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NOMADISMO E DESTERRITORIALIZAÇÃO URBANOS: NOVA YORK

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Academic year: 2019

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in S, M, L, XL NOMAD [nômade]

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Esta é uma letra prospectiva e direta. Explico porque:

Diferente dos outros termos, que se configuram como questões cotidianas, reais e atuais, este termo ainda não se concretiza realmente na superfície urbana. Ele ainda não faz parte do emaranhado rizomático da metrópole. Não em sua plenitude. Por isso, pretendo ser aqui uma espécie de vidente. Além disso, um pouco especulativo, se me permite.

A vida nômade nas metrópoles ainda está longe de se tornar realidade. A desterritorialização do corpo ainda é muito abstrata em nossa sociedade. O homem urbano está ainda muito enraizado em pequenos contextos da cidade. Mas chegará um momento em que todos nós estaremos em uma encruzilhada, e a tentação para transformarmos em nômades urbanos será muito grande, irresistível. E essa mudança de comportamento transformará também toda a organização espacial da cidade.

Mas é aqui que entra minha previsão. Quer dizer, não só minha, de muitos outros que também estão olhando para a cidade e vendo os fluxos rizomáticos já atravessarem diversos habitantes nômades urbanos. Poderia chamá-los de sementes do nomadismo urbano.

A seguir artigo do arquiteto Fábio Duarte publicado no site www.rizoma.net

NOMADISMO E DESTERRITORIALIZAÇÃO URBANOS: NOVA YORK

Fábio Duarte

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peças/objetos são apenas discos com simples ordenações aritméticas em relação às posições que ocupam, com valores equânimes, e as ações são realizadas por outras pessoas (quem as move). O espaço é aberto e valores externos são incorporados ao jogo, numa guerra sem limites de batalha.

Aí está uma das essências do espaço nômade: o espaço da protogeometria, que não é inexata como as coisas e fenômenos sensíveis, mas tampouco exata como essências ideais. A figura do círculo é fixa, exata, ideal; mas a circularidade tem essência fluida, vaga. Não forma uma figura precisa, mas não deixa dúvidas de que uma taça porta a circularidade e uma caixa de sapatos, não. O espaço nômade seria, então, anexato, posto que não preciso, mas rigoroso.

Como enlace ao tema deste ensaio, Deleuze e Guattari propõem que o espaço do xadrez é a polis, e o do go é o nomos. A polis tem uma estrutura definida, e definidora, de objetos, agentes e ações – portanto, um território constituído -; no xadrez tem-se consciência dessa estrutura primeira, e o jogo consiste, a cada movimento das peças, num processo de codificação e decodificação do espaço da polis, sem jamais desconfigurá-lo. No nomos é o espaço impreciso, “esfumaçado”, sem uma estrutura definidora; no jogo go, cada lance da peças consiste num processo de territorialização e desterritorialização desse espaço, sem, contudo, jamais lhe atingir uma codificação plena – pois inexistente.

O espaço das grandes cidades, com seu fluxo incessante de pessoas vindas de diversos lugares, um imbricamento de interesses e ações de campos distintos, a influência de ações de escala local e global, transforma-a num campo rico para análise de manifestações da cultura moderna e contemporânea.

Urbanização e nomadismo

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A crise financeira dos anos 70 fez com que a prefeitura desviasse a verba do Battery Park City para interesses de empresas que estavam passando por um período difícil. Para recuperar a realização do projeto, todos os planos foram mudados, de acordo com as intenções do mercado imobiliário, eliminando todos os apartamentos de classe baixa.

No inverno de 1987, o prefeito Koch deu ordens de que fossem cadastradas todas as pessoas que estivessem vivendo nas ruas e espaços públicos da cidade de Nova York, e que fossem submetidas a alguns exames. Havia cerca de 7.000 pessoas, e a maioria vivia sozinha, sem nenhum tipo de família ou organização em grupos. Pessoas nessa situação solitária não tinham prioridade nos abrigos noturnos, e quando iam, reclamavam constantemente de violência por parte dos vigias. Os exames do prefeito Koch nada mais intencionavam que verificar a sanidade dessas pessoas, pois, para ele, quem não se dispunha a freqüentar os abrigos nas noites de inverno, devia estar mentalmente incompetente e, portanto, ser internada em hospitais psiquiátricos.

