• Nenhum resultado encontrado

O risco dos movimentos messiânicos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O risco dos movimentos messiânicos"

Copied!
5
0
0

Texto

(1)

U

m traço distintivo da pe-quena mas relevante co-munidade judaica italiana é sua capacidade de acolhida. Be-neficiaram-se dela, através dos sé-culos, às vezes ciclicamente, ju-deus alemães, espanhóis, portu-gueses e, mais recentemente, os provenientes dos países árabes e

islâmicos. Para os judeus italianos é normal serem ortodoxos e parti-cipar da liturgia em hebraico, e a identidade coletiva nunca foi aba-lada pelo fato de serem um porto de destino. No máximo, as ques-tões hoje à mesa estão ligadas à assimilação e, ultimamente, à op-ção de alguns dos

recém-chega-dos de realizarem uma reação contra a secularização, por meio da “ultraortodoxia” militante. O líder da diáspora judaica mais an-tiga, a de Roma, é hoje o rabino Riccardo Di Segni, com quem mais uma vez nos encontramos de bom grado para conversar so-bre o que vem acontecendo.

O risco

dos movimentos

messiânicos

Tradição e movimentos

Encontro com rav Riccardo Di Segni,

rabino-chefe da comunidade judaica de Roma

(2)

RICCARDO DI SEGNI: Fiquei sabendo que uma vez João Paulo II perguntou por que os judeus roma-nos não se distinguiam por suas ves-timentas, como os judeus poloneses. O Papa, que na juventude vivera dentro de um judaísmo completa-mente diferente do italiano – o ju-daísmo polonês que se destacava, principalmente, pela quantidade –, estava acostumado a ver “judeus que se vestiam como judeus”. Há muitas maneiras de vestir-se de modo judai-co, e o judeu definitivamente se dife-renciava muito do resto da popula-ção. Na Itália, essa distância exterior não existe e talvez nunca tenha exis-tido, a não ser pelos sinais impostos na época das normas antijudaicas. Os judeus italianos sempre se vesti-ram como os outros, é uma

caracte-ção daqueles que pertencem a al-guns grupos mais ortodoxos, que ostentam alguns uniformes.

Mas é preciso fazer algumas breves premissas sobre isso.

É verdade. O mundo judaico orto-doxo tem suas variedades. Existe o modelo chamado modern orthodox, característico da pessoa de concep-ção e observância ortodoxa, que em sua vestimenta não tem sinais distinti-vos, a não ser pelo fato de que, sendo homem, cobre a cabeça, e, sendo mulher, se veste de maneira “modes-ta”, evitando expor seu corpo. Há ainda modelos impropriamente defi-nidos ultraortodoxos, de pessoas que se vestem de preto (alguns acres-centam ao preto uma simples camisa branca e um chapéu borsalino, outros usam outras especificidades). Esse panorama de códigos de vestuário é estranho à tradição italiana, e foi im-portado recentemente, pois há um movimento de pessoas – provenien-tes em sua maioria de núcleos ortodo-xos dos Estados Unidos, de Israel e ou da França – que se distinguem pelas vestes; e muito frequentemente não são judeus comuns, mas rabinos. E is-so nos leva, por outro lado, à discus-são sobre como os rabinos devem-se vestir, o que varia entre épocas e luga-res: em alguns, eram exigidas espe-ciais solenidade e austeridade e cha-péus específicos, em outros, bastava a simples austeridade; temos todas as variantes...

Se hoje, portanto, vemos plurali-dade de vestimentas também na Itá-lia e em Roma, não é por uma muta-ção do judaísmo local, mas porque foram acrescentadas essas novas

ex-periências.

¬

durante uma cerimônia; abaixo, uma reunião de Chabad-Lubavitch no Brooklyn,

em Nova York

Uma vez João Paulo II perguntou por que os judeus romanos não se

distinguiam por suas vestimentas, como os judeus poloneses.

O Papa na juventude viveu dentro de um judaísmo completamente

diferente do italiano. Na Itália, essa distância exterior não existe e talvez

nunca tenha existido, a não ser pelos sinais impostos na época das normas

antijudaicas. Os judeus italianos sempre se vestiram como os outros,

é uma característica cultural nossa não irrelevante

(3)

Uma mudança com efeitos que podem vir a ser profundos?

