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JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E ESTADO DE DIREITO: UMA ANÁLISE DOS PARÂMETROS RECOMENDADOS PELA ONU E O CASO BRASILEIRO

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REPATS, Brasília, V. 5, nº 2, p 29-67, Jul-Dez, 2018

JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E ESTADO DE DIREITO: UMA ANÁLISE DOS PARÂMETROS RECOMENDADOS PELA ONU E O CASO BRASILEIRO

TRANSITION JUSTICE AND STATE OF LAW: AN ANALYSIS OF THE PARAMETERS RECOMMENDED BY THE UN AND THE BRAZILIAN CASE

Adriano Portella de Amorim*

RESUMO: As noções de justiça, embora permeadas por certa dose de abstração, formam o que se espera de uma organização social fundamentada no modelo de Estado de Direito, isto é, a submissão de todos às normas jurídicas. Ocorre que a modulação dessa ideia de justiça não é uniforme e depende das experiências e escolhas de cada sociedade. Essa perspectiva tem sua complexidade ampliada quando os critérios de justiça são aplicados em modelos que transitam da excepcionalidade à normalidade democrática, na arquitetura da justiça de transição. O presente artigo tem a finalidade de analisar as recomendações feitas pela Organização das Nações Unidas para essa temática, estabelecendo-se correlações com a realidade brasileira.

Palavras-chave: Justiça de Transição; Estado de Direito; Constitucionalismo. ABSTRACT:The notions of justice, although permeated by a certain amount of abstraction, form what is expected of a social organization based on the rule of law model, that is, the submission of all to legal norms. It occurs that the modulation of this idea of justice is not uniform and depends on the experiences and choices of each society. This perspective has its complexity expanded when the criteria of justice are applied in models that move from exceptionality to democratic normality, in the architecture of transitional justice. This article aims to analyze the recommendations made by the United Nations for this theme, establishing correlations with the brazilian reality.

Keywords: Justice of Transition; Rule of Law; Constitutionalism.

Recebido em:14/07/2018 Aceito em: 12/08/2018

*Titulação pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), Brasília, Distrito Federal: (i)

Doutorando em Direito; (ii) Mestre em Direito; e (iii) Especialista em Direito Processual Civil. Professor das seguintes disciplinas nas Faculdades Integradas Icesp-Promove de Brasília: Hermenêutica e Ciência Política e Teoria Geral do Estado.

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30 INTRODUÇÃO

A justiça de transição se situa no movimento pendular da história de uma dada sociedade que, em sua organização político-jurídico-institucional, experimentou a ruptura ou a transformação de suas normas jurídicas e da forma de exercício do poder estatal. É uma fórmula que se coloca entre a excepcionalidade e o retorno à normalidade. Portanto, para conceber e aplicar uma dada justiça de transição é preciso modular os seus efeitos entre passado, presente e futuro.

Não há procedimento que contemple normas jurídicas uniformes e universais pré-estabelecidas para a justiça de transição. Embora hipotética e constitucionalmente possam ser concebidos modelos de aplicação de regras de excepcionalidade até mesmo votadas democraticamente (Agamben, 2003, p. 22), é praticamente impossível testar previamente seu espectro de validade e legitimidade no âmbito das sociedades e dos Estados. Isso porque a tradição, ainda que revestida de romantismo utópico, repousa no pressuposto de normalidade político-jurídico-institucional. Previne-se a possível patologia – e não necessariamente os modos de tratar os seus efeitos concretos.

Para manter a normalidade, recorre-se a princípios, instituições e normas com a finalidade de tornar factível a composição de amplos consensos (Rawls1,

2002, p. 12-19; 2000, p. 201-241), controles entre órgãos e o Parlamento (Loewenstein, 1986, p. 232-284), bem como a mecanismos de responsabilização para o enfrentamento de crises que, não superadas, possam resultar no uso da força e da violência, ainda que legitimadas e de acordo com a legalidade democrática, mas que, em situações de crise, podem conduzir ao estado de excepcionalidade, do qual decorrem a suspensão, a interrupção e a negativa ao exercício de direitos fundamentais, ou mesmo a prática de crimes.

Logo, as hipóteses e os instrumentos de ruptura ou de excepcionalidade podem ser previstos, ainda que não exaustivamente, mas a fórmula de retorno à normalidade situa-se em campo de maior complexidade e incertezas quanto à sua factibilidade, vez que depende do tipo de ideologia que passou a exercer o

1 Com o abandono de Rawls ao conceito estrito de racionalidade adota originalmente em Uma

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poder, ou seja, como passaram a ser exercidas a soberania e as prerrogativas do Estado. Portanto, a justiça de transição é uma continuada construção, mesmo porque o iustitium do antigo direito romano (Agamben, 2003, p. 68-69) cada vez mais se distancia das sociedades democráticas.

A justiça de transição é variável e sua implantação depende da estrutura de poder e da forma como a normalidade será restabelecida. No estado de direito democrático essa construção está vinculada aos mecanismos de desfazimento da ordem excepcional, isto é, sua arquitetura e amplitude estarão sujeitas aos modos pelos quais e a partir de quais atores instrumentalizam a retomada da democracia.

Imperfeição e incompletude são as características genealógicas da justiça de transição, posto que não escapa das circunstâncias do conflito ou do pós-conflito das sociedades que estão ou estiveram sujeitas a regimes de exceção ou emergência, de conflitos cujas crises atingiram o ápice e desfiguraram, no todo ou em parte, a normalidade do funcionamento das instituições. O poder de decidir o modelo transicional se movimenta da ortodoxia à heterodoxia, ou seja, como dito, das variações do exercício do poder constituído ou constituinte que exerce a soberania e as prerrogativas do Estado.

Com essas perspectivas, este artigo aborda as orientações dirigidas ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) contidas no Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, intitulado O Estado de direito e a justiça de transição nas sociedades que sofrem ou tenham sofrido conflitos. A expectativa é de reunir elementos de convicção que permitam melhor compreender a aproximação daquelas orientações com o modelo de justiça de transição que vem sendo adotado pelo Brasil na restauração da democracia pós-regime de exceção de 1964-1985.

A presente abordagem tem dois pontos centrais: o primeiro diz respeito a um breve apanhado sobre Estado de Direito no qual se fundam os estudos da ONU, e o segundo se destina a analisar a estruturação do Informe S/2004/616, de 2004, estabelecendo-se as correlações com o que se pode chamar de modelo transicional brasileiro.

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32 1. UM ELEMENTO DA MATRIZ TRANSICIONAL

O Estado de direito é um dos postulados teóricos adotados pela ONU para a construção política do conceito e das medidas afetas à justiça de transição. Teórico, porque fundamentado em orientações e princípios dos mais razoáveis, mas sobejamente limitados pela soberania, pela experimentação social e pela realidade histórica das mais diferentes nações, circunstâncias essas que contornam e dão textura às medidas concretas de legalidade e legitimidade, isto é, aquilo que se torna factível.

