomos:

✓ Realizar uma interpretação do poema de Parmênides desde o fio condutor da

(alétheia), desencobrimento, e da (léthe), encobrimento.

✓ Perceber os sentidos da patência e a latência do (mythos) e do divino no poema.

✓ Realizar uma interpretação dos fragmentos de Heráclito a partir da verdade do ser como (phýsis)/(lógos).

✓ Perceber os sentidos da patência e latência do (mythos) e do divino nos fragmentos de Heráclito.

✓ Meditar sobre o esquecimento da verdade do ser e a fuga dos deuses no ocidente à luz da experiência poética de Hölderlin.

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1. A VERDADE DO SER NO POEMA DE PARMÊNIDES, A PATÊNCIA E A LATÊNCIA DO MITO E DO DIVINO NO POEMA.

De cara, uma difícil questão nos afronta: o que é a verdade? A pergunta diz respeito à essência da verdade. Essência da verdade e verdade da essência: dois lados da mesma questão, que nos conduz ao cerne do pensamento que se chama de filosofia.

Conduz-nos ao tema: verdade e ser.

1.1. SER E VERDADE

De há muito, a filosofia está correlacionada com a verdade e com o ser (a realidade do real). Assim, Aristóteles indica que o ser se diz em muitos modos, isto é, torna-se fenômeno, vem à fala, deixa-se mostrar na linguagem, de modo multifário1. Mais precisamente, segundo Aristóteles, quádruplo é este modo: o ser se deixa dizer ora (1) segundo a figura das categorias2; ora (2) como ser por acidente (concomitante ou casual)3; ora (3) como ser em potência (possibilidade real de ser) e ser em ato (plena realidade, atualidade, ser atual)4; (4) ora como ser-verdadeiro5. O ser como ser- verdadeiro, isto é, como verdade, diz respeito ao real (ente) – é um caráter de encontro do real (ente): seu ser descoberto. Acontece, porém, que este caráter de ser descoberto não se refere ao real como tal, mas sim ao real enquanto está aí, se deixa encontrar, doando-se a um perceber, a um apreender descobridor. O ser-verdadeiro é a realidade

1  (Tò ón légetai pollakhṓs): Metafísica, VII, 1, 1028a 10.

2  (Tò ón katà tà skhḗmata tōn katêgoriṓn): Metafísica IX, 10, 1051a 34s.

3 (Ón katà symbebēkós): Metafísica VI, 2, 1026a 34.

4  (Ón dynámei kaì enérgeia): Metafísica VI, 2, 1026a 34. O livro IX trata deste significado do ser.

5 (Ón hōs alēthés): Metafísica VI, 2, 1026a 34.

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do real enquanto aí, presente para um captar. É um caráter do ser enquanto se deixa encontrar, enquanto vem ao desencobrimento, à descoberta.

Desde os primórdios do pensamento ocidental, ser e verdade encontram-se relacionados de modo íntimo, intrínseco. Tão íntimo, tão intrínseco, que mostra-se como uma identidade. Assim, para Heráclito, a (phýsis) já é, em si mesma,

(alḗtheia) – o ser já é, em si mesmo, verdade6. No mesmo sentido, isto é, da identidade de ser e verdade, vai a sentença de Parmênides:

(tò gàr autò noeín estín te kaì eínai) – “pois o mesmo é o pensar (o perceber, o compreender que percebe o ser) e o ser” (frag, 3).

O pensar não está fora e diante do ser. O pensar é. O pensar é o acontecer da automanifestação e autoiluminação do ser. É a realidade do real abrindo-se e clareando- se. O ser, por sua vez, é o ser do pensar, isto é, é o seu elemento, o meio que o permeia e envolve, sua condição de possibilidade. O ser é o que provoca o pensamento a pensar, é a sua coisa, a sua causa, a sua fonte, a sua raiz. É nessa co-pertença, nesta identidade, de pensar e ser, que acontece a verdade, a vigência do ser-verdadeiro.