Parecia faltar ao redesenho e embelezamento da região do Battery Park, além do trabalho de artistas plásticos, escultores, arquitetos, urbanistas e paisagistas, o saneamento populacional da área.

Neste mesmo inverno de 1987, a galeria Clockhouse abrigava a primeira exibição do projeto do Homeless Vehicle, do designer Krzysztof Wodiczko. Parecido com um carrinho de supermercado, construído com placas de alumínio, barras e grades de aço, e plexiglass, a primeira pergunta que suscita é: pra que serve isto? O estranhamento aumenta quando alguns moradores de rua, que haviam participado das discussões e elaborações do projeto, começaram a utilizar o Homeless Vehicle (HV) nas ruas. Mas, afinal, o que faz essa pessoa empurrando esse carrinho nas ruas da cidade?

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Assim como em Nova York, São Paulo ou qualquer outra grande cidade, Wodiczko tem consciência de que o Homeless Vehicle não solucionará os problemas de moradia, nem mesmo temporária, mas sim a materialização de uma questão. A intenção de Wodiczko era mesmo a de suscitar questionamentos das pessoas de classe média que conviviam diariamente com os evitados nas ruas da cidade, que se acostumam com sua presença, sem se perguntar de onde vêm, para onde vão, como vivem, como trabalham, qual a causa do problema, e muito menos quais as possíveis soluções. O ponto inicial dos projetos de Wodiczko é fazê-los tomar dimensão crítica às transformações nas cidades, ocasionadas por projetos urbanos ligados apenas a alguns grupos influentes que retalham tanto as características físicas quanto culturais e sociais das cidades. Como colocou Dick Hebdige, ao menos o projeto suscitou a pergunta: se não isto, o que você propõe?

Esse projeto está, como desenvolveu o designer, atrelado à discussão da noção de polis, que tem sua origem grega ligada à comunidade e participação dos cidadãos (polites), e que se encontra tanto em polícia ou política quanto em metrópole. Tanto os guetos religiosos, raciais e, sobretudo nos anos 80 e 90, sócio-econômicos, onde as classes com maiores rendas constroem condomínios fechados de alto padrão, sem a criação de qualquer espaço público, trazem em sua conformação a idéia de Estado, ou seja, formas de gestão do espaço; portanto, configuram como territórios.

Atinge-se o último estágio da fragmentação urbana: a exclusão. Desde a primeira muralha da primeira cidade, há a figura do excluído. Grupos que não faziam parte do contexto histórico, social, religioso ou cultural de determinadas comunidades se organizavam em volta dos muros que delimitavam o território das cidades. Entretanto, a figura do homeless traz uma exclusão intramuros. Dentro do próprio espaço das cidades, elementos se desprendem – ou melhor, são desprendidos – sem contudo migrarem para outros lugares.

Num primeiro momento ocupam os espaços públicos, como monumentos, jardins, praças, imediatamente seguido de um policiamento (ou seria um des POLIS ciamento) dessas áreas, excluindo-os, assim, não só das esferas privadas das cidades como também da esfera pública. Os evitados ocupam então túneis de metrô, vãos sob as pontes e viadutos, buracos, e perambulam. Os homeless passam grande parte do dia caminhando. Sem ponto de partida, sem destino, são nômades caminhando pela malha urbana, e, poderíamos dizer, pelos seus interstícios.

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elegem alguns desses elementos, ligados à moradia ou local de trabalho, como referenciais na construção de seus mapas mentais. O homeless perde a casa como referência primeira. Seus mapas mentais são compostos segundo sua permanente circulação. Têm consciência dos pontos espaciais que conformam a cidade, mas os perdem como referências essenciais e afetivas. A única referência para o evitado, moral ou espacial, em última análise, é ele mesmo.

O homelesses assume a figura do nômade nos intestinos das cidades. No deserto, o nômade, sem referências físicas fixas para lhe guiar, caminha num terreno que apaga seus rastros, fazendo com que possa andar numa pequena região, geometricamente, caminhando infinitamente. O nômade, como notam Deleuze e Guattari, é o desterritorializado por excelência, pois ele não deve ser definido pelo que se move, mas justamente pelo que não se move.

