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Por uma pedagogia urbana insurgente

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Revista Políticas Públicas & Cidades, vol. 9, | núm. 2 | abril/junho | 2020, p. 1 – 11. Seção: dossiê. Artigo dossiê1

Por uma pedagogia urbana insurgente

Gustavo Tristão

Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). São João Del-Rei, Minas Gerais - Brasil. E-mail: gustavocesarts@gmail.com

Resumo: Considerando a busca por entender como grupos populares imersos em uma realidade neoliberal opressora poderão ser sujeitos históricos na produção do espaço social, objetiva-se estabelecer uma breve reflexão teórica acerca da produção do ambiente construído sob os avanços do capitalismo. Para tanto, procede-se a uma pesquisa de revisão de literatura, à luz do pensamento freiriano e de perspectivas marxistas; autores que trazem uma perspectiva esperançosa em relação aos movimentos insurgentes urbanos e à educação pública comunitária, sendo a reflexão crítica desta esperança um dos pontos principais desse artigo. Desse modo, observa-se que uma ação política interseccionada entre pautas diversas e a luta de classes, sem suprimir uma pela outra, é viabilizada e viabilizadora da educação pública. O que permite concluir que é preciso buscar uma ação política abrangente, na qual considera todas as diversidades dos movimentos contemporâneos e o papel da educação pública no fomento da construção do pensamento crítico das classes populares.

Palavras-chaves: Urbanização. Educação. Movimentos insurgentes. Sociedade capitalista. Cultura.

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Introdução

O espaço social como peça integrante nos processos de produção e reprodução da sociedade faz parte do pensamento de Paulo Freire em diferentes momentos e situações de sua obra. Como pedagogo, Freire destaca que o ambiente construído é imprescindível para a pedagogia, pois “há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade dos espaços” (FREIRE, 2017, p.20). Ainda segundo o autor, a vida nas cidades não apenas "acolhem a prática educativa, como prática social, mas também se constituem, através de múltiplas atividades, em contextos educativos em si mesmo" (FREIRE, 2014, p.21). Assim, a cidade é um espaço dialético no qual "enquanto educadora, a cidade é também educanda." (FREIRE, 2014, p.29).

Entretanto, a produção do espaço social é conflituosa e contraditória – não é algo que se dá de forma "tranquila" e "harmoniosa". Por tal motivo, o ambiente construído não deve ser visto como algo neutro, e sim como espaços de disputa de poder, devendo ser entendido a partir da questão da luta e do conflito de classes: quem pratica uma ação, se situa em certo ângulo a favor e contra algo ou alguém, e esse posicionamento é necessariamente de classe (FREIRE, 2014).

Consequentemente, os seres humanos como sujeitos históricos, precisam sempre se envolver no domínio político, refletindo e atuando criticamente sobre a situação em que se encontram, refazendo as estruturas sociais e econômicas nas quais são criadas e mantidas as relações de poder. Na ótica freiriana, a luta de classes transborda a mobilização e organização da luta em defesa dos direitos trabalhistas. E apesar de não ser transparente, visível, é expressa pelas classes populares em diversos movimentos populares, em diferentes formas de resistência ao poder das classes dominantes (FREIRE, 2014). Entretanto, muitas vezes esses movimentos populares se veem acuados pelo poder, ficando isolados dentro da própria resistência. De outro modo, "as classes populares, mais imersas que emersas na realidade, têm em sua resistência uma espécie de muro por detrás de que se escondem" (FREIRE, 2014, p.57).

Sendo assim, a compreensão da história – a qual também se dá por meio do espaço produzido (espaço social) que ao mesmo tempo traça possibilidades e utopias (LEFEBVRE, 2013) – é um campo de possibilidades inerente à capacidade crítica das classes populares e da luta de classes (FREIRE, 2014).

