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O QUE ACONTECEU COM O TURISMO NA FAVELA MODELO APÓS AS OLIMPÍADAS?:

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O QUE ACONTECEU COM O TURISMO NA “FAVELA

MODELO” APÓS AS OLIMPÍADAS?:

Expectativas e frustrações após impactos da violência urbana

sobre atividades de turismo de base comunitária na favela Santa

Marta/RJ

1

Apoena Mano (Doutorando PPGS/USP)

Introdução

Favelas cariocas são objeto de formas de administração historicamente definidas sob políticas públicas que ignoram multiplicidades e heterogeneidades constitutivas dos territórios (Valladares, 2005). Nas últimas décadas, práticas, representações e formas de ação relacionadas às favelas do Rio de Janeiro são constituídas ao redor de uma gramática da violência urbana (Machado da Silva, 2010a). Contudo, as favelas foram concebidas como problemas a serem resolvidos após a confirmação de eventos na cidade como a Copa do Mundo 2014 e os Jogos Olímpicos 2016. A partir da implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), um programa de segurança pública inaugurado no fim de 2008, pudemos observar a produção de formas de governo afetando territórios e seus habitantes de maneiras diversificadas. A redução da desigualdade social era articulada a narrativas institucionais que celebravam capacidades criativas e empreendedoras das populações locais, motivando moradores a abrirem seus próprios negócios em torno de uma nova economia das favelas (Ost e Fleury, 2013)2.

A favela Santa Marta foi a primeira a receber uma UPP, em dezembro de 2008. Circulações de visitantes e turistas representavam um celebrado “direito de ir e vir” promovido em meios institucionais e midiáticos a partir da “favela modelo” – título conduzido pelo vasto repertório de projetos do poder público e da iniciativa privada que eram implementados no Santa Marta com o objetivo de, após um período de testes, serem expandidos para outras favelas (Menezes, 2015). Como revelou Bianca Freire-Medeiros, incontornável referência por elaborações teóricas sobre a mercantilização da pobreza, imaginários globais de uma ‘traveling

favela’ consumida como marca e destino turístico do Rio de Janeiro são constantemente

1 44º Encontro Anual da ANPOCS – GT07 Ciências Sociais, turismo e territórios: desafios, limites e possibilidades

2 “Ser o dono do próprio negócio é o desejo de 40% dos 12,3 milhões de moradores das favelas brasileiras”,

segundo pesquisa inédita realizada em 2015 pelo instituto Data Favela. Para comparação: no país, 23% querem ser donos de empresas, segundo a mesma pesquisa. Disponível em:

https://economia.uol.com.br/empreendedorismo/noticias/redacao/2015/03/03/40-dos-moradores-de-favelas-querem-abrir-negocio-proprio-diz-estudo.htm

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inventados, disputados e projetados em circulações transnacionais percorridas entre imagens, significados, objetos e corpos (Freire-Medeiros, 2013). Apoiados sobre este argumento, podemos analisar uma cronologia das mobilidades turísticas (Sheller e Urry, 2006; Allis, 2016) para compreender a territorialização de determinadas políticas públicas.

Neste trabalho, intersecções entre turismo e violência urbana são analisadas a partir de três períodos temporais: em 2015, políticas públicas relacionadas a um projeto de fomento ao turismo de base comunitária vinham sendo direcionadas ao território da favela – gerando efeitos subjetivos a partir do envolvimento com o empreendedorismo e a percepção de “virar empresa”; em 2018, consequências ao esgotamento do projeto urbano relativo às Olimpíadas 2016 geram na favela a percepção de que o território poderia ser descrito como um “cemitério de projetos”; em 2020, um empreendedor do turismo reúne experiências acumuladas a partir de suas mobilidades para desenvolver na favela uma ação de mitigação à pandemia de Covid-19.

