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Levantado do Chão - José Saramago

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Academic year: 2021

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LEVANTADO DO CHÃO

l. AUTOR

JOSÉ SARAMAGO

Saramagoé um autor português, nascido em 1922.

Ele se tornou o mais importante escritor de seu país no momento.

Autor de muitos livros desde 1947, ficou especialmente famoso a partir da publicação de “Levantado do Chão”, em 1980.

Além de romances, escreve crônicas e poesia.

Viaja pelo mundo inteiro fazendo palestras literárias. É especialmente ligado ao Brasil.

Ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1998.

1. PERSONAGENS

Domingos Mau-Tempo

- mulher: Sara da Conceição

- filhos: João, Anselmo, Maria da Conceição, Domingos João Mau-Tempo

- mulher: Faustina

- filhos: Antônio, Gracinda e Amélia Gracinda Mau-Tempo

- marido: Manuel Espada - filha: Maria Adelaide Vigário: Pe. Agamedes

Latifundiários: Lamberto (antepassado), Norberto, Alberto, Dagoberto e outros com final do nome em“...berto”.

Principal líder dos tabalhadores rurais:

Sigismundo Canastro, casado com Joana Canastra, dono do cão Constante. Autoridades militares:

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Tenente Contente Sargento Armamento Cabo Tacabo

Guarda João Calmedo

2. ENREDO

1ª GERAÇÃO – ERA DE DOMINGOS MAU-TEMPO

Domingos Mau-Tempo era um rapaz que namorava Sara da Conceição, cujo pai, Laureano Carranca, não queria o namoro porque Domingos bebia muito. No entanto, Sara engravidou. Por causa disso houve o casamento na cidade onde moravam, Monte Lavre.

O menino João nasceu com os olhos azuis, mostrando sua antiga ascendência – datada de quinhentos anos – de Lamberto Horques Alemão, que se estabelecera na região, dono de terras, chefe de família que imigrara da Alemanha. Os antepassados de João, porém, não eram ricos, pois provinham do engravidamento que o rico alemão realizara, à força, num moça portuguesa pobre, morena, de origem moura.

Domingos resolveu ir para longe. Estabeleceu-se em São Cristóvão como sapateiro. Apesar de ter afirmado ao sogro que mudaria de vida, continuou bebendo muito, chegando a, sob efeito do álcool, bater em Sara. Muitas vezes ela teve que procurá-lo nas ruas ou nas tavernas embriagado. Mesmo assim, havia bastante trabalho para o sapateiro, a ponto de contratar um ajudante. No entanto, Domingos desconfiou, injustamente, que ele andava de amores com Sara, nova e legitimamente engravidada pelo marido. O rapaz teve que fugir e Domingos mudou-se com a família para Torre de Gadanha, onde morava o pai dele, um carpinteiro viúvo. Na saída de S. Cristóvão, Domingos quase apanhou do senhorio, a quem devia o aluguel.

Embora o velho não se desse com o filho, tomou o encargo de ir introduzindo o neto João em seu ofício. Sara dera à luz o segundo filho, Anselmo, tão logo chegara ao lugarejo.

Não suportando viver com o pai, Domingos resolveu mudar-se de novo. Transferiu-se com a família para Landeira.

Na nova localidade, fez amizade com o vigário, Pe. Agamedes, que vivia maritalmente com uma suposta sobrinha. O casal se tornou padrinho de João Mau-Tempo. E Domingos acabou assumindo as funções de sacristão. No pequeno armazém do padre – pois nas horas vagas era comerciante – os compadres bebiam bastante. A “sobrinha” do vigário trabalhava na venda. Um dia, Domingos resolveu declarar à comadre que estava desejoso dela. Sem corresponder, a mulher contou isso para o padre. Embora sem poder dizer em público o verdadeiro motivo de sua raiva, o vigário destituiu o sacristão e proibiu suas idas à venda. Irado, Domingos resolveu vingar-se. Certo dia, tomou a iniciativa de convidar os moradores de Landeira a iremà igreja, mesmo não sendo dia de festa. O padre, ao ver tanta gente – habitualmente os freqüentadores eram poucos – se surpreendeu. A cerimônia ia se desenvolvendo normalmente, dirigida por um Pe. Agamedes mais entusiasmado, quando o sacristão tocou a campainha; os presentes se calaram, o celebrante ficou furioso, partiu para

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cima do sacristão e os dois se engalfinharam em público, na igreja, para escândalo dos assistentes. No dia seguinte, Domingos e a família foram embora, vaiados pela criançada de Landeira.