Em Pedagogia do Oprimido, Freire (2016) pontua: qualquer coisa que impeça ou atrapalhe o sujeito na busca de seus objetivos e o impeça de ser sujeito histórico de seu próprio movimento, é uma situação de violência e de desumanização – situação que pode se tornar um desafio, e não apenas um impedimento (FREIRE, 2016). Desse modo, o "nível em que se acha a luta de classes em uma dada sociedade é indispensável à demarcação dos espaços, dos conteúdos da educação, do historicamente possível, portanto dos limites da prática político-educativa" (FREIRE, 2014, p.55). As espaçotempralidades e as relações de trabalho, impostas pelo sistema capitalista em sua fase neoliberal, engendram formas que mantêm as classes populares cada vez mais imersas em situações que diminuem a capacidade de tomada de consciência e de ação contra as formas dominantes de exploração e opressão.

Dessa forma, o sistema capitalista e todas as formas de opressão que o acompanham se fortalecem mutuamente, estabelecendo estratificações e desenvolvimentos geográficos desiguais na sociedade como um todo.

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Revista Políticas Públicas & Cidades, vol. 9, | núm. 2 | abril/junho | 2020, p. 1 – 11. Seção: dossiê. Assim, a problemática deste trabalho se situa na busca por entender como grupos populares imersos em uma realidade neoliberal opressora poderão ser sujeitos históricos na produção do espaço social. Em outras palavras, como poderão reivindicar o direito à cidade, proposto por Henri Lefebvre, em meio à socioespacialidades que não contribuem para a ação política revolucionária? Em vista disso, esse artigo procura estabelecer uma breve reflexão teórica à luz do pensamento freiriano e de perspectivas marxistas acerca da produção do ambiente construído sob os avanços do capitalismo. Procura entender, também, as mobilizações da sociedade civil, com suas organizações comunitárias e (im)possibilidades de transformação, frente às consequências, enfrentamentos e apropriações da cultura e da educação pelo neoliberalismo no Brasil.

A primeira parte é dedicada à elucidação dos desdobramentos da luta de classe em movimentos populares diante da produção contraditória do espaço urbano, suas possibilidades e coerções. A segunda parte explora os avanços do neoliberalismo no planejamento urbano e o turvamento político das classes populares, com a finalidade de apropriação dos movimentos para extrair renda, avanços legitimados pelo aspecto cultural. A terceira parte trata das ações comunitárias e sua importância, não só como promotoras dos chamados cumuns – com foco na educação pública – mas como uma importante organização das classes populares na reivindicação dos deveres do Estado perante a sociedade civil. Por fim, as considerações finais procuram elucidar o papel de uma ação política abrangente, na qual considera todas as diversidades dos movimentos contemporâneos e o papel da educação pública no fomento da construção do pensamento crítico das classes populares.

Contradições socioespaciais: possibilidades e coerções

Complementando a ideia de situacionalidade de Freire (2016) – na qual os sujeitos se encontram em situações espaçotemporais, onde transformam e são transformados quanto mais pensarem e agirem sobre a realidade na qual se encontram –, Harvey (2011) entende que a situacionalidade do sujeito é construída socialmente, e por isso está atrelada ao modelo da divisão social do trabalho e ao modo de produção. Ao mesmo tempo, as espaçotemporalidades são variantes importantes na construção da sociedade e nas suas potencialidades de decisão e criação.

Com isso, ao alterar a sua situacionalidade, o sujeito pode alterar, também, sua visão de mundo – todavia, para um perspectiva revolucionária é preciso que haja uma solidarização do desejo de mudança. Harvey (2011) ressalta ainda que as lutas e os movimentos revolucionários frequentemente assumem uma dimensão urbana com potencial de reivindicar o direito de mudar e reinventar a cidade de acordo com interesses das classes populares, resgatando o valor de uso do ambiente construído2 (HARVEY, 2011).

Outrossim, o processo de produção do espaço urbano se estabelece de forma contraditória em sua materialidade e potencialidade, pelo fato de ser condição, meio e produto das relações sociais enquanto valor de uso e, ao mesmo tempo, ser peça chave na acumulação do capital: primeiro como recurso, depois como força produtiva e, por fim, como mercadoria reprodutível (CARLOS, 2015).

