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Usos da paisagem edênica no cinema brasileiro nos anos 1970: o caso de Como Era Gostoso Meu Francês

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇO LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÃO

USOS DA PAISAGEM EDÊNICA NO CINEMA BRASILEIRO NOS ANOS 1970: O CASO DE COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS

GABRIELA CAVALCANTI MACEDO

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GABRIELA CAVALCANTI MACEDO

USOS DA PAISAGEM EDÊNICA NO CINEMA BRASILEIRO NOS ANOS 1970: O CASO DE COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da Prof. Dr. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior.

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GABRIELA CAVALCANTI MACEDO

USOS DA PAISAGEM EDÊNICA NO CINEMA BRASILEIRO NOS ANOS 1970: O CASO DE COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS

Dissertação aprovada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão

formada pelos professores:

__________________________________________ Prof. Dr. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior

(Orientador)

________________________________________ Profª Dr(a). Rosane Kaminski

(Avaliador(a) Interno)

________________________________________ Profª Dr(a). Renato Amado Peixoto

(Avaliador(a) Interno)

_________________________________________ Prof. Dr(a). Helder do Nascimento Viana

(Avaliador(a) Suplente)

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Macêdo, Gabriela Cavalcanti.

Usos da paisagem edênica no cinema brasileiro nos anos 1970: o caso de Como Era Gostoso Meu Francês / Gabriela Cavalcanti Macêdo. - Natal, 2017.

142f.: il. color.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História. Natal, RN, 2017.

Orientador: Prof. Dr. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior.

1. Paisagem - Dissertação. 2. Cinema e História - Dissertação. 3. Como era gostoso meu francês - Dissertação. I. Santiago

Júnior, Francisco das Chagas Fernandes. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94:791 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/170

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E aprendi que se depende sempre De tanta, muita, diferente gente Toda pessoa sempre é as marcas Das lições diárias de outras tantas pessoas

E é tão bonito quando a gente entende Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá E é tão bonito quando a gente sente Que nunca está sozinho por mais que pense estar

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RESUMO: A dissertação tem como objetivo analisar como a memória cultural da visão de

paraíso e do indígena foram atualizadas na produção cinematográfica nacional durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), notadamente, no filme Como era gostoso meu francês, de Nelson Pereira dos Santos. Parte-se do pressuposto que o Paraíso é uma concepção espacial historicamente construída e que compõe, junto ao seu principal habitante (o nativo americano) um recorte espacial de paisagem edênica. A hipótese é que o filme de Nelson Pereira dos Santos instituiu possibilidades de leituras alegóricas por meio do uso desta paisagem edênica. Relacionaremos os estudos visuais e análise histórica, nos interessando por identificar as matrizes visuais e discursivas espaciais com os quais o filme dialoga. Para isso, nos utilizaremos da metodologia narrativa-iconológica, fundamentada simultaneamente na narratologia de David Bordwell (2013) e iconologia de W.J.T. Mitchell (2000). Para o primeiro a narrativa é a maneira fundamental de se compreender o objeto filme e a iconologia crítica de Mitchell (2000) permite acesso aos elementos iconológicos e aos regimes de visibilidade constituídos historicamente. Dito isto, o presente trabalho analisará as representações da paisagem edênica legadas na memória cultural e visual, que estão presentes na composição da imagem e na organização formal do filme, estrutura e elementos estéticos de forma a compreender como o filme percebe e constrói uma determinada imagem de Brasil.

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ABSTRACT: This dissertation aims to analyze how the cultural memory of the perception of paradise and indigenous people were updated in the national cinematographic production throughout the Civil-Military Dictatorship (1964-1985), specifically in the film Como é gostoso meu francês by Nelson Pereira dos Santos. It is assumed that Paradise is a spatial conception historically constructed that, united with its main inhabitant (Native American) composes a spatial cut of the edenic landscape. The hypothesis is that Nelson Pereira dos Santos' film installed possibilities of allegorical readings through the use of this edenic landscape. The research relates the visual studies and the historical analysis, focusing in the identification of the visual and discursive matrices with which the film dialogues. However, for this it will be used the narrative-iconological methodology, based simultaneously on the narratology of David Bordwell (2013) and iconology of W.J.T. Mitchell (2000). For the former the narrative is fundamental for the understanding of the film’s object. As for the latter, the critical iconology of Mitchell (2000) allows access to the iconological elements and to the visibility regimes historically constituted. That said, the present dissertation will analyze the representations of the edenic landscape that lie in cultural and visual memory, which are present in the composition of the cinematographic image in a way that helps the understanding the manner the film perceives and constructs a certain image of Brazil.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

CAPÍTULO 1: NELSON PEREIRA DOS SANTOS E SUA POLÍTICA CINEMATOGRÁFICA ... 23

1.1. Biografia de Nelson Pereira dos Santos ... 24

1.2. A obra nelsoniana até 1971 ... 39

CAPÍTULO 2. A PAISAGEM E O PARAÍSO: DOS RELATOS AO CINEMA BRASILEIRO ... 56

2.1 Visões do Novo Mundo: o paraíso em imagens discursivas e visuais ... 56

2.2. Assimilando a Paisagem ... 81

CAPÍTULO 3. O CINEMA BRASILEIRO ALEGÓRICO: A CÂMERA ENGAJADA DE COMO ERA GOSTOSO MEU FRANCÊS... 84

3.1. Elementos do enredo ... 85 3.2. Análise de sequências ... 95 Primeira sequência ... 95 Segunda sequência ... 111 Terceira sequência ... 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 130

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 133

a) Bibliografia em geral ... 133

b) Filmografia ... 140

c) Iconografia ... 141

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10 INTRODUÇÃO

O objeto dessa dissertação é o filme Como era gostoso meu francês, de Nelson Pereira dos Santos ou como ele se apropriou da paisagem. Interessa-nos perceber as relações do ser humano com a espacialidade a sua volta. No caso, cabe dizer que o interesse em discutir o filme surgiu, inicialmente, nos idos de 2014, quando, ainda, na graduação me matriculei em uma disciplina com meu atual orientador, Prof. Santiago, em que a temática era a relação entre História e Cinema. Em determinado momento, os filmes com narrativas alegóricas foram temas da disciplina.

Um dos filmes trabalhados pelo professor foi Pindorama (1971), de Arnaldo Jabor. O filme de Jabor causou tanto estranhamento que ao entrar para o mestrado na UFRN, em 2015, tive a certeza que o recorte que gostaria de trabalhar na pesquisa seria referente a filmes que compartilhariam da mesma linguagem e produzidos no mesmo período. Inicialmente propus tratar de duas fitas gestadas entre 1968-1972, auge da repressão do regime civil-militar com perguntas tais: Como esses filmes foram recebidos pelo público? Conseguira seu objetivo? As fitas refutavam ou corroboravam com a imagem de Brasil do regime autoritário? Quais as contradições? Estes questionamentos foram base inicial da procura.

O mestrado em História da UFRN possui a linha teórico-metodológica centrada na pesquisa entre a relação História e Espaço, permitindo-me pensar a questão da paisagem como base imagética da identidade nacional. Diante disso, surgiu a possibilidade de compreender como a visão de paraíso e da paisagem se associam, como discurso, imagem e metáfora da nação. A exclusão de Pindorama como um dos objetos da pesquisa foi resultado da agonia de um empreendimento que dura somente dois anos, nos fazendo optar pelo filme que teve mais reconhecimento e alcance de público, como no caso de Francês.

A narrativa mais conhecida da constituição da relação entre conhecimento histórico e cinema usa como marco a década de 19701, com a Escola dos Annales, movimento

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Análises propostas por autores como Eduardo Morettin (2007) e Michele Lagny (2009) evidenciam, que a relação entre cinema e história é bem mais antiga tanto no Brasil como na França, respectivamente. Talvez a maior importância das produções historiográficas como as de Marc Ferro, a partir dos anos 1970 seja que, neste período, emergiu a organização de um lugar do filme como objeto do ponto de vista da “historiografia geral”, diversa da história do cinema (Lagny, 2009), constituindo o cinema como tópico historiográfico (Santiago Jr., 2012).

