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Esta é a primeira tradução para o português de duas

alegorias metafísicas do filósofo russo Peter Demianovich

Ouspensky.

O prof. Ouspensky foi o grande responsável pela difusão

das idéias de Gurdjieff e foi também um pensador profundo e

original.

"O inventor" e "O diabo bondoso", as duas histórias aqui

apresentadas, foram publicadas pela primeira vez na Rússia em

1916 e nos mostram de que forma somos escravizados pelos

nossos "demônios" pessoais. Para Ouspensky, a tarefa do próprio

demônio consiste em fazer a humanidade acreditar que a matéria é

a única realidade.

J. C. Bennett, amigo e discípulo de Ouspensky, faz uma

brilhante apresentação do livro, redescobrindo a sabedoria dessa

obra sempre atual.

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P. D. OUSPENSKY

Conversas

com o

Diabo

Organizado e introduzido por J. C. Bennett

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Título original:

Talks with a Devil

© by Tumstone Press Ltd., 1972

1ª edição brasileira: julho de 1984

Tradução: Waltensir Dutra

Revisão: Silvana Vieira

Produção gráfica: Nilton Thomé

Composição: Gabarito Arte e Texto S/C Ltda.

Revisão tipográfica: Virgínia de A. Thomé e Pedra Paulo Consales

Capa: Alexandre Martins Fontes

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à

LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. :

Rua Conselheiro Ramalho, 330/340

01325 - São Paulo - SP – Brasil

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INDICE

Introdução ... 7

O Inventor ... 15

O Diabo Bondoso ... 43

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INTRODUÇÃO

Na Rússia Sagrada, diabos e demônios eram participantes muito reais da vida humana. A imaginação popular via a atuação de seres não-humanos em cada situação que surgisse, em rios, campos e florestas, no lar e nos céus. Os eslavos descendiam das hordas asiáticas que, durante milênios, viveram sob a influência de magos e xamãs. Depois de sua conversão ao cristianismo, conservaram muitas de suas crenças atávicas. Um mito que encontrava ampla aceitação na Pequena Rússia1 explicava que os demônios descendiam de Adão e Eva, que tiveram doze pares de filhos. Certa vez, quando Deus os visitava, Adão escondeu metade de seus filhos, porque havia ultrapassado a cota de seis pares que fora fixada por Deus. Os doze filhos que não receberam a bênção divina tornaram-se os ancestrais da raça de demônios que, desde então, vêm atormentando a humanidade. Também era crença geral que Satã, o Maligno, não era criação de Deus, mas uma força independente que contribuiu para a criação do mundo, tomando-o presa do tempo e da mortalidade. O Diabo (Diavol) tinha sua própria corte, enorme, de diabos subordinados, cuja tarefa era frustrar os planos de Deus, o Espírito do Bem. Os diabos só são hostis ao homem na medida em que este for amigo de Deus. Eles foram os responsáveis por todos os tipos de progresso técnico: com eles a humanidade aprendeu as artes da fundição, da fermentação e da destilação; foi o próprio Diabo quem descobriu o fogo, construiu o primeiro moinho e a primeira carroça. A arte da leitura e da escrita foi uma de suas grandes contribuições à humanidade. Tudo isso para tornar o homem independente de Deus e, dessa forma, romper os elos que lhe permitiam ajudar Deus a governar o mundo. Sob esse aspecto, o Diabo é o "astuto" (Lukhavi), que como tal aparece na antiga versão eslava do pai-nosso, nas palavras "Livrai-nos do astuto".

Há um tipo totalmente diferente de diabo, chamado Chort, que é mais uma praga do que uma tentação. É aliado das feiticeiras e magos que evocam espíritos impuros. Mas há numerosas espécies de demônios, espíritos, fadas e outros seres não-humanos cujas atividades são ainda mais difundidas do que a ação das entidades celtas correspondentes. A mais temida é Baba Yaga, uma figura feminina grande e poderosa, que tem papel importante nas histórias legendárias eslavas. Os Mora, ou Mara, que atormentam a humanidade, são reconhecidos como Mara nas lendas hindus e budistas sobre as tentações de Krishna e Gautama Buda. O Kikamora, dos eslavos orientais, torna-se o gênio que dirige as florestas e as estepes. (Um livro inteiro poderia ser escrito sobre as variedades de espíritos naturais e seu papel na vida eslava.) Havia também um demônio doméstico que, sendo agradado poderia ser amigo das famílias, mas se contrariado poderia trazer todo o tipo de infortúnio. Todas as enfermidades e infortúnios eram atribuídos aos demônios, cada um deles responsável por determinada doença.

Essa breve descrição deve bastar para mostrar porque Ouspensky, criado nas florestas, de família relativamente humilde, mas antiga, acharia natural tomar um diabo como herói de seus contos, tal como Gurdjieff faria mais tarde nas Histórias Contadas por Belzebu aos seus Netos. Há, porém, uma diferença decisiva. Belzebu é retratado como um ser extraterreno, enquanto que os diabos de Ouspensky são realmente eslavos em sua obsessão pelo mundo material. A influência do maniqueísmo, que chegou à Rússia no segundo século da era cristã, pode ser percebida no ódio fanático que Ouspensky tinha do materialismo, tal como via exemplificado no marxismo e na Revolução Russa.

Ouspensky contava-nos que em sua família os nomes Pedro e Damião haviam passado de pai para filho, alternadamente, por muitas gerações. Segundo a tradição, os Damiões eram ascetas que odiavam o mundo, e os Pedros, alegres amantes da vida. Dizia que as duas características formavam seu caráter. Era, na verdade, um homem com duas naturezas opostas, e esse dualismo coloriu sua vida e suas obras. Conheci-o em 1920, pouco depois de sua chegada a Constantinopla, vindo do Cáucaso, com a mulher Sofia Grigorevna, acompanhada de sua filha e seu filho de um ano, Leônidas, conhecido por nós como Lonya. A cidade estava abarrotada de soldados turcos repatriados, juntamente com o Exército Aliado de Ocupação e dezenas de

1

Região a sudoeste da Rússia. compreendida principalmente pela Ucrânia. (N. do T.)

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milhares de refugiados russos. Ouspensky encontrou acomodações para sua família em Biyuk Ada – ou seja, Prinkipo para os levantinos, e I'lle des Princes para os estrangeiros. Trouxeram poucos bens da Rússia e Ouspensky teve de encontrar um meio de manter-se, e à sua família, lecionando inglês - língua que falava com dificuldade - aos russos que tinham esperanças de ir para a Inglaterra, onde aguardariam o colapso da Revolução, no qual confiavam. Quase todos os russos que conheci nessa época faziam planos para retomar ao seu país. Ouspensky não tinha tais ilusões e temia, pelo contrário, que o bolchevismo se difundisse pela Alemanha e, dali, por toda a Europa. Achava que a Inglaterra poderia escapar da revolução iminente aliando-se firmemente aos Estados Unidos.

Outro russo que sabia que a Rússia czarista, e talvez mesmo a "Rússia Sagrada", havia desaparecido para sempre era Alexander Lvov, ex-coronel da Guarda Montada Imperial e membro da mais alta aristocracia russa, que abrira mão de terras e títulos para seguir Tolstoi. Mantinha-se com o ofício de sapateiro, que aprendera para se tornar um membro do proletariado. Em 1920, Lvov morava na casa da Sra. Beaumont - com quem eu me casaria mais tarde -, num apartamento de um grande edifício de madeira perto da embaixada alemã. Certo dia, Lvov perguntou se um amigo podia usar a sala de visitas para reuniões de um grupo secreto. O líder desse grupo era Ouspensky, que começou a vir regularmente de Prinkipo, todas as quartas-feiras, para presidir reuniões de cerca de vinte ou trinta russos. Logo nos tornamos amigos e ele começou a me falar do "Sistema" notável em que estava interessado. Na mesma ocasião, mas em circunstâncias bastante diferentes, conheci Gurdjieff, o autor do "Sistema", e vários de seus discípulos, vindos de Tíflis com ele.

Em 1921, Ouspensky mostrou-me a tradução inglesa de seu livro Tertium Organum, que acabara de receber de Nicky Bessarabov. Havia chegado também um telegrama de Lady Rothermere, então em Nova York, convidando-o para visitá-la na Inglaterra. Naquela época, os cônsules britânicos tinham instruções para reduzir o número de vistos para emigrados russos, mas consegui convencer o consulado britânico de que Ouspensky era um visitante que a Inglaterra teria interesse em receber, e obtive visto para ele e sua família. Quando voltei para Londres, em 1922, participei do grupo liderado por Orage e Maurice Nicoll, que seguia as preleções de Ouspensky sobre o notável conjunto de idéias psicológicas, cosmológicas e históricas que constituíam o "Sistema" de Gurdjieff, e também sobre as suas técnicas de auto-desenvolvimento.