2 Para o autor, o legado de Lefebvre sobre o direito à cidade, não se sobrepõe aos movimentos sociais

urbanos. O próprio Lefebvre reconhece a importância da vida comunitária na luta de classe e no resgate do valor de uso da cidade (LEFEBVRE, 2008). Porém, é importante frisar que reivindicar o direito à cidade é um meio que conduz à derrubada do sistema capitalista, não podendo ser o objetivo em si (HARVEY, 2014).

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Ressalta-se que a organização estratégia do espaço pelas forças capitalistas é uma forma de estabelecer, de forma desigual, o desenvolvimento geográfico; desigualdade sustentada pela hierarquização socioespacial e pela precaraziação das condições de vida das classes populares. Portanto, o planejamento para o desenvolvimento urbanístico capitalista é uma segregação dos lugares, que afasta e esconde as classes populares, marginalizando-as das centralidades (serviços, comércio, pontos turísticos, espaço culturais, praças etc.), colocando-as em condições espaciais desfavoráveis (relevo acidentado, áreas de risco, áreas alagáveis, insalubridade etc.), e obrigando-as a sobreviverem nobrigando-as adversidades e a inventar e lutar pelo próprio meio físico, social e cultural – completamente diferente do da cidade formal.

Quando a realidade se volta sobre os oprimidos e os condicionam, em uma situação de desumanização, a transformação não acontecerá por acaso: cabe aos oprimidos, como produtores dessa realidade social, transformarem-na (FREIRE, 2016). Daí o potencial transformador dos movimentos populares urbanos, os quais se relacionam diretamente com a produção social do ambiente construído.

Entretanto, essa transformação, segundo Freire (2017), é impedida pelas condições materiais precárias do espaço, pois estas contribuem para que os sujeitos envolvidos não usufruam de fatores básicos de higiene, espaciais e estéticos, indispensáveis para se estabelecer uma humanização. Logo, essa ausência dificulta os processos de crescimento pessoal e social, limitando as possibilidades de transformações e realizações (FREIRE, 2017).

Em vista disso, quanto mais imersas estiverem as classes populares em uma realidade opressora, mais difícil é a tomada de consciência de sua realidade enquanto oprimidas (FREIRE, 2016). As espaçoteporalidades, segundo Harvey (2011) são produzidas de tal forma a turvar e privar de tempo, para que não seja possível uma alternativa distinta às impostas pela acumulação infinita do capital: “O efeito líquido disso é limitar nossa visão do possível” (HARVEY, 2011, p.310).

Sobre a participação e a organização popular voluntária em processos de decisão coletiva no Brasil, Kowarick (1979) aponta que são bem reduzidas no que se diz respeito às classes populares, o que as tornam "frágeis". Isso porque a deflagração de um movimento revolucionário é vista, muitas vezes, como um corpo estranho, uma excepcionalidade, conspiração, ou até mesmo algo apoiado em uma falsa ideologia, diferente das "tradições harmônicas" brasileiras.

Nessa perspectiva, cria-se uma “predestinação”, como se o povo brasileiro fosse, por essência, pacífico e harmonioso, deixando o ato de governar a cargo de um privilégio elitista, o que transforma a política uma aura especial e restrita (KOWARICK, 1979). Com isso, os oprimidos temem a luta por sua liberdade, pois se sentem ameaçados e acreditam que lutar por ela significa mais repressões (FREIRE, 2016).

Outro fator que contribui para essa "imersão" na realidade é destacado por Rancière (2009). Para ele, as ocupações e trabalhos de cada indivíduo determinam as atividades e participações que esse presta ao comum partilhado, sendo que a partilha democrática desse comum só se dá quando o trabalhador possui "tempo de estar no espaço das discussões públicas e na identidade do cidadão deliberante” (RANCIÈRE, 2009, p.65).

Dessa forma, ao ser submetido a uma lógica precária de trabalho, o trabalhador é submetido ao mesmo tempo à lógica espaço-temporal da propriedade privada como valor de troca. Ambas impostas pelo sistema capitalista como estratégia, para que desse modo não haja possibilidade de

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Revista Políticas Públicas & Cidades, vol. 9, | núm. 2 | abril/junho | 2020, p. 1 – 11. Seção: dossiê. o trabalhador urbano assumir as decisões concernentes ao trabalho e ao espaço construído (HARVEY, 1982).

