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Crimes passionais e a intervenção da justiça restaurativa: possibilidades e benefícios

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Academic year: 2021

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GRANDE DO SUL

MÁRCIA AUREA DEWES

CRIMES PASSIONAIS E A INTERVENÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA: POSSIBILIDADES E BENEFÍCIOS

Santa Rosa (RS) 2018

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MÁRCIA AUREA DEWES

CRIMES PASSIONAIS E A INTERVENÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA: POSSIBILIDADES E BENEFÍCIOS

Monografia final do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Conclusão de Curso – TCC.

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientadora: MSc. Ester Hauser

Santa Rosa (RS) 2018

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Dedico este trabalho à minha sobrinha Charlene Dornelles, sem seu apoio e incentivo não teria cursado a faculdade de Direito. Dedico também ao meu marido Cristiano e às minhas filhas Anandha, Caly e Melyna, vocês são os pilares da minha vida.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço pela saúde, força e coragem durante toda essa longa caminhada.

Agradeço a professora Lurdes Grossmann, que me apresentou a Justiça Restaurativa pressupondo que me apaixonaria pelo tema, estavas certa!

Agradeço a professora Fernanda Serrer, que me conduziu durante o primeiro capítulo do trabalho no momento em que a saúde de minha orientadora Lurdes Grossmann a afastou de nós. Agradeço-te o empenho, dedicação e serenidade.

Agradeço a professora Ester Hauser, por ter “viajado na maionese” e apaixonar-se pelo tema juntamente comigo, acreditando na minha capacidade para executar este trabalho, mesmo diante da escassez de material, por ser um tema recente no Direito Brasileiro e mundial, Agradeço-te o apoio, a “adoção” tardia, a compreensão, a leveza dos encontros, e principalmente a possibilidade de longos debates esclarecedores acerca do tema.

Agradeço a professora Heloisa Argerich, por fazer parte da banca de avaliação, com certeza toda sua experiência e conhecimento ao longo de tantos anos dedicados ao ensino será deveras enriquecedor a este trabalho.

Agradeço a esta Universidade, seu corpo docente, direção e administração.

Agradeço ao “Se Fumo”, grupo de amigos fieis formado pelo Felipe Mezzomo, Catiéli Zientárski, César Schmitt e Aline Bepler. Vocês foram minha família, meu alento, minha alegria e meu sustento durante a jornada enfrentada ao longo deste trabalho e da faculdade.

Agradeço o incentivo e compreensão recebidos de minha mãe Clara, que em inúmeros momentos entendeu minha ausência provocada pelos afazeres da graduação e da monografia.

E a todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formação, o meu muito obrigado!

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“Fazendo a mesma coisa dia após dia, não há de se esperar resultados diferentes.”

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RESUMO

Este trabalho monográfico aborda o tema crimes passionais e a intervenção da justiça restaurativa: possibilidades e benefícios, e tem como objetivo analisar a possibilidade de aplicação da justiça restaurativa em crimes passionais de forma associada ao modelo punitivo positivado, como forma eficaz e mais justa de atender às necessidades de pacificação social, respeito à vítima e à dignidade humana de todos os envolvidos no delito. Para tanto, realizou-se uma pesquisa exploratória, utilizando-realizou-se de procedimentos técnicos do tipo bibliográfico e documental, construído por meio de documentação indireta, por meio da qual foi possível comprovar as hipóteses de que a justiça criminal, atualmente, tem caráter punitivo e não satisfaz as necessidades de justiça plena e restauração da paz social entre os envolvidos em crimes passionais, já que o atual sistema mostra-se incapaz de solucionar o litígio, além de não atender aos preceitos básicos atinentes à dignidade humana, tampouco, estabelece a possibilidade de entendimento e percepção da amplitude do crime; e de que o cunho subjetivo da justiça restaurativa apresenta a possibilidade de atingir com maior facilidade, profundidade e efetividade os envolvidos em crimes passionais, restaurando a paz social, respeitadas as necessidades da vítima e garantidos direitos constitucionais da dignidade humana a todos os envolvidos direta ou indiretamente no crime.

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ABSTRACT

This monographic work deals with the theme of passion crimes and restorative justice intervention: possibilities and benefits, and aims to analyze the possibility of applying restorative justice in crimes of passion in a way associated with the positive punitive model, as an effective and fairer way to meet the needs of social pacification, respect for the victim and the human dignity of all those involved in crime. For that, an exploratory research was carried out, using technical procedures of the bibliographic and documentary type, built through indirect documentation, through which it was possible to prove the hypotheses that the criminal justice system currently has a punitive and does not satisfy the needs of full justice and restoration of social peace among those involved in crimes of passion, since the present system is incapable of solving the litigation, besides not complying with the basic precepts pertaining to human dignity, nor does it establish the possibility understanding and perception of the extent of the crime; and that the subjective nature of restorative justice presents the possibility of achieving with greater ease, depth and effectiveness those involved in crimes of passion, restoring social peace, respecting the needs of the victim and guaranteeing the constitutional rights of human dignity to all those involved directly or indirectly in crime.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 09