Domingos e os seus continuaram com suas mudanças: moraram em Santana do Mato, Tarafeiro, Alfeiteira e Canha. Nasceram-lhes mais filhos, uma menina, Maria da Conceição, e um menino, Domingos. A situação ia de mal a pior: o pai bebia muito e a família passava privações.

Certo dia, Domingos Mau-Tempo abandonou a casa. Sara pediu a uma vizinha que escrevesse uma carta para o pai, em Monte Lavre, rogando, pela primeira vez, que ele a recolhesse com os filhos: confessava haver errado não ouvindo os seus conselhos, estava arrependida e na miséria. Um irmão de Sara foi buscá-la e, então, ela e os filhos passaram a viver em Monte Lavre, amparados principalmente pela mãe.

Depois de algum tempo, Domingos veio a aparecer na região, primeiro a distância e, finalmente, indo ao encontro da família. Confessou arrependimento, prometeu regenerar-se. Acabou sendo readmitido, inclusive pelo sogro, e foi morar com a família numa localidade próxima. Sara trabalhava de ajuntadeira, para ajudar na manutenção, e o marido servia na oficina do mestre Gramicho.

Aos poucos, Domingos foi entrando em depressão, até que resolveu ir embora, a pretexto de procurar trabalho em outra terra. Após dois meses, retornou contente dizendo haver arrumado serviço em Ciborro. Lá situada, a família entrou numa fase boa. Havia trabalho bastante, Domingos parecia realmente regenerado da bebida.

Há lendas populares de que homens viram lobisomens ou animais e vão destruindo as pessoas. Muita gente acredita que haja quem viva vida dupla. O mal tomou conta novamente de Domingos: ele voltouà bebida, às surras na mulher e filhos. Estes diziam que o pai estava excomungado. João Mau-Tempo freqüentou um pouco a escola, mas os colegas o maltratavam.

Uma tarde, enquanto a mulher trabalhava e os filhos estavam fora, Domingos recolheu suas roupas, pegou um pouco de pão e sumiu. Logo em seguida, Sara teve outra filha, que morreu com oito dias de vida.

Dois anos depois, a desencantada mulher teve notícias de que Domingos tornara a aparecer em Cortiçabas. Arrebanhou os filhos e foi para Ponte Cava a fim de viver com uns parentes chamados Picanços, sob a proteção de quem se esconderam. Domingos apareceu e brigou com José Picanço porque queria a família de volta e o outro impedia. Os dois acabaram se preparando para uma espécie de duelo. No entanto, em vez de lutar, Domingos voltou correndo para o lugar de onde viera. Parou perto de Monte Lavre para descansar e entrou num delírio, sem estar bêbado. Tirou do bolso uma corda e se enforcou.

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João Mau-Tempo com dez anos de idade passou a ser o homem da casa, herdeiro sem herança. Carregando enxada maior que ele, na casa dos Picanços trabalhou para ajudar a mãe. O irmão Anselmo esmolava.

Deram serviço de adulto para o menino, que trabalhava na roça com afinco e recebia o mesmo mísero salário dos adultos. O menino produzia pouco, porém caiu nas graças do capataz, Lameirão, covarde, mas temido, pois os empregados sofriam nas mãos dele.

A família do patrão Norberto apreciava as revistas de modas de Paris e aborrecia-se com a guerra, que prejudicava sua futilidade. Norberto era germanófilo e se aborrecia quando os capatazes faziam seus relatórios orais dos trabalhos na terra.

Sara, para compensar os maus exemplos do marido e talvez sentindo-se culpada de sua morte, redobrava de severidade para com João, fazendo coro à severidade de Lameirão. Um dia, o menino reclamou com a mãe, cansado do trabalho e das pancadas. Ele não nascera para herói. João fazia parte da multidão de miseráveis que chegavam a desejar a morte, pois a vida só de trabalhos e dureza sem compensação financeira os tornava doentes e fracos. O desemprego os empurrava para trabalhos em condições humilhantes. Os mais entendidos diziam que a culpada de tanta miséria era a guerra. Alguns punham luto por morte de parentes em combate. O governo mandava condolências.