Dentro do mesmo espaço ocupado pela polis, mas desagregado dela, o evitado ocupa o nomos, espaço impreciso, “vagabundo”. Faz seus caminhos nos interstícios da cidade não tendo princípios, mas apenas um ponto sendo conseqüência de outro. Nesse sentido, o seu território é construído de maneira coordenativa, não subordinativa, como o espaço codificado da polis.

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in Kenchiku Bunka 579

Maybe it was fear, but in the beginning of our Office, I did not believe in originality. With the explosion of Post-Modernism, that seemed original. Now, I think originality has a function, is important, bat as an extreme, no half measures.

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Um ato explicitamente adotado durante o processo de documentação. A antropofagia é assumida durante a pesquisa. O próprio Oswald de Andrade serve de banquete. É necessário resgatar essa atitude. Nos alimentar de tudo que nos cerca. Tudo, sem exceção. As nossas referências para ler uma metrópole devem ser tão diversas quanto ela própria. Ao se propor uma documentação da cidade de São Paulo, com seus elementos tão díspares uns dos outros, temos que eleger um caminho não menor que o adotado por Oswald e seus contemporâneos. Para uma correta documentação de São Paulo, devemos mastigar com vontade tudo que nos aparece pela frente, mesmo que tenha um aspecto repugnante.

Mas não se preocupem, a seleção se fará depois. Junto com a antropofagia, a regurgitofagia é adotada. Oswald de Andrade complementado com Michel Melamed. Um banquete de gerações.

E esse banquete só é possível se estivermos em solo, enfrentado a cidade e seus fluxos, seus agentes e pacientes. Só podemos nos alimentar da cidade se vivenciarmos todos os seus espectros. De nada adianta ficar sentado em nossa poltrona confortável e tentar fazer uma leitura satisfatória. Devemos nos entregar à cidade. Surfar a onda, experimentar o cheiro azedo das ruas do centro, desviar de transeuntes apressados e mal-humorados... É preciso deixar-se atravessar pela cidade.

Por isso encontraremos aqui elementos tão particulares e aparentemente sem conexão. Mas tudo tem conexão. Os elementos se conectam pela própria cidade. A cidade é o elo que liga tais elementos. É a cidade que faz as conexões terem sentido.

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MANIFESTO ANTROPÓFAGO

1

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupy, or not tupy that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.

O que atrapalhava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

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Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade prelógica para o Sr. Levi Bruhl estudar.

Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade do ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.

Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Oú Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos.

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.

O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.

Só podemos atender ao mundo orecular.

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Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.

Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O instinto Caraíba.

Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.

Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de Senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipejú.

A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.

Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Matias. Comi-o.

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Contra as histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.

A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.

Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.

Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: - É a mentira muitas vezes repetida.

Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.

Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.

Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.

As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios, e o tédio especulativo.

De William James a Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.

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É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.

O objetivo criado reage como os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

No matriarcado de Pindorama.

Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.

Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.

Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.

A alegria é a prova dos nove.

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do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados do catecismo-a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.

Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.

A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: - Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

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Manifesto antropofágico: 70 anos depois

2 Sérgio Paulo Rouanet

Contra a antropofagia caeté, pela antropofagia tubinambá. Os caetés nunca saíram do lugar. Os tupinambás viajaram muito. A antropofagia dos caetés é provinciana. A antropofagia dos tupinambás é cosmopolita. Os caetés se gabam de terem comido um bispo português. Coisa de nada. Foi uma pequena fome, um canibalismo chauvinista, incapaz de alterar os rumos da história mundial. Os tupinambás têm uma grande fome, que não recua diante da própria cultura tubinambá. Antropofagia autofágica, heterofágica, panfágica: antropofagia da grande taba do mundo. Os caetés são filhos de sua tribo.