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historiográfico francês preocupado em romper com a historiografia tradicional, compreendendo a história de forma mais complexa (BURKE, 1991). Para explicar o homem como sujeito histórico era preciso ampliar seu entendimento, aproximando-se de ciências vizinhas e de novos instrumentos de análise.

A Escola dos Annales permitiu o desenvolvimento de várias correntes historiográficas, uma delas, a Nova História atentou em fazer uma história de uma perspectiva das manifestações culturais, tendo como seu carro chefe inicial a história das mentalidades (BURKE, 1991). Com novas perspectivas sobre o fazer histórico, percebeu-se a necessidade de analisar a história por diferentes fontes e metodologias, inovando nas abordagens e elementos a serem examinados pela operação historiográfica, como é o caso do cinema enquanto objeto de estudo.

O responsável em fazer uma história trazendo o cinema enquanto fonte foi Marc Ferro2, historiador pioneiro no estudo entre história e cinema, e um dos principais nomes da terceira geração da Escola dos Annales, a Nova História. Ferro compreendeu o filme como um agente histórico, tornando-o efetivamente um dos pilares por meio dos quais podemos nos deter para estudar a sociedade através do tempo.

Entender o cinema como fonte histórica é entendê-lo enquanto um meio de conhecimento sobre a produção cultural humana, sobre o quem o produziu e o lugar (TUAN, 1983) que o produz. É examinar tanto as transformações técnicas e estéticas da produção, como o assunto abordado ou os sujeitos em pauta. Assim como um texto que escrevemos, o filme está carregado das experiências, influências e preocupações do momento que o constitui, tornando-o, portanto, um dos documentos para a compreensão do processo histórico. E, no nosso caso, do processo histórico brasileiro.

Nossa preocupação aqui é entender não os sujeitos da trama, mas a categoria espacial da paisagem (CAUQUELIN, 2007; VIEIRA, 2010) como elemento organizador da análise, o como ela interfere na linguagem e na estrutura do filme e em sua relação com a realidade brasileira. Tendo o cinema a capacidade de mexer com sonhos e imaginação, ele permite

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“Foi co-diretor da Revista Les Annales (Économies, Sociétés, Civilisations), ensinou na l’École Polytechnique, foi diretor de estudos na IMSECO (Institut du Monde Soviétique et de l’Europe Central e Oriental), membro do Comitê de redação do Cahiers du monde russe et soviétique e professor visitante nos EUA, Canadá, Rússia e Brasil”. Informação retirada de NOVA, Cristiane. Perfil: Marc Ferro. Olho da história: Revista de História Contemporânea, UFBA, nº4. Disponível em: http://www.oolhodahistoria.ufba.br/04nova5.html. Acesso em 15 de agosto de 2015

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construir, inclusive a partir da ficção, outro mundo possível, trazendo elementos que estão em alta ou estão sendo entendidos como problemáticos pelo diretor-produtor.

Ao trazer como central à discussão do filme um espaço específico, qual seja, a paisagem, entendemos que essa é uma discussão que nos preocupa, dimensionando seu entendimento enquanto uma construção social e histórica tendo a compreensão de que a paisagem atua na constituição de sentido e estabelecimento de comunidades políticas. A produção audiovisual, como o cinema, tornar-se-á, portanto, um meio material, enquanto técnica e forma para imaginá-las (ANDERSON, 2008), uma vez que por meio dele se produz imagens e discursos que poderão ser compartilhados em algum grau pela grande maioria dos indivíduos pertencentes à comunidade ou mesmo fora dela, especialmente quando pensamos na quantidade de lugares-comuns compartilhados também pelo estrangeiro (SADLIER, 2016). Toda produção cinematográfica carrega em si a carga da contemporaneidade expressa por todos os elementos que as compõe – da escolha do personagem à produção do cenário – e permanecem no que Souza (2013) define como “campo comunicacional”, uma vez que há diálogo entre os produtores e receptores. Um estudioso precisa estabelecer como essas narrativas estão envolvidas e se envolvem com os padrões culturais da sociedade, já que por meio da prática constituída pelo modo de produção audiovisual, os filmes podem inspirar/fortalecer/ressignificar os discursos e imagens. Ou seja, a maneira como percebemos um grupo, sociedade e mesmo como nós no vemos é construído historicamente e, portanto, sendo passível de ser interpretado.

No caso, interessa-nos a produção da visão de paraíso, a partir do que agora chamaremos de paisagens edênicas, isto é, a ideia de paisagem ligada ao paraíso bíblico, o Éden, o qual durante o século XVI e XVII foi uma base imaginária por meio da qual se imaginou América e o Brasil. O Paraíso tornou-se um dos muitos mitos fundadores da nação, e que ainda hoje insiste em se reproduzir por meio de produtos culturais a exemplo da produção musical e do filme em questão, como assinalam autores de diferentes tradições intelectuais como Sergio Buarque de Holanda (1982), Laura de Mello e Souza (1996), José Murilo de Carvalho (1998), Robert Stam (2004) e Darlene Sadlier (2016).

A opção em trabalhar com cinema foi motivada por uma questão de compreensão da busca de sentido e de orientação constituída pela consciência histórica no trabalho com o passado (RUSEN, 2010). A constatação da ignorância sobre a maneira de trabalhar e refletir historiograficamente sobre um produto cultural de natureza imagética, com sua explosão de

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cores e sons, e sua relação com a consciência histórica3 foi o gerador da escolha desse objeto de estudo. Como ser verá adiante, será preciso apreender como se constituiu o pensamento histórico de Como era gostoso meu frânces (1971), pelo diretor.

A reflexão sobre história, segundo Rüsen (2010, p. 13) é “originada na incontornável carência de orientação da práxis humana”, sendo assim “pilar do pensamento histórico”. Entendendo essa práxis humana como as variadas produções de técnicas e métodos, compete a nós historiadores formular questionamentos sobre nossa prática com a intenção de saná-las. No caso em questão, trata-se de pensar como o motivo edênico empregado em Francês realizou um uso do imaginário social brasileiro no período mais duro do Regime Civil Militar. Percebe-se que o filme lidou com o emprego da imagem/motivo do Paraíso, base da elaboração da autoimagem do Brasil como comunidade política. Por meio dela, utilizou-se também de uma narrativa alegórica, contida na crise política do regime civil-militar – momento em que a repressão política tornou-se componente da produção cultural brasileira. As perguntas norteadoras desta dissertação, portanto, são: O motivo edênico atuou como posicionamento político? De que maneira Francês ao tematizar o passado colonial fora entendido como alegoria da nossa realidade? De que forma a fita produziu um novo olhar sobre autoimagem brasileira?

A filmografia resulta da visão de mundo do diretor e do roteirista, sendo responsável pelas sensações e representações (MITCHELL, 2009) que a imagem pode manifestar. Para Mitchell, a representação é um tipo de atividade, que relaciona meta-imagem e imagem-texto, num processo dialético que compreende poder, valor e publicidade pelo e do objeto representado. Isto é, o objeto representado carrega em si todas as dimensões sociais, como a política, economia e linguagem. E o filme, com suas imagens e representações nos faz pensar no alcance e no como elas motivam e são produzidas pelo imaginário social.

A fita faz parte da trajetória de Nelson Pereira dos Santos4, o qual propôs à sua produção, constituir-se como maneira de apresentação e debate sobre o Brasil (SALÉM, 1987). Sua produção ora mais engajada politicamente, ora sutil e irônica, o fez um dos mais

3 Jörn Rüsen (2010) defende que a consciência histórica é um processo elementar, vital a todo ser humano,

possui a capacidade de articulador do pensamento histórico. A consciência histórica é formada a partir das experiências e interpretações do homem no tempo, relaciona-se diretamente à sua vida prática. Rüsen (2010, p.52) assim a descreve: “a consciência histórica se constitui também como constituição do sentido da experiência do tempo. Trata-se de um processo de consciência em que as experiências do tempo são interpretadas com relação às intenções do agir e, enquanto interpretadas, inserem-se na determinação do sentido do mundo e na auto interpretação do homem, parâmetros de sua orientação no agir e no sofrer”.