No Brasil, atualmente, para esse cenário são adicionados fatores desfavoráveis à classe trabalhadora. Com a ascensão de um Estado neoliberal conservador, algumas medidas e "reformas" austeras começam a ganhar forma, a saber: as reformas trabalhistas e previdência, os congelamentos nos investimentos em saúde e educação pública etc.

Ao Estado neoliberal compete ainda agir ao cargo das forças de poderes mercadológicas, participando ativamente na estratificação, segregação e precarização dos lugares, na facilitação dos investimentos e transações financeiras das construtoras e financistas, na construção ideológica da propriedade privada acima do valor de uso coletivo, na imposição de condições de trabalho precárias e ainda como força de opressão das classes populares que ousarem ir contra suas agendas.

A partir desse pensamento fica evidente que as dinâmicas das relações de trabalho são determinantes nas atividades, decisões e “partilhas” concernentes ao espaço urbano, no qual o trabalhador urbano vem sendo impedido de ser político e de reivindicar os seus direitos. Em vista disso, Freire (2016) destaca ser preciso uma tomada de consciência crítica para uma ação de verdadeira transformação da realidade, em que o trabalhador seja proprietário do próprio trabalho, pois "a pessoa humana não pode ser vendida nem vender-se", e com essa ação "dar um passo mais além das soluções paliativas e enganosas" (FREIRE, 2016, p. 282).

"Indústria urbano-cultural": do planejamento urbano estratégico às

apropriações pelo neoliberalismo

O "turvamento político" causado pela desvinculação de classe proporciona e facilita as apropriações e cooptação por determinados segmentos elitistas da sociedade, que irão se beneficiar (exclusiva e seletivamente) desse capital simbólico por meio de rendas de monopólio. A cultura é um comum3,

e como qualquer outro é transformado em mercadoria e se torna o meio mais fácil de captar renda. Uma mercadoria diferenciada de mercadorias ordinárias, como blusas, sapatos e carros, pois se situa em um plano superior de criatividade e autenticidade (HARVEY, 2014).

Para Paulo Freire (2016), há uma invasão na cultura, que serve à conquista e manutenção da opressão; esta invasão implica que o ponto de ação e decisão dos invadidos está fora deles, e estes têm apenas a ilusão de decidir. Por isso que a apropriação dos movimentos urbanos no neoliberalismo é legitimada pelo aspecto cultural, e só foi possível porque o planejamento urbano ou o "fazer cidades" tem se estabelecido cada vez mais em eufemismos requalificadores para espoliação, transformando a cidade em um produto rentável, legitimado pelo aspecto cultural. (ARANTES, 2000)

Tal como outros aparatos presentes na cidade, a cultura é distribuída de forma díspar, o que dá "combustível" para a "máquina de crescimento" de um sistema estratificado e hierarquizado, que se sustenta em desigualdades. A cidade-empreendimento tem seus planejadores (arquitetos, urbanistas, Estado etc.) transformados em empreendedores, que agenciam os bens e serviços

3 Os comuns, segundo Harvey (2014), são a "relação social instável e maleável entre determinado grupo

social autodefinido e os aspectos já existentes ou ainda por criar do meio social e/ou físico, considerada crucial para sua vida e subsistência". Ainda segundo o autor, "continuamente encerrado e apropriado pelo capital em sua forma mercantilizada e monetizada, mesmo quando continuamente produzido pelo trabalho coletivo" (HARVEY, 2014).

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simbólicos (ou capital simbólico coletivo) ao cargo da mundialização e mercadorização das cidades às duras penas da gentrificação e espoliação, numa espécie de "estetização do poder", na qual nem tudo e nem todos podem estar visíveis, pois a imagem da "cidade-empresa-cultural" não pode ser prejudicada (ARANTES, 2000). E são usados todos os tipos de forças para manter uma "aura" cultural intacta, como destaca Harvey (2014):

Nesse contexto, obviamente, os guardiões do capital simbólico coletivo e cultural – os museus, as universidades, a classe do mecenas e o aparelho de Estado - costumam fechar suas portas e insistir em manter de fora a ralé [...]. E se isso fracassar, então o Estado pode intervir com qualquer tipo de coisa, desde o "comitê de decência" criado pelo prefeito Giuliane para manter sob controle o gosto nova-iorquino até a repressão policial propriamente dita (HARVEY, 2014, p.194).