1 JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA RESTAURATIVA ... 11

1.1 Justiça restaurativa: introito histórico e conceitual ... 19

1.1.1 Introito histórico ... 19

1.1.2 Conceito de justiça restaurativa ... 21

1.2 Os “sujeitos” do “processo”: considerando o que não é considerado ... 25

1.3 A justiça e as práticas restaurativas: o procedimento e questões correlatas ... 28

1.4 A justiça e as práticas restaurativas no âmbito nacional ... 31

1.5 A justiça e as práticas restaurativas: a questão dos operadores do direito e da rede de apoio ... 32

1.5.1 Dos operadores do direito ... 32

1.5.2 Da rede de apoio ... 35

2 CRIME PASSIONAL, DIGNIDADE HUMANA E RESPONSABILIZAÇÃO RESTAURATIVA: CONCEITOS RELEVANTES À MATÉRIA ... 37

2.1 A concepção de crime passional e as teses sobre tais delitos na doutrina brasileira .. 37

2.2 Dignidade Humana: vítima e ofensor enquanto sujeitos de direito ... 42

2.3 Possibilidades e benefícios da aplicação da justiça restaurativa em crimes passionais . ... 45

2.4 A aplicação da justiça restaurativa em crimes passionais sob o viés dos direitos humanos e manutenção da rede fraterna com restauração de laços afetivos ... 50

CONCLUSÃO ... 54

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata do tema crimes passionais e justiça restaurativa, e propõe-se a avaliar as possibilidades e os benefícios da implementação de procedimentos restaurativos no processo de responsabilização por tais delitos. O estudo objetivou discutir a conveniência da aplicação da justiça restaurativa em crimes que envolvem elementos de passionalidade, de forma associada ao modelo punitivo positivado, como forma eficaz e mais justa de atender às necessidades de pacificação social, respeito à vítima e à dignidade humana de todos os envolvidos no delito.

O estudo da temática tem significativa relevância posto que busca evidenciar a possibilidade da inserção das práticas restaurativas, não como meio alternativo ou substitutivo do sistema punitivo, mas de modo preventivo e contributivo, da justiça, no âmbito do direito penal, mormente em crimes passionais, onde pode atuar de forma mais efetiva, na pacificação social e, preservação da dignidade humana, por meio da restauração de suas relações sociais, destacando-se que, não é um novo meio de justiça, e sim um novo modo de pensar, agir, desde que, aplicado dentro de parâmetros adequados.

Nesse contexto, considerando que o sistema punitivo aplicado na atualidade tem se mostrado ineficaz no seu propósito de ressocialização do sujeito que comete o delito, as práticas restaurativas, tanto como forma preventiva e contributiva de pacificação social, bem como de efetivação dos direitos humanos, podem contribuir de forma efetiva à vítima, ao infrator, ao círculo familiar afetivo envolvido e à sociedade como um todo, senão, como forma de fomentar o debate e enriquecer a reflexão sobre tal matéria.

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atualmente tem caráter punitivo e não satisfaz as necessidades de justiça plena e restauração da paz social entre os envolvidos em crimes passionais, já que o atual sistema mostra-se incapaz de solucionar o litígio, além de não atender aos preceitos básicos atinentes à dignidade humana, tampouco, estabelece a possibilidade de entendimento e percepção da amplitude do crime; e de que o cunho subjetivo da justiça restaurativa apresenta a possibilidade de atingir com maior facilidade, profundidade e efetividade os envolvidos em crimes passionais, restaurando a paz social, respeitadas as necessidades da vítima e garantidos direitos constitucionais da dignidade humana a todos os envolvidos direta ou indiretamente no crime; realizou-se uma pesquisa exploratória, utilizando-se de procedimentos técnicos do tipo bibliográfico e documental, construído por meio de documentação indireta.

O resultado da pesquisa realizada está apresentado em dois capítulos. No primeiro capítulo abordam-se aspectos da justiça retributiva e restaurativa, sendo que após uma breve análise histórica da justiça restaurativa, para uma melhor compreensão da mesma, adentrou-se no âmbito conceitual, apresentando os sujeitos do processo, os procedimentos e ainda as práticas restaurativas no âmbito nacional, trazendo os operadores do direito e da rede de apoio.

Já no segundo capítulo a abordagem se dá em torno das questões que permeiam o crime passional, considerando a concepção desse tipo de crime e as teses sobre tais delitos na doutrina brasileira. Ainda neste capítulo apresenta-se a dignidade humana, considerando vítima e ofensor como sujeitos de direito; além de tratar das possibilidades e benefícios da aplicação da justiça restaurativa nos crimes passionais, sob o viés dos direitos humanos e manutenção da rede fraterna com restauração de laços afetivos.

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1 JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA RESTAURATIVA

O sistema de justiça penal tradicional, por sua natureza retributiva, enfrenta dificuldades de toda sorte, necessitando de adequações e alternativas prementes, para que haja a manutenção da paz social e o respeito aos direitos humanos, de modo a não se instalar a insegurança jurídica no país provocando revolta e completa descrença nos Poderes Judiciário e Legislativo.