4 Considerado uma dos maiores cineastas brasileiros e um dos percussores do Cinema Novo. É fundador do

curso de graduação em Cinema da Universidade Federal Fluminense, sendo professor do Instituto de Arte e Comunicação da UFF. Em sua filmografia consta importantes referências do cinema nacional como Vidas Secas (1963); Rio, 40 graus (1955); Rio, Zona Norte (1957), O amuleto de Ogum (1974).

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renomados cineastas brasileiros entre os anos 1960 e 1970. Dialogando diretamente com documentos oficiais do século XVI, o diretor usou recortes de crônicas, relatos de viagens e constrói os elementos narrativos de Francês baseando-se na história oficial do Brasil e, principalmente, numa adaptação livre do relato do viajante alemão Hans Staden, capturado pelos tupinambás, do qual tira o argumento5 do filme. Abade Thévet, Padre Anchieta, Jean de Léry, Padre Antônio da Nóbrega e Mem de Sá compõe o enredo por intermédio dos recortes utilizados. Para além da documentação escrita é interessante notar a presença das xilogravuras presentes no volume publicado por Hans Staden, das obras de De Bry e de Jean de Léry quanto à representação do índio e do Brasil em Como era gostoso meu Francês6.

A capacidade de atualizar essas imagens ao mesmo tempo em que constrói uma nova significação ou representação delas, da cultura nacional, da terra ocupada, dos primeiros colonizadores nos faz pensar, inicialmente, no regime de historicidade (HARTOG, 2014), apresentado por Nelson Pereira dos Santos. O diretor questiona a narrativa histórica tradicional desse passado, escrita pelo olhar estrangeiro, contra o qual deixa claro sua desconfiança ao longo da película.

Por vezes, Santos opta pela utilização da ironia para pôr em dúvida a narrativa clássica do cinema bem como a narrativa tradicional da história do Brasil. Assume, assim, um regime de historicidade que enxerga o passado colonial por meio de um ideal modernista. O que nos faz reconhecer a continuidade e descontinuidades de elementos históricos da longa e curta duração, na cinematografia da década de 1970.

A tradição cinematográfica brasileira é repleta de filmes ligados à gênese da nação, apresentando a ideia de visão de paraíso, de antropofagia, o bom/mau selvagem e a noção de nação romântica. Descobrimento do Brasil (1936), Macunaíma (1969), Como era gostoso meu francês (1970) e Pindorama (1970) fazem parte da tradição que retoma os mitos fundadores, mostrando-nos imagens ligadas à formação da memória histórica e identidade nacional. Retomado o imaginário de uma sociedade paradisíaca, antropofágica Nelson Pereira dos Santos utiliza tais vestígios com intuito de mostrar – e contrariar – a visão que os estrangeiros tivera da época (SALEM, 1987). Ao referenciar o passado de forma direta por meio de documentação histórica, Como era gostoso meu francês expõe a persistência do passado na

5 O argumento do filme é um documento com as linhas gerais da história do filme: o que acontece, como, a

motivação e as personagens principais. O argumento dá origem ao roteiro, podendo ser adaptado de uma obra literária ou original.

6 É importante salientar que apesar da grande influência do relato de Hans Staden, a primeira parte do filme é

baseada no escrito de Jean de Léry, especialmente, quando da sequência em voz over da apresentação da Carta de Villegagnon.

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cultura visual, seja reforçando ou criticando determinados estereótipos da comunidade política brasileira.

Muito se tratou e ainda se trata sobre a relação entre História e Cinema (BARROS, 2011; PINTO, 2005; RAMOS, 2002; SANTIAGO JR, 2008). No entanto, há poucos trabalhos dentro da historiografia relativos à produção e reflexão sobre espaço e cinema (NAGIB, 2006; SANTIAGO JR, 2013), que é o foco do nosso trabalho. Para tanto, foi preciso dialogar com outro campo social, a Geografia, para se refletir dentro dessa perspectiva. Obviamente, isso será realizado utilizando uma metodologia histórica, capaz de sanar eventuais problemas levantados. Dentro da geografia cultural (COSTA, 2009; BARBOSA, 2011) e também da área de arquitetura e urbanismo (MARTINS, 2012) buscou-se em artigos, dissertações e teses conhecimento apropriado para construir de maneira qualificada a relação espaço-cinema.

José Barros (2011) afirma que é possível examinar os diversos usos – a exemplo da relação entre cinema e memória ou cinema e identidade – e deslocamentos dos discursos e das práticas das obras cinematográficas, suscitando estudos sobre a época em que foi produzido. Deve-se levar em consideração que o cinema não é só uma expressão cultural, mas também uma dimensão da representação, como pontua Barros (2011, p 180), carrega em si, “ideologias, imaginários, relações de poder e padrões de cultura”. Também Santiago Jr (2008) discute sobre a historicidade do uso do conceito de representação para estudar o cinema, desde a teoria do reflexo (em voga na década de 1960) à teoria da representação, comumente discutida nos dias atuais, estabelecendo que um filme esteja sujeito a diferentes “relações representacionais” –, e que ele passa por variações semânticas de acordo com as relações sociais e as apropriações conforme da época na qual que está inserido. Para este autor importa conceber o filme como um agente da cultura relacionando às experiências e práticas discursivas e não-discursivas, superando a concepção de imitação do mundo para entendê-lo como agente de sua própria realidade.

Carlos Eduardo Pinto (2005) afirma que o conceito de representação e da relação história-imagem encara o filme enquanto evidência de uma cultura histórica, sem esquecer-se de sua capacidade discursiva de influência, onde está arrolada a questão da prática e as diferentes apropriações também acentuadas posteriormente por Santiago (2008) e Barros (2011). Alcides Ramos (2002) assegura que a imagem por si nada revela ao historiador. É preciso que a imagem cinematográfica venha acompanhada com informações a respeito da autoria, do ano e circunstâncias geográficas, para, só assim, se conseguir fazer um bom

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proveito da fonte, revelando as relações de poder, imagens e discursos que circularam e foram marcas de um período.

A relação entre cinema-espaço é, em alguma medida, um tópico dos estudos fílmicos, mas apresenta sistematização pouco clara fora daquele campo. Da perspectiva da geografia, Barbosa (2001) acentua a inteiração entre natureza e imaginário, e, consequentemente, sua influência na cultura. Segundo esta autora, a leitura fílmica do espaço recorre à paisagem e à tragédia clássica. Ao fazer isso, reúne personagens e paisagens numa construção cênica que se apoia na topografia. Elas seriam as “marcas no/do jogo cênico, travessias constitutivas do ethos da personagem e de seu destino trágico” (BARBOSA, 2001, p. 72), nesse sentido, tornando-se um recurso de localização de dramas e sentimentos que estabelece um lugar de senso-percepção acionado pela memória coletiva. Como resultado leva o receptor à rememoração de experiências a partir do espaço representado, uma vez que nele se concentra significações e expressões identitárias, intermediadas e construídas em grande parte a partir das imagens (GOMES, 2008).

Como aponta Edvânia Gomes (2001, p.57), “a gestação de uma paisagem coletiva se encontra dependente da capacidade de convencimento e sensibilização cultural e evocativa do agente impulsionador”, dentro desse contexto, vemos o papel dos que, de alguma forma, detêm o modo de produção do conhecimento científico ou cultural, como os cronistas coloniais, os intelectuais e o Estado, agentes impulsionadores dessa criação, fomentada ao longo da história brasileira. Por isso, um dos objetivos deste trabalho compreende pensar o papel político do uso da paisagem edênica no cinema brasileiro dentro do contexto cultural do Regime Civil Militar (1964-1985), analisando também a dimensão da crítica ao Regime por meio da linguagem alegórica e como o filme possibilitou a produção de um tipo de imagem do Brasil.