Quando Sara e os filhos se afundavam para morrer de fome, foram morar com o irmão dela, Joaquim Carranca, que ficou viúvo, com três filhos para criar. Essa sociedade beneficiou os dois lados, melhoraram as coisas para Sara. Joaquim morreu um pouco depois. Sara aceitou emprego na propriedade de três irmãos, Pedro, Paulo e Saul, que se revezavam no comando da lida na fazenda. João Mau-Tempo estava se tornando experiente nos trabalhos do campo. O aprendizado sentimental dele não caminhou da mesma forma que o profissional. Seus olhos azuis cativavam as moças, mas ele nunca passou de namoricos sem ousadia.

Com a chegada da época do serviço militar, João cultivou sonhos. Serviria na cidade e lá ficaria depois. Mas foi um dos poucos dispensados do exército, para sua imensa decepção. Aos 20 anos de idade, não tinha perspectivas.

Naquele verão, uma forte tempestade levou água abaixo um tio de João, Augusto Pintéu, com a carroça cheia de mercadorias , quando voltava à noite para casa.

João tinha uma amiga, Faustina. A amizade se transformou em namoro. A família dela quis afastá-los, porque, por ser filho de Domingos Mau-Tempo, não era benquisto para casamento. A moça foi ameaçada de violência pela família, porém o amor por João falou mais alto. Nessa ocasião, o rapaz e os irmãos Anselmo e Maria da Conceição trabalhavam longe de casa, aonde só iam aos sábados. João pediu aos irmãos que avisassem à mãe que ele fugiria para a região de seu trabalho com Faustina. Os irmãos tentaram dissuadi-lo da idéia em vão. Acobertado por tia Cipriana, viúva de Augusto Pintéu, irmã de Sara, que acolheu os namorados, o casal fugiu, antes que a família da moça impedisse.

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João e Faustina casaram-se e tiveram três filhos: Antônio, Gracinda e Amélia. Antônio desde menino começou a trabalhar como guardador de porcos e ajudante de camponês.

A vida continuava como fora antes. De vez em quando, forçados moralmente, pois, se não aceitassem, perderiam o emprego, os homens eram levados em caminhões para

Évora, a fim de assistirem a comícios de apoio a Salazar e rejeição aos comunistas. Os

homens, indo nos caminhões, imaginavam que se divertiriam com bebida e mulheres; no entanto, logo que acabavam os comícios, voltavam para sua rotina de seres explorados pelos fazendeiros, satisfeitos por terem demonstrado poder e prestígio. João chegava mal-humorado, com desabafos contra a opressão, mas acabava dormindo, abraçado com a Faustina para, no dia seguinte, recomeçar seu dia-a-dia.

Quatro rapazes de Monte Lavre que trabalhavam na debulhadora indignaram-se com as desumanas condições de trabalho e largaram o serviço. O feitor Anacleto não lhes deu o pagamento e foi a Montemor denunciá-los como grevistas. O tenente Contente seguiu com um destacamento a Monte Lavre para prendê-los. Eles, porém, haviam saído, andavam sem rumo pelas estradas e só voltaram à noite. No dia seguinte foram interrogados e liberados com a recomendação de que não reincidissem na atitude subversiva. Os quatro passaram um bom tempo sem ninguém os contratar. Por fim, um deles, Manuel Espada, foi ser guardador de porcos, situação em que ficou conhecendo Antônio Mau-Tempo. Nesse tempo, ficou conhecendo também o lendário José Gato, famoso por sua competência como ladrão, como líder e como justiceiro, porque nunca roubou de gente pobre e nunca permitiu que seu bando o fizesse.