Para tanto, serão utilizados relatos de uma pesquisa sócio-etnográfica realizada sobre a analise de dinâmicas de produção do espaço urbano entre a mercantilização turística e a violência urbana3. Compreendendo que o tempo presente é composto a partir de uma

reconstrução do passado a partir de questionamentos realizados no agora e de sua ressignificação como futuro, perspectivas diacrônicas serão acionadas nas considerações finais em interpretações a partir de duas categorias dialéticas elaboradas pelo historiador alemão Reinhart Koselleck (2006): a) a percepção dos habitantes sobre políticas públicas e intervenções anteriores na favela pode ser interpretada como a composição de um “espaço de experiência”; b) a atribuição destas experiências anteriores às circunstâncias e decisões do presente desenvolvem a produção de um “horizonte de expectativa” condicionado a um futuro que não pode ser antecipado.

2015 - “Virar empresa”

Durante entrevistas e diálogos estabelecidos na favela Santa Marta em 2015, descrições sobre “um novo momento” atribuído à “possibilidade de empreender na favela” eram repercutidas e narradas por alguns moradores em seus comentários sobre o programa de “pacificação”. Estas impressões foram conduzidas pelo Rio Top Tour, um projeto de Turismo de Base Comunitária apresentado como uma possibilidade de aproveitar o potencial turístico

3 Esta pesquisa é realizada desde 2015 por meio de técnicas como observação participante em roteiros de turismo, eventos e celebrações locais, reuniões comunitárias e entrevistas semiestruturadas com moradores, empreendedores e guias de turismo e lideranças comunitárias. Além disto, é executado um acompanhamento constante do impacto local de representações sobre a favela difundidas em veículos institucionais e midiáticos.

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da das comunidades carentes a partir da inclusão dos próprios moradores4. Envolvendo o

Governo Federal, Governo Estadual e o SEBRAE numa associação entre inclusão social e possibilidade de negócios, o projeto produziu impactos e efeitos contundentes na favela - como a instalação de uma estátua de Michael Jackson no mesmo local onde o artista esteve em 1996. Motivados pela expectativa de alcançar uma melhor qualidade de vida, diversos moradores passaram a movimentar suas vidas em direção ao mercado, influenciados pela promessa da “inclusão social” a partir do empreendedorismo. Muitos moradores abriram seus próprios negócios relacionados a turismo, gastronomia, comércio e atividades culturais associados a uma valorização de identidade atribuída às desigualdades sociais paradoxalmente identificadas na própria favela – assumindo determinadas condutas estimuladas pelo governo (Freire-Medeiros, 2015).

Interessado em investigar as dinâmicas locais consequentes ao crescimento do turismo em favelas, estabeleci interlocuções com moradores alinhados aos projetos e iniciativas de promoção do empreendedorismo na favela. Pude perceber que havia um intenso engajamento individual em torno de um repertório narrativo em comum: buscar “oportunidades” relacionadas à “integração” pela “qualificação” e “formalização” para o “mercado de trabalho”. Estímulos ao comércio local eram vinculados à crescente circulação de novos consumidores pelo território da favela – turistas, artistas, celebridades, repórteres, etc. A partir destes novos fluxos de mercado, o empreendedorismo pode ser representado pela rede de trabalhadores que participavam direta ou indiretamente das crescentes atividades turísticas: guias de turismo, mas também comerciantes de souvenirs, donos de restaurantes e biroscas.

Considerando o lançamento do programa Rio Top Tour logo no início da pacificação, o envolvimento com o Turismo de Base Comunitária é um exemplo bastante acionado e reconhecido por estes moradores para identificarem suas opiniões e seus imaginários sobre o crescimento dos negócios dentro da favela (Mano, Mayer e Fratucci, 2017). Por exemplo, enquanto apresentava as novas sociabilidades que ocorreram a partir da instalação das UPPs, uma moradora me contou que se tornar empreendedora e guia de turismo provocou em sua vida um impacto tão significativo que podia ser interpretado como um renascimento. De acordo com ela, a percepção no Santa Marta sobre o incentivo ao empreendedorismo era de que as favelas cariocas, reconhecidas em diversas instâncias por suas condições de desigualdade e pela “ausência do Estado”, estavam finalmente sendo percebidas e incluídas nos negócios da cidade:

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Eu costumo dizer que eu nasci do Rio Top Tour. A gente aqui, empreendedores, nós nascemos do Rio Top Tour. (...) Um projeto do governo do incentivava os moradores a trabalhar com o turismo e o empreendedorismo. A gente pegou essa bandeira, a gente abraçou. Nós vestimos a camisa e estamos ai hoje. Estamos amadurecendo e crescendo. Nós com outros moradores e outras favelas criamos a rede CONTUR com apoio do SEBRAE. Estamos nos desenvolvendo.”

(Empreendedora/Guia de turismo – Entrevista/2015)

Mesmo subordinada a uma presença diferenciada pelo ordenamento social promovido pela presença policial permanente, aquela percepção de “chegada do Estado” estava condicionada à possibilidades pelo envolvimento com aqueles novos negócios relativos ao turismo. Decididamente, a chegada do Estado à favela “pacificadas” foi essencialmente fundamentada por empresas, projetos sociais e turistas em um objetivo bastante definido: produção de capital e lucro; empreendedorismo na favela e ampliação do mercado consumidor. Em decorrência, moradores que enxergavam um horizonte de expectativas no empreendedorismo imaginavam oportunidades para si vinculadas ao desejo de “virar empresa”.

Duas tomadas de posição se tornaram predominantes naquele momento. Como resumiu uma liderança local durante um relato, movimentações turísticas eram percebidas como uma oportunidade de “prosperar economicamente” ao mesmo tempo que se poderia “descortinar a favela para o mundo, mostrando suas especificidades e suas culturas”. Podemos destrinchar estes aspectos. Em primeiro lugar, havia uma sensação implícita sobre a necessidade de acompanhar a nova movimentação de mercados e projetos na favela e não “ficar para trás” sofrendo adversidades relacionadas ao aumento do custo de vida suscitado pelas especulações. Em segundo, uma constituição de identidade regida pelo “empreendedorismo de favela” é incorporada em diversas práticas e discursos. Quando perguntei a empreendedores do turismo sobre opiniões locais a respeito da abertura de novos negócios na favela, eles mencionavam termos como “coragem” e “atitude” para qualificar o exercício de seus saberes específicos: entender burocracias, assinar carteiras e regularizar empreendimentos não seriam tarefas de fácil execução prática (De Tommasi e Velazco, 2013). Enquanto prosperavam economicamente, estes empreendedores vinham assumindo identidades relacionadas às novas representações (positivas) da favela em uma cidade “pacificada”. Entretanto, o esgotamento do projeto urbano do Rio de Janeiro se desdobrou em consequências diretas para estes sujeitos.

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Figura 1: Michael Jackson de braços abertos para o Cristo Redentor5

Expectativas e impressões sobre a manutenção da “pacificação” após as Olimpíadas eram revestidas por um tom reticente. Para o dono de um restaurante que entrevistei em 2015, a curiosidade dos turistas sobre o Santa Marta era motivada por uma condição qualitativa daquele local em relação a outros territórios pertencentes ao programa das UPPs: “eles sabem que aqui realmente é pacificado, que não é que nem outros lugares que pacificou e continuou perigoso”. Acontecimentos em torno deste morador são ilustrativos para uma passagem entre 2015 e 2018. Destacando-se como um importante empreendedor durante o “auge” da “pacificação”, Zequinha envolveu-se de maneira intensa nas oportunidades da “pacificação”, inclusive recebendo prêmios de revistas especializadas. Após o retorno de disputas armadas sobre o controle territorial da favela, pessoas envolvidas com o crime passaram a exigir que policiais não fossem mais atendidos pelos negócios na favela. Rumores indicam que este empreendedor foi acusado de insistir em servir refeições para policiais da UPP em seu restaurante, além de fornecer informações sobre dinâmicas locais aos agentes. Em decorrência deste contexto, ele foi obrigado a vender seu restaurante e rapidamente sair da favela – uma represália que não ocorria de maneira isolada, mas em continuidade a um fenômeno que vinha ocorrendo simultaneamente em diversas favelas da cidade6.