O sistema jurisdicional, necessita adequar-se ao momento social que se vive na atualidade, “[...] centrado na celeridade e no risco das relações, na transposição dos espaços geográficos de produção econômica e jurídica, na construção de novos locais de decisão e de influência, na conflitividade complexa [...]” (BEDIN; LUCAS, 2013, p. 46). Ainda, segundo os autores, tais características sociais, do mundo contemporâneo são a origem da crise das instituições modernas, não permanecendo incólume, neste cenário, o Poder Judiciário e concluem:

Definitivamente, a jurisdição precisa se reinventar em termos quantitativos e qualificativos. Precisa construir uma nova dinâmica de intervenção, mais criativa, conectada com as demandas do tempo em que opera, ágil para fazer frente à complexidade que afeta todos os níveis da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, suficiente madura e habilidosa para conviver e dialogar com novos espaços de produção do direito e da decisão jurídica. (BEDIN; LUCAS, 2013, p. 46).

Neste momento de pós-modernidade, exige-se, cada vez mais, a construção de uma justiça efetiva, consistente, resolutiva, que seja capaz de atender as necessidades das pessoas em conflito. No entanto, a justiça retributiva tradicional, demonstra-se incapaz de oferecer respostas adequadas, especialmente porque, segundo Bacelar e Santos (2016, p. 77) nela “

o

método é adversarial e o raciocínio é puramente dialético. De um conflito entre pessoas, analisado sob o prisma da lide em disputa, resulta sempre vencedor e vencido.” Na realidade o que se abstrai é que existe

[...] uma falsa ideia de que, a sentença do juiz, aplicando a lei ao caso concreto, pacifica a sociedade. Descabe ao magistrado, na técnica processual, conhecer de qualquer fato, argumento, justificativa ou razão que não constituam objeto do pedido, competindo‑lhe apenas decidir a lide nos limites em que foi proposta. (BACELLAR; SANTOS, 2016, p. 78).

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garantindo assim que a imagem seja preservada no anseio de recuperação do delinquente. Sendo a pena normatizada pelo Estado, esta passa a ter um fim social e adequada ao delito. A pena assume o fim de retribuição, “[...] a culpa do autor deve ser compensada com a imposição de um mal, que é a pena.” (BITENCOURT, 2003, p. 68). No mesmo sentido, Gimbert Ordieg, citado por Bitencourt (2003, p. 65), “[...] entende que a pena constitui um recurso elementar com que conta o Estado, e ao qual recorre, quando necessário, para tornar possível a convivência em sociedade.”

Com efeito, a evolução da pena fez com que diversas teorias surgissem, conforme cada momento histórico. Dentre essas teorias, citam-se a absoluta ou retributiva e as teorias preventivas. Segundo Shecaira e Corrêa Júnior (2002), várias foram as justificativas dadas no decorrer da história para fundamentar e legitimar a repressão da delinquência mediante a ação do Estado. Dessa forma, surgiram duas teorias genéricas que resumem a tentativa de legitimar a intervenção penal, seja tendo como fundamento a ideia de “justiça” da punição (teoria absoluta ou retributiva), seja atribuindo à pena uma finalidade socialmente útil de prevenção de novos crimes, mediante intimidação, neutralização ou reinserção social do infrator (teoria relativa ou preventiva).

Neste sentido, em que pese a visão tradicional, que atribui ao Direito Penal uma tarefa instrumental de prevenção e controle da violência na sociedade, evidencia-se um grande descompasso entre a real operacionalidade do sistema e os propósitos declarados da justiça penal, de base retributiva/preventiva. Segundo Queiroz (2014), a discussão sobre os limites e fins da pena é um tema político, uma vez que na perspectiva do Estado é uma das formas de gestão política de conflitos, de modo que cada Estado exige um modelo específico de direito penal, que é influenciado pelo contexto político, econômico e social daquele momento, lembrando que cada sociedade apresenta razões diversas para castigar ou não. E mais, afirma que a maioria das infrações penais poderia ser abolida porque

[...] as leis penais pressupõem, de parte de seus destinatários (potenciais criminosos), uma regularidade de expectativas, emoções, instintos e interesses que simplesmente não existe. É que no fundo praticamos crimes pelas mesmas razões que não os praticamos, isto é, porque temos ou não motivações para tanto; e essas motivações variam de pessoa para pessoa e são sempre novas. (QUEIROZ, 2014, p. 397).

O mesmo autor refere ainda, que há duas correntes político-criminais relevantes quando da análise das funções da pena: as legitimadoras, que “reconhecem, sob os mais

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diversos fundamentos (absolutos, relativos ou mistos), legitimidade ao Estado para intervir na liberdade dos cidadãos por meio do direito penal, seja como retribuição, seja como prevenção”, e as deslegitimadoras, que segundo o autor, “[...] negam semelhante legitimidade, por considerar a intervenção penal desnecessária, imediata (perspectiva abolicionista) ou mediatamente (perspectiva minimalista radical).” (QUEIROZ, 2014, p. 396).

Acerca das correntes legitimadoras, englobam-se nesta espécie as Teorias Absolutas, na qual o direito penal tem um fim em si mesmo, sendo seus expoentes Kant (teoria da retribuição moral) e Hegel (teoria da retribuição jurídica). As ideias de Kant revelam que quem não cumpre as disposições legais deve ter a pena aplicada porque houve infringência à lei, com o objetivo de realizar a justiça em razão de que a aplicação da pena deriva da simples violação da lei.