Sara da Conceição morava com a família do filho João. Com o tempo, ela passou a ter uma idéia fixa: toda noite ela sonhava que o marido estava deitado no chão do olival, morto, tendo no pescoço a marca da corda com que se enforcou. Desse jeito ele não podia ir para a cova. Então ela, ainda em sonho, punha-se a lavar o pescoço de Domingos com vinho; se conseguisse apagar a mancha, o marido reviveria, coisa que, acordada, ela jamais quereria. Quando todos já estavam dormindo, ela ficava girando em torno da casa, talvez para fugir do sonho, pois sempre que sonhava com o marido morto, acordava suando frio. Certa noite, ela não entrou em casa; pelo contrário, sumiu. Acharam-na na manhã seguinte, andando sem rumo, fora da vila, falando do marido. Chamaram a filha Maria da Conceição, que trabalhava como empregada doméstica em Lisboa. A filha veio, resolveram internar a velha no manicômio de Rilhafoles, onde ela vivia pedindo uma garrafa de vinho às enfermeiras. Ali ela morreu, depois.

Desde o tempo em que Lamberto Horques tomou senhorio das terras de Monte Lavre, a região sempre foi palco de guerra. Aliás, desde a ocupação dos romanos, o sangue é derramado ali. O espírito dominador violento toma conta até dos senhores de terras que chegam a sacrificar a vida de trabalhadores por comerem laranjas que iriam apodrecer na terra.

Além das guerras, há pestes e fome que matam multidões. Em seus sermões, o Pe. Agamedes se refere aos três cavaleiros do Apocalipse, que, na verdade, são quatro: a guerra, a peste, a fome e as feras. Mas o padre clama também contra os que estão fazendo reuniões

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sigilosas contra as autoridades governamentais, que só sabem cuidar do bem do povo, mesmo que, às vezes, precisem adotar meios violentos. Segundo o padre, os inimigos do governo são piores do que a guerra, a fome e a peste.

Quando João Mau-Tempo vai à missa – o que não é seu hábito – compara as palavras do padre com os dizeres dos panfletos subversivos e chega à conclusão de que o Pe. Agamedes está errado. No bar, ao beber com os amigos, estes lhe perguntam, ironicamente, se o padre falou bem; ele, com a prudência de quem já tem cerca de quarenta anos e de quem bebe com moderação, apenas sorri, não diz nada.

Finda a guerra que assolara a Europa, tudo parecia retornar à paz. Era tempo da colheita. Os camponeses recrutados pelos fazendeiros iriam começar seu trabalho. Porém, um grupo deles encabeçou a reivindicação de ser aumentada de 25 para 33 escudos a jorna de trabalho, isto é, o salário de um dia. Os fazendeiros se recusaram e, através dos feitores, dos capatazes e dos soldados, ameaçavam medidas violentas. Na igreja, o Pe. Agamedes maldizia os rebeldes e concitava todos a aceitarem trabalhar pelo preço anterior.

O movimento reivindicatório alastrou-se; os campos estavam desertos de ceifadores. Vinte e dois homens, entre eles João Mau-Tempo, Sigismundo Canastro e Manuel Espada saíram de Monte Lavre com o intuito de conseguir adesão dos camponeses. O movimento cresceu e a pressão fez os fazendeiros cederem. Os 33 escudos seriam pagos. As colheitas começaram.

No entanto, os líderes foram presos. De Monte Lavre, os três citados e outros foram levados para Montemor e lá ficaram encarcerados com os demais cabeças da greve, totalizando cerca de sessenta. Todos resistiram às pressões e não denunciaram os que haviam engenhado a greve. João Mau-Tempo recebeu coação até do Pe. Agamedes, mas não traiu o movimento. Um dos revoltosos, Germano dos Santos Vidigal, foi torturado e acabou morrendo sem denunciar ninguém. Simulou-se suicídio, ele teria se enforcado. Ninguém testemunhou contra a violência do tenente Contente e da dupla de torturadores, Escarro e Escarrilho.

Os trabalhadores das fazendas continuavam ganhando pouco, à mercê dos latifundiários, que lhes pagavam o que bem entendiam.

Antônio Mau-Tempo saiu de Monte Lavre para trabalhar e raramente vinha visitar os pais saudosos, em cuja companhia só ficaram as duas filhas. Antônio foi convocado para o serviço militar. Largou os trabalhos de campo e foi a pé para o quartel, caminhando quinze quilômetros a pé.

Apesar das pressões, os líderes dos trabalhadores rurais faziam reuniões clandestinas para organizarem reistências. Em Monte Lavre, o velho líder era Sigismundo Canastro. João Mau-Tempo também liderava.