5 Disponível em:

https://oglobo.globo.com/rio/bairros/santa-marta-ainda-mais-pop-20-anos-apos-michael-18686557.

6 O relato desta situação no Santa Marta é utilizado em uma reportagem para explicitar que “não é um caso isolado”, mas ocorrem retaliações semelhantes em diversas favelas “pacificadas” da cidade: “muitos moradores de favelas que acreditaram nas UPPs hoje temem pelo seu futuro. Alguns, assim como o ex-comerciante, já receberam recados de traficantes para deixar suas casas”. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/moradores-de-comunidades-do-rio-que-apoiaram-upps-sofrem-retaliacoes-de-traficantes-21779287

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2018 – “Cemitério de projetos”

Durante os primeiros anos do programa das UPPs, foi possível verificar formas de governo e planejamento urbano baseados na tendência global de articulação entre lógicas militarizadas de gestão de espaços e o deslocamento de fronteiras urbanas como frente de expansão do capital financeiro (Telles, 2010). É indispensável ressaltar que determinadas questões permanecem e se reconfiguram tanto durante a “pacificação”, quanto nos momentos determinados por seu esgotamento. Sincronicamente ao acionamento de um regime discursivo diferenciado sobre as favelas com UPPs a partir de adjetivos como “potência” ou “diversidade” (De Tommasi, 2018, p. 196), em outras partes das cidade as favelas que não foram pacificadas permaneciam como alvo de homicídios e operações policiais constantes.

Chegando ao marco de 10 anos após o lançamento do programa das UPPs, indicativos em diferentes esferas revelam um acentuado processo em que a militarização do cotidiano é elevada a elemento predominante nesta dialética: novas inflexões no governo institucional7;

agravamentos em estatísticas de segurança pública8; e trágicos homicídios ocorridos em favelas

ocupadas pelos policiais9. Como consequência, o fracasso da “paz” justifica uma “guerra” que

perde seu caráter metafórico para ser convertida em forma de governo (Birman e Leite, 2018). Na favela Santa Marta, conflitos territoriais armados se tornam mais uma vez recorrentes nos momentos posteriores aos Jogos Olímpicos 2016. Experiências e imaginários conduzidos pelo empreendedorismo e o turismo em favelas são desestabilizados por imagens de tiroteios e pela reconstituição de uma ordem social caracterizada pela criminalidade violenta.

No decorrer dos meses seguintes ao término dos Jogos Olímpicos 2016, a expectativa coletiva gerada pelos investimentos mobilizados pela cidade foi tomando ares de ceticismo frente à realidade percebida pelos moradores. Orçamentos excedidos, denúncias de corrupção, legislações de exceção, construções atrasadas e não-terminadas, remoções de habitações, violência policial e insurgências urbanas são acontecimentos que reduziram expectativas em

7 Entre estes episódios: a declaração de Estado de Calamidade Pública posterior aos Jogos Olímpicos 2016; um despedaçamento do governo Sérgio Cabral, com o pedido de exoneração do secretário José Mariano Beltrame e a posterior prisão do próprio ex-governador por corrupção; a declaração de uma Intervenção Federal-Militar na segurança pública do Rio de Janeiro, em 2018.