Para a análise do filme a referência será uma metodologia narrativa-iconológica, fundamentada na narratologia de David Bordwell (2013) e na iconologia de W.J.T. Mitchell (2000). A narrativa é a maneira fundamental de se compreender o mundo e, se dizemos que vamos ao cinema informa-se que iremos assistir a um filme, o qual, costumeiramente conta uma história, ou seja, “uma cadeia de eventos ligados por causa e efeito, ocorrendo no tempo e no espaço” (BORDWELL, p. 144, 2013). Para Bordwell a compreensão da narração é bem sucedida se o processo que a envolve, estiver sendo executada pelo espectador e se a mesma estiver conectada a um espaço, fixando coerência pela troca entre o público e o produto, já que para determinar expectativas e curiosidades é preciso que haja alguém para senti-las. Em

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outras palavras, a narração organiza o visual e a linguagem e o essencial nela, segundo Santiago Jr (2004), é a ação e sua experimentação, a interatividade.

A iconologia crítica de Mitchell (2000) sustenta-se no que o autor chama de “virada imagética”, o picturial turn. Para ele, a imagem tem um papel central a desempenhar na crítica social, e está associada aos regimes de visibilidade. Ou seja, uma imagem está sempre em trânsito, sendo assimilada e assimilando novos valores. Mitchell procura coletar as imagens por intermédio das mídias, transgredindo suas fronteiras e percebendo suas influências e matrizes. A parte crucial do seu trabalho é “não apenas notar a fronteira [entre as mídias], mas se perguntar de que tipo é e como foi instituída”. Sua preocupação está em procurar perceber como novas imagens surgem a partir do cruzamento de imagens antigas e como elas influenciam em determinados contextos.

Dito isto, o presente trabalho partirá da análise das representações fornecidas pela cultura visual, de maneira a perceber e identificar as matrizes visuais e discursivas espaciais com os quais Francês dialogou e participou do quadro social em que estava inserido. Será observada a organização formal do filme, estrutura e elementos estéticos de forma a compreender como o filme percebe e constrói uma determinada imagem de Brasil. Esse texto destaca dois elementos históricos de longa duração: a visão de paraíso e o indígena, presentes no imaginário atrelado à ideia de natureza traduzida pela paisagem e pela ideia de nativo, nos permitindo, com frequência, reconhecer a comunidade política que está sendo evidenciada.

Esse reconhecimento está relacionado diretamente às imagens que são referências ou são referenciadas por modelos de longa duração, isto é, das imagens e textos que insistem em permanecer (LAGNY, 2009), por meio de seu trânsito em distintos suportes – pintura, gravuras, fotografia e cinema – e nas quais se elabora, portanto, uma economia visual que, de tanto se repetir, identifica um pertencimento político (MAUAD, 2014). A paisagem brasileira é comumente identificada pela estereotipia, construída e pensada como equivalente da natureza e do paraíso bíblico, influenciada, a princípio, pelo cristianismo católico. É importante destacar que não há paraíso sem que haja sua figura antagônica, o inferno. Por isso mesmo, é comum que em várias representações, o tema do purgatório e inferno caminhem juntos quando se trata da imagem do Novo Mundo (SOUZA, 1996).

Reconhecemos que a paisagem enquanto imagem, nos mostra uma composição que assimila a natureza “concreta”, o homem – no sentido de humanidade – e suas ações. Aqui, compreendidas, portanto, pelas duas dimensões que o conceito de paisagem está associado,

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enquanto domínio e cenário7. Interessando-nos, pensar como a história da cultura visual se estabelece enquanto história de uma comunidade política.

O segundo elemento, a imagem do índio e sua relação com o canibalismo, retomado em Francês, na perspectiva antropofágica oswaldiana, em que pese à resistência do índio, portanto, do povo, por meio da transformação e apropriação das qualidades do colonizador. A antropofagia será o elemento unificador do externo ao interno. A busca do questionamento sobre esses estereótipos é de suma importância para o trabalho com cinema, uma vez que possui a capacidade de demonstrar as maneiras de ver e pensar a história, pois Francês fora construído “a partir de toda sorte de textos e imagens com as quais os espectadores de uma época podem estar mais ou menos familiarizados” (LAGNY, 2009).

A poética de Francês destaca, na cultura histórica de curta duração, um horizonte marcado pelas relações de exploração dos países desenvolvidos aos países subdesenvolvidos por meio da metáfora da relação do índio e dos primeiros colonizadores8 e pela necessidade do retorno a um passado que deixe clara a resistência de um povo, quando do processo de dizimação. Naquele momento, reclamou-se uma força da transformação que retirasse do estrangeiro o que ele tinha de melhor e mais forte e o subvertesse em elementos da cultura nacional, marca da antropofagia oswaldiana/modernista (RAMOS, 2008). A alusão ao presente está na alegoria dessas relações de resistência à exploração, sempre do ponto de vista dos que estão agindo, os índios tupinambás.

Na ocasião da produção do filme, o Brasil passava por um dos momentos mais intensos do Regime Civil Militar. Do ponto de vista político, as torturas estavam legalizadas e o pensamento ufanista de Brasil potência e país de futuro estavam em alta. O momento que vivíamos permitiu que as preocupações e anseios do período fossem compreendidos por meio das representações que Francês mobilizara, sempre alimentadas das representações já produzidas, uma vez que entendemos que a imagem cinematográfica não só permite a construção de determinado imaginário, como é influenciado pela memória discursivo-iconológica existente, resultado de disputas e processos.

Se por um lado existia um discurso oficial preocupado em estabelecer a grandiosidade do país, por outro as marcas da crise social o estavam assolando. Segundo Ismail Xavier (2001), Francês incorpora a antropofagia como metáfora de resistência ao

7 Em sua tese, Daniel Vieira, utiliza-se da definição de Kenneth Olwig, influenciado pelas considerações de

Yi-Fu Tuan para demonstrar que o conceito é tomado tanto como algo empírico, pertencente ao mundo-objeto, quanto de uma representação fixada em suporte material, a imagem, representação. VIEIRA, D. Topografia imaginárias: a paisagem política do Brasil Holandês em Frans Post, 1637-1669. (Universiteit Leiden, 2010)

8 Nelson Pereira dos Santos em entrevista publicada em 2007 pela revista de Estudos Avançado deixa claro a

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opressor, fazendo um resgate histórico com o intuito de incidir no debate político da década de 1970. Lucia Nagib (2006) segue a mesma linha, identificando o filme como alegoria do período em que foi produzido, e destaca que ao atualizar a antropofagia oswaldiana, o estrangeiro é devorado, não pelo ato de comer em si, mas no sentido de incorporação de suas qualidades. No que deixa de imitar o colonizador, utilizando-se da sua força, transformadora de sentido. O filme permite, assim, que haja a reelaboração das técnicas e ideias do estrangeiro, da mesma forma que transforma imagem do índio.

O duplo sentido posto no título da película, segundo Nagib, o da “devoração sexual” e antropofágica tem também o sentido de integração das raças. Segundo a autora, os elementos que a fizeram chegar nessa conclusão, foi a reciprocidade em aprender a língua francesa por Seboipepe e o Tupi pelo “protagonista” Jean. A cerimônia final seria, para Nagib, a culminância desta integração. É bem verdade que Cunhambebe, na sequência final, toma os canhões nos ombros e passa a atirar com eles. O chefe da tribo, em primeiro plano, centralizado no quadro, expressa no rosto raiva e satisfação por estar agora com poder de fogo português/francês, de modo que as chances de sobreviver às artimanhas dos franceses, nos quais não confia e nem se deixa enganar, e dos portugueses, dos quais são inimigos, aumentaria consideravelmente.

