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Carmen Dolores, escritora e cronista: uma intelectual feminista da Belle Époque

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO

PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

RISOLETE MARIA HELLMANN

CARMEN DOLORES, ESCRITORA E CRONISTA Uma intelectual feminista da Belle Époque

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do Grau de Doutora em Literatura

Orientadora: Dra. Zahidé Lupinacci Muzart

FLORIANÓPOLIS 2015

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC. HELLMANN, RISOLETE MARIA

CARMEN DOLORES, ESCRITORA E CRONISTA: Uma intelectual feminista da Belle Époque / RISOLETE MARIA HELLMANN; orientadora, Zahidé Lupinacci Muzart - Florianópolis, SC, 2015. 851 p.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão. Programa de PósGraduação em Literatura.

2 Volumes.

Inclui referências

1. Literatura. 2. Literatura de autoria feminina. 3. Crônicas. 4. Escritoras do século XIX. 5. Carmen Dolores. I. Muzart, Zahidé Lupinacci. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura. III. Título.

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Às mulheres do meu coração...

Para minha mãe, Adélia, Mulher do século XX,

que vivenciou a submissão ao poder patriarcal e partiu na véspera desta tese,

acreditando que isso era natural. Para minha filha, Raíssa Camile, Menina mulher do século XXI,

Que chegou quando as linhas desta tese se fechavam.

Que ela vivencie a ousadia e a coragem de rasgar as máscaras

que nos mantêm na ignorância de nós mesmas e que possa contribuir

com a desconstrução da ideologia patriarcal. E aos homens que amo...

Para meu pai, David,

que seguiu sua amada, silencioso, como viveu. Para meu marido, Claudionor,

presença amorosa constante. Para meus filhos, Thiago e David, amor incondicional.

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AGRADECIMENTOS

A minha orientadora, Zahidé Muzart, pela sugestão de Carmen Dolores, por acreditar que eu seria capaz e por me dar a segurança do caminho escolhido. Ao meu marido, Claudionor, por tudo! Pelo companheirismo, pelo carinho, pela compreensão do meu isolamento na biblioteca e pela minha ausência durante a pesquisa de campo, pelo auxílio na transcrição das crônicas e pelo incentivo na minha luta.

Aos meus filhos, Thiago,David e Raíssa, por compreenderem minhas ausências durante a elaboração desta tese.

A minha madrinha e amiga, Irene, por ter me ensinado as primeiras letras na infância, por ter acompanhado minha trajetória ao longo de muitos anos com carinho e interesse e, principalmente, pelo incentivo e apoio desde a seleção do curso de doutoramento.

Aos amigos Esterlina e Joel, pela hospedagem na cidade do Rio de Janeiro, e àSueli, pelo acolhimento durante todo o tempo de pesquisa de campo, sem a qual dificilmente eu teria conseguido alcançar tantos dados.

Ao amigo Luiz Eduardo (LuLuca), pela disponibilidade e auxílio na coleta de dados.

Às amigas Patrícia e Antonia, sempre presentes - mesmo que por meios virtuais - pelos muitos momentos de escuta, de trocas e de palavras estimuladoras quando o desânimo e a ansiedade tomavam conta.

Às amigas Aline, Manu,assim como a minha cunhada e meu irmão, Marizete e Tarcísio, pela dedicação a minha filhinha durante minhas ausências.

Aos meus professores, principalmente a Prof.ª Dr.ªTania Ramos, por ter me colocado no caminho de minha orientadora.

Aos colaboradores da Biblioteca Nacional, que tão gentilmente me auxiliaram na localização das crônicas e me possibilitaram o acesso aos periódicos impressos.

Aos diversos secretários do Programa de Pós-Graduação em Literatura, pela presteza com que sempre atenderam às minhas solicitações.

À Universidade Federal de Santa Catarina, por oferecer o curso e auxiliar no custo da pesquisa de campo.

Ao Instituto Federal de Santa Catarina, pela concessão do afastamento do trabalho para desenvolver esta pesquisa.

A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram e/ou me incentivaram nessa jornada.

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Un texto descubierto em algún archivo polvoroso no será bueno e interessante sólo porque lo escribió uma mujer. Es bueno e interessante porque nos permite llegar a nuevas conclusiones sobre la tradición literaria de las mujeres; saber más sobre cómo las mujeres se enfrentan, em uma forma literaria, a su situación actual, las expectativas vinculadas a su rol como mujeres, sus temores, deseos y fantasias, y las estrategias que aadoptam para expresarse publicamente a pesar de su confinamento em lo personal y lo privado.

(Sigrig Weigel, 1986)

Se hoje a posição da mulher na sociedade se distancia cada vez mais do papel feminino exercido no século XIX é graças ao empenho de mulheres que viveram à frente de seu tempo, expondo-se às críticas e lutando para conquistar o espaço quase sempre bastante cerceado. Esse percurso em árido terreno fez com que as mulheres fossem pouco a pouco almejando ampliar sua atuação na sociedade [...] Com todas as limitações intelectuais e sociais, houve escritoras brasileiras que superaram os obstáculos e escreveram. Torna-se importante, sem condescendência, reconhecer a dedicação e coragem das brasileiras que publicaram suas obras, fazendo prevalecer a vontade acima dos preconceitos que poderiam vir a sofrer.

(Rosana Cássia Kamita, 2004)

Quem escreve a indagar no seu íntimo a cada instante o que pensarão do que está dizendo, é um cativo intelectual que perde as asas, e não voa mais nunca.

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RESUMO

Investigamos, neste estudo, a obra jornalística e literária de Carmen Dolores (um dos pseudônimos de Emilia Moncorvo Bandeira de Mello), escritora, cronista, conferencista, dramaturga e crítica literáriado século XIX, comumente caracterizada, no campo intelectual do seu tempo, como máscula, corajosa e ousada. Dessa obra, focalizamos a atuação jornalística, intelectual, crítica e feminista por meio da análise de suas crônicas publicadas no jornal O Paiz entre 1905 e 1910.Reconhecida pela crítica periodística de seu tempo, esquecida politicamente pela História da Literatura e Crítica Literária canônicas ao longo do século XX, ela vem sendo redescoberta pela crítica literária feminista contemporânea. Seguimos a tendência daspesquisas realizadas na linha de resgate da literatura de autoria feminina, preocupando-nos em descobrirseu acervo, para analisá-lo, desfazer equívocos repetidos consecutivamente, assim como interpretar o processo de inserção dessa mulher no contexto histórico-social-cultural, identificar os preconceitos enfrentados, ou seja, avaliar a posição feminista que ocupou no campo literário e intelectual.Desse modo, visamos, concomitantemente, dar visibilidade à obra de uma escritora feminista do século XIX, esquecida politicamente pelos estudos canônicos e contribuir com a releitura do cânone literário e com a construção da historiografia literária de autoria feminina brasileira.Objetivos que nos conduziram à tese de que o resgate dos escritos literário/jornalísticos, da vida e da atuação intelectual e feminista de Carmen Dolores pode proporcionar o reconhecimento e a visibilidade dessa escritora e jornalista como uma intelectual feminista da Belle Époque brasileira. Noções de Crítica Feminista, Estudos Culturais, Nova História e Crítica Biográficaperpassam todo o texto como um aporte teórico. No levantamento da fortuna crítica, nos valemos dos textos críticos de cronistas da Belle Époque, assim como de outras fontes secundárias: historiadores e críticos literários canônicos desde Silvio Romero (1888) a Luciana Stegagno-Picchio (1997); e das pesquisas acadêmicas das críticas feministas contemporâneas. No intuito de desfazer equívocos, completar informações desconhecidas por leitores contemporâneos e construir um perfil biográfico da autora a partir do seu contexto social e do seu campo literário, valemo-nos de fontes primárias (registros paroquiais, documentos institucionais, obituários e notas sociais publicadas em periódicos brasileiros durante o tempo de vida de Emilia Moncorvo Bandeira de Mello).

