A N O M A L I A S I N D U Z I D A S D A P E R C E P Ç Ã O
N E L S O N P I R E S *
Até os leigos sabem que os fatores afetivos podem determinar erros
sensorials. Fatos correntes encontradiços em todas as regiões
do-cumentam a chamada crendice popular — o homem que, à noite, no
cemitério, foi perseguido pelo fogo fátuo e por vozes; o cavaleiro que,
à noite, teve sua montada "empacada" por algo que só o cavalo ou
ambos, cavalo e cavaleiro viam ou pressentiam, as casas mal-assombradas,
etc. são de todos os tempos e lugares.
As alterações da percepção, or
ãtêm explicação banalíssima — a
catatimia — ora desafiam toda classe de interpretação (Quercy,
Mo-nakow e Mourgue, Henry E y ) . Principalmente as alucinações visuais
mostram-se dificilmente acessíveis ao estudo: inúmeras vezes não
conse-guimos apurar se há realmente "percepção sem objeto" ou se há
inter-pretação delirante, ilusão, falsificação da memória ou se falamos de
mundo diverso, do mundo em que vive o doente (alucinações nas
es-quizofrenias,. Enfim, duvida-se mesmo que, fora das desordens mentais
nítidas, existam alucinações visuais.
Jaspers procurou obviar algumas dessas dificuldades e estabeleceu
umas quantas caraterísticas das percepções. Visava principalmente
distingui-las das representações. Para Jaspers, as percepções se
cara-terizam por terem o caráter de corporeidade e de objetividade;
aparece-rem no espaço exterior objetivo; teaparece-rem contorno determinado, seaparece-rem
completas e nos apresentarem todos os detalhes; terem plena vlvacidade
sensorial os elementos particulares da sensação (por exemplo, as cores
brilham) ; serem constantes e poderem conservar facilmente a mesma
forma; serem independentes da vontade, não podendo ser criadas à
von-tade nem mudadas; aceitamo-las com sentimento de passividade. Por
outro lado, as representações têm o caráter de imagem, de subjetividade;
aparecem no espaço interno subjetivo; têm contornos indeterminados,
são incompletas e com detalhes isolados; certos elementos podem ser
idequados aos elementos da percepção, mas a maior parte são
inade-quados (por exemplo, tudo é cinzento) ; as representações se
"epar-T r a b a l h o e n t r e g u e p a r a p u b l i c a ç ã o e m 6 m a r ç o 1947.
pillent", "escoam" e devem ser criadas de novo; as representações
dependem da vontade, podem ser criadas e transformadas à vontade;
produzkno-las com sentimento de atividade.
Coligimos duas observações que nos parecem merecer menção.
Per-tencem a uma categoria que poderíamos chamar "alucinações induzidas".
O fenômeno do contágio psíquico é banal, mas em uma das observações
as conseqüências já não foram tão banais. No último caso, é de relevo
a vivacidade sensorial da alucinação em ambos os pacientes. Este
cara-terístico foi por Jaspers chamado de "frescor sensorial". Há
seme-lhanças com os célebres exemplos de Kandinsky e de Johannes Muller.
N u m a prisão militar, e m 1936, e x i s t i a m vários o f i c i a i s , presos políticos, entre o s quais 3 comunistas. D e l e s , u m apresentava típicos traços paranóicos que s u
p u s e m o s constitucionais e, portanto, f i x o s : a tudo o que ocorria o oficial e m -prestava u m sentido de p e r s e g u i ç ã o — o d i á l o g o mais trivial continha " ciladas e t e s t e s " ; a sua c r e n ç a espírita era, a seu ver, prova de sua incompatibilidade c o m o f a s c i s m o ; os e m p r e g a d o s da prisão e r a m espiões l á colocados para delatarem o que o u v i a m ; olhares dos oficiais e m s e r v i ç o tinham significados de advertência. A o lado d e sua c o n v i c ç ã o doutrinária, ostentava p a r a d o x a l m e n t e g r a n d e o r g u l h o de seu tronco o r i g i n á r i o , de sua l i n h a g e m ilustre, sua capacidade mental e p r o -fissional.
