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Violência contra mulher: o que mudou em dez anos?

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Academic year: 2021

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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

Violência contra mulher: o que mudou em dez anos? Raquel Wiggers (Universidade Federal do Amazonas)

Violência; Mulher; Direitos Humanos. ST 11: Exclusão Social, Poder e Violência

Violências: a construção de um problema social

Embora a violência seja um tema que vem ocupando o ser humano desde muito tempo, nas últimas três décadas ela passou a ser um símbolo da contemporaneidade e da modernidade. Hoje os fenômenos de violência têm tido grande repercussão e importância, fazendo que estejam presentes nos mais variados discursos sobre nossa sociedade. Supostamente a violência invadiu todas as áreas da vida e da relação do indivíduo com o mundo das coisas, com o mundo das pessoas, com seu corpo e sua mente (Freire e Costa, 1984:9), e por isso, se configura como um grande problema social. Ribeiro define

“construção de um problema social” como um processo pelo qual um determinado grupo (velhos, mulheres, crianças, índios, etc.) é distinguido e a situação em que se encontram seus integrantes é considerada, por alguma razão, socialmente problemática. A distinção do grupo se afirma pela discussão de concepções que os definem como sendo pessoas que ameaçam a paz pública ou que se devem ser especialmente protegidas ou que não devem ser discriminadas etc. A legislação é parte deste processo e constitui-se num dos principais instrumentos que atribui oficialidade a definições que não contam, necessariamente, com o consenso a seu respeito mas que num processo de lutas sociais são formalizadas como legítimas. A construção de um problema social envolve também sua transformação em objeto de mobilizações, disputas e alvo de políticas sociais. (RIBEIRO, 1999).

As grandes cidades, onde diariamente são noticiados um elevado número de casos de assaltos, homicídios, estupros e acidentes de trânsito, são os cenários privilegiados deste problema social que é a violência. A variedade das situações violentas vividas e anunciadas provocam estudos em diferentes áreas do saber, relacionadas principalmente com saúde pública, criminalidade, favelas das grandes cidades, segurança pública. Existe ampla discussão nos meios acadêmicos, na mídia e nos organismos nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos, sobre a violência. No Brasil, foi no início dos anos 80 que a discussão sobre a violência associada ao urbano e à modernidade passa a ser amplamente divulgada e debatida.

Com relação à violência doméstica contra mulheres, ocorrida dentro dos lares e das relações afetivas, em que o agressor tem relação com a mulher que agride, o movimento

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feminista teve um papel determinante em torná-la um problema social. O movimento feminista brasileiro no final da década de 70, deu visibilidade ao problema das violências perpetradas contra mulheres. As lutas feministas a respeito do tema iniciaram de forma intensa, em 1979, por ocasião do julgamento de Doca Street pelo assassinato de sua companheira Ângela Diniz. Este caso teve grande repercussão por causa da pena a qual foi condenado Doca Street: 2 anos “com sursis”, sob argumento de defesa sobre a “legítima defesa da honra” e sobre a “violenta emoção” (AMERICA WATCH, 1991; GROSSI, 1994:474, PORTO, 2002). Os olhares de todo Brasil voltaram-se para o caso Ângela Diniz porque esse caso era paradigmático de algo que estava se tornando um problema social a ser explicitado e combatido nas instâncias públicas. O caso tornou-se símbolo das lutas feministas para que homens assassinos de mulheres não ficassem impunes. Uma vez que nesta época homens acusados de assassinato de esposas e companheiras eram condenados a penas amenas sob argumento de “legitima defesa da honra”. Conforme Porto (2002), as questões a respeito da violência doméstica e conjugal passaram a ganhar maior espaço a partir do início da década de 1980, e o problema da violência doméstica e conjugal, antes da ordem do privado e do doméstico, começou a adquirir visibilidade pública ao ser tratado como uma violação dos Direitos Humanos. Ao denunciar os assassinatos de mulheres por seus companheiros, e a forma como ficavam impunes, as feministas chamavam atenção para a necessidade de se ter uma atitude policial e jurídica mais apropriada para tais crimes, criticando veementemente as teses da legítima defesa da honra e da violenta emoçãoi, que

tradicionalmente inocentava os maridos criminosos.

O movimento feminista fez grandes esforços para violência doméstica ser tratada como um problema social, e no contexto destas lutas foram criados, a partir da década de 1980, grupos ligados à denúncia dos crimes e ao amparo às vítimas, como o SOS Mulherii, os Conselhos da Condição Femininaiii, as Delegacias de Defesa da Mulheriv, e finalmente, nos anos 90, as casas-abrigov (GROSSI, 1998, p. 296; BRANDÃO, 1996, p. 20).