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ABSTRACT

In this study, we investigate the journalistic and literary work of Carmen Dolores (one of the pseudonyms of Emilia MoncorvoBandeira de Mello). Writer, chronicler, lecturer, dramaturgist and literary critic of the 19th century, she is commonly referred to as, in the intellectual field of her epoch, manlike, courageous, and audacious. From her work, we focus her journalistic, intellectual, critic and feminist acting by analyzing her chronicles published in O Paiznewspaper from 1905 to 1910. Recognized by the journalistic critic of her time, politically forgotten by canonical Literature History and Literature Critic along the 20th century, she is being rediscovered by contemporaneous feminist literary critic. We followed the trend of researches made in terms of retrieving works made by female writers, concerned about discover her collection, in order to analyze it, reveal repeated misconceptions, as well as to understand the insertion process of this woman into the historical-social-cultural context, identifying the prejudices faced by her; in other words, to evaluate the feminist position occupied by her in both intellectual and literary fields. This way, we aim to, concomitantly, give visibility to the work of a feminist writer of the 19th century, which waspolitically forgotten by the canonical studies, and to contribute with the rereading of the literary canon and to the construction of the literary historiography of Brazilian female writers. Such purposes conducted us to the thesis that the retrieval of literary and journalistic works, as well as the life and intellectual and feminist acting of Carmen Dolores, could lead to the recognizing and visibility of this writer and journalist as an intellectual feminist of the Brazilian Belle Époque. Notions of Feminist Criticism, Cultural Studies, New History, and Biographical Criticism are used in this work as theoretical support. Critical texts of chroniclers from the Belle Époque, other secondary sources, such as historians and canonical literary critics like Silvio Romero (1888) and Luciana Stegagno-Picchio (1997), as well as contemporary academic researches regarding feminism criticism were used in the literature review of this work. Aiming to undo misconceptions, to fulfill the lack of information of contemporary readers, and to build a biographical profile of the author from her social context and literary field, we make use of primary sources, such as parochial registers, institutional documents, obituaries, and social notes published in Brazilian periodicals during the lifetime of Emilia Mancorvo Bandeira de Mello.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Inscrição do túmulo de Emilia M. Bandeira de Mello... 26

Figura 2: Túmulo de Emilia M. B. de Mello... 26

Figura 3: Livro de Registro de Batismo de Emília Moncorvo de Figueiredo ... 108

Figura 4: Detalhe da página do Registro de Batismo de Emília Moncorvo de Figueiredo... 109

Figura 5: Livro de Registro do Casamento de Jeronymo e Emília Moncorvo de Figueiredo... 117

Figura 6: Detalhe da folha: Registro do Casamento de Jeronymo Bandeira de Mello e Emília Moncorvo de Figueiredo... 117

Figura 7: Carmen Dolores e Chrysanthème nas ruas do Rio... 126

Figura 8: Convite de missa de 7º dia... 128

Figura 9: Registro de óbito de Emilia Moncorvo Bandeira de Mello ... 130

Figura 10: Notas sobre conferências literárias – Gazeta de Notícias ... 158

Figura 11: Notas sobre conferências literárias Correio da Manhã... 158

Figura 12: Capa do livro Lendas Brasileiras (2ª edição, 1914)... 185

Figura 13: O casamento da moça, ilustração de Julião Machado... 186

Figura 14: O preguiçoso, ilustração de Julião Machado ... 187

Figura 15: Capa do livro Ao esvoaçar da ideia ... 188

Figura 16: Carmen Dolores e Vianna de Carvalho ... 222

Figura 17: Plebiscito para presidente ... 225

Figura 18: O Chá Five O’Clock... 242

Figura 19: A confeitaria Colombo e seus intelectuais... 243

Figura 20: A vida sofisticada ... 244

Figura 21: A reforma urbana do Rio de Janeiro ... 252

Figura 22: O Bota-abaixo: demolições prévias ... 253

Figura 23: Edifícios da Avenida Central ... 254

Figura 24: Avenida Central - Rio de Janeiro ... 255

Figura 25: Carmen Dolores em seu gabinete de trabalho ... 353

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SUMÁRIO

1 NARRANDO O PERCURSO DA ESCRITURA DESTA TESE... 11 2 O LUGAR (OU NÃO LUGAR) DA ESCRITORA NA CRÍTICA LITERÁRIA E NAS HISTÓRIAS DA LITERATURA BRASILEIRA. 33 2.1 APESAR DAS REFERÊNCIAS, A EXCLUSÃO DE CARMEN DOLORES DO CANÔNE ... 34 2.1.1 As décadas de 1930 e 1940 ... 2.1.2 As décadas de 1950 e 1960 ... 2.1.3 Dos anos de 1970 até nossos dias ...

40 42 57 2.2 CARMEN DOLORES E O RESGATE DA CRÍTICA FEMINISTA... 62 2.2.1 Os textos críticos em livros ... 2.2.2 Carmen Dolores em antologias e dicionários de autoria feminina 2.2.3 Os textos críticos em revistas, congressos e seminários ... 2.2.4 As teses e dissertações sobre Carmen Dolores ... 2.2.5 Os prefácios de suas obras em novas edições ...

64 76 83 89 98 3 EMILIA E CARMEN DOLORES: UMA HISTÓRIA DE VIDA E A HISTÓRIA DE UMA AUTORA ... 105 3.1 TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE UMA MULHER DO SÉCULO XIX ... 107 3.1.1 Emilia e a sua origem ... 3.1.2 A formação escolar ... 3.1.3 O casamento e os filhos ... 3.1.4 Emilia e Carmen Dolores em uma só vida ... 3.1.5 O falecimento: um corpo e duas faces ...

108 111 117 123 127 3.2 TRAÇOS DA AUTORA: UMA MULHER DE LETRAS ... 133 3.2.1 Os pseudônimos: eus desdobráveis ... 3.2.1.1 Julio de Castro ... 3.2.1.2 Celia Marcia ... 3.2.1.3 Leonel Sampaio ... 3.2.1.4 Mario Villar ... 3.2.1.5 Carmen Dolores em periódicos diversos ... 3.2.2 Carmen Dolores, seus livros, conferências e dramaturgia: o reconhecimento da crítica periodística ... 3.2.2.1 Com a face exposta, as conferências literárias ... 3.2.2.2 Na literatura de autoria feminina, o talento de Carmen Dolores... Sobre Gradações - páginas soltas ... Sobre Um drama na roça 174

Sobre Lendas brasileiras: coleção de 27 contos para crianças 184

134 145 147 148 151 153 155 157 168 169 174 184

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Sobre Ao esvoaçar da ideia ... Sobre A luta... Sobre Almas complexas... Sobre as peças teatrais ... 3.2.2.3 Outras publicações de Carmen Dolores ... 3.2.3 Carmen Dolores: a intelectual como referência ... 3.2.4 As tentativas de preservação do nome de Carmen Dolores ...

187 201 210 217 222 225 228 4 OUSADIA E IRREVERÊNCIA DE UMA MULHER NA PONTA DA PENA... 237 4.1 A JORNALISTA: OLHAR DE ARTISTA E PORTA-VOZ DE CIDADÃOS ... 4.1.1. A inserção de Carmen Dolores na vida intelectual da Belle Époque ... 4.1.2. O progresso e a modernização da cidade... 4.1.3 As linhas da crônica como espaço de lutas sociais e políticas ... 4.1.3.1 O destino dos despejados no “Bota-Abaixo” e a vida na favela ... 4.1.3.2 A ineficiência do transporte público ... 4.1.3.3 A violência urbana e a falta de segurança pública ... 4.1.3.4 A preservação do meio ambiente ...

238 242 252 261 264 272 274 280 4.2 REMINISCÊNCIAS POÉTICAS: ESCRITA E VIDA... 4.2.1 Funções da citação na crônica ... 4.2.2 A crônica como espaço de trabalho e de luta quixotesca ... 4.2.3 Diálogos entre mulheres ... 4.2.4 Ler como uma mulher ...

