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Poemas de um adolescente em conflito com a lei: uma perspectiva

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Poemas de um adolescente em

conflito com a lei: uma perspectiva

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar um olhar possível sobre a figura do adolescente em conflito com a lei visando a compreensão da relação entre adolescente e sociedade. Trata-se de uma pesquisa em que o método se baseou em uma análise teórica interconectada à análise de poemas de um jovem escritos no período em que cumpriu medida sócio-educativa como interno até o momento de seu suicídio, poucos meses após ser libertado. Descrevem-se aspectos da adolescência e de um panorama histórico da legislação e do tratamento institucional conferidos à infância e adolescência no Brasil. Os poemas evidenciam que o tratamento social ao adolescente em conflito com a lei não só perpetua, mas intensifica a sua condição de excluído social e moral. O estudo conclui apontando a responsabilidade mútua e complexa do próprio adolescente e da sociedade marcada por estigmas e intolerância no tratamento do ato infracional.

Palavras-chave: adolescente - conflito - lei - panorama histórico – poemas

Abstract

This article aims to present a view point about the adolescent in conflict with Law looking for a comprehension of the relation between adolescent and society. It departs from a research where the method was based on a theoretical analysis and its connection to the analysis of the poems of an adolescent written during the period he accomplished social educational measures as a convicted until the time he committed suicide a few months later. Aspects of adolescence and historical overview of the legislation and the institutional treatment given to childhood and adolescence in Brazil are descript. The poems show that the social treatment to the adolescent in conflict with Law perpetuates and intensifies his condition of social and

            1 Roberta Arueira Chaves  2 Elaine Pedreira Rabinovich                  1 Programa de Pós­Graduação em  Família na Sociedade  Contemporânea, Universidade  Católica de Salvador  2 Programa de Pós­Graduação em  Família na Sociedade  Contemporânea, Universidade  Católica de Salvador          Autor para correspondência:  gmail.com.br robertaarueira@ ;  elainepr@brasmail.com.br  Endereço postal  R. Wanderley de Pinho, n. 466,  apt. 1201, Itaigara. CEP: 41815‐ 270. Salvador, Bahia 

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moral exclusion. The study concludes pointing out the mutual and complex responsibility of the adolescent himself and society, marked by stigma and the intolerance, in the production of the act of contravention.

Key-words: Adolescents in conflict with law, historical panorama, poems.

INTRODUÇÃO

A temática do indivíduo que se encontra em conflito com a lei, em geral, e, dentro desse grupo, o adolescente que incorre na “prática de ato infracional” (Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, Título III), em particular, tem sido abordada, no senso comum, sob a ótica de uma sociedade sedenta por segurança. Desse modo, os mecanismos punitivos são encarados como a solução mais adequada para proteger a sociedade desses indivíduos que fogem às suas regras de convivência. O termo punição, por conseguinte, torna-se aplicável a todos aqueles que encarnam o emblemático rótulo de antssociais.

No entanto, por trás ou conjuntamente, há alguém que, ao contrário, reflete em sua subjetividade as próprias contradições e tensões do contexto social no qual se encontra inserido. Esse outro olhar se apresentou como meta deste estudo, revelando que o discurso da sociedade sobre o adolescente em conflito com a lei é o principal obstáculo do seu processo de desenvolvimento.

Este estudo se baseia nos poemas de um adolescente, nascido em 1985, tendo cursado até a oitava série do ensino médio, procedente do município de Itabuna, que cumpriu medida sócio-educativa na Fundação da Criança e do Adolescente (FUNDAC), Salvador, Bahia, durante o período de 2003 até março de 2006. O jovem cometeu suicídio em setembro de 2006, com a idade de 21 anos, quando ainda era acompanhado pelo programa de egressos dessa instituição.