Somado a isso, a institucionalização cultural, por meio da indústria cultural e sua economia criativa, tira do seio dos trabalhadores e cidadãos o valor de uso de suas culturas e manifestações, para colocar na vitrine a ser consumida como valor de troca. Há na institucionalização da cultura uma “invasão cultural”, que se presta à conquista dos comuns urbanos e à manutenção de situações de dependência e exploração.

A cultura foi institucionalizada pelas indústrias culturais e economias criativas para atender às demandas do mercado, transformando-se em um produto para o consumo. Isso se deu mais fortemente com a adesão do capitalismo pelas teorias neoliberias na década de 1970 – no Brasil, na década de 1990 –. Mais tarde, por conta de manifestações contrárias ao modelo econômico, surge o social-liberalismo, uma forma de capitalismo que tenta disfarçar seus engendramentos, conciliando demandas sociais e estabelecendo relações entre o setor público e o setor privado (DUQUE, 2015).

Nesse cenário, o tradicional proletariado vem dando espaço para um novo tipo de trabalhador precário, o precariado: os trabalhadores que são submetidos (ou se submetem) às piores condições de trabalho, e por consequência acabam sendo inseridos em socioespacialidades desfavorecidas. Com o advento do social-liberalismo, o precariado se expande ainda mais, situado em grande parte na cadeia produtiva da cultura, mais especificamente na economia criativa (DUQUE, 2015). No Brasil, a economia criativa cria força com o Plano Nacional de Cultura, e o SEBRAE assume o papel de “capacitar” e “fomentar” os micros e pequenos “empreendedores culturais” (DUQUE, 2015). De fato, as classes populares estão cada vez mais inseridas em condições socioespaciais e de trabalhos precários, cuja cultura ordena a produção da sociedade ao cargo do crescimento econômico capitalista. Este, por sua vez, para manter as classes populares “calmas” e controladas, apresenta “soluções salvadoras” e promete, ilusoriamente, uma ascendência socioeconômica individual e/ou de determinado seguimento da sociedade, o que desloca as causas e consequências dos fracassos e dos êxitos exclusivamente para o indivíduo ou grupo, causando um enfraquecimento na consciência de classe.

Desse modo, a imagem da “cidade empreendimento” é agenciada culturalmente ao cargo do planejamento urbano capitalista, afastando parte da população dos centros urbanos, obrigando-os a criarem e lutarem constantemente por seus comuns urbanos.

Nos últimos anos, essas lutas têm sido feitas com as discussões dos grupos e movimentos de esquerda. Todavia, lutar por algo individualmente ou em coletivos identitários não minimiza ou extingue a luta de classes, e não é suficiente diante de uma agenda neoliberal que possui formas de cooptar esses tipos de movimentos, transformando-os em mercadorias e/ou encerrando-os.

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Revista Políticas Públicas & Cidades, vol. 9, | núm. 2 | abril/junho | 2020, p. 1 – 11. Seção: dossiê. Por isso, é preciso compreender as lutas contemporâneas de forma dialética, em que estão interseccionadas umas com as outras, sem suprimi-las, e sempre contra os avanços do capitalismo. Assim, essa posição dos movimentos urbanos deve ser necessariamente de classe, pois ser a favor ou contra uma ação (e suas causas e consequências) situa o sujeito em certo ângulo – e esse ângulo é de classe (FREIRE, 2014).

Em vista disso, em uma concepção marxista, as liberdades individuais só serão realmente conquistadas se a dos outros também forem. Isso fica muito claro quando Freire (2016) diz que os oprimidos só serão realmente livres "quando descobrem em si o anseio por libertar-se, percebem que este anseio somente se faz concretude na concretude de outros anseios" (FREIRE, 2016, p.69). A desvinculação da questão de classe e o não ataque ao capital na luta contra opressões compromete não só as questões referentes à superação do capital, como a própria existência do movimento em si. Com isso, a apresentação de uma “sonoridade radical ideal” (LOVATTO, 2019) dos movimentos sociais é a possibilidade de o capitalismo assimilar esse posicionamento e o superar – muitas vezes até cooptando-o com a intenção de extrair renda dessa "rebeldia".