Ao estabelecer a imagem cinematográfica como a própria história, o próprio espaço no quais mensagens e representações circulam e prosperam resultados de um processo histórico (MITCHELL, 2009), enxerga-se que a disputa de significado pelas e das representações é algo antigo e que depende do contexto político e social que se está vivendo.

O filme é baseado livremente na literatura de viagem de Hans Staden, o viajante que fora capturado, mas não chegou a ser devorado e propôs na descrição do título de seu diário mostrar a História Verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situados no Novo Mundo da América.

Hans Staden escrevera sobre sua vivência com os Tubinambás ao retornar para Hessen, sua terra natal. Viagem ao Brasil é considerada um best-seller europeu e fora publicado pela primeira vez em 1555. Cinco anos depois fora reeditado dez vezes e teve, pelo menos, 70 edições até o século XVIII (MAGNO, 2015). Com descrições de sua experiência nas duas viagens ao Brasil, na tribo em que vivera após ser capturado e com gravuras anônimas demonstrando o índio e o ambiente, Staden construiu imagens com intenção de evidenciar sua percepção sobre o Novo Mundo e foram essas imagens (entre outras) que ora são reforçadas e ora são criticadas pela película de Santos.

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Nelson Pereira dos Santos optou por inverter a referência histórica, causando estranhamento naqueles que conhecem o relato de Staden. Ao escolher, na película, ser o personagem principal um francês e não alemão, Santos assim o faz por terem sido os franceses junto com os portugueses a participar de forma direta no processo de colonização brasileira (SALEM, 1987). Outra mudança realizada foi o fato de Jean, o “protagonista” da fita, ao contrário de Staden ter sido, de fato devorado.

Ao mostrar um indígena à velha imagem romântica e dialogando diretamente com o modernismo, o diretor, numa tentativa de retomar a brasilidade que resiste face às opressões e transformar sua realidade compromete-se com a identidade nacional de modo a atualizá-la. Confronta-se em Francês visões de mundo e sistemas de imagens que são anteriores a ele, o que permitiu criar marcadores capazes de instaurar e reforçar a lembrança do que é importante numa dada realidade (SANTIAGO JR, 2012).

A visão do paraíso constitutivo da noção de identidade nacional brasileira é baseada na visão do europeu do século XV e XVI, que, em busca de familiarizar-se ao diferente, viu no Novo Mundo, o paraíso bíblico, mediante a beleza exuberante das matas, de seu solo fértil, da riqueza em minério e dos bons ares, um lugar conhecido, e, mais ainda, um lugar que os europeus julgavam merecer. Tornando-se, assim, um dos mitos fundacionais do Brasil, atrelando com a antropofagia, a imagem do indígena como um povo cortês e gentil, permite, a partir desse conjunto de crenças, a formação de uma de uma paisagem híbrida.

Não à toa, José Murilo de Carvalho (1998), notou que os motivos edênicos ainda persistem na sociedade brasileira de forma ambígua. Se por um lado, visualiza-se o paraíso terreal, por outro, enxergar-se também o inferno atlântico (SOUZA, 1993). A representação da colonização é feita numa constante dialética entre essas duas categorias. O uso prático dessa lógica ao mobilizar dimensões que se opõe ao mesmo tempo em que se complementam admite que convivamos com essas imagens negativas e positivas durante toda vida, mobilizando cada uma de acordo com a necessidade.

Este autor tem como base duas pesquisas de opinião pública que destacam a “boa saúde” do edenismo no imaginário nacional do final do século XX. Ao perguntar as pessoas o motivo de se sentirem orgulhosas por ser brasileiras; a “natureza”, em suas variadas formas, foi a resposta mais recorrente. O deslumbramento com a “maravilha” também esteve presente. Nota-se, portanto, que a construção espacial do Brasil permanecia no ocaso do século passado com algumas das mesmas qualificações que os primeiros europeus que aqui aportaram usaram para descrevê-lo, caracterizando os elementos de longa duração.

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José Luiz Fiorin (2000) destaca as duas principais categorias que ajudaram a construir o imaginário sobre o espaço encontrado: o paraíso terrestre e o locus amoenus, isto é, a vegetação paradisíaca, amena e aprazível. Seria interessante acrescentar outro aspecto para essa configuração, a imagem do índio, a quem tanto destaque fora dado pelos cronistas e viajantes. O bom e mau selvagem estão presentes em todas as narrativas, a gentileza e a vingança também, assim como a descrição de seus corpos perfeitos, notadamente, o das mulheres9.

A dissertação está dividida em três partes: o primeiro capítulo intitulado Nelson

Pereira dos Santos e sua política cinematográfica tem como objetivo localizar a produção

do diretor, cineasta preocupado em discutir e mostrar questões da brasilidade. O mundo cinematográfico nelsoniano se destaca pela ousadia de fazer um cinema que pense o povo, que pense a nação e que mostre as contradições de uma sociedade marcada pelo subdesenvolvimento e colonização. Nesse ponto relacionaremos a biografia do diretor ao contexto político e social da época, destacando suas principais produções cinematográficas até o ano de produção de Como era gostoso meu francês.

O segundo capítulo intitulado A paisagem no Cinema brasileiro, evidencia o debate acerca do conceito de paisagem, de modo a compreender como a paisagem brasileira foi sendo gestada e em alguma medida, consolidada pela cultura visual-discursiva disponível: relatos de viagens, pinturas e tradição cinematográfica. É importante perceber como elementos de longa duração constituíram a autoimagem de Brasil interna e externamente e como, de maneira irônica, Santos ora reforçou, ora ressignificou esse ideal, por meio de uma herança imagética difícil de despir-se. As matrizes discursivas e visuais a respeito do Novo Mundo são localizadas neste capítulo para que analisemos sua permanência ao pensarmos histórica e visualmente o Brasil por meio de sua paisagem. Será por meio de análise narrativo-iconológica que compreenderemos como Francês atua na produção de sentido sobre espaço e noções de brasilidade, quanto a contextualização do olhar iconológico, da natureza emoldurada e seu agenciamento como representação.

O terceiro capítulo intitulado O cinema brasileiro alegórico: a câmera engajada de Francês é dedicado a análise técnica e formal da narrativa do filme, destacando por via da decupagem a sequência em que a narrativa alegórica é mais evidente ou fora vista tal qual

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Ao notar que o corpo feminino faz parte da resposta dada pelos entrevistados na pesquisa de José Murilo de Carvalho, encontramos mais um elemento que envolve o edenismo e sua dialética entre paraíso e inferno, na construção do Novo Mundo, relacionada, por exemplo, a metáfora da terra como feminino e da terra descoberta por meio da metáfora específica como “terras virgens”. Juntas, essas três categorias estabelecem a longevidade de um imaginário. O corpo feminino será explorado no terceiro capítulo desta dissertação.

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pela crítica especializada da época. Trata-se de perceber em que medida Francês se apropria de uma cultura visual anterior e a ressignifica de modo a identificar como elementos de uma tradição visual fora visto e reconstruídos como alegoria nos atos de interpretação pública encontrados. Ao mostrar anseios da década de 1970, para análise do filme, evidenciaremos como atua a consciência histórica nessa produção e no imaginário social, ao destacar os aspectos sócio-históricos que o rodearam. Traremos análises formais de sequências fílmicas a fim de pensar a atuação das metáforas e alegorias.

Em suma, este trabalho se dedica a ampliação da compreensão da relação mundo-filme, apontando como as relações sócio-históricas e toda uma tradição visual permanecem no presente como parte de um determinado modo de ver e assistir ao mundo. Da mesma forma, é possível perceber como os significados fogem da intencionalidade inicial do diretor, abrindo novos horizontes de interpretação, a depender da conjuntura, dos contextos e, claro, dos anseios de quem se dedica a escrever.

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23 CAPÍTULO 1: NELSON PEREIRA DOS SANTOS E SUA POLÍTICA

CINEMATOGRÁFICA

“Nelson foi quem mostrou a todos nós que era possível se fazer cinema diferente no Brasil”.