A medida sócio-educativa cumprida pelo jovem, devido à gravidade do ato cometido (homicídio), correspondeu aproximadamente ao tempo máximo de três anos permitido pelo ECA, segundo consta no Art. 121, parágrafo terceiro. Cabe aqui ressaltar que, apesar de ter tido apenas uma entrada na referida instituição, o adolescente já mantinha uma vida infracional no município de Itabuna, o que foi expressamente confessado por ele mesmo.

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A passagem do jovem pela FUNDAC incluiu os três anos de reclusão e o período de atendimento no programa que atende a alguns dos egressos dessa instituição. O encontro da autora com o sujeito deste artigo, cujo nome é Carlos Alberto Côrtes Neves, ocorreu no período posterior à sua liberação judicial, quando atuava como psicóloga na Coordenação de Apoio à Família e ao Egresso.

Para dar seguimento ao escopo deste trabalho, será feita uma análise dos poemas que estão reunidos em um livro denominado Um novo

horizonte, lançado pelo jovem no ano de 2006, com o apoio da

FUNDAC. Essa análise visa à compreensão da relação entre o adolescente em conflito com a lei e a sociedade, tendo em vista o processo de estigmatização aí engendrado. Nesses poemas, fica claro que o tratamento social até então conferido ao adolescente em conflito com a lei não só perpetua, mas intensifica a condição de excluído social e moral desse jovem.

SOBRE A ADOLESCÊNCIA

Antes de estar em conflito, quiçá com a lei, trata-se aqui do jovem vivendo um momento peculiar e delicado de seu desenvolvimento no ciclo vital.

Winnicott (2005) afirma que a única cura real para a adolescência é a passagem do tempo e o amadurecimento, deixando claro que os conflitos e dificuldades são inerentes a esse momento. Assim, descaracteriza a consideração patológica de alguns indivíduos nessa fase da vida. Por outro lado, considera que, embora os adultos busquem compreender os adolescentes, eles próprios não desejam ser compreendidos, pois seu único anseio é por viver, descobrir, e inventar a si mesmos.

A curiosidade perpassa a juventude como uma lógica intrínseca a esse momento desenvolvimental, que traz como marcas a extravagância, a aventura e o experimentalismo. Segundo Pais (2006), o risco é assumido pela juventude em muitas esferas da vida, tais como os esportes radicais, a velocidade em excesso, as aventuras sexuais e o consumo de drogas. Esses comportamentos podem ser compreendidos como uma defesa contra a natureza anódina e a ausência de respostas do cotidiano: representam uma forma concreta de libertação através desses mecanismos de fuga. Ser capaz de correr riscos é uma qualidade que valoriza o jovem diante de seus pares, configurando-se, nesse caso, como uma ação de natureza autoafirmativa.

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Para Oliveira (2008, p. 99), os jovens vivenciam uma sensação de “invulnerabilidade” que é suscitada pela presença, na juventude, de aspectos tais como o “plus energético, a força vital, a baixa probabilidade de adoecimento e morte natural”. Partindo disso, sentir-se invulnerável engendra um comportamento de exposição imprudente do jovem a perigos, que é reforçado pelos riscos crescentes da contemporaneidade.

Por outro lado, a atração exercida pelas rotas transgressivas é igualmente reforçada pelo enfraquecimento dos modelos idealísticos, e o esvaziamento dos caminhos oferecidos pelas vias institucionais. Como coloca La Mendola (2005), “os desvios hetero e autodestrutivos (...) devem ser entendidos como a consequência lógica da desconfiança produzida pelas ambivalências e pela irracionalidade,

pelas promessas vãs dos mecanismos sociais” (p. 85-86).

A desesperança sobre as possibilidades de inserção e utilização adequada, para fins sociais, das potencialidades inerentes a cada jovem, particularmente os oriundos das camadas sociais menos favorecidas, traduz-se em uma aceitação do risco como única via de reconhecimento e conquista de um lugar possível, em um horizonte social restrito.

Seguindo essa linha, o jovem deste artigo tem algo a dizer sobre o fato de ter enveredado por uma dessas rotas de risco, tão comuns na juventude, embora fale de uma posição que revela aparente distanciamento das experiências vividas outrora:

Comecei de forma curiosa.