Logo que me instalei em Londres, em 1922, comecei a participar ativamente do círculo de Ouspensky. Costumava visitá-lo em caráter pessoal em seu apartamento de Gwendwr Road, em West Kensington, quase todas as semanas. Trabalhávamos juntos na tradução de seus livros russos. Ele estava sempre disposto a falar de sua vida passada e das experiências que o levaram a acreditar que nossas idéias habituais sobre o tempo, a matéria e a própria existência eram todas ilusórias. Essas palestras muitas vezes continuavam até tarde da noite num restaurante chinês de Oxford Street, do qual ele gostava particularmente. Era um conhecedor de comidas exóticas de muitos países e tinha um paladar tão apurado para o chá chinês que chegou a integrar um grupo seleto que a Twinings, conhecida marca de chá, convidava anualmente para opinar sobre a nova colheita do produto.

Em suas conversações, Ouspensky revelava o conflito profundo entre sua crença na lei e na ordem, seu ódio aos bolcheviques e seu desprezo pelas massas analfabetas, que vinham de um dos lados de sua natureza, e o reconhecimento de que todos, fossem governantes ou governados, eram igualmente incapazes de mudar ou de realizar suas intenções. Sua rejeição pessoal do materialismo, que se evidencia em Conversas com um Diabo, nasce de uma atitude para com a vida muito diferente da rejeição, por parte de Gurdjieff das pretensões humanas em sua doutrina do homem como uma máquina quase impotente para fazer qualquer coisa. Naquela época, Ouspensky trabalhava sobre as anotações que fizera no período de 1915 a 1918, durante o qual fora discípulo de Gurdjieff, primeiro na Rússia e depois no Cáucaso. Não pretendia, na ocasião, publicar esse material, mas sugeriu a possibilidade de uma leitura nas reuniões do grupo. Nessa época um número crescente de pessoas, em Londres, começava a se interessar por essas reuniões, e Ouspensky não tinha tempo de estar presente a todas elas. Por isso, delegou a mim e a outros a tarefa de ler e, até certo ponto, explicar o conteúdo de seus livros.

Em 1922, Ouspensky trabalhou arduamente para ajudar Gurdjieff na criação do Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem, em Prieuré, Fontainebleau. A princípio, esperávamos que o instituto se instalasse em Londres, mas o Foreign Office foi intransigente na sua recomendação ao Ministério do Interior para que recusasse o visto de residência a Gurdjieff e

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seu grupo. Sabia perfeitamente que o governo da Índia o considerava como agente russo, muito hostil à Grã-Bretanha, e concluí que o dossiê que eu vira na Turquia o havia seguido até a Inglaterra e constituía o principal obstáculo para que recebesse permissão para se estabelecer neste país. Parece-me que a hostilidade já então existente contra Gurdjieff perdurou durante toda a sua vida e explica o fato de ele jamais ter voltado à Grã-Bretanha.

A posição pessoal de Ouspensky era extremamente delicada, e o fato de ele ter insistido em tentar conseguir os vistos definitivos depõe muito a favor de sua lealdade a Gurdjieff. Só dois anos depois, na primavera de 1924, Ouspensky mudou completamente de atitude e recomendou a todos os seus discípulos que se desligassem de Gurdjieff. Segundo Boris Mouravieff, que conhecia Ouspensky desde a Rússia e conhecera Gurdjieff na Turquia em 1921, o afastamento foi provocado por motivos morais. Num estudo inédito sobre Ouspensky e Gurdjieff, Mouravieff descreve uma visita a Paris, logo depois do acidente quase fatal sofrido por Gurdjieff em 1921, e lembra a explosão de Ouspensky: "Se alguém muito ligado a você, seu parente próximo, se revelasse um criminoso, o que faria?". Essas atitudes exemplificam o aspecto ascético e puritano da natureza de Ouspensky, que constituiu um obstáculo insuperável para que compreendesse Gurdjieff, que não se preocupava com as diferenças entre as pessoas - materialistas ou espiritualistas, grosseiras ou refinadas, más ou boas -, mas sim com a significação objetiva da vida humana ou, como ele mesmo dizia, "o sentido e objetivo da vida humana na terra".

A diferença se acentua se compararmos os livros escritos por Ouspensky antes e depois desse encontro com Gurdjieff, em 1915. Sua reputação, particularmente na Rússia antes de 1914 e nos Estados Unidos depois de 1945, repousa principalmente em seu notável Tertium Organum, cujo tema central é a necessidade de ir além do pensamento lógico para que se possa compreender a natureza do mundo real. Os leitores ocidentais conhecem Ouspensky principalmente através desse livro e do Em Busca do Milagroso, o primeiro é totalmente seu, e o segundo, quase que totalmente de Gurdjieff. Entre esses livros, situa-se Um Novo Modelo do

Universo, em grande parte influenciado por suas viagens entre 1908 e 1915. Pouco se sabe sobre

esse período de sua vida e posso relatar apenas os episódios que dele ouvi, durante nossas conversações. Ouspensky fora um jornalista de sucesso, trabalhando às vezes para os principais jornais russos, mas principalmente como autônomo. Viajou pela Europa e Estados Unidos, escrevendo para jornais de São Petersburgo, entre 1908 e 1912. O primeiro conto deste livro, "O inventor", mostra seu conhecimento de Nova York, na época em que Theodore Roosevelt era presidente dos Estados Unidos. Não chegou a conhecer a costa oeste dos Estados Unidos, o que lamentava, embora lamentasse ainda mais não poder visitar o Japão. Em 1912, realizou o desejo de ir à Índia, com a incumbência de escrever artigos para três jornais russos. Conheceu então alguns dos mais destacados iogues da época, inclusive Aurobindo, já instalado em Pondicherry. Nenhum deles o impressionou. Explicou, mais tarde, que buscava o "conhecimento real" e só encontrara homens santos que talvez tivessem conquistado a libertação para si mesmos, mas não podiam transmitir seus métodos a outros. Também passou algum tempo em Adhyar, em Madrasta, sede da Sociedade Teosófica. Anos depois, tinha prazer em contar a história do "sistema de castas" ali existente. No andar térreo ficavam todos os parasitas e os visitantes sem importância. O segundo andar era reservado aos simpatizantes que davam dinheiro e mantinham a sociedade. O último andar, com uma ampla cobertura, era destinado ao grupo esotérico, aos verdadeiros iniciados da teosofia. Ouspensky lembrava, com prazer, ter sido admitido imediatamente ao grupo esotérico, apesar de não ser membro da Sociedade Teosófica e de suas críticas abertas à sua fundadora, Helena Blavatsky. Afirmou não ter encontrado em Adhyar nada que lhe despertasse o desejo de ficar.

Prosseguiu viagem até o Ceilão, que lhe pareceu mais agradável, e conheceu vários dos mais famosos bhikkus, comprovando que as velhas técnicas do budismo ainda eram praticadas ali. Mas não sentiu, ainda dessa vez, nenhuma necessidade de cortar os laços com o Ocidente e tornar-se monge. Escreveu, mais tarde, que não estava interessado em um caminho que o afastasse do mundo ocidental, que detinha a chave do futuro da humanidade. Isso não significava que duvidasse da existência de "escolas", como as chamava, na índia e no Ceilão, mas que essas escolas já não tinham a significação do passado. Também acrescentou ter verificado que a maioria das escolas baseavam-se em técnicas religiosas e de culto que lhe pareciam insuficientes para penetrar a realidade essencial que buscava.

Quando Ouspensky voltou à Rússia, todo o rumo de sua vida modificou-se com o encontro com Gurdjieff. O sistema de Gurdjieff para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem oferecia tantas possibilidades que não se encontravam nas escrituras budistas, as Nikayas, nem nos

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métodos dos teravadinos2 do presente, que Ouspensky sentiu nascerem novas esperanças. Este livro foi escrito antes do encontro e, ao contrário dos posteriores, não foi revisto à luz do que aprendeu com Gurdjieff. Pode ser classificado, junto com o Tertium Organum e Ivan Osokin, como "Ouspensky puro". Ivan Osokin era, reconhecidamente, em grande parte autobiográfico, e nele podemos perceber como foi a vida escolar de Ouspensky. Foi publicado inicialmente na Rússia com o nome de Cinemadrama, para expressar a visão de Ouspensky a respeito da eterna recorrência, mas creio que o fim foi modificado depois do encontro com Gurdjieff - introduzido na trama como mágico (para representar "o Trabalho", tal como Ouspensky concebia) que mostra a Osokin a maneira de escapar ao ciclo de repetidos fracassos que terminam em suicídio, e no qual havia sido envolvido.

O conceito que Ouspensky tinha do destino humano estava claramente ligado à idéia de "libertação". Nos últimos anos, essa necessidade de libertar-se da recorrência tornou-se quase uma obsessão, que transmitiu aos seus seguidores mais íntimos, como Rodney Collin Smith e o Dr. Francis Roles. A abstenção de qualquer envolvimento no processo mundial associava-se à idéia de libertação da recorrência. Como muitos outros russos, sonhava com uma espiritualidade culta, capaz de criar um ambiente para o qual uns poucos homens esclarecidos se pudessem retirar do mundo e realizar, pessoalmente, a sua libertação. Esse sonho nunca o abandonou totalmente.