De acordo com as reflexões kantianas, quem não cumpre as disposições legais não é digno do direito da cidadania. Nesses termos, é obrigação do soberano castigar “impiedosamente” aquele que transgrediu a lei. Kant entendia que a lei como um imperativo categórico, isto é, como aquele mandamento que “representasse uma ação em si mesma, sem referência a nenhum outro fim, como objetivamente necessária.” (BITENCOURT, 2003, p. 62).

Para Kant (apud BITENCOURT, 2003, p. 70), o Direito é o conjunto de condições através das quais o arbítrio de um, pode concordar com o arbítrio do outro, seguindo uma lei universal ou geral. Deduz-se que o princípio universal do Direito “[...] é justa toda a ação que por si, não é um obstáculo à conformidade da liberdade de arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo as leis universais.”

A tese usada por Hegel é o contrário da Kantiana, pois para ele a pena deve retribuir ao delinquente o crime praticado, e, de acordo com Bitencourt (2003, p. 72), esta tese pode ser resumida na conhecida frase de Hegel: “[...] a pena é a negação da negação do Direito.”

Dessa feita, observa-se a diferenciação entre Kant e Hegel. Este último, na sua fundamentação, encontra sua justificação na necessidade de restabelecer a vigência da “vontade geral”, simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pela vontade do delinquente,

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ter-se-á de negar esta negação através do castigo penal para que surja de novo a afirmação da vontade geral.

Neste contexto, ensina Hegel (apud BITENCOURT, 2003) que a pena é uma maneira de compensar o delito que tenha sido cometido como forma de recuperar o equilíbrio perdido. De acordo com a teoria preventiva, através da pena busca-se a prevenção da prática do crime, ou seja, procura-se inibir a possibilidade da prática de novos fatos delituosos e não retribuir o fato delitivo.

No âmbito de tais teorias, percebe-se, há exacerbada preocupação com punição, segregação, e com justiça, compreendida como vingança, [pelo menos a noção que, culturalmente, o povo tem sobre ela] feita nos moldes do “clamor público”, incitado constantemente por uma mídia completamente “livre” [entenda-se, liberta do ônus da responsabilidade de reparar os danos sociais causados pelos “furos” de reportagem]. Mesmo a proposição de leis mais severas, não parece ser o caminho para uma justiça efetiva, pois fomenta a manutenção das estruturas punitivas/retributivas, seguindo a fórmula desgastada, segundo Zehr (2008), de uma resposta violenta [violência na forma lícita e legitimada] à um delito violento [forma ilícita de violência]. Cabe, neste momento, diante da clara ineficácia da justiça retributiva, promover uma mudança cultural, de maneira a possibilitar a introdução de novos métodos de solução de conflitos lembrando que,

[...] as premissas do monopólio jurisdicional (da substituição da vontade das partes pela vontade do estado‑juiz, do controle social, da sanção, do controle da ordem familiar, da satisfação das necessidades comunitárias, da aplicação impositiva da lei aos casos concretos para a melhor coordenação dos interesses privados) são a base do treinamento dos operadores do direito (servidores da justiça, policiais, promotores de justiça, juiz, advogado, defensor público) e dos órgãos de decisão (tribunais).Todos atuam no processo civil de acordo com o método adversarial com solução adjudicada (heterocompositiva) em uma verdadeira cultura da sentença e no processo penal, com base no modelo repressivo‑punitivo (justiça retributiva).Esses valores (polêmicos do ponto de vista político e moral) foram sendo repassados de geração a geração, e tanto a cultura da sentença quanto à ideia repressiva‑punitiva passaram a ser aceitos em uma concepção geral, quase equiparada à opinião pública. (BACELLAR; SANTOS, 2016, p. 77).

Ainda, no tocante à morosidade, convém ressaltar que, em razão desta, as partes envolvidas no conflito permanecem nesta condição por um tempo exacerbado e desproporcional. O trâmite que enseja a aplicação das normas processuais, os prazos, enfim, todo aparato jurídico necessário à solução do litígio, demanda tempo e é oneroso, tanto para

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as partes quanto para o Estado, custo, esse, elevado e que não compreende apenas o custo econômico, mas também o custo pessoal, e que alimenta cifras ocultas. A tais cifras que,

[...] os sociólogos denominam cifra obscura da criminalidade (dark rate, formada pelos crimes não reportados à polícia e, portanto, desconhecidos) é preciso acrescentar uma cifra não menos obscura, porém mais inquietante e intolerável: aquela formada pelo número de inocentes processados e, por vezes, condenados. Chamarei cifra de ineficiência a primeira dessas cifras e cifra de injustiça a segunda, na qual se incluem: a) os inocentes reconhecidos como tais em sentenças de absolvição após haverem sofrido processo penal e, em ocasiões, prisão preventiva; b) os inocentes condenados por sentença judicial e ulteriormente absolvidos por conta de um procedimento de revisão; c) as vítimas, cujo número jamais se poderá calcular - verdadeira cifra obscura da injustiça - dos erros judiciais não reparados. (FERRAJOLI apud ROLIN, 2006, p. 6).