282 288 301 302 307 4.3 A CRÍTICA DE ARTE COMO CRÔNICA ... 4.3.1 A crítica de arte: “Subserviência aos juízos correntes, nunca, nunca!” ... 4.3.2 A preferência pela música ... 4.3.3 Representações teatrais femininas ... 4.3.4 Crítica às conferências literárias ... 4.3.5 Crítica literária de mulher, sim senhor! ... 4.3.6 Possibilidades de crítica literária feminista nos 1900 ... 4.3.6.1 A representação da mulher em obra de autoria masculina ... 4.3.6.2 Análise de obras de autoria feminina...

309 310 312 315 320 329 332 332 334 4.4 A CRONISTA E A LUTA PELOS DIREITOS DA MULHER: FEMINISMO OU NÃO? ... 4.4.1 Seu talento “másculo” e o preconceito contra a mulher... 4.4.2 Uma postura paradoxal ... 4.4.2.1 Sua postura anticlerical, a pecha do ateísmo e sua participação em rituais católicos ...

351 351 369 372

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4.4.2.2 O posicionamento político de Carmen Dolores ... 4.4.3 As principais bandeiras feministas levantadas ... 4.4.3.1 A denúncia da violência contra a mulher ... 4.4.3.2 A questão do divórcio ... 4.4.3.3 O trabalho feminino remunerado ... 4.4.3.4 O direito à educação ... 383 394 397 413 426 431 5 ARREMATANDO AS ARESTAS DA MONTAGEM DO MOSAICO... 439 REFERÊNCIAS ... 448 APÊNDICES ... 480 APÊNDICE A Critérios para atualização ortográfica na transcrição das crônicas de Carmen Dolores publicadas em O Paiz ... APÊNDICE B Lista dos jornais onde estão as colunas: A SEMANA, assinada por Carmem Dolores ...

480

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EMILIA MONCORVO BANDEIRA DE MELLO (CARMEN DOLORES)

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1 NARRANDO O PERCURSO DA ESCRITURA DESTA TESE... Neste estudo que ora apresentamos, tomamos como objeto de estudo a obra literária e jornalística de Carmen Dolores1, autora de obras ficcionais, cronista, conferencista, dramaturga e crítica literária. Uma brasileira do século XIX comumente caracterizada, no campo intelectual do seu tempo, como máscula, corajosa e ousada. De sua variada obra intelectual, optamos por dar uma especial atenção às crônicas publicadas no jornal O Paiz entre 1905 e 1910.

QUANTO À ORIGEM DA TESE

Antes, porém, de narrar o desenvolvimento desta pesquisa acadêmica, abrimos um parêntese para, digressivamente, lembrar a gênese deste trabalho, que teve um início nada convencional. Em maio de 2012, já no meio do curso de doutoramento, por motivações diversas, tivemos que encontrar outro(a) orientador(a). Pretendíamos, inicialmente, desenvolver um estudo sobre a obra de outra escritora brasileira contemporânea, Maria José Silveira. Aspirávamos, a partir dos olhares da História, da Literatura e da Crítica Feminista, trabalhar com seus romances históricos. Mas esse projeto fortuitamente acabou não indo à frente em função da necessidade de encontrar nova orientadora. Sim, orientadora, uma mulher que trabalhasse na linha de pesquisa Crítica Feminista e Estudos de Gênero, já que nosso interesse pessoal sempre foi, desde a graduação, desenvolver pesquisa nessa área.2 Tanto nas monografias da graduação e da especialização já havia trabalhado com romances de escritoras brasileiras, assim como, no mestrado em que foi apresentada dissertação sobre as obras de Lya Luft.

1 Pseudônimo de Emilia Moncorvo Bandeira de Mello (1852-1910).

2 Um dia me perguntaram: - Por que Mulher e Literatura? Sem pestanejar, respondi: - Literatura porque desde que ouvi a estória de Hänsel e Gretel (Irmãos Grimm), antes mesmo de aprender a falar, ler e escrever em português, entendi que a literatura é o alimento da alma e que, através dela, tudo é possível. E Mulher porque também muito cedo, dentro do círculo familiar, antes mesmo de conhecer as teorias feministas, aprendi a ser uma feminista por força das circunstâncias, ou melhor, por indignação. E, também, por entender que esse era o meio para sobreviver em uma família onde uma matriarca, paradoxalmente, desempenhava o papel do machista e reproduzia o discurso do patriarcalismo. Só bem mais tarde, já na graduação em Letras, cheguei a argumentos mais consistentes, fundados em conhecimentos teórico-científicos, tanto sobre literatura, quanto sobre o feminismo.

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Ao procurar a Prof.ª Dr.ª Zahidé Muzart, a condição para aceitação da orientação foi que trabalhássemos com resgate de escritoras do século XIX, como Julia Lopes de Almeida, Maria Benedita Bormann (Délia) e Carmen Dolores. Isso demandaria escrever um novo projeto e desenvolvê-lo em um tempo que não dispúnhamos mais e, além disso, é preciso confessar que, naquele momento, não conhecíamos as obras de tais autoras. Aliás, com exceção das duas primeiras, nunca tínhamos ouvido falar em Carmen Dolores. Posto o desafio, desafio aceito, levados por não sei quais sentimentos e pensamentos.

Imediatamente iniciamos as leituras das obras literárias em livros que nos foram disponibilizadas pela nova orientadora naquele mesmo dia. Os prefácios e ensaios críticos, assim como indicações de obras sobre essas autoras, presentes nas reedições de alguns desses livros foram apontando o caminho para novas descobertas. Também as navegações nos sites de busca da internet possibilitaram ampliar o conhecimento sobre a extensão desse possível objeto de estudo. Deslumbradas com o tamanho do acervo dessas escritoras, propusemos, então, delimitar o estudo apenas sobre a vida e as obras da escritora conhecida como Carmen Dolores. Não sabemos precisar o momento posterior a essa decisão em que descobrimos, por pura curiosidade investigativa, a Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, mais especificamente as crônicas publicadas por Carmen Dolores em periódicos diversos. Encontrar todos os seus livros também não foi tarefa fácil e demorou algum tempo até conseguirmos adquiri-los (a duas dessas obras só tivemos acesso a fotocópias).

Na verdade, em algum momento durante o curso de mestrado, Prof.ª Dr.ª Constância Lima Duarte havia nos apresentado a algumas mulheres cronistas brasileiras do século XIX e século XX, mas, na época, empreendemos um estudo sobre as crônicas de Clarice Lispector reunidas em A descoberta do mundo. Ao ler as crônicas, ou melhor, o que era possível ler – dada à péssima qualidade de digitalização dos periódicos dos 1900 – lembramos do quanto foi instigante trabalhar com esse gênero textual crônica, situado no “entre-lugar”3 da literatura e do jornalismo.

3 Na discussão sobre as relações culturais, em sua obra Uma Literatura nos Trópicos (1978), Silviano Santiago constituiu teoricamente o conceito chave de “entre-lugar”. Tentando resumir um conceito complexo, o termo “entre-lugar” se configura como operador de leitura ou resposta estratégica ao pensamento colonizador, ou seja, um lugar que o crítico pode assumir para trabalhar com um complexo sistema de obras a partir da perspectiva dos Estudos Culturais.

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Quanto mais adentrava seus textos, mais um mesmo refrão voltava ao nosso pensamento: “Essa mulher disse em 1905, 1906 e

1907... tudo o que ainda está engasgado na minha garganta de feminista de meias medidas”. Mas é aí que nos deparamos com o perigo

dos textos literários de identificação, pois fica cada vez mais difícil alcançar a objetividade e a imparcialidade, necessárias para a pesquisadora, na avaliação/interpretação crítica da obra produzida pela autora. A tendência natural é sair em sua defesa, é enaltecer seu feito, às vezes, atribuindo um valor estético ou social maior do que a obra avaliada merece. Além disso, o deslumbramento causado diante do tamanho do acervo dessa autora, que encontrávamos nas páginas dos periódicos, também dificultava encontrar o equilíbrio nesse olhar crítico sobre o objeto de estudo. Esse foi, talvez, um dos maiores desafios nesta tese.