Entre 1996 e 1999, mais de uma década depois da implementação das primeiras DEAMs, fiz pesquisa na DEAM de Florianópolis. Entrei em contato com uma realidade recorrentemente descrita nos artigos publicados sobre as DEAMs, o uso que as mulheres fazem da queixa na delegacia. As mulheres que participaram desta pesquisa buscavam nas DEAMs um tipo de solução para seus problemas domésticos e para as situações de violência conjugal que não eram aqueles para as quais as delegacias foram criadas. Aquelas mulheres buscavam na delegacia uma intervenção em suas vidas domésticas, mas geralmente, não queriam a prisão do agressor, não queriam que o pai de seus filhos fosse preso ou fichado pela polícia. Um caso que descrevo em minha dissertação, é o de uma mulher que denuncia seu

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filho na polícia para que o rapaz leve um susto e deixe de se envolver com o tráfico de drogas. Outro caso refere-se a denúncia feita por uma mulher contra seu esposo, durante uma briga de casal em que os parentes e os vizinhos foram chamados para intervir, como ela não tinha seus parentes morando próximo, utilizou-se da queixa na delegacia como uma forma de se proteger de possíveis futuras agressões (WIGGERS, 2000).

Apesar de alguns desencontros, as DEAMs são representativas de instituições paradigmáticas que relacionam as dimensões pública e privada. Neste âmbito a violência doméstica tida como algo do mundo privado alcança a esfera pública e torna-se objeto de políticas específicas. Além disso, as DEAMs fazem o meio de campo entre a lei e a vida privada das pessoas. Os jogos de poder dentro de uma relação conjugal tem como resultado diversas formas de atitudes violentas e de opressão que nem sempre são consideradas crimes, sob a tutela do estado. Neste contexto a lista dos atos que são considerados violências se amplia para além daqueles considerados crimes pelo código penal.

Violência atualmente na DEAM de Manaus

Enquanto Florianópolis tem 250 mil habitantes, Manaus é uma cidade de 2 milhões de habitantes, ambas contam com apenas uma DEAM. Tanto em Florianópolis quanto em Manaus as DEAM estão localizadas em bairros de classe média próximos ao centro da cidade. Pelo fato de só existir uma delegacia de atendimento à mulher em Manaus, também outros distritos policiais comuns registram ocorrências de violência contra mulher perpetrada pelo companheiro. Isso torna a decisão de denunciar mais complexa e pode favorecer o sentimento de medo e vergonha de denunciar seu agressor. Mas mesmo assim, em 2005 foram 9422 casos registrados e no ano de 2006 foram 10953 casos na DEAM de Manaus, com uma média mensal de 800 casos registrados. A maior parte das denúncias corresponde à lesão corporal. Em 2005 e 2006, os principais casos atendidos na Delegacia de Defesa da Mulher em Manaus, segundo documentos fornecidos pela própria delegacia, foram: lesão corporal (“casos de espancamento, socos, bofetões, pontapés, e uso de objetos contundentes”), atentado violento ao pudor (“contato íntimo forçado, sem relação sexual”); rapto (“condução a força ou sobre ameaça para algum local com a intenção de ter contato íntimo, sem completar uma relação sexual”); ameaça (“intimidação, através de palavras ou gestos, indicando a intenção de fazer algum mal”); calúnia (“falsa acusação”); difamação (“ofensa contra a honra, na presença de outras pessoas”); injúria (“ofensa, sem a presença de testemunhas”) vi.

A maioria das mulheres que procuram a delegacia, o fazem no intuito de resolver seu problema doméstico de forma não jurídica, semelhante ao que pude observar na

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pesquisa em Florianópolis há 10 anos. A fala de uma mulher que recorreu a DEAM-Manaus em 2006 é ilustrativa:

“Sabe, ele é um bom marido, um bom pai, cuida bem dos meus filhos, não deixa faltar nada em casa, eu tenho de tudo, o único problema é que ele bebe, sabe né, a culpa de tudo é da maldita da cachaça, que faz com que ele se transforme, quando ele bebe, parece que ele fica doido, ai me xinga por tudo, me bate, mas depois, quando passa a ressaca, tudo muda, ele me leva para passear e aí ele fica é muito romântico.

Mas agora além de me bater ele quis bater nos meus filhos, há não, com eles não, sabe né, eu agüento mais meus filhos são pequeninos, já basta que eles fiquem chorando quando ele me bate, mas isso eu não vou aceitar, vim aqui na Delegacia da Mulher, para dar um susto nele, e eu sei que ele vai ficar com medo. (Entrevista – Dezembro/2006vii).

Estes exemplos são indicativos de que discutir a violência doméstica traz à tona outra discussão sobre os limites da intervenção do Estado nas relações pertencentes ao universo privado, as relações familiares. Soares (1999) levanta que “trata-se agora de experiências e tentativas de regulação da vida privada em matéria pública, uma vez que se realizam em nome da igualdade de direitos e do combate à discriminação”. E se a pretensão é refletir sobre a juridicização dos conflitos de ordem privada, faz-se necessário repensar o papel da luta iniciada pelo movimento feminista há mais de trinta anos, e continuar chamando todos os segmentos da sociedade a se indignar com esse problema social.