Neste tocante, sobre cifras, cabe falar sobre as prisões provisórias1, que instrumentam o processo penal e abarrotam o sistema penitenciário, enquanto o judiciário rema freneticamente para dar conta da demanda, infelizmente sem sucesso. Assim, encarcerados indevidamente, inúmeros brasileiros aguardam a aplicação do devido processo legal, o que por certo aumenta o sentimento de injustiça, pois não raro as prisões provisórias duram tempo excessivo. Esse sentimento em nada contribui para que o segregado respeite normas, que não o respeitam, contribuindo para o aumento de outro índice, o de reincidência.

Hodiernamente, o sistema de justiça tradicional prima pela retirada do poder de decisão dos envolvidos. O Estado reservou para si o direito de punir, atribuindo à justiça caráter impessoal, abstrato, essencialmente lógico [se está na lei, é crime, aplica-se a punição - segregação ou outra pena - e assim “resolve-se” o “problema”], e, neste processo, deixou de considerar as necessidades das partes envolvidas no litígio, não produzindo, deste modo, soluções que atinjam a raiz dos conflitos, o que mantem as partes como adversários e conflitantes, às vezes por toda a vida. E isso, essa falta de empoderamento2 das partes em não se envolver verdadeiramente na resolução do conflito, faz com que o criminoso cumpra sua pena sem fazer qualquer reflexão sobre a norma violada, o que é verificado pelos altos índices

1

Segundo dados do INFOPEN (2016), o número de prisões preventivas e provisórias no percentual de 40% da população carcerária é alarmante, e contribui para o volume total de encarcerados de forma negativa. Impera a solução deste problema, de modo a “aliviar” o sistema penitenciário e efetivar o uso de tal procedimento segregativo, utilizando-o de para atingir aos fins a que se propõe, garantindo direitos positivados na CF/88. 2

Para Howard Zehr (2008), o empoderamento traduz-se no poder sobre seu corpo, suas emoções, suas propriedades, exemplifica, as vítimas, após a ofensa, tendem a acreditar que “perderam” o controle de sua propriedade, de seu corpo e de suas emoções, e o autor propõe que o envolvimento das partes com o processo judicial pode significar a devolução do senso de poder, não só à vítima quanto ao agressor, contribuindo positivamente na resolução do conflito.

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de reincidência3. Pode-se dizer que,

[...] no paradigma punitivo, as perguntas feitas são: “Quem fez? Transgrediu a lei? Teve culpa? Em caso positivo, qual a pena merecida?” Nesse cenário, não importa o que teria levado o ofensor a enveredar pelo caminho da transgressão, tampouco, como seria possível atender às necessidades causadoras da violência para fins de que o ofensor tome um caminho diferente, tornando‑se a imposição da pena mais importante do que dar novos rumos àquele comportamento errado. (SALMASO, 2016, p. 30).

Importante salientar que, a Carta Constitucional brasileira de 1988, é evento marcante de um novo direito nacional no que tange aos direitos humanos, o que permite e imprime a necessidade de interpretação da legislação infraconstitucional à luz dos valores insculpidos na CF/88, em especial o valor da dignidade da pessoa humana. Ao mesmo tempo, temos normas vigentes em códex que datam de até seis décadas, como o caso do atual Código Penal brasileiro. Em que pese esta interpretação principiológica caminhar a passos largos nos dias atuais, a Lei Maior conta com quase 30 anos, vários dispositivos legais em sede de direito penal estão completamente obsoletos ou fora do contexto constitucional.

A que se considerar, diante de tal realidade, os números divulgados pelos relatórios governamentais que apontam o aumento de transgressões. Apesar de tipificações com punições mais severas, verifica-se um crescente número de crimes, que se manifestam também em razão de discriminação de gênero, raça ou idade dos atingidos, o que reverbera em uma constante e premente busca de proteção, fomentando a inserção de normas de maior amplitude punitiva e provoca o crescimento exacerbado da população carcerária, aumentando a crise do sistema penitenciário brasileiro. Sendo assim, cabe colacionar alguns dados correlatos que ilustram o aduzido:

Desde o ano de 1993 até 2013, ao passo que a população brasileira cresceu pouco mais que um terço, o número de aprisionados nas cadeias, observou um aumento de 355%, atingindo um total de quase 600.000 presos, de forma a colocar o Brasil em quarto lugar no ranking mundial de encarceramento. Atualmente são enviados ao sistema penitenciário nacional, 70 pessoas todos os dias, de forma a imprimir um aumento na população carcerária de 7,5% ao ano, frente ao crescimento de 1,5%, anual da população em geral. De outra banda, o sistema punitivo também deixa de trazer qualquer reflexão aos apenados quanto ao valor da norma que foi violada e, ainda, não imprime medo, para fins de evitar outros comportamentos em desrespeito

3

IPEA (2015, p.11), “a taxa de reincidência no Brasil é de 70%, como afirmou recentemente o então presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso. [...] os dados alarmantes chamam a atenção para a necessidade de estudos aprofundados sobre a função, ou não, ressocializadora das prisões, o fenômeno da reincidência criminal e seus fatores determinantes, bem como sobre a eficácia de dispositivos alternativos como meios de contornar esta crise no sistema prisional brasileiro.”

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às leis, pois os índices de reincidência– de condenados que cumprem suas penas e tornam a praticar delitos– gira em torno de 70% a 80%. (SALMASO, 2016, p. 19).