A primeira coisa que aparece é o elemento da mobilidade. O judaís-mo italiano, por composição, é ho-je radicalmente diferente do que an-tecedeu a Segunda Guerra Mun-dial, quando os judeus residentes eram em grande parte autóctones. O judaísmo italiano saiu do conflito reduzido à metade, empobrecido em seu componente local; em se-guida foi reforçado por uma afluên-cia de judeus provenientes do norte da África – particularmente judeus líbios, mas também em menor nú-mero egípcios, tunisianos e marro-quinos; judeus sírios e libaneses, que se estabeleceram na Itália se-tentrional; e judeus asquenazitas, que vieram da Europa Central. As-sim, o judaísmo italiano se revigo-rou mas também se fragmentou. A propósito da vestimenta exterior, nota-se uma forte influência cultu-ral do mundo asquenazita, que se tornou, ou está tentando se tornar, líder cultural do mundo religioso.

Esse é um fenômeno que foi particularmente percebido em Israel...

... até que os sefarditas se revolta-ram contra essa hegemonia – ou se-ja, contra a ocupação dos postos de liderança por determinado grupo, como ocorreu nas escolas –, che-gando até à criação de um partido político, o Shas. Mas, na tentativa de recuperar o poder, há de qualquer forma a imitação dos sinais exterio-res, pelos quais o rabino sefardita is-raelense se veste como o

asquenazi-ta da Europa Central. E isso é muito estranho; por que os rabinos sefardi-tas africanos ou do Iraque teriam de se cobrir de preto, com roupas pesa-das mesmo no verão...? Hoje nos parece que o look do rabino tem de ser um só.

Esses novos movimentos es-tão presentes também na Itália.

Eles se apresentam como uma novidade para o universo judaico, têm uma finalidade de missão inter-na. O judaísmo não faz nenhuma missão religiosa para o exterior, e a conservação das nossas tradições acontece por meio de mecanismos experimentados e antigos: as esco-las, as sinagogas, a família. Uma no-vidade destes últimos cinquenta anos é que foram promovidos movi-mentos de outreach, como os cha-mam nos Estados Unidos, que

pro-curam levar a mensagem religiosa a faixas mais extensas do mundo ju-daico, combatendo a tendência, muito presente, de se fechar no in-vólucro do pequeno grupo obser-vante e isolar-se. Os movimentos, em vez disso, procuram levar a men-sagem o mais para fora possível. São uma fórmula inédita.

Novos movimentos, arraiga-dos, porém, em algumas ex-pressões do judaísmo dos sécu-los passados.

Uma carga fortíssima desses mo-vimentos é a tradição chassídica. O

chassidismo nasceu em meados do século XVIII, como corrente em que existe um líder carismático que re-descobre no judaísmo a dimensão emotiva e espiritual, em contraposi-ção, ou pelo menos em acréscimo, ao componente intelectual que se tornou dominante no decorrer dos séculos. E esse movimento teve um grande impacto popular e se orga-nizou em torno dos líderes – que se tornam dinásticos – de grupos liga-dos a seu mestre, o rebbe. Porém, com o passar do tempo esses gru-pos, embora tivessem um notável impacto sobre as pessoas, perma-neciam sempre fechados em si mes-mos, promoviam a espiritualidade em seu interior. Uma das invenções recentes foi usar a forte carga de ca-risma que emana da autoridade pa-ra enviar pessoas pelo mundo a

di-Tradição e movimentos

À esquerda, ultraortodoxos poloneses em oração na sinagoga Chabad Shul, em Varsóvia; abaixo, o rabino Riccardo Di Segni

(4)

fundir o judaísmo. É uma forma de

missão rara no judaísmo dos

sécu-los passados: talvez não houvesse necessidade disso, pois os judeus conheciam outros modos de se or-ganizar, ao passo que hoje querem-se organizar para fazer frente à dis-persão da fé judaica...