Essa vigência diz respeito tanto ao real em seu ser manifestador, encontrável, descobrível, assimilável ao compreender perceptivo (o pensar), quanto a este mesmo compreender que encontra, percebe, apreende, capta, descobre. Enquanto tal vigência, a verdade não é o produto ou o resultado do conhecimento, mas é, antes, a sua condição de possibilidade. Trata-se, aqui, portanto, da verdade em sentido transcendental- ontológico. Não da verdade em sentido corrente, isto é, positivo-objetivo, ôntico, pensada a partir da correção do conhecimento ou da adequação entre o pensar/dizer e as coisas, estados de coisas, fatos.

Aristóteles entendeu que a filosofia, desde os seus primórdios, quando esta irrompeu entre os antigos, era “uma ciência da verdade”7. Dizer que a filosofia é uma

6 Por ora, isso é apenas uma tese a ser demonstrada. Dois fragmentos nos conduzem para a proximidade desta questão – o fragmento 16 que diz: (tò mḕ dýnon pote pōs án tis láthoi?) [Como alguém poderia manter-se encoberto face ao que nunca se deita?]; e o fragmento 123 que sentencia: (phýsis krýptesthai phileí) [Surgimento já tende ao encobrimento]. Cf. Heidegger, M. “Aletheia” (Heráclito, fragmento 16). In: “Ensaios e Conferências”.

Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / Edusf, 2001, p. 227-249.

7 (Epistḗmē tēs alḗtheías): Metafísica, II, 1, 993b 20.

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ciência da verdade, aqui, é mais do que dizer que é uma ciência do verdadeiro. Toda a ciência, todo o conhecimento, enquanto tal, é do verdadeiro. A não ser que seja pretensa ciência ou pretenso conhecimento. A filosofia não é simplesmente a ciência do verdadeiro; é, mais propriamente, uma ciência do ser-verdadeiro, ou seja, da verdade, enquanto o que torna possível o verdadeiro enquanto verdadeiro. O ser verdadeiro, por sua vez, pertence ao ser. A filosofia é, fundamentalmente, uma ciência do ser, uma ciência ontológica: uma ciência que considera o ente enquanto ente, quer dizer, o ente no tocante ao seu ser – o real na perspectiva da realidade8. O genitivo (de...), aqui, não é apenas objetivo, mas é também e antes de tudo subjetivo – se nos é permitido exprimir em termos de objeto e sujeito neste contexto. Isto é, o ser-verdadeiro, a verdade, o ser, não é apenas tema (objeto) dessa ciência, desse saber, mas também e, na verdade, antes de tudo, o fundamento (sujeito) dela.

É por isso que Aristóteles diz que os antigos foram conduzidos pela coisa mesma, pelo real em sua realidade, ou seja, diz que as coisas com que os pensadores antigos lidavam no exercício do pensar lhes abriram caminhos e que elas os obrigaram a seguir por estes caminhos em seu buscar, questionar, investigar9. A filosofia, portanto, enquanto ciência da verdade, é não somente onto-logia, mas também fenomeno-logia:

uma investigação que se deixa guiar pela necessidade das coisas mesmas em suas evidências. Neste sentido, é que Aristóteles caracteriza a investigação de um dos antigos, Parmênides, dizendo que ele foi obrigado a seguir aquilo que veio à luz, isto é, que se mostrou em si mesmo, os fenômenos10. Diz também que eles, os antigos, investigavam pressionados pela verdade11. Enfim, filosofia não é doutrina, a modo de construção solta no ar, desvinculada do confronto originário com o real, com as realizações e com a realidade, mas é, antes, exercício fático que brota, emerge, da faticidade mesma da vida, do abismo de possibilidades que esta encaminha. Filosofia é filosofar, e, a bem dizer, filosofar na esfera da verdade – ou seja, no âmbito de abertura

8 ( Epistḗmē hē theōreí tò ón hē ón): Metafísica, IV, 1, 1003a 21.