Se o nosso projeto de tese sobre a obra de Carmen Dolores, publicada no jornal O Paiz, nasceu em breves dias de intensas leituras do que íamos encontrando de/sobre a obra da autora, nada parecido foi o trabalho empreendido a partir do momento em que obtivemos aprovação da orientadora. Mas sobre isso falaremos mais à frente, ao discorrer sobre os procedimentos metodológicos.

Obviamente, como não tínhamos ideia do que poderíamos encontrar sobre a autora e sua obra quando começássemos a revirar arquivos empoeirados, ao visitar locais onde ela viveu, o projeto inicial foi sofrendo modificações, ou, talvez, foi sendo (re)construído ao longo do levantamento de dados – o que é próprio da pesquisa arqueológica.

A própria tese que aqui defendemos foi reformulada ao longo da pesquisa até chegarmos ao consenso de que o resgate dos escritos literário/jornalísticos da vida e da atuação intelectual e feminista de Carmen Dolores pode proporcionar o reconhecimento e a visibilidade dessa escritora e jornalista como uma intelectual feminista da Belle

Époque brasileira. Visibilidade e reconhecimento que são necessários

para a releitura da História da Literatura e construção da historiografia literária de autoria feminina.

Para nós, narrar a história de uma vida, construir um conjunto mais consistente de apontamentos biográficos sobre esta escritora que aqui estudamos, interpretar temáticas presentes nos seus escritos, não é apenas uma necessidade pessoal de leitora crítica. De vários modos, a vida atravessa a criação literária, seja pela formação intelectual, pelas

Confira SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos. Rio de Janeiro:

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reminiscências poéticas, seja pela experiência do vivido do(a) autor(a). Uma obra literária também tem sua história. Ambas precisam ser narradas para que possamos garantir a sua visibilidade e permanência. QUANTO À RELEVÂNCIA DESSE ESTUDO

Relatada a gênese do estudo, é de praxe acadêmica que se passe à sua justificativa e essa transite necessariamente pela afirmação da importância da autora para a qual voltamos nossa atenção, bem como a relevância desta pesquisa no campo científico.

Nas quase duas décadas dedicadas por Carmen Dolores à literatura e ao jornalismo, a autora sustentou sua família escrevendo crônicas, artigos de crítica literária e outras obras literárias para vários jornais do Rio de Janeiro. Para tanto, valeu-se de três pseudônimos masculinos e dois femininos. Como Júlio de Castro, encontramos seis textos que oscilam entre crônicas, contos e crítica literária, publicados em jornais do Rio de Janeiro e de Petrópolis entre 1898 e abril de 1903. Mario Villar, outro pseudônimo, parece ser, para a autora, a voz que “não deu certo”, pois encontramos apenas dois contos curtos: um em 1899, Impressões, e outro, em 1906, Notas de um Errante. De Leonel Sampaio, encontramos um número considerável de narrativas, dezoito contos curtos – bem no estilo folhetim – que alcançaram jornais do Maranhão, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, publicados entre janeiro de 1904 e setembro de 1906. Com o pseudônimo Celia Marcia, encontramos 29 cartas escritas por ela em francês e publicadas no jornal carioca L'Etoile du Sud, numa coluna intitulada Lettres d'une bresilienne – entre agosto de 1904 a abril de 1905. Contudo, ela acabou optando pelo pseudônimo Carmen Dolores para publicar sua obra cronística de maior valor para a crítica da época, principalmente a que escreveu para

O Paiz (1905 a 1910) e para o Correio da Manhã (1907 a 1910). Ela

também usou o pseudônimo Carmen Dolores para trazer à luz a peça teatral O desencontro e as conferências literárias, além de publicar os livros de contos Um drama na roça (1908); Lendas brasileiras: coleção

de 27 contos para crianças (1908), o livro de crônicas Ao esvoaçar da ideia (1910), o romance póstumo A luta (1911) e o livro de contos,

também póstumo, Almas complexas (1933). No periódico O Paiz publicou 282 crônicas, identificadas em nossa pesquisa,4 na coluna

4 Esclarecemos que as 282 crônicas inventariadas (APÊNDICE B) foram lidas no original. Contudo, transcrevemos somente aquelas crônicas que foram citadas ao longo desta tese atualizando a linguagem conforme normas

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dominical A Semana, entre 08 de janeiro de 1905 e 14 de agosto de 1910. Ironicamente, considerando as suas próprias palavras na crônica de 16 de fevereiro de 1908, “morre-se escrevendo”, publica a última, no jornal O Paiz, dois dias antes do seu falecimento, em 16 de agosto de 1910. Raros foram os domingos, nesses cinco anos e meio, em que não apareceu uma crônica da escritora na primeira página do jornal de grande repercussão nacional, como foi O Paiz.

Com essa produção literária e jornalística, muito mais intensa do que extensa, a autora obteve reconhecimento da crítica periodística de seu tempo, no entanto, foi esquecida politicamente pela História da Literatura e Crítica Literária canônicas ao longo do século XX. Há, contudo, contemporaneamente, no Brasil, uma redescoberta dessa mulher intelectual do século XIX.

Por longas décadas, já no século XX, o ensino da literatura nas escolas brasileiras – tomado aqui como um termômetro da difusão da literatura brasileira entre nós, fundado na escrita da História da Literatura canônica,5 permitiu que pensássemos que as mulheres não produziram literatura até surgirem as publicações de Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, já que essas eram praticamente as únicas que apareciam nos livros didáticos de literatura, os quais usavam como fonte livros clássicos de história da literatura canônica. Longe de nós a intenção de negar a importância da produção dessas escritoras – como também a dos escritores homens – no entanto, sabemos, hoje, elas não foram as únicas e que muito devemos às escritoras pioneiras, que superaram toda sorte de obstáculos e preconceitos para escrever e publicar.

Grande parcela dos estudantes de letras nas universidades brasileiras, e nela nos incluímos, só pode descobrir a dimensão da literatura de autoria feminina brasileira a partir das décadas de 1970 e 1980, quando artigos e livros que apontavam os resultados de pesquisas realizadas pela crítica literária feminista, desenvolvidas nas academias brasileiras, começaram a aparecer, principalmente com o trabalho desenvolvido pelo Grupo de Trabalho A Mulher na Literatura,

estabelecidas (APÊNDICE A). Essas crônicas transcritas estão presentes no

VOLUME II que acompanha este texto..

5 Discutimos este assunto em HELLMANN, R. M. O ensino de literatura:

algumas reflexões críticas. Disponível em:

<http://www.fama.br/revista/letras/images/stories/artigos/artigo%20risolete%20 -20reflexes%20crticas.pdf>.

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vinculado à ANPPOL, que já tem estabelecido seu reconhecimento nesse campo científico.

Por outro lado, o desenvolvimento desta pesquisa exigiu refletir sobre a necessidade de revisar a História da Literatura Brasileira canônica ou tornar a história da literatura múltipla, como propõe Coutinho (2003, p. 19):

Se não se pode mais pensar a história em termos de um esquema linear e unilateral, mas apenas como a articulação de sistemas que se imbricam, superpõem e transformam constantemente; [...] se finalmente não se pode mais limitar o âmbito da literatura à produção escrita ficcional ou poética, os corpus que serviram de base às histórias literárias tradicionais perdem sua fixidez, tornando-se múltiplos e dinâmicos, e dão margem à coexistência de cânones distintos dentro de um mesmo contexto. Corroborando esse ponto de vista, Cairo (2003, p. 84) complementa:

Em plena época dos hipermercados e shopping centers, não é possível mais pensar numa história da literatura única calcada num único cânone [...] Nas prateleiras da história diacrônica da literatura o usuário crítico deverá, livremente, proceder sua leitura sincrônica, buscando resgatar uma série de outros cânones capazes de gerar muitas histórias da literatura, já que não é possível pensar, no contexto do multiculturalismo em que se está inserido hoje em dia, num cânone que não seja o da exclusão.