A chamada "transgressão resignada" (LOVATTO, 2019) não ataca o capital, pois esse posicionamento "rebelde" entende que uma atitude individual resolve uma causa, independente da classe e de um posicionamento político revolucionário (LOVATTO, 2019). Harvey (2011) destaca que o grande problema "desse amplo espectro de lutas é o de mudar de nível, transcender as particularidades" e com isso chegar a uma alternativa ou concepção universal. Para o autor a dialética "ensina que a universalidade sempre existe em relação à particularidade: não é possível separá-las, ainda que constituam momentos distintivos de nossas operações conceituais e nossos engajamentos práticos" (HARVEY, 2011, p.).

A cultura, conforme Freire (2016), ou está a serviço da dominação ou a serviço da libertação dos sujeitos, ora mantendo, ora transformando. Por isso as lideranças revolucionárias precisam estar em constante diálogo com as massas populares e em comunhão, sem se sobreporem, lutando juntas contra as invasões culturais e conquistando suas reivindicações. (FREIRE, 2016).

Educação comunitária versus Educação neoliberal

O espaço construído (social) é produto e produtor das relações sociais; com isso, as condições desse espaço estão, a todo o momento, definindo e sendo definidas pelas relações – principalmente as de poder.Diante desse "poder" neoliberal que o capitalismo assumiu nos últimos tempos e suas consequências, que envolve a produção do espaço (planejamento urbano capitalista, desenvolvimento geográfico desigual), as relações de trabalho (precariado, dissolução da consciência de classe), a apropriação da cultura (com a apropriação cultural pela indústria cultural e economia criativa) e a educação.

Visando à mercantilização de tudo e de todos – das esferas do trabalho às esferas da vida –, essa guinada neoliberal tem afetado desde as questões referentes aos desdobramentos pedagógicos e no perfil dos educandos que as escolas produzem e almejam produzir, até no sucateamento e precarização das condições e relações materiais que deixam os sujeitos imersos cada vez mais em socioespacialidades precárias, tendo como consequências as privatizações e militarizações4 do

ensino.

4 Escolas estaduais transformadas em escolas militares geridas pela Polícia Militar. Como exemplo, o Colégis

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O discurso neoliberal, para Freire (2014), é marcado pela importância do "ensino puramente técnico, é a transmissão de um conjunto x de conhecimentos necessários às classes populares para a sua sobrevivência" (FREIRE, 2014, p.127). Diante disso, o aluno está submetido a uma lógica mercantilizadora: ora é um consumidor, ora é um produto a ser comercializável no mundo globalizado capitalista; por tal motivo esse novo sujeito vem perdendo sua consciência crítica, em detrimento de falsas promessas de destaque individual.

Como exemplo, o aluno vem incorporando o ideal neoliberal de se tornar "empreendedor", e seu empreendimento é ele próprio, no qual procura ser distinto e se destacar como consumidor e como produto. Mas esse é um “produto” que não é para todos, pois tem distribuição desigual: nem todos são capazes de competir num mundo globalizado com um capitalismo cada vez mais feroz (SIBILIA, 2012).

Somado a isso, a escola pública tradicional possui uma gestão centralizada, um sistema fechado. Assim, a comunidade se sente pouco responsável pelos destinos do espaço educacional e, por tal motivo, na maioria dos casos, não participa efetivamente das decisões sobre ele. Segundo Gadotti (2008), o Brasil possui um sistema de ensino desconcentrado em suas tarefas educacionais, mas concentrado e limitado em relação ao poder de decisão, ficando suscetível às privatizações dos serviços educacionais, jogando toda a responsabilidade exclusivamente nos indivíduos.