Mas Ouspensky foi totalmente incapaz de seguir Gurdjieff até as etapas finais do trabalho deste. As razões não são relevantes para este livro, mas o resultado foi que, depois de ter dado apoio total a Gurdjieff até a época da sua viagem à América, em 1923, mudou totalmente de posição em 1924, quando Gurdjieff ainda se encontrava nos Estados Unidos. A partir de então, e até o fim da vida, Ouspensky não teve contato direto com ele, embora continuasse a se interessar apaixonadamente por tudo o que fazia.

Depois do rompimento, Ouspensky voltou a ocupar-se de seus trabalhos antigos, fazendo deles uma compilação que publicou em 1929, com o título Um Novo Modelo do Universo. Nessa época, nossas relações eram muito estreitas. Interessava-nos muito a natureza do tempo e da eternidade, e acreditávamos que descobertas importantes nesse campo atrairiam a atenção para o "Sistema" que Ouspensky atribuía a uma escola de sabedoria da qual ainda esperávamos obter a ajuda de que precisávamos, sem ter de passar por Gurdjieff, a quem ele considerava como um "canal conspurcado". Um Novo Modelo do Universo é uma série de ensaios mais ou menos ligados ao tema comum de que as concepções correntes do homem e do universo eram profundamente enganosas e teriam de ser rejeitadas. A certa altura, pensou em incluir uma das

Conversas com um Diabo - creio que foi "O diabo bondoso" - nesse volume. Resolveu, finalmente,

deixar de lado o conto por não estar em harmonia com o caráter filosófico do livro (a maior parte do qual havia sido escrita antes de 1914 e publicada em jornais russos para os quais trabalhara). Nessa época, Ouspensky ainda escrevia em russo, e mandou uma cópia do texto para Paris, a fim de ser traduzido para o francês pela baronesa Rausch, enquanto outra cópia era traduzida para o inglês pela Sra. Kent, descendente de uma família nobre russa, e por outros russos de seu próprio círculo. Colaborei na tradução, sobretudo para verificar se os significados de Ouspensky foram interpretados corretamente.

Foi nessa época que me falou pela primeira das Conversas com um Diabo. Disse-me que essas duas histórias haviam sido escritas para expressar sua convicção de que o principal erro do homem era acreditar que o mundo material constitui a realidade única. Essa crença, disse Ouspensky, é fonte da maior parte dos problemas humanos, porque as pessoas lutam inutilmente em torno de questões irreais, deixando de lado o único problema real, que é o da libertação do apego à matéria. Conversas com um Diabo foi escrito quando Ouspensky estava na Índia e no Ceilão, em 1914, e publicado, com um novo final, num jornal de São Petersburgo, nos primeiros dias da guerra. A edição a partir da qual foi feita a tradução para o inglês foi publicada em Petrogrado, em 1916. Todos os exemplares de Ouspensky perderam-se com o resto de sua biblioteca, depois da Revolução de Outubro, em Moscou. Ouspensky havia mandado alguns exemplares a amigos no exterior, e perguntou-me se não seria possível localizá-los por meio da Sociedade Teosófica. A srta. Maud Hoffman, teosofista de destaque e amiga de Leadbeater e da

2

Adeptos da Hinayana (também chamada Teravada), ramo menor e conservador do budismo. predominante no Ceilão, Birmânia e Camboia.

(N. do T.)

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Sra. Besant, descobriu que havia um exemplar na biblioteca do Museu Britânico. Encontrei-o sob o nome de Uspenski, P. D., e consegui duas Cópias fotos-táticas, uma das quais me foi confiada por ele, com vistas a uma possível tradução para o inglês.

Conversas com um Diabo pertence claramente à fase de Wanderjahren de Ouspensky,

quando ele buscava o segredo que acreditava estar oculto nas escolas da Índia e do Ceilão. Suas inclinações teosóficas evidenciam-se pela recusa de ver no Oriente, ou mesmo na Ásia central, a fonte dos ensinamentos. Embora decepcionado com a Sociedade Teosófica que encontrou em Adhyar, aceitava grande parte de sua filosofia. Estava particularmente fascinado pelo ciclo teosófico da repetição histórica. Referia-se a isso com freqüência nos últimos anos e falava das guerras mundiais como prova de que estávamos entrando nas últimas fases do Ciclo Negro. Esse tema influencia, evidentemente, sua abordagem de "O diabo bondoso".

E interessante lembrar que Ouspensky era grande admirador de Robert Louis Stevenson e admitia ter sido influenciado pela fábula chamada "A Filha do Rei de Duntrine", que expressa o mesmo tema da eterna recorrência, com alusões ao segredo da liberdade. Para ele, Stevenson e Nietzsche foram os dois autores com os quais mais aprendeu sobre a recorrência, em seus anos de juventude.

Conversas com um Diabo, não expressa de maneira adequada a agonia da indecisão

vivida por Ouspensky nos últimos anos de sua vida. Talvez por isso não as tenha publicado. Acho também que, de alguma forma, ele as associava com a sua ilusão de juventude segundo a qual a espiritualidade e o humanismo poderiam andar de mãos dadas se a religião fosse eliminada da primeira, e o materialismo do segundo. Disse-me certa vez que tinha notas para uma terceira conversa, que daria unidade ao todo. Creio que pretendia mostrar o papel do "Trabalho" como terceira força capaz de reconciliar espírito e matéria, mas não encontrou uma maneira de tornar esse tema suficientemente dramático. Pouco antes da deflagração da Segunda Guerra Mundial, disse a alguns de seus discípulos que não tinha muitas esperanças de encontrar a fonte dos ensinamentos que vinha transmitindo. Faltava alguma coisa e, sem um conhecimento novo, teríamos de nos resignar a encontrar nosso próprio caminho para a libertação. Nas últimas semanas de sua vida, em 1947, repudiou publicamente o "Sistema", tal como o recebera de Gurdjieff, e concitou seus seguidores a começar de novo, seguindo cada qual o seu próprio caminho.

As duas histórias incluídas neste livro examinam dois problemas que, para Ouspensky, eram muito sérios e importantes. O primeiro é o do "mal consciente". Ele conhecia as doutrinas orientais que, no todo, negam a possibilidade de uma vontade maligna e tratam o mal como a ausência do bem ou, na pior das hipóteses, como as conseqüências do apego ao mundo exterior. Estivera também, desde a infância, em contato com a doutrina do pecado original, que não conseguia aceitar, nem rejeitar. Certa vez, deu aos seus grupos de Londres a tarefa de tentar praticar um ato conscientemente mau. Ficamos todos surpresos pela nossa incapacidade de praticar um único ato que fosse deliberadamente mau, embora soubéssemos que muitas vezes fazíamos coisas bem piores, com plena consciência disso. Ouspensky insistiu em que o mal é o sono, a mecanicidade e a ausência de intenção, pelos quais somos indiretamente responsáveis - porque está em nosso poder não nos deixarmos adormecer, e não sermos mecânicos -, mas que não podemos controlar diretamente. Esse tema está presente em toda a história do inventor que faz o mal quando pretende fazer o bem, e não pode aceitar as conseqüências desastrosas de sua própria obra de gênio. Compreende que nunca se perguntou o que aconteceria se sua criação obtivesse êxito estrondoso. Sob esse aspecto, a história do inventor é, evidentemente, uma alegoria do homem moderno frente às conseqüências dos milagres da ciência e tecnologia.

Ouspensky conclui a história de maneira muito reveladora, mostrando que o inventor, sempre controlando as forças materiais, começa a investi-Ias de uma qualidade nova, uma qualidade que o aliena do Diabo e leva, finalmente, ao desaparecimento deste, o qual já não pode seguir nem compreender o inventor, na sua elevada busca de um uso benéfico das forças materiais que havia liberado. Tudo o que fica do Diabo é um cheiro de enxofre.

Já na primeira página, Ouspensky insinua o significado mais profundo da história. O Diabo, "rigorosamente falando", não existe: ele e seu grupo são apenas o que o homem quer que sejam. O Diabo pode apenas sugerir, mas até mesmo as suas sugestões se revelam como sendo as auto-sugestões do próprio homem. Este atribui ao mundo material um caráter diabólico que não é inerente a ele, mas também é capaz de adquirir consciência da realidade de outros valores. Portanto, nessa história o Diabo investe constantemente contra os artistas e os místicos, que têm

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consciência da existência de algum outro mundo que não o da matéria, e no qual não há lugar para as sugestões diabólicas.

Ouspensky é, e continua sendo, um dualista, porque vê os valores diabólicos como sendo os valores atribuídos pelo homem ao mundo material, dominado pela quantidade, mas distingue entre esses valores diabólicos falsos e os valores da apreciação artística, da experiência religiosa e da qualidade espiritual. Ele próprio lembra que ao conhecer Gurdjieff tentou insistir nessa distinção, mas o outro a rejeitou, dizendo: "Todos esses aspectos são mecânicos. Não importa se os valores são materiais ou espirituais. O que importa é se eles são mecânicos ou conscientes".