9 (Autò tò prágma hōdopoíēsen autois kaì synēnánkase zēteín): Metafísica I, 3, 984a 18s.

10 ... ... (anankazómenos d’akoloutheín toís phainoménois): Metafísica, I, 986b 31.

11 ...  (hyp’autês tes aletheías... anankazómenoi):

Metafísica, I, 984b 10.

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do descobrimento do real, do desvendamento das realizações, do desvelamento da realidade12.

A verdade, aqui, identifica-se com o ser. É a coisa mesma, é o fenômeno: o que se mostra em si mesmo. E, no entanto, a verdade, enquanto auto-mostração do ser, requer o pensar, a captação, apreensão e compreensão do ser em sua auto-mostração13. A compreensão do ser, porém, não se dá fora e em frente ao ser. A compreensão do ser se dá no meio do ser mesmo, como autoabertura do ser, no ser de um ente, a saber, aquele no qual o pensar se instaura de modo decisivo: nós mesmos. A identidade, no sentido de copertença de ser e pensar, em que o pensar mesmo está sob a égide do ser, é o ponto de salto para dentro de um modo de ser e de saber-se humano, que, em Ser e Tempo, se chama Dasein: presença, no sentido da abertura em que se dá o aí (da) para o ser (sein)14; em que se constitui o círculo da proximidade e da patência do ser, de sua manifestatividade. É neste círculo que os entes podem se manifestar naquilo que eles são15. Neste círculo, o ente no todo se manifesta e vem a si enquanto tal16.

12 (Philosopheín perì tēs alētheías): Metafísica, I, 3, 983b 2.

13 Cf. Ser e Tempo, §44.

14 Em latim, Dasein se traduziria por adesse (adsum, ades, adesse, adfui) – verbo intransitivo, que significa:

estar perto, estar presente, estar entre ou junto de.

15 A palavra “Dasein”, que costumeiramente quer dizer présence (presença), não quer dizer um “être-là”

(ser-aí) no sentido de uma “indicação de lugar para um ente”, “mas deve nomear a abertura (Offenheit), na qual o ente pode ser presente para os homens, na qual também ele pode ser presente para si mesmo”

(Heidegger, M. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) - Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt am Main:

Vittorio Klostermann, 1994, p. 300).

16 A propósito disso é evocada a sentença de Aristóteles que diz: a alma – quer dizer, a alma intelectiva do homem, é, de certo modo, todo o ente. É constitutivo do ser do homem descobrir todo o ente, pela , a percepção, e pela , a intelecção. Assim, todo o ente, à medida que pode ser inteligido, conhecido intelectivamente, pode se tornar um conteúdo da intelecção, da “nóesis”, ou seja, pode se tornar um “nóema”. Esta tese remonta, de certa maneira, à tese ontológica de Parmênides, que diz: - pois o mesmo é pensar e ser. Pode-se dizer:

o verdadeiro é a identidade de pensar e ser. Identidade significa, aqui, coincidência. O pensar coincide com o ser. Em sua abertura potencial, a alma intelectiva humana, recobre toda a envergadura do ser, toda a envergadura do sentido. Isto possibilita a Tomás de Aquino encarar a alma intelectiva humana como um ente privilegiado, a saber, como o “ens quod natum est convenire cum omni ente”, o ente ao qual é nato o convir, isto é, o convergir com todo o ente (De veritate, qu. 1, art. 1 c). É antes de tudo neste sentido que o homem é, como dizia os medievais, um “minor mundus”, um “microcosmo”. Em Ser e Tempo, Heidegger usará o nome “Dasein”, ser-o-aí-do-ser, para nomear esta abertura transcendental do pensamento ou do conhecimento que potencialmente recobre todo o ente, isto é, não só todo o modo específico de um ente, mas também toda a envergadura do sentido de ser do que quer que seja. Afirmar, porém, este privilégio do pensamento de coincidir com tudo o que, de alguma maneira está sendo, com toda a envergadura do sentido de ser, não quer dizer proceder a uma má subjetivação da totalidade do ente.