Por conseguinte, o Estado de direito dialoga diretamente com a democracia e, esta, com o constitucionalismo, tornando essa composição um robusto conjunto que orienta o dever ser nos campos das relações internacionais e dos domínios internos de cada nação ou Estado soberano. Mas, especialmente na contemporaneidade, é notória a assimetria entre escolhas políticas dos que integram a ONU, visto que nem todos ratificam ou cumprem plena e constantemente os princípios sustentados pelas Nações Amigas, mantendo uma reserva de contingência para atender a seus interesses soberanos. Não há uma supraestatalidade soberana e isso é razoável, de modo a preservar não necessariamente o equilíbrio, mas a proteção e as prerrogativas dos mais frágeis política, econômica e militarmente.

É por isso que a ONU atua na composição de consensos e na busca da integração de propósitos, estimulando a internalização de seus princípios e enunciados, por meio de normas. Trata-se de um processo histórico em permanente transformação. Portanto, na teorização do Estado de direito está a dialética de conciliação do político com o jurídico (Dallari, 2013, p. 121), isto é, do poder de decidir as escolhas valorativas que integrarão as normas de conduta que serão aplicadas de forma cogente.

Dessa conciliação implica um exercício de equilíbrio do poder, no campo interno, orientado, controlado e limitado pelo constitucionalismo, como também na seara externa, onde a convergência do direito internacional, notadamente o direito humanitário e os direitos fundamentais, funcionam como um ideário político-jurídico, considerando-se os movimentos de composição e

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recomposição dos modelos estatais (Bobbio, 2007, p. 97-104). É razoável que essas noções sejam carregadas para o retorno à normalidade nas situações de pós-conflito, seja no campo das relações internacionais, entre países, seja no campo nacional, nos conflitos políticos, ideológicos e armados que romperam os liames da disputa democrática pacífica, ou da aplicação moderada da força legalmente constituída.

Quando trata do fortalecimento do Estado de direito depois de uma situação de conflito, a ONU2 assinala que a consolidação da paz está

condicionada à crença da população de que será possível a reparação de injustiças por meio de estruturas legítimas capazes de compor controvérsias e administrar a aplicação da justiça, posicionando o Estado de direito como elemento de urgência e de necessidade, a ser (re)constituído imediatamente após o conflito e para prolongar-se ao longo do tempo. Estão aqui três pilares relevantes que sustentam qualquer modelo transicional: (i) instituições, (ii) normas jurídicas e (iii) autoridades investidas de poder e legitimadas a tomar decisões.

Mas todo esse esforço político pela convergência de propósitos ainda não foi capaz de afastar todas as vulnerabilidades a que o ser humano, em sociedade e singularmente, ainda se encontra sujeito. É um cenário complexo. A propósito, ao enfrentar o que chamou de “perplexidades dos Direitos do Homem”, Arendt (2012, p. 395) traz uma significativa contribuição para o direito, para a sociedade e para o poder político:

A Declaração dos Direitos do Homem, no fim do século XVIII, foi um marco decisivo na história: Significava que doravante o Homem, e não o comando de Deus nem os costumes da história, seria a fonte da Lei. Independente dos privilégios que a história havia concedido a certas camadas da sociedade ou a certas nações, a declaração era ao mesmo tempo a mostra de que o homem se libertava de toda espécie de tutela e o prenúncio de que já havia atingido a maioridade.

Mas havia outra implicação que os autores da Declaração apenas perceberam pela metade. A Declaração dos Direitos Humanos destinava-se também a ser uma proteção muito necessária numa era em que os indivíduos já não estavam a salvo

2 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, II. Fortalecer el Estado de derecho y la justicia de

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34 nos Estados em que haviam nascido, nem – embora cristãos – seguros de sua

igualdade perante Deus. Em outras palavras, na nova sociedade secularizada e emancipada, os homens não mais estavam certos daqueles direitos sociais e humanos que, até então, independiam da ordem política, garantidos não pelo governo ou pela constituição, mas pelo sistema de valores sociais, espirituais e religiosos. Assim, durante todo o século XIX, o consenso da opinião era de que os direitos humanos tinham de ser invocados sempre que um indivíduo precisava de proteção contra a nova soberania do Estado e a nova arbitrariedade da sociedade.

Por conseguinte, o Estado de direito não é uma mera representação simbólica, ou seja, não se trata apenas de um gesto institucional para aparentar um recomeço; é preciso que seja o elemento transformador encarregado de levar a efeito a reconstrução e o aperfeiçoamento das instituições que representam o Estado e, por efeito, servir de guia e garantidor das micro e macro reformas que serão experimentadas pela sociedade como um todo. Essas perspectivas estão presentes na justiça de transição.

2. Informe S/2004/616, de 2004, e o caso brasileiro

O Informe S/2004/616, de 2004, apresenta orientações que englobam um conjunto de equações ou problemas que abordam, dentre outros temas, (i) o fortalecimento do Estado de direito e sua importância como ponto de inflexão para a concretização da justiça de transição; (ii) a tentativa de formar um repositório de normas e princípios que internacionalmente possam ser aplicados; (iii) a relevância das singularidades dos contextos políticos; e (iv) os mecanismos que facilitem o conhecimento (ou convencimento) das verdades. Esses contextos serão abordados com a intenção de refletir topicamente (Viehweg, 1979) quanto aos estudos da ONU na perspectiva da praxis, proporcionando uma razoável compreensão sistêmica e interdependente.

Os estudos elaborados pela ONU se encontram organizados em tópicos que formam uma espécie de cartilha ou roteiro de boas práticas, mas de difícil e complexa aplicação em sua plenitude, seja em razão da inexistência de posição imperativa internacionalmente convencionada, seja pela força de um dado poder

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constituinte ou que se constituiu soberano para decidir a transição. Logo, os testes de legitimidade e os encaixes de juridicidade compõem a fase histórica de inflexão que define qual justiça e com quais dimensões será implantado o correspondente modelo transicional ou, em outras palavras, como os mecanismos do Estado de direito são capazes de definir as regras de retomada da normalidade e, temporalmente (passado, presente e futuro), mediará percepções e modulará os seus efeitos.

As contribuições oferecidas pela ONU tiveram por base estudos iniciados em 24 de setembro de 2003, no âmbito do respectivo Conselho de Segurança, considerando as experiências que determinadas nações tiveram na experimentação de situações de conflito e que receberam auxílio ou ao menos tiveram o assessoramento dos organismos internacionais legitimados para agir como interlocutores. Em 26 de janeiro de 2004, na sessão que tratou do papel da ONU em procedimentos de reconciliação nacional, foram debatidos os temas que deram sustentação ao conteúdo do Informe S/2004/616, de 2004.

Dimoulis (2010, p. 92) assinala que a justiça de transição traz consigo a demanda por identificar responsabilidades e, quando possível, estabelecer mecanismos de punição contra responsáveis, donde “um problema eminentemente político (garantir a estabilidade do novo regime) torna-se jurídico (como sancionar de maneira juridicamente correta?) e filosófico (como justificar a responsabilização e punição de ex-detentores do poder?)”.

Modelos transicionais transcendem o aspecto punitivo, isto é, a responsabilização individual pela prática de atos delitivos. Conjugam-se esclarecimento, sanção, reforma de instituições e desestímulo à repetição de novos fatos. Desse modo, é uma espécie de reconciliação em larga escala, visto que não se trata de mera reconstrução de um Estado ao final de uma guerra tradicional travada contra inimigo externo. A transição é a busca de retorno à normalidade pós-conflito entre nacionais, no âmbito do próprio território, que envolveu o Estado e grupos que se opuseram ao regime político que exerceu o poder, buscando destituí-lo e substituí-lo sem a aplicação dos ritos formais e juridicamente existentes (legitimados ou não), aos quais, nas sociedades

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democráticas, tem o mecanismo da disputa pelo poder (e da instauração de uma dada ideologia política) a partir de eleições livres, sua principal virtude.