Cacá Diegues. “O que é admirável na obra do Nelson é que ele se aprofunda cada vez mais no sentido da realidade brasileira, da evolução da consciência brasileira”. Jorge Amado10.

Destacar-se-á nesse ponto os pilares que dão início às disputas imagéticas e confrontos de ideais de nação e brasilidade de Nelson Pereira dos Santos e do Estado brasileiro. Nesse ponto, exploraremos inicialmente sua biografia, em seguida analisaremos suas posturas políticas e sociais quanto aos temas que lhes foram pertinentes, como a função do cinema, sua compreensão política e histórica de mundo e como isso esteve inserido em seus filmes. Para tanto, encontramos em entrevistas, filmes e documentários na internet suas posições a respeito desses temas. Será uma abordagem, portanto, de cunho “autoral” compreendendo “autor” menos como uma essência/continuidade/coerência de práticas e ideias e mais como um cineasta que remarca, continuamente, seu lugar de sujeito num dado quadro de construção social de imagens. Entrevistas e artigos de época reconheciam a Nelson Pereira uma posição de “cineasta-autor” como é próprio da cultura cinéfila brasileira consolidada a partir dos anos 1960. “Autor” é uma construção sócio-histórica num contexto no qual “podemos encontrar a figura do diretor a definir as diretrizes de trabalho e a imprimir um estilo na imagem e som, o qual aparece com nitidez no produto final” (XAVIER, 2001, p. 62).

A atuação dos intelectuais, da qual Nelson Pereira dos Santos fez parte, permitiu pensar uma produção cinematográfica inspirada, primeiramente, pelo neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa, movimentos culturais que realizaram uma produção mais próxima a realidade do espectador.

10 Citações retiradas do livro de SALÉM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema

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Considerado um dos pais do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos, militou desde a juventude no Partido Comunista Brasileiro (PCB). O “partidão” orientou de maneira crucial seu pensamento político e forma de ver o mundo. Para Nelson,

O partido foi uma outra universidade. Uma universidade pelo avesso, pois questionava a versão tradicional da história do Brasil, por exemplo. Outra coisa que o Partido proporcionou foi um convívio amplo com pessoas de classes sociais, origens e formações diferentes, que se encontraram nas organizações partidárias11.

Quando começou a produzir filmes, no início da década de 1950, sua preocupação estava voltada a uma produção não dispendiosa e, ainda sim, de qualidade, e, principalmente, de conteúdo político e social – crítica recorrentemente às produções atreladas a Companhia Cinematográfica Vera Cruz12, feitas pelo cineasta.

Havia grande interesse de conscientizar o povo com o auxílio das imagens que passavam no cinema. Os filmes deveriam expressar a vida cotidiana do trabalhador tendo o debate de classe como central, produzindo obras que refletissem os problemas encontrados pela sociedade marginalizada e explorada. Para o cineasta, o cinema era entendido como arma política, devendo estar engajado, com função clara de desenvolver gostos e ideias novas (SALEM, 1996). A relação contraditória que mantinha com o PCB e a deflagração do Golpe de 1964 mudou sua forma de fazer cinema. Nesse momento, foi necessária uma mudança na relação com a “cultura popular”, entendida pelo PCB enquanto alienante e por Santos como algo a ser explorado e compreendido, além de um maior cuidado com críticas políticas em meio a um contexto repleto de censura e, sobretudo, de autocensura.

1.1. Biografia de Nelson Pereira dos Santos

“Eu costuro o espaço, o tempo, o movimento com os planos, as linhas e com os pontos que eu escolho”. Nelson Pereira dos Santos13.

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Entrevista concedida a Paulo Roberto Ramos. RAMOS, Paulo. Nelson Pereira dos Santos: resistência e esperança. Estudos Avançados 21 (59), 2007.

12 Criada em 1949, a Vera Cruz trazia como proposta ser uma companhia aos moldes de Hollywood, produzindo

filmes dispendiosos e de qualidade técnica de padrão internacional (SADLIER, 2012).

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Membro da Academia Brasileira de Letras ocupa a cadeira de número sete, a qual tem como patrono seu poeta preferido, Castro Alves; Professor emérito aposentado, um dos criadores do primeiro curso superior de Cinema do Brasil e realizador de mais de 20 produções, entre documentários, séries para TV e longas-metragens, Nelson Pereira foi criado no seio de uma família de cinéfilos.

Nascido em 1928, carrega consigo o nome de um dos personagens preferidos de seu pai, o Almirante Nelson14. Seu Santos, paulista caipira – segundo próprio cineasta – e D. Angelina, imigrante italiana, foram os grandes responsáveis pela inserção do diretor e de seus irmãos (Saturnino, Maria Antonieta e José) nesse universo imagético. O pai do cineasta era grande conhecedor do cinema mudo, tendo envolvido toda a família nesse mundo de aventuras, irreverência e dramas que só os filmes podem oferecer. Nelson credita seu amor ao cinema a esse entusiasmo da família que, ainda criança, passavam as tardes de domingo no Cine Teatro Colombo, localizado na região do Brás. (SALÉM, 1987).

O interesse pela política fora característica que sempre acompanhara o cineasta, segundo seus familiares. Seria herança de seu pai, como conta o irmão Nino (Saturnino) em entrevista a Helena Salém (1987). Seu Santos fora diretor da Associação dos Alfaiates do Estado de São Paulo e “chegou até a fazer campanha para a construção de uma sede para associação” (SALÉM, 1987, p. 30). Na biografia escrita por Salém (1987), a autora destaca diversas passagens que reforçam essas marcas. Sua atuação política começa, por assim dizer, ainda criança, quando com seus sete anos, anuncia a sua mãe que não mais irá frequentar a Igreja Católica, ao qual desiste de ser coroinha, pois o padre não permitira que cada criança recebesse mais que um pedaço de pão. Aos 13 anos é expulso do escotismo por questionar o regulamento, depois de ter iniciado uma “greve”.

Em 1944, aos 16 anos, Nelson entra para o Colégio do Estado Presidente Roosevelt. Escola conhecida por sua qualidade formativa e por ter um dos núcleos mais atuantes da juventude do PCB. É nesse período que o Partido Comunista Brasileiro passa a se rearticular. Até 1945, o partidão experiencia um momento de semiclandestinidade15, quando fora relegado a total ilegalidade, no período do Governo autoritário de Vargas (1937-1945). A partir desse contato, as ideias da esquerda política passam a fazer parte da maneira de Nelson Pereira de se inserir e enxergar o mundo a sua volta. É nesse momento que o PCB tem uma grande vitória. O partido consegue eleger 14 deputados, além da libertação de Luís Carlos

14 Personagem de filme mudo chamado The Divine Lady, de 1927, de Frank Lloyd.

15 A legalidade do PCB dura de 1945 a 1948, momento que entra novamente na clandestinidade, durante o Governo do

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Prestes, que depois de solto, passa a ocupar o cargo de Senador da República (SADLIER, 2012).

Para além da importância que o Partido tem na produção nelsoniana, outro elemento foi decisivo para fundamentar seu universo, a literatura e a música. Nelson Pereira foi um ávido leitor, em especial da literatura nacional dos anos 1930. Na literatura internacional, tem grande referência em Dostoiveski e Shakspeare, no que pese a filosofia, admira o existencialismo de Sartre. Sobre as diferentes influências, o diretor comenta,

Já disse isso outras vezes, mas em todo caso vou repetir: sou muito grato à minha geração, a esses autores do século passado, o século XX (rindo), que fizeram a cabeça da gente. Principalmente, a gente encontra na literatura brasileira, autores como os meus conterrâneos Mario de Andrade, Oswald de Andrade; os nordestinos, o Graciliano (Ramos), o Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Lins do Rêgo (José Lins do Rêgo)... E os pintores modernos, Di Cavalcanti, Pancetti... A música, o Villa-Lobos. Você vê que o Cinema Novo é impregnado de Villa-Lobos (rindo)16.