Certa noite na prisão ocorreu-lhe que, n o f o r r o da casa, e m pleno recinto militar, " o u v i r a ruídos, c o m o se a l g u é m d e s u s a s s e c a u t e l o s a m e n t e " . A f i r m o u t r a -tar-se de i n v e s t i g a d o r e s da polícia civil. D e v e - s e notar que na prisão militar
(fortaleza de Sta. C r u z ) n ã o interferia a polícia c i v i l ; tratava-se de a s s u n t o sobre o qual os militares s ã o e x t r e m a m e n t e ciosos — a autonomia da autoridade militar. O u v i n d o as suspeitas d o companheiro, o fato foi, n o dia imediato, discutido à m e s a do a l m o ç o . C o n t e s t a r a m n o e m g e r a l : n ã o era admissível que a e s p i o n a g e m p o licial, onipresente n o país inteiro naquela época, se h o u v e s s e estendido até a f o r taleza e sobretudo utilizado a tática n o v e l e s c a de ouvir, do f o r r o da prisão, c o n v e r s a s de 3 militares, j á presos por m o t i v o s políticos. S e r i a m a i s simples a a d o ção de outro m é t o d o , e n t ã o e m plena v o g a — o i n t e r r o g a t ó r i o direto dos a c u s a -dos e, se n e c e s s á r i o f o s s e , a tortura.
N o i t e s s e g u i d a s , os oficiais se punham de sobreaviso. N u m a delas, a l g u n s aceitaram c o m o reais os " n í t i d o s ruídos de d e s l i s a m e n t o " n o f o r r o da prisão. Sobressaltados, o s militares cercaram a casa, a l ç a r a m - s e a o í ô r r o , d e v a s s a r a m - n o e m todas as direções e n e m siquer v i s l u m b r a r a m v e s t í g i o s de corpos o u partes de corpos h u m a n o s , na poeira ali amontoada. R e n o v a r a m s e os ruídos e m certas o c a s i õ e s e, afinal, os presos l e v a r a m o fato a o conhecimento do comandante da f o r -taleza que, pessoalmente, " f o i resolver o fato c o m seus a m i g o s da polícia c i v i l " . A l g u n s o f i c i a i s c o n t e s t a v a m fracamente a realidade do fato. A l g u n s dos m a i s crédulos — j u s t a m e n t e o s que mais t e m i a m as i n v e s t i g a ç õ e s policiais — p e r m a -n e c e r a m c o -n v i c t o s a t é a -noite crítica da devassa, qua-ndo e-ntão se co-nve-nceram da i n e x a t i d ã o d o que " o u v i r a m " . A p ó s a intervenção do comandante, desapare-ceu e m todos ( n o paranóico apenas abalou-se u m tanto a c o n v i c ç ã o ) , a crença d e e s t a r e m sendo espionados.
S o u b e m o s m a i s tarde p e l o próprio comandante da prisão que n ã o fora tomada providência a l g u m a na polícia, que o próprio comandante n ã o as pedira porque sabia impossível a ingerência da polícia na fortaleza. P r o m e t e r a intervir para
O mais curioso é que o pivot do episodio, o paranóico típico, 4
anos após a absolvição e liberdade, foi por nós abordado. Quase não o
reconhecíamos do ponto de vista oaracterológico: eufórico, animoso,
ri-sonho, afetuoso, negligente nas precauções, desmentía que a "personor
Udade fosse predisposta às reações paranóicas". Tratava-se dum
sin-tónico de estrutura corporal pícnica com a caracterología também comum
ao pícnico. Não era de presumir que tal personalidade pudesse ser
protagonista duma reação paranóica, a não ser aceitando o que nos
en-sina Specht quando estabelece nexos entre paranóia e círculo
maníaco-depressivo. Ao menos neste caso, o pícnico tinha tal afinidade
para-nóica.
Temos outro exemplo documentado pelas próprias declarações dos
observados. Trata-se duma "alucinação induzida reciprocamente" em
dois estudantes. Não pudemos completar o estudo do episódio
aluci-natório com o estudo da personalidade dos observados, porque um deles
(mais induzido que indutor) esquivou-se a solicitações reiteradas de
comparecimiento ao exame. Motivos de discreção também impedem
maiores relatos sobre a personalidade do indutor. Pode-se afirmar,
en-tretanto, tratar-se dum indivíduo com eretismo emotivo.
O interesse da observação cinge-se à nitidez sensorial das alucinações
\ i suais, à indução mais ou menos perfeita delas ao lado da ausência de
psicose. Os depoimentos de ambos foram obtidos com semanas de
diferença. Sabe-se quanta deformação sofrem os testemunhos nestas
condições. Apesar disso, é curioso o confronto. Para exato estudo
parece-nos preferível a comparação pari-passu entre os dois relatos.