Na transição há uma relação entre vencidos e vencedores de uma dada ideologia política, com variados matizes. O desafio consiste em aplicar justiça sem desvirtuar os seus princípios, ainda que sob as regras de Estado de direito, sendo sempre valiosas as lições tiradas dos julgamentos de Nuremberg3, em

cuja passagem histórica aplicou uma dada justiça e inovou o direito penal internacional no julgamento de crimes contra a humanidade, mas não afastou o dedo em riste (Godoy, 2015) dirigido ao povo alemão, numa linha de responsabilização difusa por crimes praticados pelo regime nazista.

Como ponto de equilíbrio, no modelo estudado pela ONU está presente a prevalência da soberania nacional para fazer escolhas transicionais, sem desmerecer o direito internacional, em especial o humanitário (Martins, 2011). Mas essa conjugação não é pacífica, a tal ponto de não haver consensos universais sobre até quando seria conveniente abrir mão da soberania ou compartilhá-la, internalizando-a (Coni, 2006), visto que não se trata de um simples e generoso gesto de humanidade, de respeito a direitos fundamentais, mas sim de forte apelo político, de poder e de ideologias, marcado por vulnerabilidades.

De notar que a ONU tomou por base para os estudos países, estados ou nações4 marcados por extremos conflitos internos que devastaram instituições,

estagnaram recursos e debilitaram mecanismos de segurança, acarretando traumas e divisão à população, com efeitos, também, no esvaziamento das inciativas do poder político para introduzir reformas, de desenvolver atividade econômica e tecnologias, descaracterizadas de independência das instituições, em especial da administração ou aplicação da justiça.

O contexto, portanto, é o das operações de paz (ou de manutenção da paz), que consiste em formas de controle e administração de conflitos atribuídas

3 A série de julgamentos realizados na Alemanha pelos aliados vencedores (Estados Unidos da

América, Inglaterra, China, França e a então União Soviética) da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) contra lideranças políticas, militares e econômicas do regime nazista alemão.

4 Dentre os quais Kosovo, Timor-Leste, El Salvador, Guatemala, Côte d’Ivore, Liberia e Haiti (cf.

Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, V. Identificar el papel de las Naciones Unidas em

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a terceiros, com o consentimento de Estado que recebe ajuda internacional (logo, garantida a soberania interna ou nacional), tendo por finalidade a diminuição das tensões e a construção de soluções consensuais para os conflitos (Cardoso, 1998, p. 17-20).

O consentimento assegura a soberania ao tempo em que concretiza o conceito cooperativo ou de não-intervenção em assuntos internos do país que recebe a ajuda internacional. Trata-se de um consentimento com limites, devidamente regulado, sem o qual estaria transfigurado em imposição da força (Fontoura, 1999, p. 87-88).

Nessa linha de raciocínio, cabe a construção de modelos transicionais de justiça baseados no consentimento e no respeito à soberania nacional. A conjugação desses elementos remete à adoção ou internalização de fórmulas internacionais na medida em que não interferem nas livres escolas dos países soberanos.

Naturalmente, os estudos elaborados para o Conselho de Segurança da ONU se preocuparam em propor um conjunto de terminologias comuns, não obstante a percepção de cada país possa variar em função dos limites e possibilidades conceituais, culturais e históricas de cada sociedade. São trabalhados três conceitos5 básicos, todos interligados: (i) justiça, (ii) Estado de

direito e (iii) justiça de transição.

Os conceitos de justiça, Estado de direito e justiça de transição compõem, para a ONU, a essência para que a comunidade internacional possa garantir a defesa dos direitos humanos. Essa tríade não é novidade, embora na maioria das vezes não possua efeitos concretos ou cogentes, posto que depende da aceitação ou cumprimento espontâneo por parte dos países, mas reforça os pilares para a continuada construção de um direito das gentes a ser gradativamente internalizado na ordem jurídica dos Estados soberanos, sendo sempre atual a lição de Kelsen (2011, p. 3): “(...) a ordem social faz do uso da força monopólio da comunidade, e agindo assim pacifica as relações mútuas

5 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, III. Estructurar una terminología común para las

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entre seus membros. A característica essencial do direito como ordem coercitiva é estabelecer o monopólio comunitário da força”.

A ideia central da ONU não seria outra, ainda que do ponto de vista estritamente teórico e didático, senão a de incentivar desenvolvimento econômico, promover a responsabilização por omissões ou atos praticados e resolver pacificamente os conflitos. Essa é, por certo, uma linha da diplomacia que busca interromper ou mitigar danos decorrentes de guerras ou situações conflituosas de anormalidade institucional, nos planos interno e externo dos países.

Qual o conteúdo dessa tríade e como seria possível tirar aprendizados a seu respeito? A ONU coloca a noção de estado de direito6 como ponto central e

princípio de governo que alcança, submete e condiciona todas as pessoas, instituições e entidades públicas e privadas, indistintamente, ao império de leis elaboradas a partir de ritos e regras democráticas inspiradas e compatíveis com as normas e os princípios internacionais de direitos humanos. Nesse contexto estão os postulados de respeito e igualdade perante a lei, responsabilização, equidade e separação de poderes, democratização dos processos decisórios e repulsa à arbitrariedade.

Justiça7 é considerada como um ideal que cultiva, no seu ápice, a

conjugação entre responsabilidade e equidade na proteção e reclamação de direitos, funcionando também como forma de prevenção ou fixação de mecanismos para o julgamento e a punição de infrações às normas, em cujas vias percorrem os direitos de acusados, os interesses das vítimas e o bem-estar da sociedade, como um todo. Não obstante essa arquitetura principiológica presumivelmente presente nas culturas e tradições dos povos, a ONU reconhece que a aplicação desses enunciados depende dos mecanismos judiciais oficiais e de métodos tradicionais de solução de controvérsias, no inequívoco reconhecimento de que a justiça se faz com a observância de normas e procedimentos.

6 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, III. Estructurar una terminología común para las

Naciones Unidas em el ámbito de la justicia, p. 5.

7 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, III. Estructurar una terminología común para las

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O terceiro e último tópico da tríade é a justiça de transição8 que, para os

estudos da ONU, compreende uma diversidade de processos e mecanismos que convergem para os consensos que uma sociedade elege para enfrentar e resolver situações de um dado passado em que se cometeram abusos e arbitrariedades em grande escala. O conceito de justiça de transição serve para a fase de reconstrução das instituições públicas e sociais fundamentadas em regras democráticas com responsabilidade de aplicar a justiça e alcançar a reconciliação.

Há diversidade de justiça de transição, que pode ser promovida judicialmente ou não (por exemplo, pela postura política, institucional e espontânea dos atores envolvidos), com ou sem a participação internacional, compreendendo, singular ou conjuntamente, (i) a judicialização, (ii) o ressarcimento, (iii) a busca da verdade, (iv) a reforma institucional, (v) a investigação de antecedentes e (vi) a destituição de cargos públicos.