Evidentemente, era uma idéia nova para Ouspensky, e sobre a qual ainda não havia refletido ao escrever O inventor ou O diabo bondoso. Contudo, Ouspensky não apresenta o conceito da matéria como um modo de ser. Emprega a expressão GRANDE MATÉRIA (as maiúsculas estão no texto russo) para indicar que não fala da matéria em termos de sua vasta escala no universo, da imensidão quantitativa, mas da sua condição como um modo de vida. Nesse sentido, Ouspensky foi certamente um dualista, considerando a Grande Matéria como a resistência ao poder criativo de Deus. Sua obra mais inspirada, Tertium Organum, é dedicada à tese - quase uma revelação - de que o pensamento lógico aprisiona o homem no mundo material. O "terceiro instrumento" que ele reivindica ter descoberto é a visão criativa que vai além da lógica. Essa noção está presente em todos os trabalhos de Ouspensky, sendo visível também no horror que o Diabo tem aos artistas e místicos, que não podem pensar de maneira lógica e normal. A matéria e a lógica são a substância da sugestão diabólica.

Gurdjieff, por sua vez, considera a matéria e a energia como intercambiáveis (e isso muito antes de serem compreendidas as equações de Einstein), e ensinava que o nível de materialidade é correlato ao nível de Consciência, ou de Ser. Foram idéias surpreendentes para Ouspensky, quando as ouviu pela primeira vez em 1915, e não procurou incorporá-las à revisão que fez de O

inventor.

O inventor, foi escrito para ser publicado num periódico russo, e, sem dúvida, Ouspensky

tinha em mente um público que demandava um material ao mesmo tempo sentimental e sensacional. Os episódios relacionados com a invenção e a subseqüente explosão de interesse devido ao seu uso em circunstâncias particularmente dramáticas são um tanto repetitivos e, às vezes, tediosos. Assumi, por isso, a responsabilidade de resumir alguns deles e de cortar um pouco da parte puramente narrativa da história. Deixei tudo o que era relevante para o tema que Ouspensky deseja transmitir e que era para ele, certamente, o objetivo das duas histórias. E assim fiz porque o próprio autor foi impiedoso nos cortes que fez em seu material, quando usou as antigas publicações russas para a estruturação de seu livro Um Novo Modelo do Universo.

Quanto a O diabo bondoso, é um conto muito mais vivo, porque se baseia principalmente nas viagens do autor pela Índia e Ceilão, e ele nos pode fazer um relato em primeira mão das grutas de Alhora, que visitou em 1913, e também dos templos budistas que conheceu no Ceilão.

O diabo (nesse conto, Ouspensky não escreve a palavra com maiúscula, indicando assim a pluralidade da condição diabólica) tenta impedir que acordemos para a situação de que somos prisioneiros da materialidade apenas porque não enfrentamos e não aceitamos a verdade de que a realidade não é deste mundo. A sugestão que permeia os dois contos, de que os diabos só estão interessados no homem enquanto este faz um esforço real para se libertar, representa um ponto de vista a que Ouspensky voltou freqüentemente. Há uma lei segundo a qual a todo esforço positivo deve corresponder, inevitavelmente, uma reação negativa igualmente forte. Embora essa lei encontre repetidos exemplos na história da humanidade - tanto em pequena como em grande escala - não a enfrentamos. Poucos reconhecem que o preço de fazer a coisa certa é, inevitavelmente, correr o risco de enfrentar a oposição e, até mesmo, a ameaça de destruição. Esses homens são diferentes dos homens comuns e poderiam reconhecer-se uns aos outros se não fossem as precauções do diabo para impedi-lo.

O diabo bondoso deseja que a humanidade seja feliz, sem se preocupar com a busca de um "outro mundo" quimérico. Reconhecemos, aqui, o tema do "organ kundabuffer" de Gurdjieff, de que Ouspensky certamente nunca ouvira falar quando o conto foi escrito. O diabo bondoso enfatiza o significado da ilusão e do auto-engano do homem. Este continua voltado para a terra porque está adormecido para a realidade e não deseja despertar. Concebe o "bem" em termos do mundo ilusório, onde nada se pode realizar, em caso algum. A tarefa do diabo é estimular esse engano, e ele a realiza com pessoas bem-intencionadas, jogando com a ilusão de que a boa

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intenção e a boa realização são a mesma coisa. A "nobreza" é o trunfo através do qual vence a batalha final.

Em O diabo bondoso, Ouspensky utiliza, claramente, a lenda eslava da divisão da humanidade nos filhos abençoados e filhos rejeitados de Adão. Modifica-a, porém, no sentido de atribuir aos descendentes de Adão a capacidade de perceber a Realidade enquanto que aqueles que descendem dos animais são estancados. Só os descendentes de Adão têm a possibilidade de despertar e adquirir uma "alma".

Ouspensky não conseguiu posicionar-se diante da injustiça da vida, que oferece grandes oportunidades para uns poucos e parece negar qualquer esperança à maioria. Suas experiências, nessa história, estão ligadas a uma explicação do mal que remonta às origens zoroastrianas. No .

Avesta, as raças, ou homens e animais, descendem do homem Gayomart e do touro Gösh Urvan.

O Avesta não as classifica de boas ou más, mas, antes, lhes atribui diferentes papéis na luta entre os espíritos bons e maus. Essas tradições chegaram ao povo eslavo antes de suas migrações para o Ocidente e, separadas de suas religiões e origens cosmológicas, transformaram-se em contos de fadas e folclore. Ouspensky pôde reconhecer algo da sua significação original e foi capaz de usá-las para transmitir a sua própria mensagem.

O homem é vulnerável de ambos os lados de sua natureza: o que luta para alcançar a luz, e o que busca as trevas. A sugestão diabólica que joga com a nobreza do homem pode provocar uma queda maior do que as tentações a que está sujeita a sua natureza animal. Ouspensky tinha consciência de que as forças "malignas" agiam para destruir a liberdade humana, e via que estas forças não podiam ser vencidas numa confrontação direta, porque as forças "do bem" estavam divididas entre si por lemas como "patriotismo", "abnegação", e "devoção a uma causa" - todas podendo ser exploradas pelo diabo.

Nestas histórias, o diabo não atinge os seus objetivos, sendo tão impotente quanto suas supostas vítimas. O mundo é totalmente irracional e não devemos esperar encontrar respostas às nossas indagações nem moral para as nossas histórias. Essa parece ser a mensagem que Ouspensky deseja transmitir. Seu pessimismo desapareceu temporariamente em contato com Gurdjieff, mas voltou quando compreendeu que Gurdjieff não era o homem que havia imaginado e esperado.

Lembro claramente uma noite de inverno em 1924, quando estava com Ouspensky em Gwendwr Road. Ele estava de pé em frente ao aquecedor a gás, na sombria sala de estar, e, como se falasse para si mesmo, disse: "Não podemos saber se esse trabalho é possível, mas sabemos que sem ele não há esperança. Não devemos desistir, mesmo que não vejamos qualquer indício de que ele irá nos tirar das trevas. Não há mais nada, e devemos apegar-nos a essa certeza". Desde então se passaram 48 anos, e me convenci de que não só não há mais nada, como também de que o homem não está numa situação sem esperanças. Estamos numa crise séria - mais séria mesmo do que Ouspensky previa - e hipnotizados pelas forças materiais. A própria gravidade da crise está provocando um despertar. O homem está começando a ver a ameaça à sua própria existência, e muitos estão preparados para aceitar o desafio que Leslie White não podia compreender.

A compreensão intuitiva de Ouspensky, de que certas pessoas podem ver a realidade quando a maioria só pode ver a aparência, é hoje ainda mais relevante do que quando escreveu esse conto, há 60 anos. Se um número suficiente de pessoas puder ser levado a ver e a aceitar o desafio, a humanidade dará um grande passo à frente. Mas também parece que há forças engenhosas em ação, cujo objetivo é impedir o despertar daqueles que têm a possibilidade de ver. A alegoria do diabo, de Ouspensky, está muito próxima da verdade para ser confortável.

O fato de ter contribuído para preservar uma parte da obra literária de Ouspensky é motivo de verdadeira satisfação. A srta. Ekaterina Petroff trabalhou intermitentemente comigo, durante vários anos, na tradução. A srta. Anna Durkova ajudou na editoração e com o seu conhecimento do folclore eslavo. Espero que os resultados agradem tanto os velhos admiradores de Ouspensky, quanto os seus novos leitores.

John G. Bennet

Sherborne, Gloucestershire Junho, 1972

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O INVENTOR

"- Vou lhe contar uma história de fadas", disse o Diabo, "mas com uma condição: não me pergunte qual a moral. Você pode tirar a conclusão que quiser, mas por favor, não me faça perguntas. Já nos culpam de loucuras demais quando nós, rigorosamente falando, nem mesmo existimos. São vocês que nos criam."

Minha história se passa em Nova York, há cerca de 25 anos. Vivia ali um jovem chamado Hugh B., cujo nome completo não direi mas você logo adivinhará por si mesmo. Seu nome é conhecido hoje em todas as cinco partes do mundo, mas naquela época era totalmente desconhecido.