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A verdade é o fundamento do verdadeiro, tanto do verdadeiro do ente em seu caráter de ser manifestador, referido ao conhecimento, isto é, em seu ser encontrável e descobrível, assimilável ao conhecimento, quanto do verdadeiro do conhecimento, em seu caráter de ser apreensivo e receptivo, em seu poder encontrar o que se doa na intuição, tanto sensível quanto categorial, tanto individual como específica, e em seu poder dar uma formação intencional a isso que ele encontra, descobre, abre ou desvela, no enunciado. Pode-se falar, assim, com os medievais, de uma “veritas in re” e de uma

“veritas in intellectus”. O verdadeiro no intelecto, porém, se dá em dois outros níveis, no nível da “simplex apprehensio”, simples apreensão, o ver simples, e no nível da

“propositio”, a verdade do enunciado, obra do “intellectus componente et dividente”.

Temos, assim, uma verdade pré-predicativa e uma verdade predicativa.

A definição tradicional de verdade, formulada na idade média, por sua vez, remete, por rodeios, à sua origem na grecidade17. De imediato a noção de “adaequatio”, também entendida como “correspondentia” ou “convenientia”, a saber, de intelecto e coisa, do conhecimento com o real, remete à noção de homōíosis) de Aristóteles, presente no De interpretatione I (16a 6s)18. As coisas escritas -

(tà graphómena) – mostram as vozes articuladas na verbalização –

 (tà en te phoné). Estas, por sua vez, mostram as afecções da alma –

(pathémata tes psychés). Estas afecções (Erleidnisse) da alma,

em termos de fenomenologia da consciência, poder ser ditas como as “vivências”

(Erlebnisse), sendo que estas são tomadas em sentido intencional, isto é, como estruturas noético-noemáticas. (tà pathémata), neste caso, coincide com (noémata): o múltiplo pensado do pensar. Destas afecções na alma se diz que são (homoiómata) – semelhanças das coisas - (prágmata).

São, em certo sentido, apresentações adequadoras (angleichende Darstellungen) das coisas19. Os pensamentos (no sentido do pensado) são (homoiómata) das coisas, apresentações adequadoras, no sentido de dar a conhecer, isto é, mostrar as coisas tal como elas são. Entre os pensamentos e as coisas não há uma igualdade em

17 Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20).

Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 73.

18 Cf. Aristóteles. Da Interpretação (Edição Bilingue). São Paulo: Unesp, 2013, p.

19 Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 244 ( A caminho da linguagem.

Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2003, p. 194).

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espécie. No entanto, os pensamentos são apresentações adequadoras das coisas, à medida que eles as dão a conhecer assim como elas são. “Qualquer conhecimento deve

‘dar’ a coisa assim como ela é”20. A homōíosis), adequação ou concordância, quer dizer este “assim como” que se estabelece entre os pensamentos (o pensado) e as coisas, entre intellectus e res.

Assim, o que se dá no comportamento ou relacionamento intencional da consciência, no perceber ou cogitar, as cogitationes no sentido (noemático) do cogitatum, dito ainda de outro modo, os pensamentos – (tà pathémata) – enquanto (noémata), são (homoiómata) das coisas, isto é, apresentações que mostram as coisas tal como elas são, naturalmente, à medida que eles dão a conhecer as coisas, quer dizer, à medida que acontecem no evento do conhecimento. Eles são ditos (homoiómata) à medida que têm adequação com as coisas. (tà homoiómata) diz, pois, o que é adequado, o que tem adequação - (homōíos échei) – com as coisas21. Mas, em que sentido entender a adequação aqui como na dinâmica do mostrar? Resposta: no sentido de um

“assim-como”. Quer dizer: o pensar deixa encontrar o ente que vem ao encontro assim como ele é. Isso, por sua vez, diz: o perceber (intelectivo) deixa encontrar o percebido, o ente mesmo, tal como este é. Não se trata, aqui, de uma adequação do psíquico com o físico, nem se trata de imagens.