Desse modo, os postulados de Estado de Direito constituem o fundamento normativo da ONU para a justiça de transição, erigido pela Carta das Nações Unidas assinada em 26 de junho de 19459 tendo como pressupostos

a dignidade intrínseca e a inalienabilidade de direitos, sustentando-se em quatro pilares do direito internacional, a saber: (i) normas internacionais de direitos humanos, (ii) direito internacional humanitário, (iii) direito penal internacional e (iv) direito internacional dos refugiados10.

O conjunto de enunciados da Carta das Nações encontra-se harmonizado com o teor do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966,11 que prescreve o respeito ao princípio de legalidade e o Estado de direito,

inclusive no estado de emergência, ao consignar a repulsa de violência contra aquele que manifestar sua opinião, sendo essa liberdade de expressão um direito amplo sujeito a deveres e responsabilidades, somente contido em

8 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, III. Estructurar una terminología común para las

Naciones Unidas em el ámbito de la justicia, p. 6.

9 Promulgada pelo Brasil na forma do Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945.

10 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, IV. Fundar la assistência en las normas y los

principios internacionales, p. 6.

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condições expressamente previstas em lei quando necessárias para “assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas”, bem como para “proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas”12.

Observe-se a sutileza do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: ao tempo em que proíbe o cerceamento da liberdade de expressão, permite a sua contenção em casos que envolvam a proteção da segurança nacional, da ordem ou da moral, exceções essas que constituíram um dos fundamentos do regime de exceção. Mesmo sem ter promulgado o Pacto, o Estado brasileiro se aproximou de suas disposições.

Embora a Carta das Nações Unidas tenha recebido a promulgação pelo Brasil em 1945, isto é, no mesmo ano de sua adoção e logo ao final da Segunda Grande Guerra na qual o país participou com sua força expedicionária na Itália, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, veio a ser internalizado apenas em 1992, quando transcorridos vinte e seis anos de sua adoção pela ONU, vinte e oito anos depois do início do estado de exceção iniciado em 1964 e oito anos após o seu fim, e no momento em que Constituição de 1988 estava prestes a completar quatro anos.

Essa cronologia revela o ponto de maior tensão e complexidade da justiça de transição praticada no Brasil, que não poderia ser outro senão o aspecto cronológico, temporal, que delineou o decisionismo e as escolhas políticas que definiram o processo de redemocratização sob a perspectiva brasileira, notadamente para efeito da anistia para crimes políticos e conexos.

Foi no movimento pendular desse aparente paradoxo que o regime de exceção brasileiro foi estabelecido e se alongou ao longo do tempo, em cujo percurso o poder constituído ou que se constituiu modificou tanto a Carta Política quanto a legislação infraconstitucional, formando a ordem de legalidade e legitimidade que se estendeu e modulou o processo de redemocratização, que teve ampla, geral e irrestrita anistia como um dos seus principais elementos transicionais e, por conseguinte, conflituosos, notadamente quanto à (não) responsabilização individual por crimes conexos aos de natureza política –

12 Artigo 19, números 1 a 3, letras “a” e “b” do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

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senão o único, o principal ponto ainda insuficientemente entendido e não superado no debate (Amorim, 2016).

Essa irresignação se dá porque a responsabilização pessoal, singular ou individual foi afastada tanto pela Lei de Anistia13 quanto pela decisão do Supremo

Tribunal Federal (STF)14. Por outro lado, a responsabilidade do Estado foi

reconhecida na reconstrução constitucional do regime democrático (no contexto de uma justiça transicional)15, ampliada e confirmada16.

A ONU assinala que as normas e princípios de direito humanitário internacional são formulados e aprovados por vasta gama de países e gradativamente internalizados, ainda que com respeito à variedade de sistemas jurídicos dos Estados membros da Organização, dentre os quais o common law, a tradição romanista e o direito islâmico, proporcionando a legitimidade necessária à sua aceitação e implementação, destacando-se a reprovação de anistia por crimes de genocídio, crimes de guerra ou de lesa humanidade17.

Neste ponto se constata um sutil paradoxo, passível de análise a partir das reflexões de Raz (2012, p. 271-278) sobre existência e eficácia de sistemas jurídicos: as dimensões de validade e legitimidade entre aquele sistema que foi implantado na gênese, durante o regime de exceção e na fase de transição democrática, e aquele elaborado a partir de então e que forma a matéria constitucional e infraconstitucional do marco intertemporal brasileiro de 1988, isto é, no caso da anistia para crimes conexos aos de natureza política, o dilema (ideológico, político e até mesmo jurídico) que transita entre a recepção, a conformidade do primeiro sistema com a novel Carta Política, ou a sua negação.

A prevalecer o STF como guardião da Constituição, tem-se a coexistência de ambos sistemas, ainda que sob a crítica de legalidade autoritária ou de cumplicidade do sistema judicial com regimes opressivos (Pereira, 2010, p. 251-252; 257-259 e 277), embora a posição18 da Corte Constitucional brasileira tenha

13 Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.

14 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153/2010.

15 Ato das Disposições Finais e Transitórias da Constituição de 1988, arts. 8º e 9º.

16 Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002.

17 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, IV. Fundar la assistência en las normas y los

principios internacionales, p. 6.

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simplesmente respeitado a separação de poderes e reconhecida a prerrogativa do Parlamento para a iniciativa19 de uma hipotética mudança na fórmula

anistiadora de 197920.

Importante notar que as orientações da ONU estão voltadas diretamente para casos de reconstrução de países, nações ou sociedades que passam ou passaram por situações de conflitos extremos, em decorrência dos quais é construída a legitimidade para a atuação de organismos internacionais que se dirigem à aplicabilidade dos mecanismos de justiça de transição no contexto de atividades de operações de paz.

Todavia, a própria ONU reconhece que as operações de paz não estão autorizadas a implementar por conta própria os mecanismos transicionais de justiça e de Estado de direito, naturalmente porque essa prerrogativa ou legitimidade, como regra geral, depende da aceitação da soberania das sociedades ou dos países que sofrem conflitos para a implementação de temáticas para fazer frente a abusos do passado contra direitos humanos, estabelecendo, entre outras, as seguintes modalidades: (i) reforma de instituições, (ii) responsabilização, (iii) fixação de tribunais, (iv) mecanismos para a busca da verdade, (v) reconciliação e (vi) fixação de programas de indenização dirigidos a vítimas21.

Nesse contexto estão situadas as expectativas de planificação ou universalização de políticas e normas jurídicas sob a perspectiva do direito humanitário internacional e dos direitos fundamentais. Como esses enunciados se comportam no campo da justiça de transição? É importante considerar o plano de factibilidade mediante reflexão com as dimensões da soberania e da responsabilização por crimes de guerra.

Cercando-nos das noções de soberania, é importante considerar suas derivações, em apertada síntese, entre interna e externa, sendo a primeira

19 A esse respeito, o Projeto de Lei do Senado nº 237/2013, que trata de proposta para excluir

da abrangência de crimes conexos os cometidos por agentes públicos (militares ou civis), praticados contra pessoas que, por qualquer meio, se opuseram ao governo do regime de exceção, além de afastar a prescrição e demais causas de extinção de punibilidade.