Essa crise instaurada na História da Literatura mudou o modo de investigar a literatura e, consequentemente, de escrever a(s) sua(s) história(s), o que nos permite não só demonstrar a insatisfação com a exclusão da literatura de autoria feminina, mas ir além, ou seja, contribuir para a (re)escrita da historiografia literária, seguindo a perspectiva crítica feminista. Nesta pesquisa, procuramos seguir a lição que nos propõe Ramos (2008, p. 157):

O importante nessa leitura é percebermos que as mulheres, ao contrário do que se pensou durante anos, pegaram da pena e fizeram literatura, assumindo o papel a que se propuseram. Assim, elas comprovaram e testemunharam um momento importante da história cultural,

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embora para a historiografia fossem consideradas sombras, destinadas ao silêncio, à submissão.

Com o investimento no trabalho de resgate e interpretação da vida e da obra cronística de Carmen Dolores que fizemos nesta tese, objetivamos, concomitantemente:

- Dar visibilidade à obra de uma escritora feminista do século XIX, esquecida politicamente pelos estudos canônicos.

- Contribuir com a releitura do cânone literário e com a construção da historiografia literária de autoria feminina brasileira.

Esperamos, enfim, que nossa pesquisa possa “percorrer um espaço de liberdade”, apontado por Campello (2010, p. 62), na edição comemorativa dos 25 anos do GT Mulher e Literatura:

À medida que o texto literário abre-se para realizações artísticas do passado e motiva criações futuras, formando uma cadeia discursiva, a categoria de gênero, ao abranger sexo, classes sociais e etnias, nos instrumentaliza para invenções e intervenções efetivas na realidade social. Nessa perspectiva, o domínio da linguagem científica associado à sensibilidade da pesquisadora e do pesquisador torna-se um caminho de acesso aos mecanismos de poder, enquanto nossas inquirições e resultados são postos a serviço do beneficiamento da comunidade em que vivemos.

QUANTO AOS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E O APORTE TEÓRICO

Os procedimentos metodológicos, bem como o aporte teórico de que fizemos uso, são diferenciados, mas complementares de um capítulo a outro, por isso optamos por descrevê-los na mesma ordem em que são apresentados nesta tese – e que, de alguma forma, atendem aos objetivos específicos estabelecidos para alcançar os objetivos gerais referidos anteriormente. Noções de Crítica Feminista e de Estudos Culturais6

6 Os Estudos Culturais, além de possibilitar a análise de aspectos intrínsecos da literatura, também acentua seus aspectos sociais, humanos, psicológicos e culturais, observados no momento da leitura, que é o momento em que o texto encontra a vida. É nesse sentido que eles vão além da crítica marxista ortodoxa. Além disso, é preciso lembrar o que diz Eagleton (2010, p. 126-138) no seu livro Depois da Teoria: um olhar sobre os estudos culturais e pós-modernismo:

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perpassam todo o texto como um aporte teórico, ou seja, sem a intenção de produzir teoria. O avanço dos Estudos Culturais, as contribuições advindas da Nova História, da Crítica Feminista, entre outros campos de conhecimento, assim como as relações entre as disciplinas crítica literária, teoria da literatura e história da literatura proporcionaram uma revitalização desta última na contemporaneidade, no sentido de incorporar novas maneiras de ver a literatura, questionar estabelecimentos do cânone literário e a linearidade dos relatos baseados nas noções de progressão e evolucionismo.

Para a construção do capítulo 2, foi necessário, inicialmente, um levantamento bibliográfico que abarcou historiadores e críticos literários desde Silvio Romero (1888) à Luciana Stegagno-Picchio (1997), selecionando, entre eles, os mais renomados pela academia, para averiguar o grau de exclusão ou o descaso atribuído a Carmen Dolores. Também foi necessário um levantamento bibliográfico para levantar a fortuna crítica de Carmen Dolores construída pelos estudos feministas brasileiros contemporâneos

A forma de construção da História da Literatura e da Crítica Literária canônicas, no Brasil, bem como as razões da exclusão de escritoras desse cânone, já vem sendo reiteradamente discutida por diversos(as) pesquisadores(as), sobretudo a partir das discussões acerca da nova historiografia literária e do surgimento da crítica literária

“Nem um único ramo da teoria cultural - feminismo, estruturalismo, psicanálise,

marxismo, semiótica e similares - está, em princípio, confinado à discussão da arte, ou realmente começou a vida aí”. No entanto, os conceitos, a linguagem crítica e os métodos elaborados nessas correntes de pensamento são essenciais para sabermos o que e como investigar nas/as obras literárias. O objeto de pesquisa, nos Estudos Culturais, pode ser investigado a partir de diferentes perspectivas e o investigador não tem a pretensão de encontrar explicações causais definitivas e, sim, deve levar em conta a complexidade e as limitações dessa forma de abordagem. Nesse caso, ele pode alcançar resultados provisórios, transitórios e correspondentes à perspectiva espacial e temporal do investigador; aspecto que pode ser esclarecido se considerarmos algumas das conquistas da teoria cultural apresentadas por Eagleton (2010, p. 126-138): a) já não precisamos crer em uma “única maneira correta de interpretar uma obra de arte”; b) Há outros aspectos implicados na “feitura da obra de arte além do autor”, podemos conceber o leitor - receptor da obra de arte - como coprodutor; c) podemos perceber o quanto “as obras culturais pertencem aos seus tempos e lugares” e são enriquecidas por isso; d) a cultura pode ser reconhecida como uma “arena em que excluídos e despossuídos podem explorar significados compartilhados e afirmar uma identidade comum”; entre outras questões.

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feminista nas universidades brasileiras desde a segunda metade do século XX.

Entre os muitos estudos já realizados, contemporaneamente, sobre o surgimento da nova historiografia literária, vários autores retomam a história do nascimento da Crítica e da História da Literatura Brasileira do século XIX (VENTURA, 1995; LAJOLO, 1995; MALARD, 1995; COUTINHO, 2003; CAIRO, 2003; SOUZA, 2003; MOREIRA, 2004) normalmente como uma forma de compreender as transformações ocorridas nessas disciplinas durante o século XX e início do XXI. Na mesma medida, alguns discutem as frágeis fronteiras entre a crítica, a teoria e a história da literatura. Durante o romantismo, os intelectuais que estabeleceram a literatura como objeto de estudo crítico,7 na ânsia de visualizar uma literatura nacional, procuraram construir antologias, “florilégios”, panoramas dos produtos culturais que pudessem refletir o contexto brasileiro. Para Cairo (2003, p. 72), como essas obras foram organizadas segundo um critério cronológico e acrescidas de alguns “dados biográficos explicativos”, é difícil estabelecer os limites entre a crítica e a história da literatura.