Sua produção cinematográfica foi marcada, especialmente por adaptações literárias17, sobretudo, das obras de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues e Machado de Assis, autores que teriam lhe feito, na juventude, enxergar o Brasil (SALÉM, 1987). Nelson comenta a importância de Jorge Amado para a realização de seu primeiro filme enquanto diretor18,

Ele me deu grande abertura para o popular da nossa realidade. Jorge Amado sempre esteve em minha cabeça. Meu primeiro filme, Rio 40 Graus, tem o roteiro assinado por mim, mas, ao ver o filme, sente-se a presença e a influência fortíssima de Capitães da Areia, principalmente, ou até mesmo do próprio Jubiabá. (...) a presença de Jorge Amado em Rio 40 Graus é evidente. Os meus heróis são os meninos, com seu lado “capitães da areia”, que saem da favela e vão vender amendoim, no Rio de Janeiro, em um domingo, no verão… 19

Em 1947, o cineasta iniciou a faculdade de Direito, no largo do São Francisco, onde passa a atuar politicamente no Centro Acadêmico XI de Agosto. Sua atuação incluía escrever

16 Entrevista concedida a Alexandre Arruda e Eduardo Lamas em 2001 para o extinto site “Papo Carioca”, 19 de

agosto de 2009. Disponível em: https://eduardolamas.blogspot.com.br/2009/08/entrevista-com-nelson-pereira-dos.html

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Obras adaptadas: Vidas Secas (1963), Azyllo muito louco (1970), Tenda dos Milagres (1977), Memórias do Cárcere (1984), Jubiabá (1987) e a Terceira Margem do Rio (1993).

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Para além da literatura, a música exerceu e exerce grande influência em sua produção, pelo menos três filmes são obras que contam a vida de cantores brasileiros. Na estrada da Vida, filme de 1980, conta a trajetória dos cantores sertanejos, Milionário e José Rico; A música segundo Tom Jobim (2012) e A luz do Tom (2012), documentários sobre a vida e obra do músico da Bossa Nova, Antônio Carlos Jobim.

19 Entrevista concedida a Luis Pires. PIRES, L. Jorge Amado por Nelson Pereira dos Santos. Revista CULT,

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regularmente sobre literatura e cinema para o jornal comunista da faculdade chamado Hoje. O jornal teve grande dificuldade de sobrevivência devido ao contexto repressor a qual se encontrava. Tendo voltado à ilegalidade em 1948, o PCB, e seus militantes passaram a sofrer as consequências do regime de Dutra (1946-1951). O jornal, por vezes, precisava mudar de sede e de nome para continuar na sua tentativa de disputar ideologicamente a classe trabalhadora. Nelson Pereira fora preso em mais de uma vez por participar das manifestações políticas no campus (SADLIER, 2012). Envolveu-se em diversas campanhas, como a do “Petróleo é nosso”, a da Constituinte e na Campanha pela Paz.

Esse período do pós Guerra é marcado por uma grande efervescência política e cultural no país. Em São Paulo ocorria a consolidação do processo de industrialização, e por consequência, sua modernização. A burguesia industrial passava então a investir na cultura. É nesse momento que o Museu de Arte de São Paulo (1947), o Museu de Arte Moderna (1949), o Teatro Brasileiro de Comédia (1949) e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1949) são criados, tendo a frente dessas iniciativas nomes como Assis Chateubriand e Francisco Matarazzo Sobrinho. Desse vigor econômico saiu também iniciativas de criações de cineclubes e grupos de teatro amadores, em que Nelson Pereira se insere juntamente com outros jovens ligados ou com influência do campo político do PCB.

A historiografia cinematográfica recente, em especial, os trabalhos de Jean-Claude Bernadet (2008) e José Inácio Melo (2003) superam a questão da produção cinematográfica ligada a ideia de ciclos regionais, fazendo críticas a esse marco historiográfico. Bernadet (2008) reflete sobre os mitos constituintes da história do cinema brasileiro, propondo um discurso histórico que não seja marcado por visões nacionalistas e nem pela necessidade de um marco inaugural. Para a historiografia clássica20, a indústria cinematográfica nacional até os anos 1930 foi marcada por uma produção diversificada, presentes em diferentes regiões do país. Até esse momento não havia uma política nacional que permitisse uma produção continuada, tendo como marca os ciclos regionais, notadamente, o ciclo de Catagueses, em Minas Gerais, “talvez o mais nacional de todos os ciclos”, segundo Ipojuca Pontes (apud MORAES, 1985).

Ao lembrar do grande nome desse ciclo, o cineasta Humberto Mauro; o ciclo de Pernambuco, com 13 longas-metragens, tendo como característica a influência do cinema de cow-boy americano dos anos 1920; o ciclo da Cinédia, no Rio de Janeiro, com suas inúmeras

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chanchadas21; O ciclo de Campinas, em São Paulo, que se caracterizou por produzir filmes que misturavam o drama sertanejo e o western americano (VIANY, 1993); e, por último, o ciclo de Pelotas, no Rio Grande do Sul, trazendo um forte sentimento regionalista.

Tais produções esparsas revelavam, segundo a tradição clássica, um pensamento e indústria cinematográfica marcada pelo subdesenvolvimento e as dificuldades de produção e distribuição (BERNADET, 2009). Durante os anos 1940 e 1950, os filmes norte-americanos que haviam monopolizado o mercado nacional nos 1930, passaram a dividir espaço com outras cinematografias, principalmente no pós-guerra, onde se viu uma diversificação nas salas de exibição, passando a estrear filmes de outros países, como Japão, Itália e URSS (SALÉM, 1987). O surgimento de movimentos como o neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa permitiu mostrar ao mundo novas formas de fazer cinema, contrastando com a produção hollywoodiana e evidenciando aos aspirantes de outros países que havia mais de uma possibilidade de produção cinematográfica que não os esquemas dos estúdios.

No entanto, não havia como competir com produtos realizados em grandes estúdios e com altos orçamentos. É bem verdade que as distribuidoras não facilitavam o acesso do filme nacional e em sua maioria eram controladas por produtoras estrangeiras, tais como a Universal Pictures e a Columbia Pictures (SADLIER, 2012). Como consequência os filmes nacionais não tinham o alcance necessário, apesar da tentativa audaciosa da Vera Cruz em realizar filmes que pudesse se assemelhar a uma produção estrangeira, como a de Hollywood. Para Pedro Simonard (2006, p.27),

O papel que a produção cultural teria que desempenhar nesse processo de afirmação nacional era fundamental. A burguesia e as camadas urbanas guiavam seu comportamento por aquilo que era ditado pela produção cultural estrangeira, principalmente pelo cinema de Hollywood. Diante disso, a necessidade de se criarem condições para que o artista brasileiro pudesse enfrentar as produções estrangeiras era uma das frentes de atuação dos nacionalistas. A luta pela afirmação de uma cultura nacional tinha como um dos seus principais objetivos buscar fazer com que o cinema brasileiro, por ser uma arte e um veículo de comunicação de massa, ocupasse os espaços do cinema estrangeiro ou que, ao menos, conseguisse dele tomar uma fatia do mercado brasileiro.

Foi nesse contexto que Nelson Pereira passou atuar e a fazer críticas a Vera Cruz e ao mercado nacional. O exotismo com a qual a Vera Cruz retratava a sociedade brasileira além de sua produção “pouco brasileira”, também marcada por inúmeros técnicos estrangeiros, fizeram da Companhia, o exemplo a ser renegado quando do incipiente processo

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de gestação do Cinema Novo. Os filmes produzidos pela Vera Cruz retratavam o povo brasileiro a partir do exotismo e do folclore, marcas de uma linguagem reacionária e burguesa, segundo os cinemanovistas (SIMONARD, 2006).