20 A Lei de Anistia (Lei nº 6.683, de 1979).

21 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, V. Identificar el papel de las Naciones Unidas

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ampla, voltada à jurisdição específica de cada Estado e, a segunda, limitada às regras de convivência internacional; ambas, porém, na contemporaneidade, estão mescladas e condicionadas aos postulados de direito internacional, a tal ponto de se tornar tênue e até mesmo praticamente inexistente a separação e a clivagem de seus campos de atuação (ainda que conceituais) e a aplicação extrema da prerrogativa de os países atuarem interna ou externamente com absoluta soberania, na linha da teoria monista kelseniana da unidade do direito e do primado do direito internacional sobre o privado, com o objetivo de enfraquecer o ímpeto da guerra como um direito natural justo, de conquista ou de defesa (Ferrajoli, 2002, p. 15-25).

Com efeito, a paz, como não-guerra ou ausência de força, passa a ser conquistada e mantida pelo direito, de natureza interna e externa; a primeira disciplina a ordem social em determinado Estado, enquanto a segunda se projeta e se reflete perante os demais Estados, na comunidade internacional (Kelsen, 2011, p. 3-8), no dinamismo da reciprocidade das limitações do direito internacional, que dá novos contornos à soberania estatal, não mais tão absoluta. Mesmo assim, guerras e conflitos não deixam de existir e, em decorrência de violação de direitos humanos fundamentais e do direito internacional, busca-se a responsabilização de autores de guerras e daqueles que violam as regras de guerra22 (Kelsen, 2011, p. 84-92).

Quanto a esse aspecto, os crimes de guerra deixam de ter caráter apenas local (nacional). Nessa linha, Kelsen (2011, p. 94) aborda a divisão da esfera punitiva dos crimes: (i) os de guerra, caracterizados como delitos internacionais, sujeitam o Estado à responsabilização (sanção, com natureza de pena); (ii) os demais crimes previstos no direito nacional, não caracterizados como violações de Estado, com natureza dupla: (a) “ofensas penais contra o direito internacional e, ao mesmo tempo, (b) contra o direito nacional”. Essa arquitetura foi ampliada e aperfeiçoada em 1º de julho de 2002, com o advento do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional23, que tem jurisdição complementar (não

22 Conforme as Convenções de Genebra, seus Protocolos Adicionais, instituições e

procedimentos de responsabilização, com ritos e instâncias jurídicas.

23 Promulgado pelo Brasil na forma do Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002, com vigência a partir de 1º de setembro do mesmo ano. A Emenda Constitucional nº 45, de 30 de

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substitutiva) às jurisdições nacionais sobre pessoas responsáveis por crimes de maior gravidade (genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão) internacional. Os matizes sancionatórios contra Estados abriram espaço para alcançar indivíduos, não apenas por crimes de guerra, mas por uma variedade de violações contra o direito humanitário.

Valendo-nos das colocações de Ferrajoli (2201, p. 39-40) a respeito da antinomia da soberania em face do direito internacional contemporâneo, impende notar que o plano normativo foi transformado “do estado de natureza ao estado civil”, de tal modo que o poder soberano (interno e externo), ante sua inconsistência, perdeu a característica de “liberdade absoluta e selvagem” e passou a se subordinar “juridicamente, a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos”, de valor supra estatal (sempre questionável em termos de factibilidade e legitimidade) e não apenas constitucional.

De notar que se encontra superada a limitação dos efeitos do tradicional conceito de guerra entre Estados. A transformação inseriu na esfera de proteção internacional (de direito humanitário, de direitos fundamentais), práticas transversais da guerra propriamente dita também para a esfera de conflitos internos, de âmbito nacional. Portanto, é desse substrato que conceitualmente foi construída a noção de justiça de transição como derivação ou subproduto das mutações da soberania e do direito internacional, notadamente no plano sancionatório.

No modelo transicional – levando em consideração a característica do direito internacional de complementar o direito nacional (Kelsen, 2010, p. 265) sem necessariamente afastar as soberanias dos Estados – o conjunto de orientações da ONU coerentemente não se sobrepõe às escolhas políticas e soberanas específicas ao Estado de Direito e à justiça de cada país, cujas peculiaridades são verificáveis, levando em consideração: (i) a natureza do conflito, (ii) as partes envolvidas, (iii) os antecedentes de abusos cometidos, (iv) a identificação de grupos vulneráveis, (v) os efeitos dos acordos de paz e,

dezembro de 2004, acrescentou o § 4º ao art. 5º da Constituição brasileira, submetendo o país à jurisdição do Tribunal Penal Internacional.

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especialmente, (vi) as tradições, (vii) as instituições e (viii) o sistema jurídico dos países.24 Por conseguinte, é imprescindível identificar quais soluções são

factíveis dentro do próprio Estado – e não necessária e exclusivamente modelos trazidos do exterior – com o objetivo de respeitar as singularidades locais e nacionais, bem como compreender a dinâmica dos conflitos e buscar a formação de amplos consensos.

Reconhecendo a independência e a soberania dos Estados e, naturalmente, a livre escolha das sociedades, a ONU igualmente deixa claro que a reforma do Estado de Direito, a reconstrução da justiça ou a proposta de justiça de transição não pode ser imposta do exterior, por organismos internacionais ou por outros países singularmente. A ideia é, pois, conjugar os enunciados internacionais com o conjunto de capacidades e escolhas políticas, institucionais e, por conseguinte, valorativas de cada país.

Com enfoque utópico e de grande otimismo (quase) reconciliatório e, até mesmo, de (quase) perdão, a ONU preconiza que o processo de construção de consensos para as reformas alcance uma pluralidade de atores que, direta e indiretamente, estiveram ou ainda estejam em lados opostos ou ombreados nos conflitos, de modo a que todos os grupos de interesses possam, em tese, participar dos debates e das escolhas para as novas regras do jogo, o que seria o auge da reconciliação. Note-se, contudo, duas peculiaridades de ordem prática decorrentes dessa orientação: detentores de poder e integrantes de regimes de governo anteriores que cometeram delitos não participariam desses debates e as vítimas seriam os grupos interessados mais importantes25, com efeitos no

processo de reconciliação, marcando uma peculiar mudança de posição: os que exerciam poder no regime antigo seriam alijados do processo transicional, enquanto que os atingidos pelos atos de exceção teriam espaço para atuar mais decisivamente. No caso brasileiro, como mencionado anteriormente, a transição se deu com a fixação de regras que asseguraram previamente a anistia, isto é, alcançando todas as correntes.

24 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, VI. Evaluación de las necesidades y la

capacidade nacionales, p. 8.

25 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, VII. Apoyo a fin de crear una base nacional para

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Também é importante observar que o direito das gentes que fundamenta a atuação da ONU tem a livre escolha e o contexto político como elementos essenciais para pautar o Estado de direito, razão pela qual, fórmulas externas podem até ajudar, mas não substituem os mecanismos internos dos países, observados os aspectos legais e institucionais. É por isso que a ONU considera no mais elevado patamar de interesse público o restabelecimento dos sistemas de justiça, a implementação de reformas e o êxito das escolhas sobre os processos de justiça de transição, recomendando que se promova amplos debates sobre os temas transicionais, trabalhando-se os aspectos políticos e técnicos das medidas, sem perder de vista que, em processos de reconstrução de modelos de organização política, cuidado especial deve ser dedicado para evitar abusos de poder político, ainda que com a aplicação de normas jurídicas26.