Começarei por um momento trágico na vida desse jovem, quando ele viajava de um dos subúrbios de Nova York para Manhattan, com a intenção de comprar um revólver e suicidar-se numa praia solitária em Long Island, lugar que lhe ficara na lembrança desde a época de suas excursões de meninice, quando ele e seus companheiros, fingindo-se de exploradores, haviam descoberto países desconhecidos nas proximidades de Nova York.

Sua intenção era muito clara e a decisão, final. Na verdade, tratava-se de uma ocorrência muito comum na vida de uma cidade grande, coisa que se repete com freqüência. De fato, e para ser franco, tive de promover acontecimentos semelhantes milhares e dezenas de milhares de vezes. Daquela vez, porém, um início tão comum teve seguimento inesperado, e um resultado ainda mais inesperado.

Mas an1es de chegar ao resultado, devo contar em detalhe todos os fatos que levaram a ele.

Hugh era um inventor nato. Desde a mais tenra infância, quando passeava com a mãe pelo parque ou brincava com outras crianças, ou simplesmente sentado tranqüilamente num canto, entretendo-se em fazer casinhas de tijolos ou desenhar monstros, inventava sem parar, construindo na imaginação uma variedade de engenhocas extraordinárias, melhoramentos para tudo neste mundo.

Tinha prazer especial em inventar aperfeiçoamentos e adaptações para sua tia. Desenhava-a com uma chaminé, ou sobre rodas. Em conseqüência de um desses desenhos, no qual a moça não muito nova foi retratada com seis pernas e outras variações, o pequeno Hugh foi severamente castigado. Esta foi uma de suas primeiras recordações.

Pouco depois, Hugh aprendeu a desenhar e, logo em seguida, a fazer modelos de suas invenções. Nessa época já havia aprendido que as pessoas vivas não podem ser aperfeiçoadas, contudo, suas invenções eram, é claro, pura fantasia: aos 14 anos quase morreu afogado experimentando os esquis aquáticos que tinha inventado.

Minha história começa quando Hugh tinha cerca de 26 anos. Estava casado há vários anos e trabalhava como desenhista numa grande fábrica de produtos de engenharia; morava num apartamento de três pequenos aposentos, do tamanho de cabines de navio, num enorme e feio edifício de tijolos, num dos subúrbios de Nova York. Estava muito insatisfeito com sua vida.

Os escravos que trabalham arduamente em nossos escritórios e fábricas quase não têm consciência, invariavelmente, de sua escravidão. Os poucos sonhos que por acaso alimentam não vão além das formas de melhorar sua escravidão: divertir-se no domingo, ir a um baile à noite, vestir-se como um cavalheiro e conseguir mais dinheiro. Mesmo quando descontentes com suas vidas, pensam apenas em diminuir as horas de trabalho ou aumentar os seus salários e férias - em resumo, toda a parafernália da Utopia Socialista. Jamais se poderiam revoltar, nem mesmo mentalmente, contra o próprio trabalho - ele é o seu Deus, e não se atrevem a negá-lo nem mesmo em pensamento. Hugh, porém, era feito de outra substância. Odiava a escravidão. Dizia sempre que ser escravo do trabalho era indignação de Deus. Todas as fibras de seu ser se contorciam com a consciência desse polvo, que penetrava nele com uma força estranguladora.

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Além disso, a idéia de embelezar a escravidão jamais lhe teria ocorrido, nem era do tipo de iludir-se com distrações baratas.

Sua mãe morreu quando ele tinha 16 anos e Hugh foi obrigado a deixar a escola para trabalhar como aprendiz na seção de desenho de uma fábrica, pelo salário de cinco dólares semanais.

Foi assim que começou sua carreira. Aparentemente, pouco diferia dos outros aprendizes. Copiava desenhos de máquinas, preparava o papel e as tintas, apontava os lápis e levava recados entre os vários departamentos da fábrica. No coração, porém, não aceitava, nem por um momento, essa vida.

A formação de Hugh foi diferente da formação da maioria dos que o cercavam, e teve um papel importante em suas atitudes. Seus companheiros eram os filhos do trabalho e da privação, de operários de fábrica como eles próprios e de imigrantes recentes que haviam procurado a América para fugir da fome e do frio, da ambição dos senhores de terra e do desemprego. Tinham um mundo pequeno, limitado, estreito e dominado pela luta onipresente contra a fome e a privação. Vozes muito diferentes faziam-se ouvir no íntimo de Hugh. Ele pertencia a uma antiga família americana, descendia dos pioneiros que haviam visto a floresta virgem, os rios e lutado contra os índios. Entre seus antepassados contavam-se membros do congresso, generais da Guerra da Independência e ricos fazendeiros da monocultura sulista.

Seu pai havia perdido o que restara da fortuna da família durante a Guerra Civil, da qual participara como oficial do exército confederado. Ferido e aprisionado, fugira para o Canadá, onde se casou com uma jovem franco-canadense, vindo a morrer poucos anos depois. Durante a infância, a mãe de Hugh lhe falava de seus ancestrais, que eram capitães de navio, e dos ancestrais de seu pai – do luxo da vida nas grandes fazendas que ela mesma jamais vira; do bisavô de Hugh, que fora governador da Carolina do Sul; da guerra mexicana; das expedições ao Oeste distante. Hugh cresceu ouvindo essas histórias, que constituíam parte de seu ser. Não era surpreendente, portanto, que o estilo de vida concebido por seus companheiros de trabalho fosse muito estreito para ele. Na verdade, no fundo do coração, desprezava esses companheiros e a vida na fábrica, com tudo o que lhe podia proporcionar.

Entretanto, a fábrica em si, e as máquinas tinham para ele um profundo interesse. Passava horas na frente de alguma máquina tentando compreendê-Ia, procurando chegar ao seu coração. Colecionava os vários catálogos e listas de preço que descreviam as máquinas; estudava diagramas, desenhos, fotografias; passava noites inteiras com livros sobre mecânica e engenharia mecânica, sempre que os podia conseguir. E durante todo esse tempo, novas combinações de válvulas, rodas, alavancas - novas invenções, cada uma mais surpreendente do que a outra - flutuavam em sua cabeça.

Mas nem por um segundo deixava de odiar e ressentir-se da sua escravidão. Muitas vezes, à noite, quando a necessidade de levantar-se às seis da manhã o obrigava a abandonar seus livros preciosos para ir dormir, tomava resoluções sombrias, jurando que preferiria morrer a entregar-se à tal sorte. Não se estava iludindo e tinha plena consciência dos obstáculos que havia em seu caminho. Para escapar àquela servidão era necessário furtar-lhe tempo, mas a mão de ferro do trabalho compulsório pesava sempre sobre o seu ombro. De vez em quando essa necessidade diminuía por algumas horas (em raras ocasiões, por vários dias), para voltar a abater-se sobre ele com força ainda maior. Hugh sofria com isso, e lutava por cada hora.

Apesar disso, tinha a aparência alegre, animada, de um jovem americano cheio de vida. A diferença estava na sua incapacidade de não pensar. Era isso que o distinguia dos outros.

Durante as duas primeiras semanas na fábrica, Hugh compreendeu a gravidade de sua posição; a princípio, não se preocupou indevidamente, pois tinha grande confiança em si mesmo, na sua capacidade e nas suas invenções futuras. Mais tarde, porém, começou a perceber que estava cedendo, involuntariamente, ao modo de vida da fábrica; essa vida, e as pessoas que a viviam, já haviam deixado nele a sua marca. A partir daquele momento, sua aversão e seu ódio a essa escravidão aumentaram, juntamente com o medo de enfrentá-la.

Depois de quatro anos de serviço na fábrica, um acontecimento veio provocar uma mudança imediata em sua posição. Havia recebido alguns diagramas borrados de uma nova máquina, para serem copiados. Ao reproduzi-los, Hugh encontrou um erro nos cálculos. Ao mesmo tempo, ocorreu-lhe um aperfeiçoamento notavelmente simples e prático, que quase duplicaria a produção da máquina. Levou o fato ao engenheiro que desenhara a máquina e este,

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não querendo reconhecer seu erro, começou a gritar e o expulsou da sala. Hugh então, procurou o diretor, que a princípio recebeu-o mal; porém, ao compreender o que lhe estava sendo proposto, viu que tinha razão.

Imediatamente, tudo mudou. Hugh recebeu uma gratificação pelo aperfeiçoamento que inventara e foi promovido ao cargo de desenhista sênior. Ao invés de copiar, tinha de elaborar diagramas a partir de esboços feitos pelos engenheiros. Começou a ser consultado, e o diretor que o havia descoberto previu-lhe uma brilhante carreira.