Comem e absorvem, comem e expelem, mas só absorvem o que for útil para a tribo, só expelem o que não for bom para a tribo. Os tubinambás, não. Sabem ser nativos, mas também sabem ser exilados, e enquanto exilados vêem tudo de fora, julgam tudo de fora, e decidem absorver ou expelir segundo critérios diferentes dos critérios tribais. Os caetés querem ter raízes. Os tupinambás querem ter asas. Agora o esquisito é que os tupinambás se pelam pelas raízes dos caetés. Descem do céu que nem passarinhos e comem todas as raízes dos caetés. Não sobra nem um inhame para contar a história.

Mas não querem ser inhame não. Nem mandioca. Querem mesmo é ser periquito. Ter asas. Ou guelras. Peixe também serve. Gostam demais de sair do Xingu, desovar no Sena e hibernar no Volga. Nomadismo. Uma sala de jantar domingueira, um inglês magro lendo um tablóide e Maricota tecendo uma tapeçaria prá quando Ulisses voltar. Universalização. Sincretismo. O que interessa na Pomba Gira é que ela é também Maria Padilha, amante de um rei de Castela, D. Pedro o Cruel. Sol, mãe dos viventes: de todos os viventes, e não só de alguns.

A Cobra Grande ficou grande demais para caber num rio só. Perguntei a um homem o que era a identidade brasileira. Ele me respondeu que era a síntese de Deus e da família. Comi-o. Fiz a mesma pergunta a outro homem e ele me disse que era o resultado do casamento de um pajé com

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uma mãe de santo. Comi-o. Um senhor grisalho, citando Derrida, disse que era a gramatologia: desconstruí-lo a dentadas. Só ficou o esqueleto, todo branquinho, uma beleza. Outro me disse que era uma broa de milho. Tirei-lhe um naco do pescoço, mas não pude comer ele não, porque a carne era muito dura. Comi a broa. Depois comi um bolinho chamado madeleine e também gostei.

Saudades do bacharelismo. Bacharel citava o Corpus Juris Civilis em latim.

Os rábulas de hoje não sabem mais latim. Bem feito para eles. Foi porque o Bacharel de Cananéia citava Virgilio em latim que conseguiu dormir com todas as índias da vizinhança. Índia adora ser chamada de ninfa ou de pastora. Quando homem branco chama índia de Amarilis, e diz que ensinou a floresta a repetir o nome dela – "formosam resonare doces Amaryllida silvas" – ela gosta que se enrosca e dá uns gritinhos de gata do mato do fundo de sua rede. Os caetés fizeram muito mal em expelir, sem aproveitar nada, os manuais de lógica que os jesuítas lhes deram. Com isso fica muito difícil conversar com seus descendentes, os brasileiros de hoje. Eles não sabem defender racionalmente as virtudes do irracionalismo. Eles querem ser bárbaros, mas não é bárbaro quem quer. Só é bárbaro quem consegue convencer disso os outros, usando aquele tipo de silogismo que os escolásticos chamavam bárbara.

Entendeu? Sem bárbara não tem bárbaro, e quem não gostar do trocadilho tacape nele. Assim é a

lógica tupinambá, que ficou igualzinha à lógica universal, depois de muito jesuíta devorado. A lógica dos caetés é só deles. Eles passam a limpo a lógica dos brancos antes que ela possa valer em Pindorama. A ciência, a moral, a estética, todas essas coisas têm que ser filtradas à luz da realidade de Pindorama. A mentalidade caeté continua viva em seus tataranetos, conforme percebeu o caeté Graciliano Ramos. Todo mundo no Brasil virou caeté. Caetés os românticos, que para se livrarem dos natchez inventaram os tamoios. Caetés os modernistas de direita, que puseram a anta no lugar da raposa. Caetés os modernistas de esquerda, que puseram o pau-brasil no lugar da faia. Caetés os sociólogos do Brasil patriarcal, que mandaram as mucamas costurar vestidos no próprio engenho, em vez de importarem roupas do Reino.

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gástricos nacionais. Caetés os militares, que recusavam o marxismo por ser uma doutrina exótica. Em suma, os caetés tomaram conta do país. Os mais ortodoxos continuam até hoje roendo o fêmur do bispo Sardinha. Mas depois de quatro séculos e meio, quase todo o tutano acabou. Por isso a maioria prefere iguarias mais finas: gordas idéias européias, nédias como frades, roliços filmes americanos, nutritivos como um Big Mac. Na hora do brinde, os convivas repetem o grito de guerra dos caetés: morte aos modelos estrangeiros.