A solução, segundo o autor, é uma escola autônoma e integrada à comunidade, considerando suas especificidades e necessidades pertencentes a cada local, com decisões e encaminhamentos estabelecidos de forma democrática e autônoma (GADOTTI, 2008). Um ambiente comunitário progressista só poderá ser concretizado se adotar uma política de ação mais generalizada e, ao mesmo tempo em que é construído por um viés revolucionário, puder moldar a pessoa política e os modos de que viabilizam essa politicidade (HARVEY, 2011).

Ivan Illich (1973), no livro Sociedade sem Escolas, elucida a importância da tomada de decisões pelas comunidades locais sobre seus interesses, não deixando a cargo do julgamento dos meios burocráticos das instituições, pois dessa maneira as comunidades se tornariam mais abertas ao intercâmbio político criativo. Todavia essa ação comunitária não substitui e nem desobriga o Estado de sua atuação; pelo contrário, os grupos populares organizados devem exigir que o Estado cumpra seu dever com o povo.

Para Freire (2014), alguns grupos sociais com suas ações autônomas e organizações comunitárias – com destaque na promoção de educação popular – estão correndo o risco de estimular o Estado "a lavar as mãos como Pilatos" (FREIRE, 2014, p.90) diante de suas seus compromissos. Contudo, o mesmo autor afirma que esses grupos possuem o direito de se organizarem e até mesmo de exigir convênios e colaborações do Estado; precisam, portanto, "estar advertidos que sua tarefa não é substituir o Estado no seu dever de atender às camadas populares" (FREIRE, 2014, p.91). Assim, a luta desses grupos não deve ser feita para ajudar o Estado elitista a se desvincular de suas obrigações, mas sim de "lutar para que o Estado cumpra com o seu dever" (FREIRE, 2014, p.91). Em vista disso, Freire (2014) destaca que a luta pela autonomia das escolas está atrelada com a luta pela escola pública.

educacional e uma solução falaciosa para a educação, apoiada em resultados de um comportamento disciplinado e da ordem militar.

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Revista Políticas Públicas & Cidades, vol. 9, | núm. 2 | abril/junho | 2020, p. 1 – 11. Seção: dossiê. Freire (2014) defende a educação pública e, portanto, não aceita "certa posição neoliberal que, vendo perversidade em tudo o que o Estado, faz defende uma privatização sui-generis da educação. Privatiza-se a educação, mas o Estado a financia" (FREIRE, 2014, p. 90).

Apesar de bens públicos não serem necessariamente comuns, eles são cruciais para a manutenção da apropriação comunal. Para se tornar um comum, é necessária uma ação coletiva político-social, a qual impede que esse comum seja apropriado pelas ações privadas. A educação pública deve, portanto, ser defendida em uma prática do comum, pois este é o antagônico principal do neoliberalismo; logo, das privatizações e mercantilizações.

Assim como na busca pelo direito à cidade, a educação pública, comunitária e engajada politicamente é um caminho para se estabelecer uma transformação radical na sociedade – e não um fim em si mesma. Com isso, uma ação política interseccionada entre pautas diversas e a luta de classes, sem suprimir uma pela outra, é viabilizada e viabilizadora da educação pública, e esta como possibilidade de resgate do caráter comunitário como forma de emancipação crítica das classes populares.

Considerações finais

A produção do espaço capitalista é, em primeiro lugar, condicionante para se extrair renda e, consequentemente, viabilizar a exploração e a opressão. Em segundo, é estratégia fundamental para manter qualquer organização popular estanque, desorganizada ou (como na maioria dos casos) encerradas. Entretanto, os autores aqui citados (em especial Paulo) convergem suas esperanças para a possibilidade de uma transformação da realidade a partir da organização de uma práxis referente às classes, grupos ou indivíduos inseridos e imersos em socioespalialidades desfavorecidas e com opressões de diversas origens.

Por isso, Harvey (2011) entende que o mundo possui uma enorme potencialidade de escolhas e divergências. Estas, por sua vez, ao mesmo tempo em que se prestam a lutas e decisões, causam confusões que limitam ou encerram formas de ação autônoma. Essa confusão, segundo o autor, pode ser resolvida por meio de uma dialética interescalar espaçotemporal, pois permite que considerações feitas em uma determinada escala sejam reconhecidas e relacionadas com outras escalas, adquirido coerência tanto na teoria quanto na prática.