Nessa ordem de ideias, as orientações da ONU assinalam a importância da fixação de novos marcos políticos e legais, ao tempo em que são realizadas eleições, naturalmente porque o processo de reforma e de elaboração de escolhas normativas adquire legitimidade e amplitude com a utilização de mecanismos democráticos. A ONU deixa claro que justiça e responsabilização não obedecem a um cronograma com fases e prazos de aplicação imediata e simultânea, reconhecendo que são processos de longo prazo. A forma e o tempo da realização de eleições são essenciais, estando o alerta de que a precipitação pode trazer ao cenário político e de aparente legitimidade inimigos da democracia (Diáz Revorio, 1997, p. 17-24) com o propósito de exercer ou influenciar o poder e trazer novos conflitos27.

Teoricamente, a ONU indica que o êxito do Estado de direito e da justiça de transição, notadamente em nações afetadas por guerra, conflitos ou atrocidades, depende de estratégias que envolvam a participação de todas as instituições da área da justiça, estatais ou não, tanto para desenvolver quanto para implantar um plano estratégico sistematizado, formando um modelo de interdependência e interdisciplinaridade28. Esse plano de providências tem

26 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, VIII. Roconocer el contexto político, p. 10.

27 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, VIII. Roconocer el contexto político, p. 11.

28 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, IX. Un planteamiento integrado e

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natureza de políticas públicas cuja factibilidade é complexa e dependente de consensos, correndo o risco de judicialização e ativismos.

Por outro lado, tende a fracassar uma fórmula específica de justiça de transição ofertada a determinado país, ainda que concebida e entregue generosamente pela comunidade internacional. É dessa perspectiva que a ONU identifica a necessidade de que vítimas e demais grupos do próprio país decidam o ponto de equilíbrio adequado para cada situação transicional, a compreender: (i) responsabilização, (ii) verdade e reparação, (iii) preservação da paz, (iv) a construção da democracia e do Estado de direito.

Tais critérios gerais estão desdobrados numa série de processos que definem, em cada caso, os mecanismos da justiça de transição, que tem se repetido ao longo desse ensaio: (i) processos, (ii) indenizações, (iii) busca da verdade (como complemento de processos judiciais), (iv) reforma institucional, (v) investigação de antecedentes e (vi) destituição de cargos públicos. Orienta a ONU que esses processos podem ser preferencialmente implantados de forma integrada, embora seja difícil a concomitância de todos em razão dos mecanismos ao fundamento dos quais a retomada da normalidade institucional-democrática foi alcançada ou está em construção29.

Como aludimos ao longo do texto, as operações de paz, inclusive na área militar, funcionam para completar as lacunas institucionais e legais para o restabelecimento da ordem enquanto e durante o novo marco jurídico é concebido e implantado. É uma forma de equilibrar força e poder com a resistência que operava o governo ou exercia o uso da violência no estado de exceção, ou modular as forças e os interesses políticos dos grupos que ideologicamente de opunham uns contra os outros, abrindo espaço para a legitimação da nova ordem político-jurídica fundamentada na democracia, nos princípios internacionais de direitos humanos e de direito penal, numa convergência de componentes militar e civil, com aporte de recursos financeiros que garantam a atuação no pós-conflito, proporcionando que as instituições e as

29 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, IX. Un planteamiento integrado e

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funções do sistema de justiça possam voltar a funcionar adequadamente, inclusive para a apuração de crimes nos âmbitos interno e externo30.

Quando trata do processo de aceleração do restabelecimento do Estado de Direito, a ONU preconiza a reinserção de civis e de ex-combatentes que tenham sofrido os efeitos do regime de exceção, bem como a pertinência de planos de desarmamento, desmobilização e reinserção como etapas de transição, de modo a que se alcance o estado de normalidade, considerando, inclusive, a pertinência de anistia para estabelecer o regresso e a retorno de grupos que se opuseram, afastando-a, contudo, para práticas de genocídio, crimes de guerra, crimes de lesa humanidade e infrações graves a direitos humanos31.

Ao reforçar hipotéticas prerrogativas da comunidade internacional para intervir compulsoriamente em países com a finalidade de proteger os direitos humanos e a segurança das pessoas sujeitas a conflitos nos quais não se garanta o império da lei ou este é utilizado de forma inadequada aos seus princípios, a ONU também reconhece que tal investidura de poder externo não poderá substituir sistemas internos de justiça que funcionem adequadamente, isto é, a atuação colaborativa não pode, ao menos em tese, superar o poder soberano nacional32. Logo, pretende-se que haja observância da legislação e

dos princípios internacionais, especialmente de direitos humanos, conciliando-os com as necessidades e realidades de cada país.

Um dos métodos utilizados pela ONU consiste em colher as experiências dos tribunais especiais, como forma de punir e prevenir práticas atentatórias aos direitos humanos, oportunidade na qual, teoricamente, os fatos podem ser historiados, as reconciliações construídas e o império da lei restabelecido, o que constituiria uma forma de contribuir para a reforma das instituições públicas, considerando os efeitos no processo de transição na medida em que dariam forma a uma espécie de denúncia pública a respeito das condutas delituosas

30 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, X. Colmar lagunas em el Estado de derecho, p.

12-13.

31 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, X. Colmar lagunas em el Estado de derecho, p.

14.

32 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XI. Establecer sistemas de justiça nacionales, p.

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praticadas durante o período de excepcionalidade político-institucional, demonstrando a capacidade, a legitimidade e – acrescente-se – os limites do Estado no alcance das correspondentes responsabilizações e, por conseguinte, aquilo que se convencionou chamar de verdades históricas como rescaldo do equilíbrio do poder político transicional33.

Embora a posição predominante da ONU seja a de adotar os sistemas de justiça nacionais para os processos de responsabilização decorrentes da transição, não descarta a aplicação dos chamados tribunais internacionais quando as instituições de origem dos países se revelam insuficientes, inoperantes ou incapazes de processar e julgar os que foram considerados infratores durante os regimes de exceção. O propósito, portanto, é o de determinar a responsabilização por violações de direitos humanos e do próprio direito internacional humanitário, que possam ter sido cometidas tanto por civis quanto por militares34.

Nota-se, por via de consequência, que a tolerância e a anistia passam a ser práticas rejeitadas pela ONU, que orienta os Estados a que, na transição da exceção para a normalidade democrática, adotem o império da lei para não escusar, mas sim processar, julgar e responsabilizar as práticas que tenham levado a violações de direitos humanos35. Tal entendimento se baseia na

percepção de que autores de infrações graves de direitos humanos e de direito geral humanitário tradicionalmente não são submetidos a processos judiciais36.

Os estudos da ONU traçam um roteiro das medidas a serem alcançadas para a justiça transicional, estabelecendo resultados hipotéticos que possam ser alcançados, dentre os quais: (i) identificar a localização de vítimas e as circunstâncias pelas quais passaram, (ii) ressarcir danos a vítimas e seus familiares, (iii) elaborar documento histórico que detalhe e explique os fatos ocorridos e correspondentes motivos durante o período de conflito, (iv) promover

33 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XII. Aprovechar la experiencia de los tribunales

penales especiales, p. 16.

34 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XII. Aprovechar la experiencia de los tribunales

penales especiales, p. 16-17.