Essa missão é realmente apenas para uso interno?

Creio que sim; essas iniciativas não são institucionalmente abertas ao mundo exterior. A missão é inter-na ao povo judaico. Mesmo os movi-mentos, tendencialmente, respei-tam muito a antiga atitude judaica de não proselitismo. Se alguém exter-no se interessa, pode de algum mo-do participar. Ou talvez, se procurar-mos, encontremos alguém que esta-va completamente perdido, que não sabia nem que tinha origens judai-cas, e assim vem a redescobrir suas raízes... Nesse sentido, nos dirigi-mos a um público mas amplo.

O movimento Chabad [mais co-nhecido como Chabad-Lubavitch, fundado no século XVIII pelo rabino

de origem polonês-lituana Shneur Zalman, de Liadi, cidade da Rússia imperial, ndr], a respeito desse tema do “não judeu”, de modo particular, vem-se dedicando a uma temática sobre a qual o resto do judaísmo con-tinua bastante imobilizado. Segundo a tradição religiosa judaica, os judeus têm uma disciplina sacerdotal espe-cífica a observar, que compreende uma quantidade abundante de nor-mas. Na tradição judaica, existem contudo também normas funda-mentais que dizem respeito a toda a humanidade, os noachidi, ou seja, descendentes de Noé, como nós os chamamos. Ora, nenhum judeu faz quase nunca missão perante os

noa-chidi, indo lembrar a eles que

exis-tem essas normas a serem respeita-das: esses grupos chassídicos, ao contrário, fazem alguma coisa.

Pode ser um instrumento de diálogo. Por outro lado, porém, esses movimentos são dirigidos por um líder carismático, com noções e práticas peculiares do carisma.

Neles há uma abordagem da tra-dição que é rígida, no sentido de que o que o mestre afirma não se discute. Em outras expressões, mesmo pertencendo ao mesmo ju-daísmo ortodoxo, há nisso sempre uma pluralidade, uma dinâmica, o confronto das possíveis soluções. Aqui age, ao contrário, uma espé-cie de dureza doutrinal. E além dis-so o carisma é pesdis-soal, no sentido de que pertence ao líder.

Trata-se também de movi-mentos messiânicos. O que im-pressiona é que em alguns des-ses ambientes a espera do mes-sias não é a espera de uma pes-soa, mas de um princípio.

Há uma grande discussão. No ju-daísmo ortodoxo, tende-se a deixar um pouco de lado a espera do princí-pio em prol da espera da pessoa. O debate não terminou. Mas dizer que o messianismo é uma época e não uma pessoa é realmente algo que es-tá à margem da ortodoxia. Foi uma das formas de racionalização – o messianismo como época e não co-mo pessoa – em que se banhou tam-bém um pouco o judaísmo italiano.

Definitivamente, como de-ve ser julgado o messianismo desses novos movimentos ju-daicos?

O messianismo mais importante pertence ao cristianismo. O cristão diz que Cristo é o messias, o cristia-nismo é messiacristia-nismo por defini-ção. Para o judaísmo, a ideia mes-siânica é uma das muitas. É uma propensão, uma espera, o judaís-mo teoricamente poderia existir – como de fato existe – sem o mes-sianismo realizado. Porém, entre as maneiras como é visto e vivido o ju-daísmo existem grupos em que a espera messiânica se torna forte. E isso se pode traduzir tanto numa in-tensa religiosidade como também numa intensa política.

Qual é o risco disso? O messianis-mo é uma ideia que impele vigorosa-mente a humanidade ao longo de sua história, mas para onde a leva? Também o marxismo, e os movi-mentos seguintes dele originados, são experiências políticas com uma carga religiosa de messianismo.

Se o messianismo dá uma carga à religião, tem um impacto positivo, mas, quando se torna uma chave

Acima, Sabbatai Zevi; à direita, Jacob Frank

O judaísmo está cheio de episódios

de pseudomessias, que a história se

encarregou de demonstrar enganadores,

mas que continuam até hoje a ter seguidores

subterrâneos

(5)

de interpretação e até existe em al-guns a consciência de um messianis-mo realizado, estamessianis-mos numa situa-ção de risco.