O que está em questão aqui é a experiência do conhecimento no sentido da mostração ou atestação (Ausweisgung) e da confirmação (Bewährung). Vamos supor que eu diga a um amigo meu que mora no exterior: “em Brasília há muitos Ipês floridos em agosto”. Ele vem me visitar num mês de agosto e verifica, pela percepção in loco, que este enunciado é verdadeiro. Dá-se-lhe a confirmação: verdadeiramente, isto é, de fato, “em Brasília há muitos Ipês floridos no mês de agosto”. O que se visava no enunciado – este estado de coisas – é o mesmo que se dá a perceber naquela percepção.

“O enunciado é um ser para a própria coisa que é” (Das Aussagen ist ein Sein zum seienden Ding selbst)22. Neste caso, na confirmação, mostra-se, atesta-se, o ser-

20 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 286.

21 Cf. Heidegger, Martin. Logik: die Frage nach der Wahrheit (Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 167.

22 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 288.

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descobridor do enunciado. Importante, aqui, é a realização da mostração ou atestação (Ausweisungsvollzug). Nela, “o próprio ente visado mostra-se assim como ele é em si mesmo, ou seja, que, em si mesmo, ele é assim como se mostra e descobre sendo no enunciado”23. Na confirmação (Bewährung) o que se visa é o ente em si mesmo, não uma representação do ente. “Confirmação significa: que o ente se mostra a si mesmo”24. No conhecimento, o enunciado alcança confirmação. O conhecimento é um comportamento intencional, isto é, um dirigir-se para, um orientar-se para algo, que se tem em mira. O conhecimento, como comportamento intencional, se dirige ao ente mesmo e não a uma representação sua25. Ele visa o ente mesmo e não a conteúdos de consciência. O conhecimento é, pois, um relacionamento de ser para com o ser do ente.

“Enquanto enunciado e confirmação, o conhecimento é, segundo seu sentido ontológico, um ser que, descobrindo, realiza seu ser para o próprio ente real”26. O conhecer se realiza, assim, como um ser-descobridor que visa o ser do ente real. O ser- descobridor (entdeckend-sein) constitui o ser-verdadeiro (a verdade) do enunciado. “O enunciado é verdadeiro significa: ele descobre o em ente em si mesmo”27.

O ser do enunciado consiste em poder mostrar o ser do ente em si mesmo. O relacionamento intencional entre (tà pathémata), respectivamente,

(tà noémata), e (tà prágmata) se resume neste ser- descobridor. No enunciado, este relacionamento há de ser compreendido a partir da dinâmica do falar como dizer, no sentido de mostrar, do (légein) como

(hermeneúein), interpretar, no sentido de trazer e expor a mensagem, abrir e dar anúncio, dar a conhecer28. Daí segue que um estudo a respeito de e na esfera do enunciado – do (lógos) – deva se chamar (De interpretatione).

O (lógos), o enunciado, tem a função precípua de um

apophaínesthai): deixar e fazer ver aquilo mesmo sobre o que discorre, a partir daquilo mesmo sobre o que discorre. O enunciar é compreendido, aqui, a partir

23 Ibidem (grifos de Heidegger).

24 Idem, p. 289.

25 Cf. Heidegger, Martin. Logik: die Frage nach der Wahrheit (Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 100.

26 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 289.

27 Ibidem (grifo de Heidegger).

28 Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 121-122 A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2003, p. 96.

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do dizer e o dizer a partir do mostrar, como um tornar acessível aquilo sobre o que discorre. Discorrer é discorrer sobre alguma coisa. Esta é sua estrutura intencional. O

 (lógos) enquanto(apóphansis), isto é, enquanto mostração, revelação, é expor alguma coisa de alguma coisa. Nele se cumpre um

(aletheúein), um ser-revelador, um ser-desvelante. “O ‘ser verdadeiro do

 (lógos) enquanto (aletheúein) diz: retirar de seu velamento o ente sobre que se fala no (légein) como apophaínesthai) e deixar e fazer ver o ente como algo desvelado (alethés), em suma, des-cobrir”29.