Que cigarro de maconha não era droga, Era o que todo mundo me falava. Experimentei.

Nem eu mesmo acreditava. Primeira vez, outra sensação. Segunda vez, maior barato, ilusão.

A fumaça me deixava cada vez mais louco E sem perceber,

Eu já tinha me jogado num poço”. (Neves, 2006, p. 17).

Segundo Pais (2003, p. 205), a aprendizagem efetuada sobre o mundo das drogas pode também ser compreendida como “um elemento-chave na estruturação do universo relacional dos jovens”. O uso da droga é uma prática coletiva que funciona, muitas vezes, como uma força de coesão para os grupos que se desenvolvem em torno de seu uso comum. Em alguns contextos, o uso da droga implica em um tipo de sociabilidade calcada em uma “identidade negativa”, que se apresenta

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como “oposição” (p. 207) ao poder das gerações mais velhas. Nesse sentido, constitui-se como a afirmação de si através de um modo diferente de estar no mundo.

A transgressão pode ser entendida como uma vontade de não se conformar e resistir rebeldemente à adversidade (PAIS, 2006). Correr riscos torna-se uma espécie de efeito desse desejo. Segundo esse autor, “enquanto as gerações mais velhas orientam a sua vida por caminhos e valores de segurança e rotina, os jovens escolhem, muitas vezes, as rotas da ruptura, do desvio” (p. 11). Nesse sentido, as rotas transgressivas do adolescente podem ser compreendidas sob a ótica do experimentar, experimentar-se a si mesmo num constante ir e vir entre as diversas possibilidades de ser e de existir no mundo.

Por outro lado, uma tensão é estabelecida entre as necessidades de diferenciação e pertencimento. Pois se há a necessidade de adquirir padrões de pensamento e comportamento diversos da família e dos que exercem papéis de controle, há igualmente a necessidade de pertencer e se sentir parte integrante e aceita de um grupo social (ALCÂNTARA, 2007).

Cabe aqui ressaltar, no entanto, que não existe uma, mas diversas juventudes e modos de vivenciá-la, conforme variam aspectos como classe social, momento histórico, cultura, localidade, nível de instrução dos pais e educação recebida (Camarano, 2006). Essa autora sugere uma visão mais abrangente da juventude. Considera essa fase da vida como um período marcado por vulnerabilidades e potencialidades, que se expressam de maneiras diferentes a depender do sexo, grupo social, étnico e regiões geográficas.

Entre as muitas mudanças e transições que envolvem o período de transição para a vida adulta, podem ser citados a inserção econômica, a busca de autonomização material, lar próprio e valoração social, a aquisição de comportamentos relativos à consumação familiar, os sistemas de aspirações e projetos, dentre outros. Transições que se dão em meio às transformações do ambiente no qual o jovem vive, que vão desde mudanças sócio-econômicas até as relativas a formas sociais, familiares e individuais da vida cotidiana, bem como aos sistemas de valores que lhes são correspondentes (PAIS, 2003, 2006; CAMARANO, 2006).

Além das dificuldades inerentes ao momento particular de desenvolvimento, somam-se a elas as vulnerabilidades sociais que vitimizam a juventude em um país como o Brasil.

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Segundo Abramoway e Castro (2002), vulnerabilidade social é o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos do grupo ou indivíduo, e o acesso às estruturas de oportunidades (ativos) sociais, econômicas e culturais oferecidas pelo Estado, mercado e sociedade. No Brasil, uma parcela considerável da juventude brasileira (ANCED, 2004) apresenta carências no sentido de recursos, capital social, capital cultural, e acesso a serviços e direitos básicos garantidos constitucionalmente. O resultado negativo dessa relação conduz a restrições no sentido de mobilidade social dos atores envolvidos, prejudicando as estratégias de uso dos ativos.