Durante o tempo que funcionou, a Companhia, produziu entre 1950 e 1953, dezoito filmes e inúmeros documentários. Seu filme mais famoso O cangaceiro, de 1953, dirigido por Lima Barreto, trazia a história de Lampião em formato de western – no Brasil esse estilo ficaria conhecido, anos depois, como nordestern. Apesar de uma boa receptividade, O cangaceiro, não conseguiu “salvar” a Vera Cruz de sua derrocada, devido a não preocupação da Companhia com os aspectos de distribuição e exibição, principalmente depois de ter cedido os direitos de seus filmes a distribuidoras estrangeiras (SADLIER, 2012).

Ainda em 1949, Nelson viajou a Paris com o intuito de estudar no Institut Supérier d’Études Cinématographique, para uma temporada de um ano, que, dura somente dois meses, quando se vê forçado a retornar ao país. Aqui ele tinha deixado a Faculdade de Direito e o CPOR, curso de formação militar, que precisavam ser terminados. Durante sua estadia em Paris, o diretor frequentou a Cinemateca da cidade, entrando em contato com as inúmeras produções estrangeiras e movimentos cinematográficos, sob orientação do amigo e pintor Carlos Scliar.

Ao voltar ao Brasil, traz o entusiasmo na bagagem, filmando sua primeira incursão ao cinema em 1950. Numa tarefa partidária, realiza o documentário Juventude, encomenda do PCB para o Festival de Juventude de Berlin (SADLIER, 2012). Em 1951 produz outro documentário para o Partido, ideologicamente afeito às ideias da esquerda e, especialmente, do realismo socialista de Andrei Jdanov22, partidário de Stálin. Nelson assim caracterizou sua segunda produção: “Era um filme sobre a divisão do trabalho (...). Era uma coisa em que eu misturava o antimalthusianismo, a produção da riqueza e o anti-imperialismo, todas as ideias da juventude de esquerda, tão mal digeridas (apud Salem 1987, p. 63). E por mal digeridas, entenda-se por impostas. O PCB, enquanto vanguarda clássica, ditava o que era certo e errado e classificava o que era verdadeiramente popular ou não, aos seus militantes e, pretensiosamente ao próprio povo (SALÉM, 1987).

Em 1951, realizou-se a I Bienal de São Paulo, no Museu de Arte Moderna. Ações como essas aconteceram em todo mundo e, no Brasil, a Bienal objetivou congregar todos os

22 Para Mariarosario Fabris (1994) “o modelo jadoviano tentava impor às relações entre cultura e partido”,

submetendo e controlando a autonomia do artista ao plano político, o que impediria a formação de um discurso reacionário e burguês. Pedro Simonard (2006, p.55), classifica de forma diferente o programa cultural do PCB, para este autor o programa cultural adotado pelo partidão era plekhanoviano, sectário e esteticamente reacionário.

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artistas latino-americanos e se posicionar contra o realismo socialista vindo da URSS. Iniciativa de Nelson Rockefeller, em meio a Guerra Fria, tal ação coadunava com a centralidade dos EUA como potência política e cultural sob o restante do mundo. É claro que os artistas comunistas brasileiros se posicionaram contrários a Bienal, utilizando de seus instrumentos de transformação, a câmera, o pincel ou o lápis, para conscientizar e modificar a realidade social.

No mesmo ano, criou-se a Associação Paulista de Cinema, promovendo o I Congresso Paulista de Cinema, com o intuito de pensar uma identidade cultural brasileira no cinema e a atuação do Estado na regulamentação das questões básicas de classificação do filme nacional, distribuição e exibição. Pelo menos 40 empresas produtoras participaram do congresso. Segundo Salém (1987, p.74), a iniciativa “era uma resposta ao ideário ‘imperialista’ da Vera Cruz e um reflexo da crescente necessidade dos cineastas e técnicos se organizarem para forjar um cinema autenticamente nacional”. Foi nesse contexto que, participando ativamente como crítico na revista Fundamentos, Nelson Pereira deu sua opinião quanto a primeira grande produção da Vera Cruz, Caiçara (1951), do diretor italiano Adolfo Celi.

Acusando de caricaturar o povo brasileiro, e, em uma maior dimensão, responder a afirmativa da Companhia de que ali nascia a Indústria brasileira de cinema – “esquecendo” momento da Belle Époque do cinema brasileiro ou mesmo os esforços de Humberto Mauro, diretor que muito produziu durante os anos 30/40 – Nelson assim responde a empreitada cinematográfica da Vera Cruz,

O filme que a Cia. Vera Cruz lançou nas telas de S. Paulo não é cinema brasileiro que a sua propaganda procura fazer crer. (...). Cinema brasileiro na verdade será aquêle que reproduzir na tela a vida, as histórias, as lutas, as aspirações de nossa gente, do litoral ou do interior, no árduo esforço de marchar para o progresso, em meio a todo o atraso e a tôda exploração, impostas pelas fôrças da reação. (...). Cinema brasileiro será aquêle que no curso das suas cenas e no desenrolar dos seus enredos mostrar os pontos altos (que são muitos) da riqueza material, moral e cultural que o novo povo vem construindo dentro das mais adversas condições. (SANTOS, 1951, p.45)23

E finaliza reconhecendo “Caiçara é a negação de tudo isto”. O maniqueísmo de Nelson Pereira quanto ao que deve ser o cinema nacional e sua função é compartilhado por quase todos os cineastas e artistas progressistas do período. Caiçara procura adotar técnicas do neo-realismo italiano, filmando em exteriores e procurando pessoas comuns para

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figurarem na fita. Por sua vez, o diretor classifica o esforço em obedecer aos critérios da escola italiana como “fingimento neo-realista”, segundo ele, se aproximando dos padrões de Hollywood. Disse o diretor, “o verdadeiro realismo não está na forma; está antes de tudo, no assunto e no seu tratamento”. O conteúdo político e social, atrelada a escola italiana, seria, nesse caso, o elemento mais importante do cinema. O filme deveria ser funcional, positivar os tipos humanos da nação e problematizar as questões sociais. Acusava Caiçara de “desviar a atenção do espectador das contradições e da opressão em que vive um povo” (SANTOS, 1951, p.45).

Convidado a ser assistente de direção de O Saci, em 1951, Nelson Pereira passa a trabalhar pela primeira vez com Ruy Santos e Alex Viany. O filme, uma adaptação da obra de Monteiro Lobato, se realizou dentro das ideias da esquerda. Considerado um escritor progressista e popular, que ajudou na campanha do “Petróleo é nosso”, se materializou em torno do filme, as ideias de caráter nacionalista, tendo como foco o folclore e tradições do país. Para Darlene Sadlier (2012, p.19), a realização desse trabalho foi importante para o período porque “trouxe à tona o compromisso de realizadores radicalmente envolvidos com temas e personagens representativos da classe operária brasileira”. A reinterpretação do que é popular faz parte da noção de identidade nacional da esquerda brasileira ligada ao PCB.

A partir da experiência de O Saci, Nelson foi convidado para trabalhar no Rio de Janeiro com Ruy Santos, para terminar Aglaia – filme que doravante não fora concluído. Foi nos ares cariocas que sua produção enquanto diretor de cinema deslancha. A partir daqui, a produção nelsoniana terá como foco a cidade do Rio de Janeiro e Paraty, cidade litorânea da capital. Como assistente de direção, ajudou a filmar Agulha no Palheiro (1953), de Alex Viany, seu primeiro filme em terra carioca.

Ao mesmo tempo em que participa da produção do filme de Viany, Nelson milita pela causa do cinema nacional, participando ativamente de outros dois congressos de Cinema, apresentando a tese sobre o problema do conteúdo no cinema brasileiro, em que pese a necessidade de trazer a tônica do caráter nacional para as grandes telas para que o povo pudesse, finalmente, reconhecer enquanto classe. Dizia Nelson em 195124: “Os cineastas brasileiros, jovens em sua maioria, e todos aqueles que esperam o nascimento do verdadeiro cinema nacional têm, portanto, o dever de tomar posição decisiva nessa luta, em prol da utilização de assuntos que reflitam a realidade, os sentimentos e a vida do povo da nossa

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