8 Dados da série histórica de Letalidade Violenta por 100mil habitantes na cidade do Rio de Janeiro: 24,2 em 2012; 25,1 em 2013; 24,0 em 2014; 24,1 em 2015; 29,4 em 2016; 32,5 em 2017; 29,7 em 2018. Em 2017, a taxa de letalidade policial em favelas “pacificadas” (16,5) era quase o triplo da do Rio de Janeiro como um todo (6,7). Disponível em: <http://www.ispdados.rj.gov.br/Arquivos/SeriesHistoricasLetalidadeViolenta.pdf>

9 Entre estes homicídios: a chacina da Maré, em que dez pessoas foram assassinadas em junho de 2013; o desaparecimento do pedreiro Amarildo, na Rocinha, em julho de 2013; o caso de Claudia Silva Ferreira, que foi baleada no Morro da Congonha e arrastada pela viatura policial que a socorreu, em 2014; e os cinco jovens assassinados em Costa Barros com 111 tiros, em 2015.

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escala nacional à sensação de frustração (Müller e Gaffney, 2018)10. Em um intervalo de poucos

anos, a favela Santa Marta, vitrine de uma erupção de negócios e projetos sociais é marcada por um contraste notório no discurso dos habitantes.

Em dezembro de 2018, passados exatos dez anos da instalação da UPP Santa Marta, policiais e traficantes protagonizam continuados tiroteios em disputas territoriais rotineiras. Reportagens midiáticas utilizavam a significativa queda no número de turistas para ilustrar “uma realidade bem diferente dos sete anos anteriores”11. A conquista do “direito de ir e vir”

que possibilitava a circulação de turistas, projetos e políticas estava gravemente prejudicada. A despeito das promessas de inclusão destacadas nos primeiros meses após o lançamento das UPPs, a experiência de militarização sobrevive à contramedida de uma desarticulação do comprometimento a favor de ações sociais. Em uma entrevista concedida ao Portal G1 em 2018, o presidente da Associação de Moradores da favela Santa Marta apresenta sua frustração sobre a “falência total do projeto” das UPPs a partir de uma comparação do espaço da favela com um “cemitério de projetos”:

Avalio o Santa Marta hoje como um cemitério de projetos, de obras. Projetos que foram outrora recebidos com aplausos pela população, mas pela não continuidade, a gente hoje está chorando o leite derramado. É triste falar isso, mas o desgoverno, a falta de política pública para dar continuidade ao projeto, faz com que nós fiquemos tristes em ver essa falência total do projeto no Santa Marta, que foi considerado uma favela modelo de pacificação.

(Zé Mário – Entrevista ao G1 24/12/2018)12

Em comparações entre 2015 e 2018, pude notar mudanças na própria narrativa de moradores e empreendedores sobre a UPP. Após a realização de um tour, uma guia de turismo comentou comigo que logo após as Olimpíadas voltaram a ocorrer diversos tiroteios na região do pico da favela e “as coisas voltaram a ser como eram antes”. O fogo cruzado permaneceu constante por algumas semanas até que a polícia resolveu ceder e reduzir as trocas de patrulha que aconteciam dentro do território da favela. Entretanto, se moradores tinham suspeitas em 2015, o mesmo pode ser dito sobre os atores externos que vinham atuando na favela. A partir do momento em que a polícia parou de circular pelo morro, várias empresas também saíram da favela, assim como iniciativas que aconteciam pontualmente também deixaram de ocorrer.

10 Efeitos percebidos também nas experiências de grandes eventos esportivos em outros países, como África do Sul e Índia (Maharaj, 2015)

11 Reportagens mencionam a movimentação do turismo como sintomas da retomada da violência. Por exemplo,

“se no período pós-instalação da UPP eram 2.000 visitantes por mês, atualmente não chegam a 200, segundo guias do local”. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/09/27/antes-pacificado-morro-dona-marta-no-rio-registra-dois-tiroteios-por-semana