PANORAMA HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO E DO TRATAMENTO INSTITUCIONAL CONFERIDOS À INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA NO BRASIL

No Brasil do século XX, mais precisamente em 1927, é promulgado e começa a vigorar o Código de Menores Mello Mattos, o qual aboliu o critério do discernimento até então utilizado apenas para crianças e adolescentes autores de atos infracionais. Esse Código estabeleceu que nenhuma criança menor de 14 anos seria submetida a qualquer tipo de processo penal, mas sim a um processo especial instituído segundo moldes específicos. Esse foi um dos primeiros passos da legislação brasileira no sentido de reconhecer a especificidade da infância e da adolescência, consolidando as leis de assistência e proteção a menores no país (LIBERATI, 2002).

Ainda no século XX foi consolidada, no Brasil, a Doutrina da

Situação Irregular (SARAIVA, 2003) operando segundo uma lógica

de controle sobre a infância e a adolescência. Essa doutrina tinha um caráter tutelar e protecionista e, como esclarece Saraiva (2003), preceituava que “os menores passam a ser objeto da norma quando se encontrarem em estado de patologia social” (p. 44). Em 1979, ainda sob os umbrais do período ditatorial, é criado um novo Código de

Menores, preconizando que crianças e adolescentes em situação de

risco material e/ou moral encontravam-se no limiar da criminalidade, sendo que o Estado, nesse caso, deveria se ocupar delas como um “problema” a ser solucionado. Nesse período, controlar a infância e a adolescência significava regular os pobres e proteger a sociedade do perigo potencial que eles representavam.

A partir desses dados, ficam claras a natureza repressiva e a necessidade de controle que, no Brasil, sempre balizaram as ações estatais voltadas para crianças e adolescentes autores de atos infracionais.

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Tomando esse cenário como referência é possível perceber, no discurso geral da sociedade, que os atos do adolescente em conflito com a lei favorecem sua classificação sob a categoria de sujeito antissocial, ativando, consequentemente, os mecanismos de normalização (FOUCAULT, 2007) que culminam com a marginalização espontânea dessa parcela da juventude brasileira. Dessa forma, a natureza da punição só pode ser vista sob o pano de fundo das relações de poder que se estabelecem no meio social, e que marcam profundamente a identidade daqueles que se encontram a ela submetidos. Todos os que, de algum modo, ameaçam o status quo da moralidade e das normas sociais cristalizadas ao longo do tempo são automaticamente inseridos na engrenagem dos mecanismos de exclusão. Assim, a punição recai, como coloca Foucault (2007, p. 20), “não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser”.

Com base no pensamento de Foucault, é importante operar uma redefinição de como são concebidos os atos praticados pelos adolescentes em conflito com a lei: não como antissociais, mas sim como atos sociais (SILVA, 2003, p. 33) que remetem à inextrincável relação entre sujeito e sociedade.

Com a reabertura democrática da década de 1980, os movimentos da sociedade civil organizada e as lutas em torno do tema dos direitos humanos surgiram os primeiros sinais de um avanço significativo no âmbito da legislação voltada para a criança e o adolescente no Brasil. Assim, a Constituição Federal de 1988 concede, com absoluta prioridade, ampla proteção dos direitos fundamentais às crianças e adolescentes, especificada e resumida no Art. 227:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Somado a isso, no ano de 1990 é promulgada pelo Presidente da República a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) no ano anterior. Sua forma concreta foi o Decreto n. 99.710.

E, para finalizar, em 1990 é também promulgado o Estatuto da

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espécie de Segunda Carta Magna, criando um sistema de garantias baseado na doutrina jurídica da “proteção integral e especial”. O Estatuto apresenta uma dimensão política, pois cria um sistema de co-responsabilidade entre governo, sociedade civil organizada (entidades) e família. Assim, este instrumento impele ao compromisso compartilhado sobre a formulação, fiscalização, administração dos recursos e avaliação das políticas e serviços sociais públicos básicos.