35 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XII. Aprovechar la experiencia de los tribunales

penales especiales, p. 17.

36 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XII. Aprovechar la experiencia de los tribunales

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a reconciliação nacional e estimular o surgimento de forças moderadas, (v) bem como extirpar dos setores de justiça e segurança os que foram coniventes ou que tenham cooperado com práticas repressivas37.

Nessa linha, a ONU assinala a importância dos tribunais internacionais (híbridos ou não), como um instrumento de reserva contra a impunidade, abrindo caminho, inclusive, a uma jurisdição universal que possa, segundo essa perspectiva, preservar o princípio de justiça, responsabilização e prestação de contas à sociedade38.

A construção argumentativa da ONU quanto às noções de reserva internacional contra a impunidade e à jurisdição universal, compõem as bases de sustentação para a Corte Penal Internacional. Essa instituição foi erigida na perspectiva da justiça sob o império do direito, com o argumento de que a impunidade não mais poderia ser assegurada, de modo a que pudessem ser processados e julgados os responsáveis por crimes de guerra, de lesa-humanidade e de genocídio, superando-se a inércia das soberanias nacionais39.

É nesse contexto que surge o que a ONU denomina de processo de facilitação para conhecimento da verdade, instrumentalizando-se as respectivas comissões, sob a forma de órgão oficial, temporário e com a atribuição de efetuar constatações de fatos que não tenham natureza judicial (aspecto político e separação de instâncias), destinadas a investigar abusos de direitos humanos e de direito humanitário praticados por longos períodos, fixando, ao final, conclusões e recomendações40.

As limitações aos trabalhos das comissões de verdade não poderiam ser outros, senão: (i) sociedade civil não atuante em temas de direitos humanos, (ii) instabilidade política, (iii) receio de vítimas e testemunhas para prestar depoimentos, (iv) fragilidade e corrupção do sistema de justiça, (v) escassez de

37 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XII. Aprovechar la experiencia de los tribunales

penales especiales, p. 18-19.

38 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XII. Aprovechar la experiencia de los tribunales

penales especiales, p. 19.

39 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XIII. Apoyar el papel de la Corte Penal

Internacional, p. 19.

40 A ONU traz como exemplo as comissões criadas nos seguintes países: Argentina, Chile, África

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prazo para investigações, (vi) falta de apoio político e (viii) financiamento inadequado para a realização dos trabalhos. Reconhecendo o dilema ideológico sempre presente entre os grupos que se enfrentaram no conflito e na disputa pelo poder, a ONU adverte que uma das falhas verificáveis nas comissões reside no açodamento ou na mera indicação política para a definição dos respectivos integrantes, recomendando que previamente sejam fixados critérios de domínio público quanto aos mandatos e à seleção dos possíveis integrantes41.

A propósito, a busca da verdade na recente experiência brasileira42 é

criticada por Oliveira (2015, p. 71-97) quanto aos aspectos políticos, normativos e de legitimidade, questionando-se o enfrentamento parcial da violência política limitada à investigação exclusivamente da repressão militar, afastando das investigações atos praticados por integrantes da luta armada, em especial as organizações de esquerda que se colocaram contra o regime então instalado no país. A escolha de um lado para encontrar a verdade teria comprometido a legitimidade das medidas, visto que a vitimização ideológica de um dos lados do conflito (no caso, as esquerdas) desfez a independência e a equidistância que seriam indispensáveis à reconstrução dos fatos para a melhor compreensão das circunstâncias que permitiriam compor não apenas uma, mas o conjunto de verdades que, ao final, deveriam ser apresentadas à sociedade brasileira, a quem cabe a livre compreensão da história.

Outra linha transicional diz respeito à investigação de antecedentes em órgãos da administração pública para remover de cargos pessoas envolvidas com abusos praticados no passado de exceção, com foco naquelas que atuaram no setor policial, no sistema prisional, nas forças armadas e, até mesmo, no judiciário, mediante processo oficial, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa, consultando-se a sociedade civil e informando a opinião pública43.

41 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XIV. Facilitar que se conozca la verdade, p. 20.

A propósito, a ONU utiliza a expressão “débil” para caracterizar a sociedade civil e o sistema de justiça.

42 A Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV)

no âmbito da Casa Civil da Presidência da República.

43 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XV. Investigación de antecedentes em la

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52

No contexto da justiça de transição também se situa, como visto, a temática do ressarcimento às vítimas, cuja noção alcança não apenas o aspecto pecuniário, com o pagamento de reparações e indenizações, mas também a restituição de direitos das vítimas, programas de reabilitação e medidas simbólicas, dentre as quais pedidos de desculpas oficiais, construção de monumentos e realização de cerimônias comemorativas, ainda que tais posturas não sejam consideradas de amplo efeito satisfatório, de tal modo que a ONU orienta no sentido de que haja uma combinação de medidas, as quais

funcionariam de forma complementar aos processos penais de

responsabilização e às comissões de verdade44.

No Brasil, o aspecto pecuniário e de reinserção decorrente da justiça de transição abrange tanto civis quanto militares que tenham sofrido danos decorrentes de motivação exclusivamente política, fazendo jus ao pagamento de reparações e indenizações45. O quadro a seguir sintetiza o quantitativo de

anistias políticas concedidas pelo Estado brasileiro, abrangendo civis (Ministérios do Planejamento e da Justiça) e militares (Ministério da Defesa):

Quadro de anistias políticas concedidas pelo Estado brasileiro Ministério do

Planejamento46

Ministério da Justiça47 Ministério da Defesa48 Total

176.072 39.293 3.655 219.020

Na parte final dos estudos da ONU são elencadas treze considerações para servir de referência ao Conselho de Segurança quando da realização de negociações, acordos de paz e composição de mandatos naquele colegiado. Desse elenco, destacam-se duas: (i) rejeição de anistia em casos de genocídio, crimes de guerra ou crimes de lesa-humanidade, cuja amplitude alcança, inclusive, anistias anteriormente concedidas, as quais não poderão servir de

44 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XVI. Resarcimiento, p. 21-22.

45 Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002 (Regulamenta o art. 8o do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias e dá outras providências).

46 Fonte: Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Secretaria de Gestão de

Pessoas. Relação de beneficiados pela Lei 10.559/2012 (atualizada em 14 nov. 2017).

47 Fonte: Ministério da Justiça. Comissão de Anistia. Lista dos anistiados políticos (atualizada em

31 mar. 2017).

48 Fonte: Ministério da Defesa. Tabela de indenizações pagas aos militares das Forças Armadas

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53

obstáculo ao ajuizamento contra os responsáveis pelos crimes; e (ii) orientação para evitar a imposição de modelos externos, bem como a necessidade de formar amplos consensos que envolvam governo, sociedade civil e grupos organizados para fixar o curso da justiça de transição e o restabelecimento do Estado de Direito49.

Então, qual o modelo de justiça de transição adotado pelo Brasil? O quadro a seguir sintetiza a situação das principais temáticas adotadas pelo Estado brasileiro, mediante aproximação com os enunciados da ONU contidos no Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004. A situação de cada tema não é exaustiva. Veja-se:

Quadro-síntese do modelo de justiça de transição brasileiro

Temática Situação

Fixação de tribunais - Na redemocratização, não foram criados tribunais nacionais

ou internacionais para especificamente processar e julgar demandas da transição de regime, mesmo porque é um princípio fundamental a vedação a tribunais e juízos de

exceção, na linha do moderno direito penal50.