Como exemplo, Harvey (2011) cita o sentimento revolucionário em O Manifesto Comunista, que passa do pensamento político individual, pela fábrica, pelos partidos políticos, pelo Estado até a um movimento unificado de todos os operários do mundo. Entender os processos revolucionários do século XIX e XX é fundamental, porém, é necessário compreender que, assim como o capitalismo encontrou novas formas de se manter e de atingir tudo e todos, o sentimento revolucionário precisa se encontrar com as novas formas de produção e reprodução da sociedade atual.

Frente a isso, algumas questões – e talvez (im)possibilidades – são colocadas: Até que ponto as múltiplas formas de organizações comunitárias e os diversos movimentos populares urbanos – formados por grupos de trabalhadores e cidadãos em situações precárias e desorganizados politicamente, com pouca ou sem nenhuma consciência de classe – se dispõem a revolucionar as relações de exploração e opressão estabelecidas pelo capitalismo? E como construir redes solidárias em diferentes escalas de forma sistêmica e conjunta? O que vai determinar, inevitavelmente, o encerramento ou o êxito desses movimentos diante das ofensivas neoliberais? O oprimido de Freire e o explorado de Marx – proletários e precariados, trabalhadores e cidadãos – imbricam-se, interseccionam--se, solidarizam-se e se conflitam diante das ofensivas da sociedade

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de classes capitalista. Há atualmente uma "explosão" da luta de classes em vários movimentos sociais, ora conscientes de sua situação de classe, ora dispersos em pautas diversas – ou na pior das situações, introjetando a agenda dos opressores/exploradores nas suas próprias pautas. Essa "explosão" dos movimentos sociais de forma alguma quer dizer uma superação da situação de exploração e opressão, pelo contrário, elas reafirmam e fazem aparecer cada vez mais os conflitos e contradições dentro da sociedade de classes. Por fim, este artigo não buscou um revisionismo refutador e tão pouco uma relativização, tanto do pensamento marxista lefebvriano quanto do pensamento freiriano. O que se buscou foi entender quais as contribuições de ambos para a produção do conhecimento acerca da sociedade contemporânea e atualizar, ou tentar ir além, sem perder as bases dos pensamentos que ainda são atuais.

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For an urban insurgent pedagogy

Abstract: Considering the search to understand how popular groups immersed in an oppressive neoliberal reality may be historical subjects in the production of social space, the objective is to establish a brief theoretical reflection about the production of the environment built under the advances of capitalism. So, a review of literature is carried out, in the light of the thought of Freirian and Marxist perspectives; authors who bring a hopeful perspective on urban insurgencies and community public education, being the critical reflection of this hope one of the main points of this article. Thereby, it is observed that a political action intersected between diverse patterns and the class struggle, without suppressing one by the other, is made feasible and viable public education. Which allows to conclude that it is necessary to search an action including politics, in which it considers all the diversities of the contemporary movements and the role of the public education in the development of the construction of the critical thought of the popular classes.

Keywords: Urbanization. Education. Insurgent movements. Capitalist society. Culture Por una pedagogía urbana insurgente

Resumen: Teniendo en cuenta la búsqueda de entender cómo los grupos populares inmersos en una realidad opresiva neoliberal pueden ser sujetos históricos en la producción del espacio social, el objetivo es establecer una breve reflexión teórica sobre la producción del ambiente construido bajo Los avances del capitalismo. Con este fin, se lleva a cabo una revisión de la literatura a la luz del pensamiento freiriano y las perspectivas marxistas; Los autores que aportan una perspectiva de esperanza en relación con los movimientos insurgentes urbanos y la educación pública comunitaria, y el reflejo crítico de esta esperanza es uno de los puntos principales de este artículo. Por lo tanto, se observa que una acción política intersectada entre diferentes agendas y luchas de clases, sin suprimirse mutuamente, es viabilizada y hace viable para la educación pública. Esto nos permite concluir que es necesario buscar una acción política integral, en la que se consideren todas las diversidades de los movimientos contemporáneos y el papel de la educación pública en el fomento de la construcción del pensamiento crítico de las clases populares.

Referências

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