Segundo Saraiva (2003), a expressão “Doutrina da Proteção Integral”, consignada no ECA, remete a um conjunto de instrumentos jurídicos, de caráter internacional. Estes revelam uma evolução notável no tratamento social conferido à infância. Os movimentos de proteção resultaram em diversos tratados e convenções, tais como a Convenção

sobre os Direitos da Criança, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing), Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, e as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad). Esta doutrina considera a

criança e o adolescente como sujeitos de direitos, dotados, em sua peculiar condição de desenvolvimento pessoal e social, de “absoluta prioridade” no gozo dessas prerrogativas. Assim, todas as crianças e adolescentes adquirem o status de cidadãos, plenos protagonistas de seus direitos, abolindo-se a figura do sujeito em “situação irregular” sob a tutela do Estado.

No entanto, segundo o Relatório Sobre a Situação dos Direitos da

Criança e do Adolescente no Brasil (ANCED, 2004), há uma marcada

dissonância entre o modelo de aplicação e execução das medidas sócio-educativas e o ideal preconizado por uma legislação avançada, que defende o respeito à dignidade do adolescente autor de ato infracional. Omal-estar gerado por esse grupo de adolescentes revela que estes continuam a ser vistos e tratados, na sociedade brasileira, como uma espécie de degenerescência do tecido social.

Para isso, basta realizar uma breve análise do modo como se dá o julgamento do adolescente autor de ato infracional nas instâncias jurídicas especializadas em que a lógica da retribuição punitiva, reflexo da antiga e arraigada visão da sociedade sobre essa parcela da juventude, continua a vigorar sem mudanças significativas. Essa ideia pode ser comprovada pelos estudos que avaliam a atuação dos magistrados, os quais continuam aplicando maciçamente medidas de privação de liberdade em casos nos quais esta seria absolutamente dispensável (ANCED, 2004; ALCÂNTARA, 2007, OLIVEIRA, 2008). Isto se torna especialmente grave diante das condições precárias e dos constantes maus-tratos perpetrados pelas instituições onde se aplicam as medidas sócio-educativas no Brasil (ANCED, 2004; ASSIS, 1999; TOURINHO, 1998; OLIVEIRA, 2008; SILVA, 1999; OLIVERIA e ASSIS, 1999).

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A confirmação testemunhal dessa idéia pode ser encontrada nos relatos da experiência do sujeito desta pesquisa. Assim, Carlos Alberto revela, de maneira angustiante, toda a sua impotência diante do sistema disciplinar que o envolveu durante os anos em que cumpriu sua sentença:

Não tem Deus nem milagre

Quatro paredes, um cadeado e uma grade.

Como se não bastasse vejo policiais por toda parte. Eles me lembram cães Rotvalley.

Observam minha reação. Que vida louca essa de ladrão! Fechado em uma cela de 5 m2

Espremido e sufocado numa cela com superlotação. Não adianta gritar

Ninguém pode ouvir. Não adianta chorar Ninguém poderá consolar. Cela cheia,

Eu e mais quarenta. Só mesmo Deus É que pode ter pena.

Mas aqui não tem Deus nem milagre Só mais uma mãe chorando pelo seu filho Que está atrás de cadeados e grades. Quatro paredes, um cadeado e uma grade. Almoço atrasado.

Já são quatro da tarde. A fome aperta. O calor aumenta. Sofrimento total.

Eu, jogado em uma cela feito um louco animal. Cela cheia,

Eu e mais quarenta. É fato real.

Não é cena de cinema.