Cumpre destacar, ainda, que grande parte da doutrina do Direito Penal ocupa-se de, explicar e fundamentar a pena a partir de duas ideias basilares: a retribuição e a prevenção, separadamente ou combinadas. Assim, quanto à retribuição, o mal da pena, com previsão legal e de aplicação estatal, apagaria e negaria o mal causado pelo crime, recompondo destarte o ordenamento jurídico. E no tocante à prevenção, na presunção de que a ameaça de punibilidade e a efetiva imposição da pena ao infrator teria caráter de dissuasão da prática de crimes aos demais pertencentes da comunidade, devido sua reclusão do convívio social, sendo este fator determinante para que não houvesse nova delinquência. Por fim, alguns doutrinadores aventam uma [possível] finalidade de reeducação do condenado durante o cumprimento da pena.

Diante de tais considerações, urge falar na adequação do sistema judiciário brasileiro aos seus jurisdicionados e aos avanços da sociedade na qual se insere. É imprescindível a evolução do direito, de modo a cumprir sua real função, e adequar-se aos propósitos que lhe são impostos na esperança de um sistema judiciário mais justo, efetivo e humano ao povo brasileiro, afinal, “o Direito não é uma ciência estática, evolui como evolui a pessoa humana” (CHALITA, [s.d.]), isto é, conforme se modificam os conceitos da sociedade que este regula. Sobre a evolução e importância do conceito de justiça segue o autor:

Refletir sobre a evolução do conceito de justiça é de fundamental importância para a compreensão das circunstâncias do mundo contemporâneo, e também para a compreensão dos desafios lançados aos que se propõem a construir uma civilização norteada pelos valores de dignidade da pessoa humana, da ética, da responsabilidade partilhada. (CHALITA, [s.d.]).

Deste modo, alertados sobre os números relativos ao judiciário brasileiro, percebendo a necessidade de mudanças, importa comparar de forma objetiva os principais aspectos das justiças criminal e restaurativa, principalmente, por ser esta última, uma proposição de evolução contributiva4 para o atual sistema judiciário. Nesse sentido, retratando de forma objetiva os aspectos de maior relevância da justiça criminal ou retributiva, Johnstone (apud ROLIN, 2006, p. 9-10, grifo nosso):

4

A linha a que se propõe o presente trabalho é a de aliar as justiças retributiva e restaurativa, haja visto o caráter essencialmente voluntário desta, de forma contributiva e não substitutiva de procedimento.

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No modelo de Justiça Criminal:

1) O foco da atenção oficial é direcionado para o ato infracional e para seu autor. 2) Esse ato é construído como uma transgressão das leis fundamentais da sociedade [...].

3) O Estado inicia a ação legal contra o infrator em nome da sociedade.

4) O Estado também detém o poder exclusivo de dar continuidade ou não à ação [...].

5) [...] o infrator é punido – isto é: alguma perda ou sofrimento lhe é imposta. [...]. 6) Este processo pressupõe um considerável estigma sobre todos aqueles que forem considerados culpados – na verdade, há um estigma inclusive sobre a situação de ser suspeito. [...].

7) Em função dos danos causados por esse processo, se sustenta que é preciso oferecer aos acusados toda a sorte de garantias processuais de tal forma que se reduzam os riscos de injustiças. [...].

8) Os acusados possuem o direito de mentir em sua própria defesa.

Complementando o raciocínio, o mesmo autor elenca os principais pontos em relação à justiça restaurativa:

No modelo de Justiça Restaurativa:

1) [...] atenção no ato danoso e nos prejuízos que resultaram dele.[...] envolve um olhar mais amplo que se preocupa também com a situação da vítima;

2) [...] se preocupa com o dano produzido à sociedade mais do que com o fato de ter havido uma violação da Lei e sustenta que, por mais importante que seja a repercussão social da infração, essa importância será sempre secundária quando comparada com os prejuízos e o sofrimento que foram impostos diretamente à vítima;

3) [...] o Estado inicia a ação contra o acusado. [...] a abordagem restaurativa parte do pressuposto de que a iniciativa deve ser feita em nome da vítima e não em nome da sociedade [...] toda a abordagem está direcionada para a conquista de um acordo entre as partes.

4) Em algumas abordagens [...] presume-se que a vergonha experimentada pelo infrator diante de pessoas que lhe são caras [...] cumpre um papel positivo em todo o processo [...] estaríamos diante de um determinado estigma. A diferença, [...] em um contexto quase privado. O objetivo das audiências e encontros, de qualquer forma, é a superação da vergonha através de uma legitimada integração do infrator à comunidade. (JOHNSTONE apud ROLIN, 2006, p.9-10, grifo nosso).

Pode-se dizer então, que a justiça retributiva se vale da violência da pena como forma de compensação à violência do crime e, por ter caráter punitivo/vingativo, tende a estigmatizar o condenado não o responsabilizando adequadamente, além de não resolver os problemas oriundos da infração, não atender as necessidades da vítima, em pouco contribuindo, portanto, para a resolução do conflito ou para a redução da violência. Tal realidade exige novos modelos, que partam de uma postura positiva e ativa de construção da realidade, baseada na reafirmação da dignidade das pessoas envolvidas nos conflitos, no atendimento de suas necessidades e em uma forma adequada de responsabilização de agressores. Isso pode ser possível através da justiça restaurativa. (YAZBEK, 2016).