Por outro lado, é comum a prática de retomar as obras historiográficas clássicas de seus antecessores, por parte dos próprios historiadores e críticos, desde os primeiros que surgiram no Brasil, como modo de demarcar seu locus de enunciação, ou para reconhecer fontes e influências.8 Se observarmos a perspectiva conceitual de

7 Ver VARNHAGEM, Francisco Adolfo. Florilégio da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1946.

8 Para exemplificar, voltamos a alguns historiadores que, além da distância temporal em que escrevem, assumem posturas diferentes diante do objeto literatura: Silvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira (1888), sob a influência do positivismo, remonta a Joaquim Norberto; já Nelson Werneck Sodré, na sua História da Literatura Brasileira (1938), escrevendo da perspectiva marxista, remonta a Veríssimo e Romero. Antônio Candido, por sua vez, é um dos primeiros historiadores a propor um novo formato da escrita historiográfica da literatura brasileira, no seu Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1957), em que reconhece fontes que lhe inspiraram: Silvio Romero, Ronald de Carvalho, José Veríssimo. Já na década de 1970, José Guilherme Merquior reconhece, em De Anchieta a Euclides - Breve História da Literatura Brasileira (1977), que a maioria dos críticos-historiadores tem o “costume” de “iniciar a história da literatura nacional pelo exame das obras escritas, [...] nos dois primeiros séculos do Brasil” (MERQUIOR, 1996, p. 12). Além desses, ainda podemos pensar em um olhar estrangeiro que procura se inteirar da nossa trajetória cultural para construir a

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literatura dos autores de obras canônicas e, consequentemente, o método científico escolhido por eles, verificaremos que nem sempre eles assumiram novas posturas e, simplesmente, citam seus antecessores como forma de reafirmar o que aqueles disseram.

Disso depreendemos que nem só de fontes primárias se valiam nossos historiadores clássicos, por isso a possibilidade de reiterar exclusões, esquecimentos políticos de autoras que, além da classe e etnia, também foram marcadas pelo gênero; ou, mesmo, repetir informações equivocadas, registradas em algum livro anterior, passa a ser um fato. Porém, não podemos esquecer que, quando há uma intencionalidade, marcada no discurso de pesquisadores críticos/historiadores, de resgate e (re)valorização dessas autoras e obras que ficaram à margem do cânone estabelecido, e ele/ela volta às fontes primárias para confirmação de dados equivocados que encontra nos livros, começamos, de fato, a escrever novas historiografias literárias.

É assim que vemos, neste estudo, outro grupo de pesquisadoras, entre as quais hoje nos incluímos, que ressaltam a importância dessas revisões para que se possa alcançar a revitalização da História da Literatura, principalmente no sentido de dar visibilidade e reconhecimento a produções literárias e suas respectivas autorias que ficaram à margem da História Literária canônica do país. Essas críticas feministas brasileiras9 vêm atuando desde os primeiros programas de pós-graduação brasileiros em literatura, surgidos no Brasil a partir de

sua História da literatura brasileira (1997), como o da italiana Luciana

Stegagno-Picchio.

9 Confiram os trabalhos de Ana Helena Cizotto Belline, Constância Lima Duarte, Eliane Vasconcellos, Eliane Campello, Ivia Duarte Alves, Lizir Arcanjo Alves, Luzilá Gonçalves Ferreira, Maria Tereza Caiubi Crescenti Bernardes, Nancy Rita Vieira Fontes, Norma Telles, Rita Terezinha Schmidt, Sylvia Perlingeiro Paixão, Valéria Andrade Souto-Maior, Valéria Cardoso da Silva, Yasmin Jamil Nadaf, Zahidé Lupinacci Muzart, entre tantas outras que colaboraram no resgate de escritoras do século XIX. De acordo com Muzart (2003, p. 227), “[...] o esquecimento de escritoras do século XIX é um esquecimento político. Pois não só porque mulheres escritoras são esquecidas; são esquecidas, sobretudo, as mais atuantes, as feministas, em uma palavra”. Esse “esquecimento político” foi amplamente usado pelos críticos e historiadores da literatura brasileiros, desde o século XIX até o trabalho de resgate de escritoras e obras de autoria feminina ser implantado nas últimas décadas do século XX pela crítica feminista. Talvez o uso se justifique pelos pressupostos culturais preconceituosos vigentes: o lugar da mulher circunscrito ao privado e sua suposta incompetência na produção literária.

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meados do século XX. Dentro dessa área de pesquisa, em franca ampliação na segunda metade do século XX, a linha de resgate de autoras e obras literárias toma como ponto de partida a busca de dados primários, concomitantemente à revisão do cânone literário, estabelecido a partir da História da Literatura construída pela “geração de 1870”. Nesse sentido, várias pesquisas feministas vão além desse cânone, ao se voltarem para fontes primárias efetivamente produzidas por escritoras como Bárbara Heliodora e Nísia Floresta, assim como o que foi produzido a partir das últimas décadas do século XIX, mas foi politicamente excluído – e é a partir desta última perspectiva que nos situamos aqui, com o resgate e interpretação da obra de Carmen Dolores, com foco nas crônicas de O Paiz.

Contudo, contemporaneamente, como o trabalho de levantamento das obras já foi exaustivamente realizado,10 as pesquisas dentro da linha de resgate da literatura de autoria feminina tendem a uma mudança de rumo, ou melhor, preocupam-se menos em resgatar a presença das mulheres no campo literário e mais em (des)cobrir (no sentido de tirar a cobertura, a poeira por cima dos escombros sob os quais as obras literárias e/ou jornalísticas ficaram esquecidas) seu acervo, para analisá-lo, e, assim, interpretar o processo de inserção dessas mulheres naquele contexto histórico-social-cultural, verificar quais suas condições de produção e recepção, identificar os preconceitos enfrentados, ou seja, avaliar suas formas de acesso e a posição que ocuparam no campo literário de seu momento.

Para a elaboração do capítulo 3, partimos do pressuposto de que a relação entre os sexos é uma construção social – como assevera a emblemática frase de Simone de Beauvoir (1949): “não se nasce mulher, torna-se mulher...”. E, para desenvolver esse estudo sobre a obra literária/jornalística de Carmen Dolores, foi necessário (re)conhecer

10 Schmidt (2009, p. 13) fala da densidade do trabalho desenvolvido pelas pesquisadoras que atuam no resgate de escritoras do século XIX. O grupo de pesquisadoras de “reconhecida competência”, convocado pela organizadora dos três volumes da antologia Escritoras brasileiras do século XIX (1999, 2004, 2009), Zahidé Lupinacci Muzart, atenderam ao propósito maior desse grande empreendimento de pesquisa: “O objetivo maior da presente pesquisa foi o de resgatar parte da obra dessas esquecidas e, principalmente, mostrar que, apesar da ausência desses nomes nas histórias literárias do século XX, elas existiram e foram atuantes, a seu modo, em sua época. O nosso propósito é exatamente este: o de mostrar que elas existiram, que se rebelaram contra o papel “natural” que lhes foi sempre assinalado - o de confinamento à vida doméstica - e desejaram ter suas vozes ouvidas. (MUZART, 2000, p. 19)

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tanto a mulher, quanto a autora de quem estávamos falando, além de fazer uma contextualização histórica-social-cultural de sua atuação. Para tanto, valendo-nos dos pressupostos da crítica biográfica, procuramos construir um perfil biográfico da autora a partir do contexto social e do campo literário11 em que ela ficou conhecida.

Narrar vidas alheias na tentativa de compreender a intrincada relação entre autor(a) e obra, contexto e leitor(a) crítico(a) não é uma tarefa fácil, quando a distância entre o olhar da pesquisadora e o vivido pela autora é de mais de um século. Mormente, quando não existe um acervo construído, bem guardado por mãos afetuosas que impediram a poeira de encobrir aquela existência. Às vezes, é preciso seguir pistas, rastros, passar dias remexendo terra árida, recolher cacos entre as ruínas... Contudo, nada se compara à satisfação da (des)coberta de um rosto, de um olhar flagrado pela moderna máquina fotográfica (uma novidade na época) e, afinal, conhecer a dona daquela voz ficcional já lida em algum livro raro. Ou, ainda, desvendar os mistérios sobre fatos vividos pela autora, marcados no tempo e no espaço, mesmo que parcialmente, e poder compreender aquele pensamento intelectual.

Como nos ensina Souza (2011, p. 21), não se trata de

[...] reduzir a obra à experiência do[a] autor[a], nem demonstrar ser a ficção produto de sua vivência pessoal e intransferível. As relações teórico-ficcionais entre obra e vida resultam no desejo de melhor entender e demonstrar o nível de leitura do crítico, ao ampliar o polo literário para o biográfico e daí para o alegórico.