Enquanto apophaínesthai) o (lógos) expõe o expõe o

(phainómenon): o vir à luz do que irrompe, emerge, aparece.

(phainómenon) remete a  (phaínesthai) – o vir à luz, desde si mesmo, em si mesmo, por si mesmo; o que remete a (phós), luz, tanto no sentido de claridade, quanto no sentido de fonte de claridade30. A claridade é o elemento no qual tudo aparece. Aparecer significa tanto brilhar, resplandecer, quanto manifestar-se, evidência enquanto manifestação, aparecimento fenomenal, que tem o seu próprio lógos, isto é, sua própria articulação de sentido, um modo de reunir-se e de expor-se, enfim, a sua própria fenomeno-logia.

Portanto, ser verdadeiro quer dizer ser descobridor. Isto quer dizer:

O ser-verdadeiro do (lógos) enquanto

(apóphansis) é (aletheúein), no modo do (apophaínesthai): deixar e fazer ver (descoberta) o ente em seu desencobrimento, retirando-o do encobrimento. A (alétheia), identificada por Aristóteles nas passagens supracitadas como (prágma), (phainómena), indica “as coisas elas mesmas”, o que se mostra, o ente na modalidade de sua descoberta. Será por acaso que num dos fragmentos de Heráclito31, que constituem os

29 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 72.

30 Cf. Idem, p. 67.

31 Trata-se do fragmento 1:

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ensinamentos mais antigos da filosofia em que o

(lógos) é tratado expressamente, o fenômeno da verdade acima apresentado transpareça no sentido de descoberta (desencobrimento)? Contrapõem-se ao

(lógos) e a quem o diz e compreende aqueles que não compreendem. O (lógos) é

(phrázōn hókōs ékhei), ele diz como o ente se comporta. Para aqueles que não compreendem, porém, (lanthánei), o que eles fazem

permanece encoberto:

(epilanthánontai), eles esquecem, isto é, o ente se lhes encobre novamente. Pertence, pois, ao

(lógos) o desencobrimento, (a-létheia).

A tradução pela palavra verdade e, sobretudo, as determinações teóricas de seu conceito encobrem o sentido daquilo que os gregos, numa compreensão pré- filosófica, estabeleceram como fundamento “evidente”

do uso terminológico de (alétheia)32.

Verdade significa, pois, aqui, ser-descobridor e ser-descoberto. O humano no homem é aquela presença em que se dá a presentificação de ser e não ser, bem como de ser descoberto e de não ser descoberto. O fenômeno, a revelação do ser, vem à luz, no descobrimento, como desencobrimento e encobrimento. Essa presença é, pois, abertura. Com esta abertura e por ela é que se dá descoberta. Essa presença, portanto, é e está na “verdade”, na medida em que exerce o seu ser-descobridor. Do contrário, é e está na não verdade, na medida em que, em vez de abrir, ela fecha o acesso às coisas mesmas; em vez de descobrir, ela encobre, veda, venda, distorce os fenômenos.

“Com o lógos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com este Logos e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo a cabo, discernindo e dilucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros, porém, lhe fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono”.

Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Os pensadores originários. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 59.

32 Heidegger, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 290.

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Somente na luta contra a aparência e a distorção é que se dá a descoberta. A verdade é sempre um dom e uma tarefa. Enquanto é um dom ela se oferece. Enquanto uma tarefa, ela precisa ser conquistada, sim, arrancada, retirada, roubada do encobrimento. É o que indica o alfa privativo, o da (alétheia).

Nós procuraremos partir da verdade do ser – e de esta como se apresenta no pensamento de Parmênides e de Heráclito – para tentar um acesso ao modo como os gregos experimentaram o divino. A relação entre o (mýthos) e o (lógos) nos primórdios do pensamento grego será tematizada também a partir desse horizonte de compreensão e interpretação.

Referências

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