A vida de ladrão, não vale a pena! (NEVES, 2006, p. 44)

Nesse poema, fica evidente a sensação de desamparo social do adolescente, o qual aprendeu que a sociedade é alheia aos seus apelos e mais potente do que o próprio Deus. É notável que, sob sua ótica, Deus e a mãe sejam os únicos a se compadecerem de sua condição indigna, embora não possam lhe trazer alento sobre ela. Em seguida, apresenta-nos a fina consciência de que se encontra reduzido à condição de animal. O que, por sua vez, conduz ao questionamento

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sobre a autoria da violência, pois, como redefine Rey (2006, p. 160), “ato de violência” pode também ser considerado a indiferença de uma classe social em relação às outras. Indiferença naturalizada no seio da própria sociedade, que tanto se desresponsabiliza quanto aceita sem questionamentos deparar-se, cotidianamente, com uma condição “não-humana em outro ser humano” (REY, 2006, p. 160). Daí ser lamentavelmente perspicaz a percepção do jovem Carlos Alberto, que, vale reiterar, “vê-se jogado em uma cela feito um louco animal” (NEVES, 2006, p. 44). Desse modo, só lhe resta denunciar o mal-estar sofrido e a inadequação da medida sócio-educativa, o que aqui se traduz como superlotação, atraso da comida, privacidade cerceada pela vigilância constante, calor e espaço vital restringido, condição que vem sendo constantemente denunciada no meio acadêmico (OLIVEIRA e ASSIS, 1999; OLIVEIRA, 2008) e na mídia de modo geral (NAJAINE e MINAYO, 2002).

Como se não bastasse, o jovem e arguto poeta adverte sobre a permanência dos efeitos nocivos da medida sócio-educativa. Ele pressagia que suas marcas hão de ficar-lhe impressas como escaras abertas, contrariando a intenção da lei ao prescrevê-la como educativa e socializadora:

A liberdade vai chegar

Mas para sempre estará marcado

Por esse ‘presídio’ que lhe tirou a dignidade. E, mesmo estando livre

Se sentirá atrás das grades. (NEVES, 2006, p. 45).

Esse fato se torna especialmente crítico quando se têm em vista os efeitos indesejados da medida sócio-educativa. Dentre eles, o de retirar do adolescente a possibilidade de ressignificar sua vida a partir da inserção em novos grupos de pertencimento; o que é dificultado pelos estigmas acarretados pela institucionalização precoce e o confinamento com os pares, como fica claro no trecho a seguir:

Você não sabe o que é estar preso.

Na prisão, tiram-lhe tudo e te deixam sem nada. Com o tempo, tiram o nada que ficou.

(NEVES, 2006, p. 13)

Por outro lado, é importante apontar o papel da imprensa que, reforçando o antagonismo entre a sociedade e o adolescente em conflito com a lei, interpõe entre ambos um muro de intolerância e medo injustificado (SILVA, 1999; NAJAINE e MINAYO, 2002; REY, 2006; OLIVEIRA e ASSIS, 1999). Medo no qual se reflete a profunda incompreensão do trinômio “adolescente em conflito com a

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lei”. Pois vale lembrar que, antes de confrontar-se com a lei, trata-se aqui de um sujeito vivendo um momento delicado de seu desenvolvimento em meio a uma série de vulnerabilidades e fragilidades. O conflito, nesse contexto, característico da adolescência, passa a se constituir como um “problema”, cuja solução é muitas vezes improvável.

A escrita, para o jovem deste artigo, funciona então como um salvo-conduto, uma permissão concedida pela via da arte para metaforicamente transitar nas vias socialmente negadas, apesar dos estigmas de sua condição de “infrator”:

Sou somente o cara que escreve sobre o que as “pessoas” geralmente não dão ouvidos. (poema não publicado, 20 de setembro de 20051).

Assim, Carlos Alberto abre a possibilidade de “estar em relação com outrem face a face” (Lévinas, 2004, p. 32), dando-lhe o ensejo de olhar de perto esse que, parecendo estranho e distante em um primeiro momento, a sociedade mantém fora do horizonte de suas

possibilidades de compreensão.

Trilhar um percurso em direção a jovens como o dessa pesquisa abre as portas para o processo de humanização da figura do adolescente em conflito com a lei. Trata-se aqui de um sujeito, parte de um contexto, pelo qual cada membro da sociedade é plena e primeiramente

responsável, pois desprezar a implicação recíproca entre o sujeito e seu entorno social é o que leva autores, como Bosi, a afirmar de maneira contundente:

Só uma concepção renovada de historicidade da prática simbólica pode dar conta das imbricações do sujeito e trama social, mesmo porque o que chamamos genericamente de “sociedade” entra no sujeito na medida em que o sujeito se forma e se transforma no drama das relações com outros sujeitos e consigo próprio (BOSI, 2000, p.14 grifo do autor).