12 Disponível em:

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Tomando o ano de 2015 como parâmetro de comparação com a retomada dos tiroteios, um morador comentou que preferia a época que “o problema era ter muita gente circulando pela favela”. Para ele, “quando tinha 2 mil turistas de fora na quadra, fazendo eventos onde a população local nem podia entrar, era um problema melhor de se enfrentar”. Acompanhando alguns tours pela favela, pude notar diferenças e efeitos relacionados a este novo momento: de início, os guias rotineiramente informam que a favela estava sendo habitada pela presença simultânea de “gente do narcotráfico e gente da polícia” e que em locais que a polícia não pode mais circular poderia ser possível “encontrar traficantes armados durante o tour”. Em agosto de 2017, inusitados debates foram suscitados pela frenética circulação de uma imagem da estátua de Michael Jackson. A repercussão foi motivada por uma reunião icônica entre “pacificação”, turismo e violência urbana: um fuzil foi colocado na estátua, pendurado em seu pescoçoi.

Figura 2: Fuzil posicionado na estátua de Michael Jackson13

Memórias de um passado que vinham sendo evitadas são retomadas de maneira urgente em tentativas coletivas de interpretar o que pode ocorrer no futuro. Seja por investimentos, capacitações, projetos sociais ou grandes narrativas sobre a “pacificação”, as expectativas e

13 Disponível em:

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desejos produzidos pelas UPPs ocultam algo para além daquilo que mostram: o acontecimento do empreendedorismo voltado às favelas e suas populações está entre “diversas máscaras que têm sido colocadas no trabalho informal visando ocultar sua verdadeira face” (Oliveira, 2017), figurando como um mecanismo que desvia responsabilidades do Estado através de um culto ao mercado enquanto instituição neutra e reguladora das relações sociais. Com a retomada do fogo cruzado na favela Santa Marta, uma gradual desformalização14 de comércios, negócios e

empregos é expressiva da reinvenção de uma eficiente lógica de dominação social que responsabiliza exclusivamente os próprios trabalhadores por seu próprio sucesso ou fracasso. Individualização de problemas sociais convertida em autoestima para alguns e angústia para outros.

Ainda que circunscritos numa lógica da profissionalização, e certamente tocados por suas recentes experiências, o acionamento do passado ainda seria utilizado por alguns moradores como principal tentativa de interpretar um futuro incerto: “com o fim da UPP, a favela volta a uma dinâmica que já conhecíamos antes. As pessoas acreditaram e apostaram na UPP, e agora precisam se reacostumar à forma que era antes. Para mim, parece ser uma reciclagem da forma de lidar com essas coisas”, argumenta uma das primeiras moradoras a envolver-se com práticas empreendedoras na favela. Entretanto, seria enganoso ignorar que a experiência de “pacificação” produz nos habitantes novos repertórios de ação possíveis.

2020 – “Cuidar dos nossos”

Entre celebrações relativas ao suposto “direito de ir e vir” em favelas conquistado pela “pacificação” na cidade, o empreendedor Thiago Firmino se consolidou como um dos principais representantes de um fenômeno emblemático daquele período: o turismo em favelas. Deixando de lado debates éticos relativos a moralidades, contradições ou oportunismos sobre esta prática econômica, Thiago se destacou como um empreendedor que busca o sucesso profissional à medida em que conduz a atração de benefícios para a favela – como a articulação de projetos sociais, doações de diversos meios ou mesmo o direcionamento de parte de seu lucro para obras em creches na favela. Trabalhando como guia de turismo de base comunitária, suas atividades diárias eram percorrer o território da favela dialogando entre moradores locais e agentes externos.

14 O estímulo ao empreendedorismo condicionado à formalização do comércio ocasionou impostos e o aumento do custo de sustentação. Em um momento anterior, o preço da formalização era ofuscado pelo desenvolvimento do comércio e aumento do lucro. Entretanto, quando os circuitos de visitação são atingidos, o lucro diminui e a formalização promovida como oportunidade torna-se um problema.