11 A noção de “campo” é utilizada nesta tese a partir da metodologia proposta por Pierre Bourdieu (1983). “Campo” é definido como um espaço estruturado de posições onde dominantes e dominados lutam pela manutenção e pela obtenção de determinados postos. Os mais variados tipos de campo (religião, política, literatura, artes, ciência, etc.) são dotados de mecanismos próprios e propriedades que lhes são particulares. Essas particularidades podem ser valiosas na análise de outros campos. Dentro da estrutura de cada campo os agentes sociais, cientes das regras estabelecidas, disputam posições, como se estivessem em um jogo. Os campos são resultados de processos de diferenciação social, da forma de ser e do conhecimento do mundo e o que dá suporte são as relações de força entre os agentes (indivíduos e grupos) e as instituições que lutam pela hegemonia, isto é, o monopólio da autoridade, que concede o poder de ditar as regras e de repartir o capital específico de cada campo. Cf. BOURDIEU, P. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato (org). Pierre Bourdieu: sociologia, n. 39. São Paulo: Ática, 1983. (Coleção Grandes Cientistas Sociais)

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Partimos desse ponto de vista sobre a tendência atual das práticas analíticas fundadas na complexa relação entre vida e obra, considerando o que Arfuch (2010, p. 16) expõe sobre a “expansão do biográfico e seus desdobramentos para o âmbito da intimidade”, bem como sua proposta da categoria “espaço biográfico”.12 Todas as mudanças de perspectivas teóricas e críticas das últimas décadas do século XX13 não apenas deram voz às margens, aos marcados pelo gênero, pela raça ou pela classe, mas possibilitaram o deslocamento do olhar crítico para os aspectos extraliterários, desvalorizados durante as décadas em que os estudos sobre o que é imanente à obra imperaram. Nesse sentido, as histórias de vida das escritoras tornaram-se interessantes na interpretação das obras de autoria feminina, pois a história das mulheres,14 enquanto fato, atravessa a ficção por elas produzida.

12 Para Arfuch (2010), esse é um fenômeno que parece confirmar, que se coaduna, como inscrição discursiva, com as teorias que afloraram no cenário cultural da pós-modernidade. Biografias e autobiografias, não só dos grandes homens ou heróis, mas de homens e de mulheres, pessoas comuns, ou não, adquirem valor com os debates sobre “[...] os fracassos dos ideais da ilustração, das utopias do universalismo, da razão, do saber e da igualdade [...]”, além disso, inclui “[...] a crise dos grandes relatos legitimadores, a perda das certezas e fundamentos (da ciência, da filosofia, da arte, da política), o decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente, a valorização dos ‘microrrelatos’, o deslocamento do ponto de mira onisciente e ordenador em benefício da pluralidade de vozes, da hibridização, da mistura irreverente de cânones, retóricas, paradigmas e estilos” (ARFUCH, 2010, p. 17).

13 Também para Souza (2002, p. 43), a crítica biográfica brasileira vem demarcando seu espaço a partir da “[...] abertura teórica instaurada pelas abordagens contemporâneas”, na qual “os limites entre os territórios disciplinares são enfraquecidos, provocando o questionamento dos lugares produtores de saber, assim como dos conceitos operatórios responsáveis pela produção de paradigmas e de metodologias críticas”.

14 Entendemos o estudo da “história das mulheres” como o coloca Mary Del Priore (2007, p. 235): “Acreditamos que não interessa ao historiador fazer a história das mulheres em termos de erros e acertos sobre o seu passado, contar a saga de heroínas ou mártires [...]. Sua função maior deve ser a de enfocá-las através da submissão, da negociação, das tensões e das contradições que se estabeleceram, em diferentes épocas, entre elas e seu tempo; entre elas e a sociedade nas quais estavam inseridas. Trata-se de desvendar as intrincadas relações entre a mulher, a sociedade e o fato, mostrando como o ser social que ela é articula-se com o fato social que ela mesma fabrica e do qual faz parte integrante”. Quanto ao fato da vida privada atravessar a produção intelectual das mulheres, duas obras de Michelle Perrot lançam luzes nesse sentido: Perrot

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Em face da impossibilidade de reproduzir a vida, em alguns momentos nos valemos de documentos de registro civil de Emilia e, em outros, nos valemos da verdade poética presente nos trechos autobiográficos de Carmen Dolores na montagem desse mosaico de onde emerge a imagem dessa intelectual do século XIX. Voltando a atenção para a interpretação das crônicas assinadas por Carmen Dolores em O Paiz– portanto, um outro eu ficcional, criado por Emilia Moncorvo Bandeira de Mello – percebemos que, esporadicamente, Carmen Dolores fazia autorreferências, narrava pequenos episódios vivenciados, resgatados pela sua memória, expunha parcialmente sua subjetividade de mulher escritora, principalmente quando tentava enriquecer o tema da crônica com a experiência do vivido.

Cabe ressaltar, aqui, fundamentados em Arfuch (2010, p. 73), que as formas adquiridas pelos gêneros biográficos e autobiográficos nessa “inscrição narrativa de uma vida ‘real’, remete a outro regime de verdade, a outro horizonte de expectativa”. Assim, nesta narrativa, aqui construída, sobre a vida da escritora, procuramos seguir o que propõe essa crítica:

[...] não é tanto o ‘conteúdo’ do relato por si mesmo, a coleção de acontecimentos, momentos, atitudes, mais precisamente as estratégias– ficcionais –de autorrepresentação o que importa. Não tanto a ‘verdade’ do ocorrido, mas sua construção narrativa, os modos de se nomear no relato, o vaivém da vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na sombra; em última instância, que história (qual delas) alguém

(1988, p. 179), em Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros,

ao discutir a questão do poder possível para as mulheres na esfera do privado (organizando o cotidiano da família e as experiências domésticas), diz que elas estavam investidas de um grande poder social, realizando as funções de mãe e esposa. Em As mulheres ou os silêncios da história, Perrot (2005, p. 274) completa que elas buscaram se apoderar de suas casas, que muitas vezes eram seus locais de trabalho, de desenvolvimento de sentimentos e prazeres. Também no âmbito público as mulheres populares, na busca pelo trabalho que lhes garantisse a subsistência, exerciam poder comprando e vendendo mercadorias. Já as mulheres da elite exerciam seu poder público fazendo caridade. Mesmo tendo sido excluídas da gestão dos bens e da política, algumas poucas conseguiram se fazer ouvir/ler. A partir das correspondências das filhas de Karl Marx, dos escritos e outros documentos de Georg Sand e Flora Tristan, Michelle Perrot evidencia a vivência cotidiana dessas mulheres e suas ideias, suas visões com relação ao mundo e a elas mesmas.

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conta de si mesmo ou de outro eu. É essa qualidade autorreflexiva, esse caminho da narração, que será, afinal de contas, significante. No caso das formas testemunhais, tratar-se-á, além disso, da verdade, da capacidade narrativa de ‘fazer crer’, das provas que o discurso consiga oferecer, nunca fora de suas estratégias de veridição, de suas marcas enunciativas e retóricas (ARFUCH, 2010, p. 73).

A autorreflexão de Carmen Dolores remete a fatos, acontecimentos, pessoas “reais” com quem ela conviveu, cuja história de vida pode ser “atestada” por documentos ou pelos registros de outras vozes presentes nos discursos jornalísticos que “provam” sua existência naquele espaço-tempo social: Brasil do século XIX e início do século XX. Nesse sentido, o conjunto de crônicas assinadas por Carmen Dolores, coletadas nesta pesquisa, compõe, assim, outra fonte de levantamento de dados biográficos, além dos registros paroquiais, dos documentos institucionais, dos obituários e notas sociais publicadas em periódicos brasileiros durante o tempo de vida de Emilia Moncorvo Bandeira de Mello. Como afirmou Del Priore (2007, p. 227): “A partir de restos do discurso, de fragmentos de vidas é que o historiador consegue, então, perceber as formas de racionalidade que modelavam as práticas e as atividades, as relações sociais, as relações entre mulheres e homens”.