A antropofagia que eles praticam virou gastronomia oficial. Só que ela ficou muito esquisita. Ou os alimentos saem tais como entraram, sem nenhuma transformação. A passagem pelo tubo digestivo não altera nada, e o que era americano continua americano. Ou há uma pequena confusão na hora de sair. Em vez de guardar as proteínas da cultura estrangeira, devolvendo o resto, os caetés de hoje fazem o contrário. Eles rejeitam o que a cultura gringa tem de suculento e só absorvem o que ela tem de indigesto. Os caetés primitivos, ao menos, comeram a carne e a gordura do bispo, e não suas partes coriáceas, como os calos do pé. Os antropófagos de hoje só gostam dos calos. É preciso acabar com esses canibais incompetentes. Tá na hora de soar o boré para acordar os guerreiros tupinambás. Queremos oferecer a nossos curumins uma comida abundante e cheia de vitaminas. Só nos interessa o que não é nosso.

Não comemos para formar nossa identidade, mas para desfazê-la e refazê-la. Identidade nômade. Inacabada. Nossa antropofagia é artigo do bom e do melhor. Devoramos Hegel, e por isso nossa dialética é produto fino, com certificado de qualidade assinado pelos melhores peritos alemães: comer, para nós, significa aufheben, isto é, negar, preservar e transcender, o que equivale, em

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E não entraram na cultura nova. Uma vez três deles tiveram um encontro com um morubixaba francês, Carlos IX. Eram expatriados e por isso mais lúcidos. Vendo a França de fora, viram o que os franceses não podiam ver. Prepararam com isso um novo paradigma. Epistemologia do saber excêntrico: visão mais clara, porque vinda de um olhar estrangeiro. Filosofia da moral excêntrica: descentramento, descontextualização, capacidade de distanciar-se de qualquer cultura. Novo calendário. Ano zero da nova era: o encontro com Michel de Montaigne. Através de Montaigne, as opiniões dos tupinambás chegaram à Revolução francesa. Graças aos tupinambás, Montaigne fixou a própria forma genérica do descentramento, tanto em questões cognitivas como morais. Usbek, Micromégas, E.T. Só pode conhecer quem vem de fora, só pode julgar quem vem de fora. De Sírius. Do Brasil. Tupinambá, modelo de uma humanidade nova.

Homo excentricus. Em casa no mundo todo, exilado em toda parte. Seu terreno de caça é a

cosmópole, a cibérpole, a urbs da democracia universal, da sociedade civil universal, em que todas

as identidades serão múltiplas, em que todas as cidadanias se interpenetrarão. Nesse mundo inventado à imagem do tupinambá, não há nem matriarcado nem patriarcado. Nem totem nem tabu. O tabu é a tirania do pai morto, o festim totêmico é a tirania da comunidade. Em vez disso, a organização democrática do clã dos irmãos. Desterritorializado, esse clã vai ocupar em breve o mundo inteiro. Porque fome de tupinambá é grande demais. É uma fome transcultural, transtribal. Catiti catiti, imara notiá, notiá imara, ipeju. Caeté tem raízes. O sertão virou mar. Mare nostrum.

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Regurgitofagia1

Regurgitar: expelir, fazer sair (o que em uma cavidade está em excesso, principalmente do estômago).

Fagia: comer.

Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago de 1928, aludia à deglutição do Bispo Sardinha pelos índios antropófagos, para propor que, inspirados neles, deglutíssemos as vanguardas européias a fim de criarmos uma arte genuinamente brasileira.

E hoje? Continuamos a ‘deglutir vanguardas’ ou tem-nos sido empurrada goela abaixo toda a sorte de informações? Conceitos? Produtos?

Em suma, o que fazer com a impossibilidade de assimilação, o estado de aceleração, a síndrome do excesso de informação (dataholics), os milhões de estímulos visuais, auditivos, diários, que crescem em ritmo diametralmente oposto a reflexão?

Regurgitofagia:

‘vomitar’ os excessos a fim de avaliarmos o que de fato queremos redeglutir.