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Em determinadas situações, é possível observar como diferentes capacidades, interesses e interlocuções se articulam no exercício de um capital de rede (URRY, 2012), em que se manifestam formas de ação baseadas em capacidades de gerar, sustentar, coordenar e instrumentalizar relações a partir do desenvolvimento de conectividades e contatos. No caso de Thiago, esse capital de rede envolve a interlocução entre contatos dentro e fora da favela. Formas de capital de rede se desenvolvem entre dois eixos de sua interação a partir do turismo: de um lado, ao transitar diariamente pela favela conversando com diferentes moradores, Thiago estava sempre informado sobre acontecimentos, problemas e rumores relacionados a questões que se estendiam desde problemas e falhas em serviços públicos até denúncias sobre condutas policiais. Por outro lado, não eram apenas turistas que contratavam o guia para caminhar pela favela, mas também repórteres, jornalistas, artistas, celebridades, defensores públicos, produtores culturais, etc. Enquanto atuava como um intérprete da favela em diálogo com estes atores, Thiago estabelecia contatos que viriam a ser acionados em outras oportunidades. Por exemplo, o combate à pandemia de Covid-19 no ano de 2020.

Em 20 de março de 2020, o governo brasileiro decretou estado de calamidade pública federal devido à situação de emergência global por conta da pandemia de Covid-19. Inicialmente as recomendações oficiais para lidar com o novo coronavírus estavam muito mais voltadas para as classes médias e altas e não levavam em consideração o contexto e as condições materiais em que sobrevive a maior parte da população brasileira. Preocupados com os efeitos das contraditórias formas de governo e estratégias de controle propostas pelos órgãos oficiais, moradores de favelas e periferias do país começaram a se organizar para tentar lidar com os efeitos da pandemia em seus territórios de moradia, uma vez que já́ previam que qualquer tipo de apoio governamental demoraria ou sequer chegaria nas áreas e camadas mais pobres.

Preocupados com os riscos de doença e morte potencialmente ocasionados pelo avanço da Covid-19, Thiago reuniu voluntários e uma gama de informações técnicas para dar inicio a uma agenda periódica de lavagem das ruas, becos e vielas da favela. Em pouco tempo, a ação de sanitização da favela Santa Marta ganhou destaque nas redes sociais, em matérias jornalísticas e até em capas de jornais nacionais e internacionais. A ação foi motivada pela perspectiva de que a favela estaria desamparada em termos de planejamento ou políticas públicas, e essa questão é continuamente repetida pelos coordenadores da ação: “A gente não recebeu nenhuma ajuda do poder público, então resolvemos sanitizar a favela com o objetivo de cuidar dos nossos!”.

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Figura 3: Voluntário desinfeta a estátua de Michael Jackson durante a pandemia de COVID-1915

A iniciativa só foi possível porque Thiago Firmino associou suas experiências acumuladas: contando com uma longa trajetória de ativismo e atuação em diversas organizações comunitárias, além de ser guia de turismo e empreendedor, o morador conseguiu articular variadas formas de contatos e colaborações para estruturar, viabilizar e divulgar a ação. Em um momento de distanciamento social, foi através de redes de contato estimuladas pela integração ao turismo que a liderança conseguiu: a) reunir recursos materiais (a partir de doações para compras de equipamentos e materiais de limpeza); b) reunir e adaptar conhecimento técnico para desenvolver a sanitização (a partir de recomendações de especialistas sobre as substâncias apropriadas para uma limpeza eficaz e técnicas que deveriam ser usadas para dissolução e aplicação dos produtos); c) divulgar amplamente a ação comunitária no âmbito nacional e internacionalmente (a partir da atuação da liderança como colaborador do RJTV da rede Globo e dos contatos que já possuía com jornalistas do mundo todo que visitaram o Santa Marta em diferentes momentos para produzir matérias sobre temas diversos).

15 Disponível em: <

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Considerações finais

“A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, que não precisam estar mais presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é preservada uma experiência alheia. Neste sentido, também a história é desde sempre concebida como conhecimento de experiências alheias” (Koselleck, 2006, p. 309–310).

“Horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser contemplado; a possibilidade de se descobrir o futuro, embora os prognósticos sejam possíveis, se depara com um limite absoluto, pois ela não pode ser experimentada (Koselleck, 2006, p. 311).

Entre as expectativas produzidas pela inauguração do projeto das UPPs, é possível apontar perspectivas estabelecidas por um espaço de experiências sobre as favelas cariocas. Entre eles: a) o estabelecimento de segurança a toda a população da cidade, incluindo boa parte dos moradores nas localidades alvo de sua implantação no futuro (Machado da Silva, 2010b); b) a conquista local de direitos, associada a uma maior oferta de serviços públicos, mais oportunidades de estudo, mais negócios, maior acesso ao lazer, e mesmo de maior espaço para a atuação na sociedade civil (Burgos et al., 2011); c) a participação local nas políticas que afetam os moradores da favela e a redistribuição do acesso aos bens públicos com garantia de direitos de cidadania (Fleury, 2012); d) um anseio para o Estado romper de fato com práticas regidas sob a “metáfora da guerra”, garantindo aos moradores locais, de forma permanente, o mesmo tratamento a que têm direito qualquer cidadão (Leite, 2012).

A visibilidade da movimentação de grandes montantes de ideias, investimentos e projetos direcionados ao Santa Marta conduzia a impressão de que aquele momento poderia ser diferente do histórico anterior – constituído por políticas interrompidas. Entretanto, para além da garantia pública de direitos sociais, o caminho para a inclusão social é institucionalmente condicionado a um disciplinamento subjetivo ao mercado através de uma perseguição competitiva aos repertórios de uma “brecha da cultura”16 - onde contrastes sociais articulados

à criatividade local se tornam matéria-prima geradora de valor (De Tommasi, 2018).

16 Expressão do Secretário da Identidade e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (MinC) em 2003, utilizando o empreendedorismo e o esforço individual como justificativa e solução de problemas estruturais e

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Em resumo, é possível assumir que a UPP Santa Marta não fomentou formas de participação política. Contudo, isso não significa dizer que a experiência do programa não tenha engendrado ferramentas para a constituição de novas lideranças e formas de ação coletiva – e um renovado horizonte de expectativas. Como demonstrou Camila Moraes, a constituição de uma favela turística define e redefine novas identidades nos territórios, implicando tanto novas sintaxes, gramáticas e vocabulários no processo de reelaboração dessas identidades quanto a capacidade de tradução de processos e demandas identificados pelos próprios moradores (Moraes, 2016, p. 90, 91). Uma renovação em capacidades de produção de críticas e repercussão de denúncias pode ser indicada como consequência das ‘mobilidades turísticas’ que atravessaram o território e os habitantes da favela Santa Marta.

Termino esta comunicação com um apontamento sobre implicações do turismo em modificações em formas de representatividade política da favela. Assim como lideranças mais tradicionais de favelas, Thiago Firmino, responsável pela ação contra a Covid-19 na favela, pode ser pensado como parte de uma “burguesia favelada” (Machado da Silva, 2011) por suas articulações entre “local e supralocal” (Leeds e Leeds, 1978). Contudo, diferentemente de concepções mais tradicionais de liderança em movimentos de favelas e periferias, ele não faz parte da Associação de Moradores e também não está ligado a alguma instituição formal da favela. Assim como muitas novas e jovens lideranças de favelas cariocas, Thiago atua de forma menos institucionalizada, articulando experiências e conhecimentos de sua trajetória pessoal e profissional a partir de iniciativas autônomas que entrelaçam projetos sociais, empreendedorismo e ativismo político.

Referências Bibliográficas:

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DE TOMMASI, L. Empreendedorismo cultural nas margens da cidade. In: Militarização no

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desigualdade social: “através da “brecha da cultura”, o combate à pobreza, a gestão participativa e o respeito e valorização da “diversidade” permitiriam gestar um “outro Brasil”” (De Tommasi, 2018).

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