      

1

Caderno de poesia fornecido em confiança à pesquisadora pela mãe de Carlos Alberto. A poesia contida nesse caderno será discriminada como “poema não publicado”.

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Assim, os versos do poeta, mais uma vez, revelam a percepção arguta do que representa o olhar da sociedade sobre crianças em condições vulneráveis. Principalmente os efeitos negativos do descaso e da não responsabilização, cujos sinais serão percebidos claramente em uma fase ulterior da vida desses sujeitos:

Menino do Mundo

Lá vem descendo a ladeira,

O menino do mundo que de tudo se queixa. Menino triste, nunca se encontra

Vive vagando pelo mundo sem eira nem beira. Derramo-me em lágrimas

Quando vejo o pobre menino do mundo descendo a ladeira.

Menino de rua,

Maltrapilho, marginal... trombadinha

Assim o tratam quando pede esmola, prato de comida Porque está passando mal.

Menino do mundo! De um mundo cruel.

Mais uma inocente criança na estrada do nada Que não provará o doce do mel

Só o cruel e amargo gosto do fel! Isso é fato, não é sonho

É história real. Menino do mundo! Futuro marginal... (NEVES, 2006, p. 30)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se abordar o tema do adolescente em conflito com a lei, fica claro que as dificuldades na relação com a alteridade existem tanto do lado do adolescente, cujos atos transgressivos se voltam contra a sociedade, quanto da sociedade mesma, que se mostra alheia aos problemas enfrentados pela juventude em fase de transição para a vida adulta. Assim, a relação com a alteridade encontra seus entraves de ambos os lados.

A escuta ausente da sociedade, que fecha os olhos para os graves problemas enfrentados pela juventude brasileira, pode ser muito bem ilustrada por meio da seguinte fala de Carlos Alberto, contida no já citado poema Não tem Deus nem milagre:

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Não adianta gritar Ninguém pode ouvir. Não adianta chorar

Ninguém poderá consolar. (NEVES, 2006, p. 44).

A sensação de desamparo é reconhecida não só pelos setores da sociedade civil organizada, ocupados com a infância e a juventude, como pelas próprias crianças e jovens em condições vulneráveis. A atitude pouco tolerante da sociedade para com os atos da juventude torna-se, nesse contexto, especialmente deletéria, já que, ao contrário, deveria dispor de algum tipo de suporte e compreender a natureza dos atos transgressivos. No entanto, é a sociedade quem contribui, primeiramente, para transformar seus jovens em verdadeiros “marginais”, pois deposita precocemente sobre eles estigmas e rótulos dessa natureza. Por outro lado, aos olhos dos próprios jovens, essa situação não passa despercebida, como fica evidente nos versos comovidos de Carlos Alberto, que se faz porta-voz de muitos outros em situação vulnerável:

Cadeados e grades Futuro escasso.

Num canto vejo ele chorar toda dor e sofrimento. Isolado de tudo ele está!

Disse-me que já não tem mais esperança Tiraram todos os seus sonhos.

(NEVES, 2006, p. 30).

Esses versos podem ser lidos como denúncia legítima de uma sociedade que, despindo o adolescente autor de ato infracional de suas características peculiares, dissolve-o em uma massa anônima: o “adolescente infrator”, mero depositário dos estigmas que são impressos sobre seu rosto como em um personagem sem face. Não é à toa que desse contexto emerge o discurso audacioso de um jovem pronto para dialogar com esses tantos discursos estigmatizantes. Um sujeito que se mostra senhor de uma história singular, marcada pela luta contra as angústias de uma existência sofrida e desalentada.

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Referências

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