" N a madrugada de 4 de n o v e m b r o de 1945, e s t a n d o a estudar questões r e -lativas a o câncer, fui convidado para u m a refeição por u m c o l e g a de p e n s ã o , n o quarto do qual c o n v e r s a m o s sobre os mais variados assuntos, principalmente sobre política, assunto na o r d e m do dia. A noite era clara e muito quente. N a natureza tudo era quietude e silêncio. F a l a m o s da a l m a e suas c o r r e l a ç õ e s c o m o espírito, da inteligência, da m e m ó r i a e do raciocínio. N u m dado instante, f o m o s surpreen-didos pela p a s s a g e m de n u m e r o s o s transeuntes que, apressados, buscavam, por certo, os seus lares. Contrastando c o m os primeiros, u m outro m a r c h a v a e m " câ-mara l e n t a " , diante do portão principal do edifício, que fica na e x t r e m i d a d e de u m a reta de 30 metros tirada da porta do quarto do m e u colega. N e s s e m o m e n t o , repetidas v e z e s g r i t e i - l h e bem alto que " p o d i a entrar, pois o p o r t ã o estava a b e r t o " , s e m obter a m e n o r resposta. Sei que t r a j a v a - s e de branco, que estava penteado, que usava sapato preto, que a g r a v a t a n ã o e s t a v a bem apertada ao colarinho, que o pano da roupa dava a impressão de ser brim e de que estva, na e x p r e s s ã o p o -pular, " e n x o v a l h a d a ".
entercssc. T a l quadro e a perspectiva de que poderia ser " a l g u é m do o u t r o m u n i o " aterrorizou horrivelmente n o s s o colega.
Depois nos retiramos j a r a o interior d o quarto, onde apanhamos mais uni pouco de nossa refeição, e voltamos à porta, onde continuávamos a conversar à procura duma e x p l i c a ç ã o para o sucedido. N u m dado m o m e n t o , observei forte e estranha luminosidade na metade inferior d o portão e, n o h e m i - p o r t ã o direito, sur-g i u um lenço de laquê branco acenando v i v a m e n t e para nós. A o lado disso, uma faixa vermelha, c o m o se f ô : a um tubo de " N e o n " , fazia m o v i m e n t o s de v a i - e - v e m entre a trave inferior d o p o r t ã o e o batente de m á r m o r e . T e n d o eu observado isso primeiro, chamei a a t e n ç ã o de m e u c o l e g a e perguntei-lhe se êle via a l g u m a cousa de estranho no portão. Reçpondeu-me afirmativamente, d e s c r e v e n d o o que via, o que coincidiu c o m o acima descrito. A perspectiva de cousas extra-terrenas tinha c h e g a d o a o a u g e , quando, brandamente, este quadro desaparece e desenha-se, nitidamente, n o portão, um busto h u m a n o forte, de pele " b e m queimada pelo s o l " , em cuja face se destacava um riso s a r d ó n i c o que nos fazia arrepiar. A o lado disso, apresentava v i v a m o v i m e n t a ç ã o , c o m o se estivesse ao sabor das ondas. T e n d o permanecido por mais de um m i n u t o na nossa presença, tive t e m n o de mandar m e u colega buscar uma cadeira para trepar e verificar se, além do busto, tinha essa aparição mais a l g u m a cousa, pois, sendo o quarto de nível inferior à calçada, n ã o v i s u a l i z a m o s e m toda a sua e x t e n s ã o ; foi esclarecido, assim, que o m e s m o ( b u s t o ) n ã o se prolongava a l é m do que nosos o l h o s , antes, viram. Indaguei t a m b é m do c o l e g a se não se tratava da cúpula de um pé de c r ó t o a v e r m e -lhado que e x i s t i a na casa da frente, ao que êle respondeu negativamente. A o ter-minar estas i n t e r r o g a ç õ e s , o busto, de frente para n ó s , acenou c o m a m ã o e perdeuse pelo lado direito do portão. N e n h u m de nós dois procurou mais e x p l i c a -ções. Cada qual se dirigiu para o seu leito e procurou dormir. E r a m , precisa-mente. 3 horas da m a n h ã " .
" N o dia 3 de n o v e m b r o de 1945, c o m o de costume, iniciei os meus estudos às 21 horas. À s 24 h o r a s , a p r o x i m a d a m e n t e , estando um p o u c o fatigado, descansei u m pouco, reiniciando os estudos à 2 hora da manhã d o dia 4. E r a m mais ou m e n o s 2,45 quando, sentindo f o m e , fui até a o quarto d o A . , a fim de c h a m á - l o para c o m e r c o m i g o um pouco de pão c o m a ç ú c a r que tinha no m e u quarto. M e u quarto está situado bem e m frente d o portão de entrada d o qual dista a p r o x i m a -damente 20 metros. O quarto é iluminado por uma só lâmpada presa à parede, provida de u m quebra-luz de papel v e r m e l h o , projetando luz s o m e n t e sobre a minha m e s a de estudo. C o m o a lâmpada está sobre a parede e m que foi aberta a porta e c o m o esta, sendo composta de duas peças, um das quais, a do lado da lâmpada, eu mantinha sempre fechada, n ã o havia possibilidade da p r o j e ç ã o de sombras na parte externa. D e v i d o a ser m u i t o tarde, tanto as luzes da p e n s ã o c o m o a da c a s a vizinha e s t a v a m t o d a s apagadas. A s únicas l u z e s eram as da rua, as do quarto do A . e a do meu. O portão de entrada é fechado por uma g r a d e d e f e r r o que d e i x a na sua parte inferior um intervalo de uns 4 ou 5 centímetros.