Manuel Espada quis casar-se com Gracinda Mau-Tempo, sete anos mais nova – ela estava com 20 anos de idade. João Mau-Tempo gostava de Manuel Espada, homem pobre,

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mas bom e de personalidade. Ele andava a pé de Monte Lavre a Montemor só para não dever obrigação a ninguém, para não se vender. Essa foi a grande virtude dele para João aceitá-lo como genro.

Na festa do casamento, o mais comovente foi o discurso de Antônio Mau-Tempo, contando a vida na caserna. Houve também os casos mentirosos do caçador Sigismundo Canastro.

Certo dia, o guarda João Calmedo levou João Mau-Tempo detido para o posto policial - onde ele estivera preso quatro anos antes– sob o pretexto de ser para testemunhar sobre um pequeno furto. Mas o cabo Tacabo lhe informou que ele estava sendo acusado de comunista, por sua participação subversiva numa reunião em Vendas Novas. João foi levado para essa cidade e de lá para Lisboa, de trem. Prenderam-no juntamente com outros, sem saber exatamente por quê. No vigésimo quinto dia de prisão, os detidos foram conduzidos para interrogatório, feito com ameaças. Acusaram João de comunista, de ir contra as leis de Salazar. Ele afirmou que desde 1945 - fazia, portanto, quatro anos desde que fora preso - não exercia mais nenhuma atividade política. Foi espancado durante setenta e duas horas. Totalmente debilitado, repetiu para o inspetor Paveia que nada tinha a contar. Ficou sabendo que estava preso porque outro trabalhador rural, o Albuquerque, um bravateiro, o tinha denunciado. Mas ele afirmava que nada sabia. Foi detido isolado, quase morto de tanta pancada e de fome. Cinco dias depois, levaram-no para uma prisão de subversivos políticos, onde o ambiente era de solidariedade. Interrogado, não denunciou ninguém. Faustina foi visitá-lo. Também os filhos e outros parentes o visitaram. Libertaram-no após seis meses de prisão. Para retornar, contou com a ajuda de colegas de prisão, que se cotizaram para custear a viagem. Acabou passando a noite na casa de um casal que, compadecido dele, lhe deu pousada, já que os patrões de sua irmã Maria da Conceição não quiseram um comunista lá.

Os trabalhadores saíam da terra de um ...berto para outro (Norberto, Adalberto...), à procura de emprego: eram rebanhos de mal-estar. De vez em quando, Adalberto convocava o cabo Tacabo e prendia alguns do rebanho. João Mau-Tempo foi trabalhar em Elvas, levando a filha Amélia com ele.

Antônio Mau-Tempo também gostava de contar casos de caça. Ele deixou o pai doente em Monte Lavre e resolveu ir trabalhar na Normandia, França, na colheita de beterrabas, onde o dia de serviço demorava 16 ou 17 horas. Ele ia para lá, na época própria, juntamente com Carolino da Avó, os dois de Monte Lavre, e com Miguel Hernandez, de Fuente Palmera, da Espanha. Nos intervalos, Antônio e Miguel trocavam correspondência. Depois de cinco anos consecutivos, ele desistiu de ir trabalhar na França.

Por uns tempos, Antônio, Manuel Espada e Gracinda, grávida, foram trabalhar na herdade de Carriça, para Gilberto.

Faustina, bastante surda, e Belisária ajudaram Gracinda quando esta deu à luz a Maria Adelaide. A criança tinha os olhos azuis herdados do avô João, que foi vê-la. Quem também foi visitar a recém-nascida foi Antônio e o próprio pai, Manuel Espada, que lá esteve apenas por duas horas.

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Alastrou-se por todos os campos o movimento que instava os trabalhadores rurais a não ceifarem. Reivindicava-se aumento de salário. Dizia Alberto que não queria cães ladrando atrás dele, quando recusava dialogar com os revoltosos. “ Vão-se os anéis, fiquem os dedos”, foi a decisão dele; não haveria colheita de trigo naquele ano.