1Trecho da peça de teatro e livro homônimos. Ver MELAMED, Michel. Regurgitofagia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. pg.

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A ‘descoisificação’ do homem através da consciência crítica, a ‘ignorância programada’. Como quando como quanto quero:

“extra! extra! a mídia acabou!”

pra você que não desapareceu em 68 só porque não era nascido:

... oxímoros pleonásticos, caosmos, eletroconvulsoterapia... o Pavlov usava de artifícios químicos pra estimular o vômito a fim de causar um reflexo condicionado. O ser humano usa no máximo 10% do seu cérebro, enxerga 1% das luzes e ouve sons até 20.000 ciclos por segundo...

... nós somos o que comemos, chicletes carnívoros...

... uma fitinha do senhor do bonfim remixada com exclusividade para o mercado japonês para se romper em três dias: envelhecida artificialmente...

... o complexo de lego: se você é um legocentrado, um legóico, tudo se encaixa...

... enfim, uma cura que os cientistas levarão anos para encontrar a doença. Por isso se acredito no futuro da humanidade é porque sempre haverá uma canção inédita dos beatles. Amanhecendo não faço parte do final do mundo, contudo me identifico com a maioria das coxas, amo tudo que é estranho, só confio em exceções...

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... esta frase eu levaria para uma ilha deserta. Essa, essa frase. Uma arma na mão e nada na cabeça: jáinda. Padrão globo ocular de qualidade. O stress é a prova dos novos. Mataram um estudante, podia ser seu torturador. Mulhomem. Ilha é uma pessoa cercada de mágoas por todos os lados...

...ABUSE E UZI. O antônimo de maxilar é miniexílio. SOS (sale our souls). Fui tomado por uma sensação de déjà vu geral: olhava a latinha de cerveja rosebudweisernegger, ouvia billie holiday on ice ou joão gilberto gil gomes lendo a insustentável leveza do ser ou não ser aos 45 do segundo tempo é dinheiro não traz felicidade foi-se embora:

na desfotografia é assim

primeiro o flash depois o sorriso a revelação antes do clic você relembra então vive o passarinho é que te olha e você dizendo sixxxxxxxxxxxx

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in Delirius New York POOL [piscina]

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O parque D Pedro II entra nessa documentação como um ícone. E como todo ícone, sintetiza algum grande elemento. O parque se coloca nessa dissertação como uma representação do contexto, do entorno do Edifício São Vito. Mas o entorno aqui deve ser expandido, e não resumido aos seus poucos metros circundantes. O entorno que quero apresentar é todo o bairro, todo o território que se constitui o início da zona leste paulistana. O São Vito está inserido em um grande contexto chamado Brás. O parque D Pedro, o São Vito, o próprio Brás, são todos símbolos da metrópole. Todos representam, e ao mesmo tempo constituem o emaranhado urbano da metrópole São Paulo. Um não pode ser lido sem o outro. Um não pode ser entendido sem o outro. Para se fazer uma leitura possível de um edifício, é necessário entrar – inclusive literalmente falando – no seu entorno, no seu contexto, no emaranhado em que está inserido. O Brás se apresenta neste momento como o campo onde brota o objeto-edifício. É necessário se alimentar das questões do Brás para se compreender em que situação o edifício se coloca na cidade. Afinal de contas, o edifício é reflexo de seu entorno, e seu entorno acaba se tornando um reflexo do edifício. Uma retro-alimentação metropolitana. Contexto x Conteúdo. Ou seja, ao entender o contexto – Brás – é possível assimilar e nos apropriarmos mais profundamente do conteúdo – o São Vito.

Mas ao entrar no Brás, nos defrontamos com um enorme campo negro, uma terra de ninguém, um terrain vague típico de Solà-Morales. Mas, ao mesmo tempo, um território repleto de peculiaridades, de potencialidades, de possibilidades latentes. Uma perfeita imagem do fragmento urbano. E ninguém melhor que Nicolau Sevcenko – ou o Historiador, outro Estranho sobrevivente à implosão metropolitana – para nos apresentar e clarificar, pelo menos momentaneamente, nossos passos por esse território tão expressivo e particular chamado Brás.

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