postes de iluminação n o nariz do sujeito. E s t e vestia u m a roupa de fazenda bem clara, quase branca, camisa branca e g r a v a t a preta. E r a u m pouco m a g r o , e, c o m o s ó era visível a partir de um pouco acima do t o r n o z e l o , deduzi que êle devia estar entre os trilhos do bonde e o m e i o fio. O A . então g r i t o u : " ó , v o c ê aí, quê é que v o c ê quer? S e quiser a l g u m a c o u s a empurre o p o r t ã o e e n t r e " . E n -tão, o que parecia ser um h o m e m c o m e ç o u a desaparecer, n ã o c o m o t o d o s os fantasmas, isto é, volatilizando-se, mas enterrando-se, ao que m e parecia, verti-calmente, n o solo. F i c a m o s naturalmente um bocado intrigados c o m o acontecido, m a s nada c o m e n t a m o s . Comecei a c o m e r outro pedaço de pão e voltei à porta. N e s t e m o m e n t o , o A . m e c h a m o u a a t e n ç ã o para uma espécie de chama que corria sob o portão. P a r a se ter melhor idéia de c o m o era esta chama, comparei-a c o m uma lámpada fluorescente a o acender-se, sendo p o r é m de c ô r vermelha. A inter-valos regulares, desta chama se levantava uma outra c h a m a parecida c o m o f o g o do álcool, p o r é m d e c ô r rosa. N i s t o chamei a atenção d o A . para u m pano branco que o A . achou parecido c o m u m l e n ç o de setim branco brilhante s e g u r o por uma de suas pontas, p o r é m n ã o se via m ã o nenhuma. E s t a s e g u n d a cena durou uns cinco minutos mais ou m e n o s e depois bruscamente desapareceu. F i z e m o s a l g u n s comentários, atacamos outro pedaço de pão e v o l t a m o s à porta. V i m o s então u m indivíduo completamente nú, s o m e n t e visível da altura do e s t ô m a g o , mais o u m e nos, para cima, forte, m u i t o m u s c u l o s o e queimado pelo sol c o m o se t i v e s s e p a s -sado um dia na praia. S o b r e e s s e busto h a v i a uma f a i x a de luz branca e bri-lhante, enquanto a chama v e r m e l h a v o l t a v a a correr sob o portão. D e tudo, o que mais m e impressionou foi o s o r r i s o m a l v a d o desta aparição. Senti u m b o cado de m e d o e o pão ficou a m a r g o e m m i n h a boca. N o entanto, n ã o m e c o n -venci que aquela cousa que não tinha pernas e balançava de m o d o tal que, conform e disse o A . , parecia estar apoiado sobre uconform prato que boiava e conform á g u a s a g i t a -das realmente n ã o p o s s u í s s e os m e m b r o s inferiores. P a r a m e certificar, coloquei uma cadeira atrás d o A . e nela subi. N e s t a s condições eu podia observar qual-quer cousa até o nível da calçada. M a s apenas consegui avistar s o m e n t e até a cintura do sujeito e relatei isso ao A . . D e s c i da cadeira e continuei as o b s e r v a ções. O sujeito balançou para u m lado, a t r a v e s s o u o p o r t ã o e m toda a sua l a r g u r a , voltou e sumiu, n ã o mais voltando. C o m o a m i n h a c o r a g e m t i n h a d i m i -nuído sensivelmente, convidei o A . para se retirar e, mal êle saiu, tranquei a porta e fui dormir.
A t é h o j e n ã o encontrei u m a e x p l i c a ç ã o plausível d o que sucedeu naquela m a -drugada. A l g u n s m e disseram que devia se tratar de telepatia, t r a n s m i s s ã o de pensamentos devido a o que e s t á v a m o s l e n d o n o m o m e n t o . I s t o eu acho que p o s s o refutar completamente, pois eu estava estudando cálculo integral e o A . , t u m o r e s d o útero. E a c h o que foi s ó isso