Sigismundo procurou João Mau-Tempo, Antônio e Manuel Espada: iriam a Montemor participar de uma manifestação diante da Câmara Municipal, pedindo trabalho. Quando a multidão gritava: “Queremos trabalho!”, a guarda montada avançou sobre eles. Sargento Armamento ordenou a primeira rajada de metralhadoras. Várias rajadas se seguiram. José Adelino, um dos participantes, foi atingido e morreu. Os de Monte Lavre conseguiram voltar ilesos; Antônio Mau-Tempo ficou em Montemor e disse que voltaria no dia seguinte. À noite, escondido nos arredores, ele jogou pedras no posto da guarda, quebrando telhas e vidraças. Depois retornou para casa, aonde chegou bem, tranqüilizando a mãe.

Corriam notícias de rebeliões. O Natal e Ano-Novo foram comemorados sem muitas festas. Houve tentativa de assaltar um quartel em Beja.

Os homens da roça nasceram para trabalhar. Porém iam-se acabando os tempos de conformidade. A reivindicação agora era por oito horas de trabalho diário. Os conspiradores deixavam panfletos pelas estradas e os camponeses os iam pegando e lendo. As patrulhas de guarda vigiavam, revistavam os que escondiam os papéis dos“comunistas” e batiam neles. No entanto, as ideías revoltosas se alastravam de casa em casa: trabalhar só oito horas! quarenta escudos de salário! Convocavam-se reuniões noturnas sigilosas. O discurso era reclamar da falta de dignidade, da humilhação a que estavam submetidos.

No dia seguinte ao 1º de Maio, ninguém foi cedo para o trabalho do campo. Chegaram às oito horas. Em cada propriedade havia um líder. Na propriedade liderada por Manuel Espada, o proprietário Berto não os aceitou e os mandou embora: se quisessem voltar no dia seguinte, seria de sol a sol. O cabo Tacabo serviu de intermediário junto de Dagoberto: eles queriam trabalhar, não era greve. Dagoberto não aceitou contratá-los só por oito horas.

Os latifundiários resistiram. Os trabalhadores se mantiveram firmes; os comerciantes fiavam para eles nos armazéns. Aos poucos, um ou outro fazendeiro foi cedendo. Em Monte Lavre os proprietários não acertavam acordo. Os trabalhadores fizeram greve.

Depois de dois meses internado no hospital, João Mau-Tempo voltou para casa, embora continuasse doente. Faustina dormia na arca, ligada ao marido por um cordel preso na mão de ambos. O marido puxava e ela se levantava para acudir a ele. A família se reuniu em casa e acompanhou-o na agonia e na morte. Só não compareceu o irmão Anselmo, de quem não se tinha notícia há muito.

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Maria Adelaide, com 19 anos, foi trabalhar na enxada longe de Monte Lavre. Quando estourou a revolução, ela e a família a quem fora confiada, os Geraldos, retornaram para Monte Lavre. Em Vendas Novas, a praça estava tomada pelos militares de prontidão.

Havia um clima de euforia em relação aos que assumiram o poder. Os latifundiários aguardavam os acontecimentos. Pe. Agamedes não se definia. Os militares foram presos ou fugiram. Alguns resistiram em Lisboa, mas não adiantou. O cabo Tacabo, envergonhado, foi dizer a Norberto que esperava ordens, por isso não podia tomar iniciativas contra os camponeses.

Pela primeira vez o dia 1º de Maio foi festejado.

Pouco tempo depois, porém, voltaram os rigores do latifúndio. O mesmo de sempre: reivindicações, greves...numa guerra interminável. Norberto, Clarisberto... sabem que basta ter um pouquinho de paciência: eles virão comer em nossas mãos. Aliviados dos primeiros temores pós-revolucionários, os latifundiários voltavam à carga. No entanto, já não confiavam plenamente nas colheitas; preocupavam-se em guardar dinheiro no exterior; muitas vezes mandavam passar o trator nos campos de colheita sem executá-la, para surpresa dos trabalhadores. Estes não recebiam ou recebiam com atraso. Os feitores não ameaçavam, mas também não faziam os pagamentos. Alguns trabalhadores invadiram propriedades para colher e se manterem. Fazendeiros reclamavam, sentiam-se impotentes e revoltados. O cabo Tacabo se conformou com sua incapacidade de atuar. Latifundiários pensavam em ir para o estrangeiro, procurando países neutros.

As lideranças trabalhadoras coordenavam a ocupação. Era o fim das prisões. Todos os antepassados ressurgiam e se uniam aos atuais camponeses. “E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.”