Algumas situações vividas pelo judaísmo asquenazita são sintomáticas.30Dias já

escre-veu a respeito de Sabbatai Zevi e Jacob Frank.

O judaísmo está cheio de epi-sódios de pseudomessias, que a história se encarregou de de-monstrar enganadores, mas que continuam até hoje a ter seguido-res subterrâneos.

É um tema implícito mas real na vida do judaísmo hoje?

A história impõe constantemen-te ao povo judeu desafios difíceis, diante dos quais nos interrogamos para entender seu sentido. Aconte-ceu várias vezes, e em relação às grandes perguntas houve grandes respostas ou, ao contrário, grandes fugas da realidade, ilusões, interpre-tações ou... movimentos. O que aconteceu ao povo judeu no século passado talvez esteja entre as maio-res coisas de sua história e nos impôs perguntas, às quais é difícil respon-der. Aqui certamente a chave de in-terpretação de resposta messiânica lança toda a sua força. Mas a inter-pretação messiânica se oferece co-mo interpretação da história não apenas no momento de infortúnio, mas também quando uma ordem mundial muda. E um dos momentos em que a ordem mundial mudou foi 1989, a queda do Muro de Berlim. Foi um divisor de épocas tão claro que levou a trilhos diferentes o curso da história, e em relação a isso hou-ve perguntas, respostas impulsivas, e também a reflexão.

Também hoje estamos num momento de mudança.

Mas talvez aconteça sem o custo de milhões de mortos... Hoje há grande incerteza: armas sempre apontadas, massas enormes de po-bres, desequilíbrios econômicos, sociedades ocidentais

atormenta-das por problemas que põem em discussão sua identidade. De um certo ponto de vista, esperamos que possa acontecer de tudo. E en-tão reaparece a ideia de que a histó-ria esteja para se completar.

Enfim, no cotidiano, o que acontece com o judaísmo tra-dicional italiano posto em con-fronto com essas novas/velhas correntes?

Há uma troca contínua, não entre grandes ideias messiânicas

– absolutamente não –, mas entre modelos de judaísmo vivido inten-sa ou marginalmente na própria vida. Há um confronto: alguns acolhem o que eles têm de bom, ou seja, a importância de uma reaproximação das tradições, ou-tros os vivem de maneira proble-mática. E há ainda um pouco de choque de tradições, pois aqueles que chegam de fora não se pare-cem necessariamente com os

or-todoxos locais... q

Tradição e movimentos

A interpretação messiânica se oferece como interpretação da história

não apenas no momento de infortúnio, mas também quando uma

ordem mundial muda. E um dos momentos em que a ordem mundial

mudou foi 1989, a queda do Muro de Berlim

Referências

Documentos relacionados

Nessa situação temos claramente a relação de tecnovívio apresentado por Dubatti (2012) operando, visto que nessa experiência ambos os atores tra- çam um diálogo que não se dá

Com a aprovação do Plano Diretor Municipal, em 2002, se estabelece o Programa de Desenvolvimento do Turismo Sustentável, tendo como objetivo aumentar as possibilidades

Microrganismos procarióticos autotróficos capazes de ocorres em qualquer manancial superficial especialmente naqueles com elevados níveis de nutrientes, podendo

do Conselho Federal de Medicina sobre esse tema. A importância do posicionamento do Conselho Federal de Medicina é indiscutível, considerando ser o órgão competente e

de Abundante, aliforme de ex- Aliforme simples e con- Abundante, aliforme sim- Predomina o aliforme sim- Abundante , contrastado, Abundante, aliforme sim- Abundante

A principal contribuição desse trabalho é a apresentação de uma solução de localização que, quando implantada em uma rede social móvel, o usuário e seus amigos possam ser

O conhecimento da freqüência destes sintomas no nosso meio é importante para alertar quanto â necessidade de diagnóstico precoce e tratamento adequado permitindo,

Desse modo, para a obtenção de produtividades elevadas das forrageiras nestes solos, torna-se necessária e imprescindível a adubação fosfatada, assim como a nitrogenada,