De todos os empregados da fábrica, foi sobre Hugh que esse sucesso inesperado teve o menor impacto. Aceitou tudo como se lhe fosse devido. Disse a si mesmo que o destino devia dar-lhe tudo o que sonhava, e que o sucesso na fábrica era tão insignificante, se comparado com seus sonhos, que nem mesmo valia a pena falar a sério do assunto. Mas é claro que sua situação melhorou. Alugou um pequeno apartamento, instalou uma oficina onde trabalhava em suas invenções, à noite e aos domingos. Começou com a idéia de um motor de bolso para instrumentos manuais, coisa que não se revelou muito prática. Inventou, em seguida, um torpedo dirigido; depois, um freio automático para guinchos, e muitas outras coisas. Mas era prejudicado pela falta de base teórica e pelas exigências de tempo que a fábrica lhe fazia. Deixá-la, porém, parecia impossível, ainda mais porque logo depois da promoção ele se casara com Madge O Neill. Tinha então 22 anos.

Tudo foi muito espontâneo, como acontecem as coisas que têm de acontecer. Num domingo, Hugh foi ao jardim zoológico no Central Park. Há muito queria ver os pássaros, especialmente os condores. (Trabalhava, naquela época, num avião.) Ali, junto à cerca, estava uma moça alta e simpática, cabelos e olhos pretos, usando um grande chapéu vermelho. Conversava com uma colega de sotaque irlandês e várias vezes, rindo, olhou para Hugh. Sem saber como, Hugh começou a conversar com ela. Deixaram os condores e, antes que percebessem, haviam percorrido todo o zoológico. Ele não pretendia ver os bisões e os macacos, mas por alguma razão, divertiu-se muito. Ficou sabendo que Madge trabalhava como tradutora e estenógrafa no escritório de uma companhia alemã, que seus pais eram mortos, que tinha um irmão pequeno e que no domingo seguinte iria à praia com a amiga. Encontraram-se no domingo seguinte. E passaram a encontrar-se à noite. Por fim, Hugh começou a sentir que precisava tanto de Madge como de suas invenções.

Resolveram casar-se e ele estava convencido de que não havia no mundo mulher mais bela e inteligente do que Madge. Sentia-se muito feliz e não duvidava de que, agora; seria bem sucedido.

Durante um de seus passeios, discutindo a futura vida de casados, Hugh disse que não deveriam ter filhos enquanto não melhorassem de situação, ou seja, enquanto suas invenções não fossem uma fonte real de renda, libertando-o do trabalho e permitindo uma vida abastada e fácil.

Madge ficou contente ao ouvi-lo falar assim, isto é, contente com a conversa em si. Era ousado - disse a si mesma. Ficava agradavelmente excitada quando falavam dos filhos que teriam ou não teriam. Concordava com Hugh, fingindo compreender. Sua única restrição foi a de ele não ter falado mais, mas Hugh mudou de assunto, sem explicar como fariam para não ter filhos. Naquele momento, a idéia parecia a Madge excitantemente imprópria. Não podia adivinhar, então, que essa decisão lhe traria sofrimento e seria motivo de desentendimento entre eles, e teria muitas outras conseqüências.

Madge estava encantada com Hugh, então. Gostava de ouvi-lo falar de suas invenções futuras, que lhes traria milhões; de seus antepassados na Carolina do Sul e da vida opulenta que levavam. Mas às vezes tinha vontade de rir nessas ocasiões, pois Hugh se entusiasmava e falava como se ele próprio tivesse comparecido às festas de outrora, ou como se já fosse um inventor rico e famoso. Apesar disso, acreditava nele. Mais tarde, porém, os sonhos de Hugh e Madge tomaram rumos diferentes. A fantasia dele não conhecia limites: uma vila em Sorrento, um castelo em Veneza, um iate próprio, viagens pela Índia e Japão, relações com todas as celebridades mundiais, com escritores e artistas; as capitais do mundo a seus pés. Outras invenções seguiam-se, cada uma mais surpreendente do que a outra, revolucionando completamente toda a vida na terra e trazendo incontáveis milhões para eles.

Ouvindo Hugh falar desse jeito, Madge parecia estar ouvindo a voz de seu irmãozinho, cuja ambição era lutar contra os peles-vermelhas, quando crescesse. Madge começou a achar

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que os homens são apenas crianças que cresceram demais e assim deviam ser tratados. Uma vila em Sorrento e um escalpo de pele-vermelha pareciam-lhe quase que a mesma coisa.

Os sonhos de Madge eram mais realistas e mundanos. Como qualquer mulher, sonhava com enfeites, chapéus e vestidos; mas, caracteristicamente, não podia pensar no abstrato. Só ambicionava o vestido ou o chapéu que vira numa vitrina. Falta de imaginação, talvez? Mesmo assim, tinha alguns sonhos magníficos: pensava, por exemplo, que seria delicioso ir à cidade e gastar, num dia, cem ou duzentos dólares naquilo que tivesse vontade. Desejava muito um belo apartamento ou uma casa com mobília nova, vinda diretamente da loja; ou uma viagem a uma praia ou, melhor ainda, a algum lugar "nas montanhas", o que tinha um ar mais aristocrático. Também sonhava em ir ao teatro, à ópera e aos concertos sempre que quisesse; em sentar-se num camarote, ou nas primeiras filas, e ouvir cantores famosos, vendo à sua volta homens e mulheres importantes, cujos nomes conhecia pelos jornais. As colunas sociais, com as descrições da vida na alta sociedade e, em particular, com alusões mal disfarçadas aos seus escândalos, constituíam a leitura predileta das moças no escritório onde trabalhava.

Madge porém, não era, totalmente vulgar. Era, na verdade, superior à maioria de suas amigas: lia livros como Looking Backward e In a Hundred Years, de Bellamy, que faziam descrições do Estado socialista ideal; tinha muito entusiasmo pela "vida simples", pela "volta à natureza", e assim por diante. Gostava de flores e de crianças mais do que qualquer coisa no mundo, e seus sonhos estavam realmente nesse terreno, embora não tivesse consciência disso. Queria muito acreditar que amava Hugh, que concordava com ele e tinha confiança em seus inventos.

Casaram-se, então, e viveram no pequeno apartamento, no grande edifício, durante quase cinco anos.

Esses cinco anos foram pouco compensadores para Hugh. Suas invenções não tinham resultados práticos e o trabalho na fábrica o deprimia cada vez mais. A princípio, depois de sua rápida promoção, ele parecia satisfeito. Mas o encontro com Madge e seu casamento lhe haviam reacendido o desejo de liberdade, com renovada força.

Hugh adorava Madge e desejava estar sempre ao lado dela. Na verdade, porém, quase não a via. Passava o dia no escritório e as noites em sua oficina. De vez em quando , arrancava-se da oficina e, com o coração doendo, levava Madge a pasarrancava-sear, arrancava-sentindo porém que com isso a estava enganando, pois apenas retardava a hora da libertação de ambos. Isso estragava o prazer e, além do mais, pela manhã tinha de sofrer o dilaceramento que o escritório lhe causava.

Tudo isso era excepcionalmente doloroso para Hugh porque imaginava dias inteiros ao lado de Madge, lendo com ela, viajando aos quatro cantos da Europa e do Oriente, para ver todas as maravilhas com que sempre sonhava. Sua libertação e a realização dos seus sonhos seriam conquistadas pelas suas invenções, mas seu caminho era sempre barrado pelo trabalho na fábrica, que o esgotava, tomava-lhe todo o tempo e interferia em seu verdadeiro trabalho.

Hugh acabou se convencendo de que a fábrica tirava vantagens de seu talento de inventor. O aperfeiçoamento que havia imaginado e pelo qual recebera uma gratificação de 500 dólares e o aumento de salário que parecia enorme - mas que na realidade era miserável e muito inferior ao salário de seu antecessor - haviam provavelmente trazido centenas de milhares de dólares para a fábrica. O aperfeiçoamento, que tinha o registro da firma, era usado agora em todas as máquinas-ferramentas feitas pela fábrica, constituindo-se na sua característica principal. Muitas outras invenções seguiram-se a essa, mas Hugh não voltou a receber gratificações. Esperavam-se invenções dele. Apresentavam-lhe um determinado problema e exigiam que ele o solucionasse. A firma o explorava, obviamente. Hugh podia ver e sentir que esse trabalho forçado lhe estava esgotando a imaginação e prejudicando seus projetos e idéias pessoais.

Resolveu, por isso, dedicar-se menos à fábrica. Aborrecia-se porque suas contribuições não eram valorizadas. Intimamente, fervia de indignação. "Eu poderia ter feito muito por eles", dizia a si mesmo, "se fossem capazes de valorizar meu trabalho e pagar por ele."

Hugh sabia que um dono de fábrica do tipo antigo, que conhecia o negócio detalhadamente, que compreendia, amava e conhecia seus empregados, o teria tratado com cuidado. Teria percebido que seu talento para invenção representava capital, e teria feito dele um acionista da firma, com participação nos lucros proporcionados por suas invenções.

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A empresa onde Hugh trabalhava seguia um estilo de administração industrial que tinha muito em comum com as mais desagradáveis instituições burocráticas. As pessoas tinham pouca importância, e o aumento dos lucros era a única preocupação.