3. COMENTÁRIO

Embora muitos livros de José Saramago tenham antecedido “Levantado do Chão”,este foi o seu primeiro grande romance, publicado em 1980. É uma verdadeira epopéia em prosa que põe em relevo heróico os trabalhadores rurais do Alentejo, no Sul de Portugal: seus casos, suas privações, suas torturas, sua vida limitada, suas lutas.

É um romance que abrange os seguintes aspectos: histórico (fatos verídicos

ficcionalizados); social; cultural; político; lírico (amores rústicos); bucólico (hino à terra). O foco narrativo vem da 3ª pessoa, o autor, que faz os fatos fluírem sem interferência subjetiva. No entanto, Saramago não se escraviza totalmente a essa impessoalidade. São suas as seguintes palavras: “Tal como o entendo, o romance é uma máscara que esconde e, ao mesmo tempo, revela os traços do romancista. (...) Bem vistas as coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que eu conto. Oniscientemente”.

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“Levantado do Chão” é a apresentação de uma situação multissecular: o desengano

dos trabalhadores rurais conduzidos por um fatalismo adverso – a prepotência opressora e repressora dos latifundiários – mas sempre encontrando a resistência dos seus líderes persistentemente esperançosos, dotados de consciência política, mas esmagados pelo aparato policial.

Saramago faz referência ao século XV como fundamentação para situar o romance no século XX, sobretudo no período da Segunda Guerra Mundial, do governo de Salazar, das inquietações dos anos sessenta, culminando com a Revolução de Abril de 74, que derrubou a ditadura.

Esses eventos da história não são narrados, mas se fazem presentes como causadores da situação vivida nas propriedades agrícolas: a centralização cultural e política nas áreas urbanas, deixando no abandono os meios rurais, dominados por fazendeiros totalmente alheios às questões sociais e políticas, manipuladores da polícia e da Igreja a favor de seus interesses particulares.

Mas ficou também registrado no livro sob comentário que as inevitáveis informações, via rádios e jornais, chegaram aos trabalhadores, despertaram neles a consciência de que sua união poderia livrá-los do sufocamento tradicional. Tanto fizeram – apanhando, torturados, contudo persistindo – que sua resistência levou à ocupação de terras eà constituição de cooperativas.

Em seu discurso por ocasião do Prêmio Nobel, assim se expressou Saramago, aludindo ao presente livro: “Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerônimo e a minha avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser, apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o começo do século até a Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de “Levantado do Chão”, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá.”

Em 1981, Saramago concluiu assim as palavras proferidas por ocasião da entrega do

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trabalhadores. Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação”.

Quanto ao modo de narrar, o autor vai, paralelamente, mostrando a continuidade temporal (as situações permanecem fixas através dos “...bertos”) e vão surgindo as intervenções modificadoras ( a partir da 2ª geração da família Mau-Tempo e dos líderes rurais).

Saramago renova a linguagem e a estrutura narrativa – como Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Márquez. Desde 1976 ele possuía o material para escrever o livro, pois esteve no Alentejo colhendo a história. “Mas me faltava saber como contar isso. Então eu descobri que o como tem tanta importância quanto o quê. (...) O tema que eu tinha estava claríssimo, era um romance neo-realista, bastavam camponeses, fome, desemprego, luta, tudo isso. (...) E comecei a escrever com cada coisa no seu lugar: roteiro e tal... Mas eu não estava gostando nada do que estava fazendo. Então o que aconteceu? Na altura da página 24, 25, estava indo bem e por isso não estava gostando. E sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos meus leitores hoje sabem que eu escrevo: sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais que vamos pondo aí.(...) Então eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu simplesmente me encontrasse no meio daqueles ( que contaram as histórias), só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles. A minha maneira tão peculiar de narrar, se tiver uma raiz, penso que está aqui. (...) Se você ler em voz alta, vai ver o que acontece. Da mesma forma que, quando comunicamos oralmente, não necessitamos nem de travessões, nem de pontinhos, nem nada do que parece necessário usar quando escrevemos, pois então, você, leitor, colocará aí, não o que falta, porque não falta nada... A palavra só fica acordada quando a dizemos; ler silenciosamente as palavas não é suficiente.”

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