Uma ação necessária, no percurso dessa pesquisa, foi buscar e organizar um corpus de análise dessa história de vida e produção literária, de modo que não ficássemos na mera repetição do já dito em outras pesquisas acadêmicas, nas antologias e dicionários que contemplam sua vida e obra. Foram justamente os equívocos encontrados nessas obras, dotadas de uma “segunda vida editorial”, como considera Arfuch (2010, p. 26), que nos fizeram perceber a necessidade de um capítulo sobre o perfil biográfico da escritora.

Partimos das indagações que surgiram sobre as controvérsias encontradas para buscar “documentos” que pudessem comprovar a realidade, ou a “verdade” sempre provisória sobre a identidade da escritora. Vilas Boas (2002, p. 55), falando sobre a matéria-prima para biógrafos, assevera que:

Os documentos (oficiais e não oficiais são a nata das fontes primárias. Constituem-se documentos importantes, por exemplo, as certidões de nascimento, casamento e óbito; os certificados escolares e de propriedade; discursos em

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congressos e assembleias; [...] os textos de jornais e revistas; [...] as autobiografias; os diários; os livros que retratam a época do biografado e outros.

Logo, no primeiro momento, a ideia de encontrar registros oficiais de nascimento, de escolaridade, de casamento, de óbito, etc., tornou-se fixa, porém havia a dificuldade de encontrá-los num distante século XIX sem datas certas.

Experimentando o

sentimento do “mal de arquivo” (expressão cunhada por Derrida), tão bem descrito por Duarte (2011, p. 239), dedicamo-nos “apaixonadamente a restaurar o arquivo justo onde ele escapa, justo onde ele se anarquiva, ou seja, intuir o que não se inclui na listagem, a ausência da memória”. A partir do conjunto de informações desencontradas sobre esses rastros de sua existência no contexto social brasileiro do período do Império e Primeira República, percorremos arquivos de várias instituições oficiais: no arquivo do Cemitério São João Batista, encontramos o registro do seu sepultamento e o seu túmulo (figuras 1 e 2).

Dessa indicação chegamos ao Arquivo da

Figura 2: Túmulo de Emilia M. Bandeira de Mello

Fonte: Risolete Hellmann. Rio de Janeiro, 05 jan. 2013

Figura 1: Inscrição do túmulo de Emilia M. Bandeira de Mello

Fonte: Risolete Hellmann. Rio de Janeiro, 05 jan. 2013

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Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, onde está o seu atestado de óbito, mas o acesso ao documento só se deu seis meses após a primeira solicitação de cópia que fizemos àquela instituição. Na sequência, fomos à busca dos registros paroquiais de seu nascimento e casamento no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, mas a falta de datas aproximadas desses eventos dificultou a localização dos documentos. Somente no decorrer da pesquisa, algumas pistas foram permitindo a sugestão de possíveis datas e, retornando aos mesmos registros paroquiais, localizamos os livros que documentam seu batismo e seu casamento. Seguindo um caminho inverso do que normalmente se faz em uma pesquisa acadêmica, delimitamos, assim, depois de encontradas as informações que queríamos, o conjunto de documentos institucionais. Esses foram concebidos, neste estudo, como fontes primárias de informação, como parte do corpus de análise para construção do seu perfil biográfico.

Quanto aos obituários da escritora, notas nas colunas sociais e matérias jornalísticas coletadas de periódicos brasileiros diversos, os quais constituem fragmentos da vida “real” de Emilia Moncorvo Bandeira de Mello e/ou da vida “real” de um sujeito inventado, Carmen Dolores, lembramos que eles chegam até nós pela voz de diversos outros jornalistas daquela época. São rastros da sua existência que, pela sua fragmentação, pelas brechas entre as informações, nos permitem construir apenas uma imagem especular estilhaçada de seu rosto, de seu corpo e de sua voz nesta narrativa biográfica.

A inclusão dessas informações jornalísticas se justifica pela pretensão de deixar este perfil biográfico o mais ajustado possível a uma referencialidade. Isto é, narramos a sua vida, tendo a voz jornalística como informante, como testemunha desses eventos, apesar de saber da estreita relação – e da impossibilidade de estabelecer limites – entre a narrativa da vida de um sujeito “real’ e da vida de uma personagem ficcional, resultante no perfil biográfico.

Como todo arquivo pressupõe inscrições, marcas, impressões, assim como a decodificação das inscrições e das marcas e o armazenamento e a preservação das impressões, talvez o foco deste capítulo seja muito mais o desejo da preservação da memória do que propriamente a análise crítica da obra, pois, em nossa busca de dados biográficos, não encontramos um acervo montado de Carmen Dolores. Não há correspondências – por mais que suas crônicas denunciem que ela se correspondia com vários intelectuais; não há mais sua ampla biblioteca – referida por críticos de sua época; não há mais objetos pessoais, nem encontramos seus descendentes como testemunhas – por

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mais que os tenhamos procurado; até mesmo as raras fotos encontradas foram aquelas publicadas em periódicos diversos dos primeiros anos de 1900. Não há, também, os textos das conferências, nem o texto da única peça teatral que foi encenada várias vezes, nem manuscritos ou algum rascunho de obra de Carmen Dolores. Do seu acervo, somente as obras literárias em primeira edição foram localizadas, algumas com bastante dificuldade, bem como suas muitas crônicas publicadas em jornais diversos, objeto central de nosso estudo.

Como nos ensina Derrida (1997), parece que um mal radical nos aflige nesse trabalho de recuperação e interpretação dos arquivos, assim como no modo como nos relacionamos com eles, ou seja, na maneira de lembrar, de memorizar, na necessidade de registrar tudo, sem resto, sem perda e com o desejo de transformá-los em monumento. Mas grande parte do arquivo já foi destruída e, da memória, só nos restam fragmentos, vazios, falhas, restos. É com eles que estamos, nesta tese, montando uma espécie de mosaico, encaixando peça a peça, na busca da imagem da mulher, da escritora Emilia, da cronista Carmen Dolores.

Por outro lado, como afirma Cury (1995, p. 58), “a ida aos arquivos pode deslocar visões, fazendo com que sejam revistas ou realocadas concepções sobre escritores e períodos da história literária” e, enquanto “intervenção política”, o papel do leitor crítico “pode transformar a memória ciosamente guardada como um arquivo morto por e para alguns”. É esse intento que nos moveu.

No terceiro capítulo, o corpus de análise foi constituído especificamente das crônicas publicadas por Carmen Dolores na coluna “A Semana” do jornal O Paiz entre 08 de janeiro de 1905 a 14 de agosto de 1910. Como os Estudos Culturais apontam novos caminhos para interpretar a produção jornalística, as crônicas produzidas por uma escritora passam a ser um espaço crítico que possibilita recuperar faces e contribuir na (re)escritura da história da cidade; da história da literatura de autoria feminina; bem como na história da existência da autora como um sujeito marcado pelo gênero. Mas, para isso, é imprescindível escavar fontes primárias, muitas vezes raras, quando não em processo de deterioração, sob as ruínas do tempo. Os jornais da década de 1900 constituem, na nossa pesquisa, essas fontes primárias de onde extraímos crônicas narrativas e crônicas ensaísticas para uma análise temática.

É oportuno ressaltar que a coluna “A Semana” ocupava lugar de destaque naquele importante periódico da grande imprensa. Localizada no lado esquerdo da primeira página, chamava a atenção de todos os leitores do jornal naquela época, fato ambivalente que, por um lado, nos permite pensar que isso pode ter contribuído na formação do seu público

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