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Este “novo” formato de justiça é uma proposta de “troca de lentes” (ZEHR, 2008), em que o crime é visto por outro ângulo, em que há envolvimento da vítima, do criminoso e da comunidade relacionada. É uma forma contributiva, não alternativa, ao atual modelo de justiça, a partir do qual, de forma associada, coordenada e ramificada, pode-se encontrar uma nova fórmula para amenizar este arcaico dilema social que é o conflito humano.

Neste ponto, torna-se relevante apresentar os principais tópicos relacionados a justiça restaurativa, para entendimento de suas especificidades e principalmente para uma apreciação direcionada dos propósitos que almeja, o que se passa a fazer no próximo item.

1.1 Justiça restaurativa: introito histórico e conceitual

As duas grandes guerras mundiais foram eventos marcados pela violação aos direitos humanos. Ainda que, os Estados vencedores e vencidos, tenham celebrado Tratados de Paz5, inúmeras atrocidades ocorreram, e não foi possível evitar mais torturas e toda sorte de desrespeito à natureza humana. Neste contexto de conflito, a nível mundial, surge um novo paradigma onde o ser humano deve ser o centro das atividades desenvolvidas pelos órgãos de governo. Este fato, gerou um olhar mais específico também sobre as formas de justiça do homem, onde se insere uma justiça com prioridade no ser humano, abrindo as portas para a análise da Justiça Restaurativa, da qual se irá, na sequência, a analisar histórico e conceito.

1.1.1 Introito histórico

A justiça restaurativa surge nas décadas de 1970 e 1980, nos Estados Unidos sob a forma de mediação entre réu e vítima, e as práticas a ela associadas sofrem a influência histórica de cada época, assumindo nomes e formas de aplicação diversos conforme o contexto histórico em que estão inseridas, contudo subsistindo ao longo dos tempos. Seu uso como modelo de organização social foi registrado em comunidades primitivas na Nova Zelândia, Austrália e Canadá. (PALLAMOLLA, 2009).

5

Depois da primeira guerra mundial foram feitos vários tratados de paz, destacando o tratado de Versalhes. Esses tratados de paz (principalmente o tratado de Versalhes) foram feitos para demonstrar superioridade e para castigar os países perdedores. São eles: Tratado de Versalhes, 14 Pontos de Wilson, Tratado de Saint-Germain, Tratado de Trianon, Tratado de Neuilly e os tratados de Sèvres e de Lausanne.

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Cumpre registrar, que houve um crescente interesse pelo assunto a partir do ano de 2000 e a justiça restaurativa tornou-se alvo de debates pelo mundo, alavancados pela Declaração de Viena sobre Criminalidade e Justiça, que trata do desenvolvimento da justiça restaurativa como forma de promoção dos direitos, interesses e necessidades de vítimas, ofensores, comunidade, e demais envolvidos no conflito. A partir de então, inúmeros outros movimentos foram realizados no sentido de introduzir e efetivar a Justiça Restaurativa em vários países do mundo.

Podem ser citados alguns dos movimentos que buscaram desenvolver a justiça restaurativa, a Declaração de Bangkok em 2005, na Europa, o Fórum Europeu de Mediação Penal e Justiça Restaurativa, já na América Latina, a Carta da Costa Rica, é o marco claro desse desenvolvimento. Mais especificamente temos o marco referencial positivado pela Organização das Nações Unidas a Resolução 2002/12 (ONU, 2002) que trata detalhadamente da justiça restaurativa que deverá ser instituída e observada pelos Estados-membros.

A fundação do Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa, no auditório da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo no mês de agosto de 2007, foi importante referência no desenvolvimento e exploração das bases teóricas e práticas do paradigma em nosso país. Anteriormente a esta data, remete, o relatório da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul [AJURIS]: “A paz que nasce de uma nova justiça - Paz Restaurativa – 2012 - 2013”, sobre a experiência gaúcha de justiça restaurativa em Caxias do Sul, mais precisamente, ao ano de 2005 como marco de introdução da Justiça Restaurativa no Brasil, ainda de forma tímida e experimental, porém com caráter decisório para a evolução da justiça restaurativa brasileira, vejamos:

A introdução oficial da Justiça Restaurativa no Brasil aconteceu a partir de 2005, através do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”, iniciativa da Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça em colaboração com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Foram criados três projetos-piloto em Porto Alegre (RS), Brasília (DF) e em São Caetano do Sul (SP). Em Porto Alegre tomou forma o Projeto Justiça para o Século 21, um articulado de ações interinstitucionais liderados pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) com o objetivo de difundir a Justiça Restaurativa na pacificação de conflitos e violências envolvendo crianças, adolescentes e seu entorno familiar e comunitário. (BRANCHER, 2013, p.16).