- A Constituição de 1988 reposicionou a jurisdição e a competência dos tribunais nacionais, afastando a atuação da justiça militar (Superior Tribunal Militar, em especial)51, que havia recebido, no regime de exceção, competências

específicas vinculadas à doutrina de segurança nacional52.

- O Estado brasileiro se submeteu ao Estatuto de Roma, com efeitos a partir de 1º de setembro de 2002. Embora as prescrições não retroajam ao período do regime de exceção, a internalização da sujeição ao Tribunal Penal Internacional corresponde a medida de natureza transicional, especialmente

de cunho preventivo e sancionatório53.

- Recentemente, a competência da justiça militar foi modificada

para afastar do Tribunal do Júri54 a competência para processar

e julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civil, se praticados no contexto (i) do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; (ii) de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou (iii) de atividade de

49 Informe S/2004/616, de 3 de agosto de 2004, XIX. Camino hacia adelante: conclusiones y

recomendaciones. A. Consideraciones para las negociaciones, los acuerdos de paz y los mandatos del Consejo de Seguridad. N. 64, “c”; “h”, p. 21-22.

50 Constituição Federal de 1988: art. 5º, XXXVII (direito e garantia fundamental contra hipotética

composição de tribunal ou juízo de exceção).

51 Constituição Federal de 1988: artigos 92 a 126 (composição e competências dos órgãos do

Poder Judiciário), com destaque para os artigos 122 a 124 (Justiça Militar da União).

52 A Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983).

53 Constituição Federal de 1988: art. 5º, § 4º. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002.

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54 natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da

ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade

com o disposto no art. 142 da Constituição Federal55, e na forma

prevista no Código Brasileiro de Aeronáutica56, nas regras de

organização, preparo e emprego das Forças Armadas57, no

Código de Processo Penal Militar58 e no Código Eleitoral59. Tal

inovação, não obstante sua delimitação, merece ser

acompanhada em termos de eficácia60.

Judicialização - A judicialização, em linhas gerais, compreende as seguintes

demandas: (i) judiciais e administrativas, de civis, funcionários públicos e militares que pleiteiam reparações econômicas, indenizações e retorno às instituições de origem; (ii) ajuizamento de ação contra descumprimento de preceito

fundamental (ADPF)61, objetivando a declaração de

não-recebimento, pela Constituição de 1988, da anistia para crimes conexos aos crimes políticos ou praticados por motivação política62; (iii) ajuizamento de ação63 (Guerrilha do Araguaia), com os seguintes objetos: (a) quebra de sigilo de informações militares; (b) indicação de local de sepultamento de restos mortais, traslado das ossadas, sepultamento em local indicado pelos familiares e fornecimento de informações para lavratura de certidões de óbito; (c) informações referentes à totalidade das operações militares referentes à Guerrilha e a outras que digam respeito a enfrentamentos armados com os guerrilheiros, à captura e detenção de civis com vida, ao recolhimento de corpos de guerrilheiros mortos e à transferência de civis vivos ou mortos para quaisquer áreas; e (d) coleta de depoimentos de militares que tenham participado de operações; (iv) pleitos formulados perante a Corte

Interamericana de Direitos Humanos64 com abordagens afetas

a (a) direito à vida, anistia e direito à verdade; (b) direito à integridade pessoal; (c) direito à liberdade pessoal; e (d) direito à liberdade de expressão.

Ressarcimento,

indenização e reinserção

- O constitucionalismo que inaugurou a redemocratização do

país concedeu, como decisão política65, a anistia aos que, no

período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente

55 Constituição de 1988, art. 142: As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e

pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

56 Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986.

57 Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999.

58 Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969.

59 Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965.

60 Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017 (Altera o Código Penal Militar).

61 ADPF 153/DF, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

62 Lei de Anistia (Lei nº 6.683, de 1979), art. 1º, § 1º.

63 Ação Ordinária nº 82.00.24682-5 da 1ª Vara Federal de Brasília - Distrito Federal

64 Na composição da Organização dos Estados Americanos, a Corte integra o Sistema

Interamericano de Direitos Humanos como um dos três tribunais regionais de proteção a direitos humanos, juntamente do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e da Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos.

65 Constituição Federal de 1988, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): arts.

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55 política, por: (i) atos de exceção, institucionais ou

complementares; (ii) àqueles que participaram66, direta ou

indiretamente, de fatos ocorridos no território nacional que constituíram crimes políticos67 contra (a) o livre exercício dos poderes constitucionais, (b) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais e (c) a segurança interna do país; (iii) aos que tenham incidido nas hipóteses, ainda que tentadas, tipificadas de crimes contra o Estado e a sua ordem política e

social68, dentre as quais (a) promover insurreição armada

contra os poderes do Estado, (b) atentar contra a vida, a incolumidade e a liberdade (b.1) do Presidente da República, de quem eventualmente o substituir ou, no território nacional, de Chefe de Estado estrangeiro, (b.2) do Vice-Presidente da República, Ministros de Estados, Chefes do Estado Maior Geral, Chefes do Estado Maior do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, Presidente do Supremo Tribunal Federal e da Câmara dos Deputados, Chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, Governadores de Estados ou de Territórios, comandantes de unidades militares, federais ou estaduais, ou da Polícia Militar do Distrito Federal, bem como, no território nacional, de representante diplomático, ou especial, de Estado estrangeiro com o fim de facilitar insurreição armada, (c) de magistrado, senador ou deputado, para impedir ato de ofício ou função ou em represália do que houver praticado, inclusive; (d) fazer publicamente propaganda (d.1) de processos violentos para a subversão da ordem política ou social, (d.2) de ódio de raça, de religião ou de classe e (d.3) de guerra, (e) instigar, preparar, dirigir ou ajudar a paralisação de serviços públicos ou de abastecimento da cidade, (f) provocar animosidades entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as classes ou instituições civis, (g) cessarem, coletivamente, os funcionários públicos, os serviços a seu cargo, por motivos políticos ou sociais; (iv) aos trabalhadores que participaram de qualquer movimento de natureza grevista; (v) a todos os servidores civis, militares e autárquicos que sofreram punições disciplinares ou incorreram em faltas ao serviço no mesmo período, sem prejuízo dos que foram assíduos; (vi) aos convocados desertores, insubmissos e refratários; (vii) aos estudantes que por força de movimentos grevistas ou por falta de frequência no mesmo período estejam ameaçados de perder o ano, bem como os que sofreram penas disciplinares; e (viii) aos jornalistas e aos demais incursos em delitos de imprensa e, também, aos responsáveis por infrações previstas no Código Eleitoral69.

- Nessa transição, a anistia simultaneamente assegurou a servidores e militares promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo; benefícios esses estendidos aos

66 Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961 (Concede anistia a fatos definidos como

crimes).

67 Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, arts. 6º, 7º e 8º (Define os crimes de responsabilidade e

regula o respectivo processo de julgamento).

68 Lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1953, arts. 3º, 6º, 7º, 11, 13, 14, 17 e 18 (Define os crimes

contra o Estado e a Ordem Política e Social).

69 Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961 (Concede anistia a fatos definidos como

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