Não havia futuro para Hugh, ali. Todas as modificações e melhorias que ele criara eram simplesmente propriedade da fábrica, sobre as quais ele não tinha qualquer direito. Conhecia, porém, o valor de suas invenções, e enchia-se de indignação.

Acabou finalmente tomando uma posição, e quando lhe pediam para desenvolver novos planos de aperfeiçoamento ou adaptação, simplesmente copiava os modelos e padrões antigos, sem fazer qualquer modificação, embora conhecesse perfeitamente os aperfeiçoamentos possíveis. Isso foi percebido e Hugh logo recebeu uma nota do engenheiro-chefe, dizendo casualmente que ele parecia ter esgotado seu talento.

"Sou apenas um desenhista", respondeu, "e ganho menos do que meu antecessor, que não inventou nada."

"Inventar?", disse o engenheiro. "Que espécie de inventor você acha que é? Sua obrigação é desenvolver os detalhes dos projetos que lhe são encaminhados. Se você só sabe copiar, logo encontraremos alguém para substituí-lo". "Pois então encontrem!", disse Hugh para si mesmo. E resolveu que a partir daquele dia nenhuma invenção sua cairia nas mãos da fábrica.

Sua nova atitude teve repercussões rápidas. Ao final do primeiro ano, não recebeu aumento. No segundo ano, seu salário foi reduzido. Isso significava que poderia ser despedido como alguém que "tinha perdido a capacidade de trabalho".

Hugh compreendeu, mas não estava disposto aceder.

Devemos observar que, enquanto isso, as relações entre Hugh e Madge não melhoravam, tornando-se óbvio que a realidade não estava correspondendo aos seus sonhos brilhantes, e que a vida era monótona. A princípio, Madge gostava de pensar que Hugh era um "inventor", pois isso satisfazia sua auto-estima; com o tempo, porém, começou a desejar que ele fosse mais parecido com os outros homens, que se preocupasse mais com ela e pensasse menos em suas fantasias. Algum tempo depois do casamento, começou a achar que Hugh não lhe dava muita atenção, deixava-a muito tempo sozinha, raramente conversava com ela e não procurava levá-la para divertir-se, nem lhe ser agradável. Outros maridos eram mais solícitos - e práticos.

Na verdade, Hugh tinha perfeita consciência disso, mas não queria admitir o fracasso e perseguia teimosamente as suas ambições. Nessa situação as diferenças de origem entre os dois evidenciavam-se. Madge era como um cão de guarda dotado de bom faro, mas sem a obstinação e persistência do verdadeiro cão de caça. Hugh, por sua vez, era de outra raça. Não parecia notar que fazia sacrifícios e certamente não os considerava como tal. Tudo o que fazia era para aquilo - então por que se preocupar?

Era difícil a Madge suportar a tirania da obsessão de Hugh. Uma vez que ele próprio sacrificava tudo, automaticamente exigia dela os mesmos sacrifícios. Estava habituado a uma certa maneira de pensar e era-lhe difícil aceitar o ponto de vista da mulher. Achava estranho, por exemplo, que ela quisesse ir ao teatro... "Como justificar uma ida ao teatro, agora?", era a pergunta que se fazia. "Mais tarde poderemos ver tudo." Madge, porém, tinha outra opinião.

Nos dois últimos anos sua relação com Hugh começara realmente a deteriorar, especialmente depois que ela perdeu o emprego. Não conseguira outro, e dispunha agora de mais tempo livre e menos dinheiro. Ficava em casa e entediava-se. Sofria, acima de tudo, com o fato de não ter filhos. Antes do casamento, Madge acreditava que, de alguma maneira, os filhos não demorariam achegar. Depois, passou a ver as coisas sob outra luz, e uma luz bastante desagradável.

Há demônios especiais que se ocupam da organização da vida familiar das pessoas, manipulando, por assim dizer, a intensidade do efeito do acaso na família. Esses demônios poderiam explicar, melhor do que eu, como e por que os fatos seguiram determinado curso. Só posso dizer uma coisa: as pessoas são diferentes. Algumas são tão primitivas e outras tão más, que aparentam insensibilidade em questões de amor. Hugh e Madge não eram bastante primitivos para se contentarem com aquilo que a sorte lhes dava e, ao mesmo tempo, eram muito sadios para sujeitar a natureza aos seus caprichos. A natureza começou a vingar-se de suas inúteis tentativas de manter um relacionamento. O que começou como uma frieza imperceptível agravou-se rapidamente com o tempo, e ao final do último ano eram praticamente estranhos. Madge

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pensava, muitas vezes, que outra mulher, em seu lugar, já se teria divorciado de Hugh há muito tempo e casado com um homem comum. O mais difícil de suportar eram as brigas, já habituais. A princípio para provocar Hugh, e depois porque começava a acreditar nisso, Madge insistia em que ele não a amava e que ela não servia para ele. Todas as tentativas de Hugh para comunicar seus sonhos e seu entusiasmo, para falar de seus planos para o futuro acabavam invariavelmente com Madge chorando e gritando que não queria ouvir mais nem uma palavra.

As invenções de Hugh não estavam progredindo muito. Ou não eram práticas, ou ele demorava em requerer a patente, e quando o fazia descobria que outros inventores já o haviam feito seis meses antes.

A mais recente de suas invenções foi um curioso aparelho para medir e registrar a velocidade das locomotivas. Era uma invenção necessária e prática: não havia bons instrumentos desse tipo e a companhia ferroviária estava realizando um concurso aberto para o melhor projeto. Hugh imaginou e fez uma máquina notavelmente prática, que combinava alta precisão com um design simples. Mas também nesse caso sofreu um revés. O princípio usado, que ele acreditava ser único, fora empregado por outro inventor, que o apresentou três semanas antes de Hugh e ganhou o prêmio.

Quando soube disso, Hugh sentiu, pela primeira vez na vida, algo parecido com o desespero.

"Se eu estivesse livre do emprego, meu modelo teria ficado pronto há três meses", disse para si mesmo. "Com essa pedra em volta do meu pescoço, perderei sempre as oportunidades, e outros ficarão com o que era para mim."

Quis conversar com Madge sobre isso, mas tinha certeza de que ela não o compreenderia: opunha-se com demasiada violência às suas invenções. Dizia sempre que nada resultaria delas, que ele havia jogado fora quase que um ano inteiro, que ela tinha razão ao dizer que o dinheiro gasto na oficina e nos modelos teria sido melhor empregado de qualquer outra maneira - numas férias de verão, ou na compra de alguma coisa. Precisavam de tantas!

O que ele poderia dizer de tudo isso? Repetir novamente o que sempre dissera, que tinham de esperar, que em pouco tempo teriam tudo o que quisessem. E sabia que essas palavras, longe de acalmar Madge, iriam irritá-la e ofendê-la ainda mais.

Pensando em tudo isso, Hugh convenceu-se de que a mulher já se havia resignado à vida que levava e que desejava apenas uma pequena melhora. No fundo, é claro que sabia o que Madge realmente desejava, mas sabia também que isso significava abandonar todas as suas tentativas de invenção, e dedicar todo o seu tempo e esforços a um emprego. E não podia aceitar isso. Todo o seu ser se rebelava e protestava contra essa idéia.

Foi assim que, no dia em que tomou conhecimento do fracasso da invenção em que depositara tanta fé, Hugh sentou-se em sua sala e ficou pensando no que devia fazer a partir de então. Na parede à sua frente estava pendurada uma gravura comprada dois anos antes: mostrava Prometeu acorrentado ao rochedo e uma águia comendo-lhe o fígado. Prometeu - era como ele. A águia era seu local de trabalho, diariamente drenando sua força.

"O trabalho livre é excelente na mesma medida em que o trabalho forçado é horrível", pensou Hugh. "Aquela criatura selvagem é o precursor de nossa cultura, que, ao invés de consumir sua vítima de uma vez, faz dela um escravo. Somos as vítimas lentamente devoradas por nossos conquistadores."

Você deve ter percebido que às vezes Hugh falava por aforismos. Naquele momento, Madge chegou da rua. Fora visitar a esposa de um dos empregados da fábrica e, conversando, ficou sabendo da redução no salário do marido. Isso acontecera há dois meses, e ele ainda não havia dito nada a ela. Madge sentiu uma dor no coração. Primeiro, pela falta de franqueza de Hugh e, segundo, pela preocupação de como terminaria tudo aquilo. Hugh seria despedido! Madge sofria e sentia-se indignada com o comportamento de Hugh, porém, mais do que isso, como sempre, perturbada e cheia de inveja por ter visto os três filhos cheios de vida de sua amiga.

Foi para casa num tumulto de pensamentos e decisões. Estava disposta a ter uma conversa séria com Hugh. Era 'eu dever. Tinha de salvá-lo dele mesmo. "Ele é como um alcoólatra ou um jogador", pensou. "Vou dizer-lhe que irei embora se não deixar essa mania de uma vez por todas. Se me amar, concordará."

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"Quero falar com você, Hugh", disse Madge entrando na sala e sentando-se. Hugh franziu o cenho.

"Preciso sair", disse.