Considerações finais

Uma investigação rápida nos textos acadêmicos produzidos recentemente, nos aponta para o fato de a violência contra mulher ser um tema estudado principalmente como problema da ordem da Justiça e da Saúde Pública. Acredito que se deve dar uma atenção especial a essa questão: tanto a justiça, representada pela polícia e pelo judiciário, e as políticas de saúde pública, são formas institucionalizadas de tratar a questão da violência perpetrada dentro dos lares. No entanto, todos esses anos de implementação das DEAMs e outras políticas que objetivam dar fim ao problema não foram suficientemente eficientes. É o que nos mostra os dados das diversas DEAMs do país (OLIVEIRA, 2006). Mesmo que nos últimos dez anos tenha havido mudanças importantes no tratamento dado aos casos de violência domestica, como a lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) que pune mais rigorosamente os agressores de mulheres, o número de denúncias nas DEAMs ainda é muito alto, o que quer dizer que é um problema longe de estar solucionado. Além disso, o maior rigor na punição dos agressores teve como repercussão a redução nos números de queixas, principalmente por causa do que a

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entrevista transcrita nas páginas anteriores aponta, que a maior parte das mulheres não querem que os maridos agressores sejam presos, elas querem que eles parem de agredi-las.

É preciso não perder de vista todos os avanços que ocorreram com relação à questão da violência doméstica e a importância da visibilidade conseguida a partir de intensa luta política de mulheres e homens nos últimos anos. Imensos foram os avanços com relação aos direitos das mulheres nas últimas décadas.

No entanto, a juridicização e a transformação das violências domésticas em crime é apenas um dos caminhos a serem seguidos. Faz-se urgente elaborar também outros mecanismos sociais aptos a resolver este problema social que é a violência contra mulheres, e atentar para como estão sendo configuradas as relações de gênero dentro das relações matrimoniais. Voltar atenção para aquilo que as feministas tanto debateram nos fins da década de 1970: as relações hierarquizadas entre homens e mulheres, onde os atos de violência são considerados legítimos. A juridicização tem repercussão pragmática frente à violência contra mulher, os atos de violência expressam algo mais do que conflitos conjugais resolvidos de forma violenta, eles apontam para a forma como são estruturadas as relações entre homens e mulheres em nossa sociedade. É sobre isso que devemos trabalhar.

Bibliografia

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CORRÊA, Mariza. Morte em Família. São Paulo: Graal, 1983.

America’s Watch Relatório - Americas Watch, Human Rights Watch, Núcleo de Estudos da

Violência, USP, Comissão Teotonio Vilela, 1991

BRANDÃO, Elaine Reis. Nos Corredores de uma Delegacia de Mulher: um estudo

etnográfico sobre as mulheres e a violência conjugal. Dissertação de mestrado, Instituto de Medicina Social, UERJ, 1996, 188 pp. Orientadora: Maria Luiz Heilborn.

PONTES, Heloísa Andréa. Do Palco aos Bastidores (O SOS Mulher de São Paulo e as Práticas

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GREGORI, Maria Filomena. Cenas e Queixas: Mulheres e Relações Violentas. Rio de Janeiro, Paz e

Terra, 1993.

GROSSI, M. P. “Rimando amor e dor: Reflexões sobre a violência no vínculo afetivo-conjugal”, In:

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OLIVEIRA, Marcela Beraldo. Crime invisivel : a mudança de significados da violência de gênero no Juizado Especial Criminal. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Campinas, UNICAMP, 2006.

WIGGERS, Raquel. Família em conflito: violência, espaço doméstico e categorias de parentesco em grupos populares de Florianópolis. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Florianópolis, UFSC, 2000.

i Ver: CORRÊA (1983) e America’s Watch Relatório (1991).

ii Sobre o SOS Mulher em São Paulo, cf. Pontes (1986) Gregori (1993), em Porto Alegre, Grossi (1988), em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, Franchetto et al. (1985).

iii O CECF organiza a Comissão Contra a Violência à Mulher e o Centro de Orientação Jurídica e Encaminhamento em 1984, institucionalizado junto à Procuradoria Geral do Estado (PGE) em 1986 (BRANDÃO, 1996: 20).

iv As Delegacias de Atendimento a Mulheres também surgem nesse contexto, sendo inicialmente organizadas em São Paulo (1985) e no Rio de Janeiro (1986).

v As primeiras casas-abrigo foram construídas em São Paulo. O Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica em 1986 e a Casa Lilith em 1990 (BRANDÃO, 1996, p. 20).

vi Os números foram omitidos por considerar que neste artigo não eram primordiais para o entendimento da argumentação.

vii Entrevista concedida a Aryellen Bezerra Ferreira, durante a pesquisa que resultou no Trabalho de Conclusão de Curso de Ciências Sociais – UFAM, intitulado A violência contra mulher: uma análise realizada na delegacia de defesa da mulher, defendido em dezembro de 2006.

Referências

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