"Espere um pouco. Passo semanas inteiras sem ver você. Não agüento mais. Estive com Evelyn Johnson. Pelo amor de Deus! Sabe o que estão dizendo de você no trabalho? O diretor diz que ou você é um alcoólatra, ou um viciado em drogas. Por que se casou comigo, se não precisava de mim ?"

A conversa tomava um rumo totalmente diferente do que Madge pretendia. A relutância de Hugh em conversar, quando a culpa era toda dele, provocou uma explosão incontrolável.

Hugh ficou calado durante vários minutos, ouvindo-a. Seu rosto se tornou sombrio. Começou então a falar, interrompendo Madge que, por sua vez, continuou falando; nenhum deles ouvia o outro, cada um tentando desabafar. Hugh disse a Madge que ela não o compreendia e não o queria compreender; a fábrica interferia no seu trabalho; precisava deixá-la; só a tolerara até agora por causa da mulher; e agora, ela estava usando os mexericos de uma idiota para convencê-lo de que estava arruinando seu futuro. Como se houvesse futuro naquela fábrica! Um lugar perfeito para ele, realmente!

"Evelyn não é uma idiota", respondeu Madge asperamente. É uma mulher muito inteligente, mais inteligente do que você, por mais formidável que você se considere. Para você, todos os outros são bobos e idiotas. Só você tem cabeça. Não agüento mais isso, não agüento!

Madge começou a soluçar.

E assim, para resumir, as coisas se passaram de acordo com o padrão habitual.

Hugh acabou quebrando duas cadeiras e saindo para a rua, batendo a porta com tanta força que a rachou ao meio. Passou o resto da noite bebendo num bar. Começou a conversar com alguns atores sem trabalho, para os quais pagou bebida durante toda a noite, por toda a cidade. Mas quanto mais bebia, mais sóbrio ficava, e mais claramente compreendia sua situação.

A manhã estava sombria e chuvosa quando Hugh voltou para casa, resolvido a não ir 'trabalhar. O mundo parecia estar nu, e Hugh via claramente expostos todos os nervos e tendões da vida. Era impossível iludir-se naquela manhã. A crua verdade da vida, sem verniz ou disfarce, gritava-lhe de todos os lados. "Cede, ou será esmagado! ", dizia a vida. "Talvez já seja tarde demais; talvez você já tenha perdido o momento de baixar a cabeça, e talvez, neste momento, já esteja morto." ,

Medonhas construções de tijolos, ruas de asfalto molhado; multidões cinzentas e rotineiras, sombrias e grotescas; cascas de repolho nas latas de lixo; um velho bêbado de muletas; meninos sujos, andrajosos, de vozes agudas - Hugh olhava para tudo como se fosse a primeira vez. Jamais imaginara que a vida podia ser tão feia.

Você certamente sabe que a manhã, depois de uma bebedeira, pode ter um efeito muito salutar, especialmente para as pessoas de estômago forte e mente clara. O homem que se sente mal não pode ver a moral da fábula, mas Hugh era um homem saudável e viu a vida totalmente despida.

E o que é pior, seus sonhos de alguma maneira pareciam embaçados, sem vida e artificiais.

Sem perceber, Hugh voltou para a casa com uma resolução tomada.

Madge não estava. Sobre a mesa, havia uma carta sua, com cerca de dez páginas. Ela parecia ter passado toda a noite escrevendo. "Não sirvo para você", era o principal tema da carta. "Você esqueceu que sou mulher. Quero viver e não estou interessada no futuro, mas no presente." E concluía dizendo que escrevera para a tia na Califórnia, com quem pretendia ficar.

Hugh começou a responder a carta, mas parou na segunda página. Rasgou tudo o que havia escrito e foi dormir.

Seguiram-se dias tristes, um após o outro. Hugh várias vezes tentou conversar com Madge, mas os encontros foram sempre um fracasso. A chave que possibilita às pessoas conversarem e chegar a um entendimento pacífico parecia ter sido perdida. Em duas ocasiões discutiram violentamente. Depois disso, Hugh dificilmente ia para casa. Também não podia trabalhar e passava todas as noites num bar.

(22)

Duas ou três semanas transcorreram, e numa bela manhã Hugh acordou cedo, com uma idéia. Não era preciso pensar mais: chegara o momento de agir.

Há muito tempo eu sabia o que se passava em sua cabeça; na verdade, pude notá-lo antes dele. As pessoas freqüentemente não tem consciência da presença desse pensamento; só raramente o percebem inteiramente. Você sabe, evidentemente, do que estou falando: muitas pessoas frívolas alimentam a idéia de acabar com tudo por elas mesmas, se as coisas não correrem do jeito que planejaram. Cada pessoa tem sua versão preferida: há quem veja à sua frente um revólver; outro, um copo de veneno. Há um efeito tranqüilizador nesses sonhos, pois a vida torna-se suportável no momento em que o homem pensa em deixá-la. Essas reflexões me dão muito prazer porque afirmam meu poder sobre o homem. Talvez você não consiga compreender, mas a pessoa que encontra consolo ao pensar num revólver ou num copo de veneno acredita em meu poder e o considera mais forte do que ela mesma.

Há um tipo desagradável de pessoa para quem os pensamentos dessa natureza são totalmente estranhos. Essas pessoas não acreditam na realidade da vida; consideram-na como um sono. Para elas, a realidade está em algum outro lugar, fora dos limites da vida. Matar-se por causa de um revés é tão absurdo para elas quanto matar-se depois de ir ocasionalmente ao cinema ou ao teatro. Esse tipo de pessoa não me interessa; felizmente, Hugh não fazia parte dele. Não tinha dúvidas sobre a realidade da vida. E essa realidade simplesmente não lhe oferecia atrativos. Era uma pessoa observadora e compreendeu que vinha pensando no suicídio há algum tempo. Mesmo assim, achou que os fatores decisivos foram o fracasso de sua última invenção, a briga com Madge e sua crescente aversão ao emprego. A causa, naturalmente, é outra. Sem que soubesse, ou fizesse qualquer esforço consciente, a "idéia" já se havia desenvolvido totalmente em sua mente, fechando-a para qualquer alternativa. Gosto desses momentos na vida de uma pessoa. Eles constituem o triunfo final da matéria, frente ao qual o homem é impotente; e essa impotência jamais é tão completa e evidente como nesses momentos.

Era essa, portanto, a situação. Hugh era uma pessoa decidida, lúcida. Já havia examinado, pesado e calculado tudo o que podia ser feito, e não queria adiar por mais tempo. Você sabe como uma pessoa se sente pouco antes de uma viagem, quando imagina já ter partido, incapaz de suportar a simples idéia de um adiamento. Hugh acordou exatamente nesse estado de espírito na manhã em que minha história começa.

Tudo foi bem pensado. Cinco anos antes Hugh havia feito um seguro de vida e Madge deveria receber o prêmio, mesmo que ele se suicidasse. Hugh escreveu-lhe uma carta breve, deixou-a na gaveta aberta de sua mesa, vestiu-se e saiu de casa na hora em que habitualmente ia para o escritório. Mas dessa vez foi para a cidade.

Era cedo. Sentou-se num café e tomou um desjejum reforçado. Não sentia medo. Estava frio, decidido, calmo. Saindo do café, tomou o trem para o centro da cidade, para a Broadway. Com as mãos metidas nos bolsos do casaco, sentou-se e ficou observando o rosto dos outros passageiros, com uma leve expressão de nojo. Era a multidão de todas as manhãs. Pessoas que corriam para o trabalho, para os escritórios, bancos e lojas. Hugh as olhava, e em sua cabeça se formavam frases semelhantes à oração do fariseu: "Agradeço-vos, Senhor, por não me terdes feito como eles; agradeço-vos por me terdes dado forças para resistir à minha escravidão; dai-me forças para partir." As faces inexpressivas mostravam a Hugh a que teria se reduzido se não tivesse um espírito de protesto sempre vivo, uma vontade de lutar e uma relutância em aceitar o fracasso. As vezes seu rosto se congelava num desprezo; ele me lembrava o índio americano que no passado, desafiando a rendição, cantava a canção final antes de se atirar no abismo, do alto de um rochedo.

"Escravos", pensava ele, "escravos que nem mesmo têm consciência de sua escravidão. Já se habituaram a ela. Nunca sonharam com coisas melhores; nem mesmo experimentaram o desejo de liberdade. Sequer pensaram na liberdade. Meu Deus, dizer que eu poderia ter sido como eles! Enquanto achava que poderia superar isso, sentia-me satisfeito em poder tolerar a escravidão, mas agora tudo acabou. Não há como fugir dela, e recuso-me a ser escravo. Já sofri demais."

Observava com desprezo o vaivém dos passageiros. Tinha consciência de sua superioridade e sentia-se forte. As pessoas continuariam com suas vidas desinteressantes e tediosas, os trens continuariam a rodar, os escravos correriam para o trabalho; a chuva cairia e o tempo seria úmido, chuvoso, miserável. Para ele, tudo isso deixaria de existir amanhã. Um tiro na

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