Porém, a promulgação da Resolução nº 225, em 31 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Justiça [CNJ], que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no

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âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências, cria a possibilidade real de um olhar diferenciado acerca das concepções, estruturas e modos de administrar a Justiça no país. Esta resolução ganhou espaço devido à repercussão e ao trabalho dos envolvidos nos projetos-piloto instalados em 2005. Após 10 anos, com a experiência em solo brasileiro, adequando-se os procedimentos restaurativos, até então aplicados a nível internacional, às necessidades e realidade brasileira, houve um crescente interesse pela Justiça Restaurativa e vislumbra-se a possibilidade de um salto em termos de justiça no país.

Após essa breve análise histórica da Justiça restaurativa, para um melhor entendimento da mesma, cabe adentrar no âmbito conceitual, o que se passa a fazer no próximo item.

1.1.2 Conceito de justiça restaurativa

O passo primordial para aproximar o entendimento acerca do que é a que se propõe a justiça restaurativa, é perceber que, para este tipo de justiça, é necessário ver as condutas antijurídicas de outro modo, ou seja, pelo anglo inverso, perceber que antes de ocorrer o fato descrito na norma ocorre uma violação nas relações usuais na vida da vítima e do infrator e dentro de uma comunidade.

Sob este prisma, é relevante uma análise das obrigações, necessidades e do trauma que advém deste ato antijurídico, com o objetivo de restaurar a paz entre os envolvidos, oportunizando e encorajando estas pessoas a entabular um acordo através do diálogo, porque “o objeto de trabalho da justiça restaurativa não é o delito, mas sim o con‼ito consequente ao delito. [...] A pena não dirime o con‼ito, objeto maior dos programas restaurativos.”. (ALMEIDA, 2016).

As afirmações encontradas no relatório Paz Restaurativa, corroboram e fundamentam as teses levantadas sobre esta nova forma de analisar, ou novo ângulo de observação do fato, e das demais implicações do crime não visto apenas sob a ótica da antijuricidade punível, e referenciam que,

[...] a grande diferença entre a Justiça Restaurativa e a tradicional está na abordagem. [...]A JR propõe que os ofensores devem entender as consequências de seu comportamento. Além disso, devem assumir a responsabilidade de corrigir a situação na medida do possível, tanto concreta como simbolicamente. Zehr afirma

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que a verdadeira responsabilidade consiste em olhar de frente para os atos praticados, significa estimular o ofensor a compreender o impacto de seu comportamento, os danos que causou – e instá-lo a adotar medidas para corrigir tudo o que for possível. (ZEHR, 1977 apud BRANCHER, 2013, p. 8).

As partes em conflito são os sujeitos principais deste processo social e a eles cabe, com o auxílio da justiça, a assunção das responsabilidades pelo delito, ter as ofensas, provindas do fato, dirimidas, e finalmente, atingir um resultado que as beneficie de forma terapêutica numa espécie de cura de uma ferida aberta. É perceptível dentro deste processo a necessidade de restaurar os relacionamentos para um futuro melhor, deixando de lado a velha ideia de concentrar-se na culpa, nos fatos passados. É o que elucida Wachtel (1997, p.14), na obra “Justiça Verdadeira”:

A justiça preocupa-se apenas em determinar culpados e aplicar penas. Não há preocupação com o reestabelecimento ou reparação de danos, portanto, precisa acontecer algo mais, além do processo na justiça, para que as vítimas, suas famílias e a comunidade obtenham justiça verdadeira.

O conceito de Justiça Restaurativa que tem maior aceitação entre os estudiosos do assunto possivelmente seja o de Tony Marshall (1998 apud BRANCHER, 2013, p.10), que a define como “um processo através do qual todas as partes envolvidas em uma ofensa particular se reúnem para resolver coletivamente como lidar com a consequência da ofensa e as suas implicações para o futuro.”

Levando em consideração as definições e ideias que permeiam a justiça restaurativa, a Resolução nº 225/2016, conceitua-a em seu artigo 1º como,

[...] um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado [...]. (BRASIL, 2016).

Especificando que para a sua realização é imprescindível a participação do ofensor, e, se houver, esta também deverá participar, além das famílias e dos demais envolvidos na situação que gerou a necessidade da prática, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato, bem como de um ou mais facilitadores restaurativos (BRASIL, 2016).

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Fica determinado também, que estas práticas “serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras” (BRASIL, 2016).

E a Resolução nº 225/2016 ainda especifica que o foco das práticas restaurativas será

[...] a satisfação das necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro. (BRASIL, 2016).

Com base nas definições que esta Resolução apresenta, evidencia-se que a base da justiça restaurativa está firmada no comprometimento de todos os envolvidos, abrangendo mais do que o ofensor e a vítima, buscando alcançar suas famílias e demais membros da sociedade a que pertencem.

As práticas restaurativas são orientadas pelos princípios da “[...] a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade” conforme expresso no artigo 2º da Resolução nº 225/2016. (BRASIL, 2016).

A partir do conceito de justiça restaurativa e dos princípios que a norteiam, percebem-se enfoques diferenciados sobre o mesmo fato com conpercebem-sequente produção de resultados diversos, ou seja, é preciso ver o crime, o criminoso e a conduta antijurídica com olhar mais amplo e humano, de modo a englobar todas as possíveis origens do conflito, de forma a dirimi-lo com eficácia e dignidade, restaurando o maior número de pontos conflitantes em prol de uma justiça verdadeira.

Percebe-se neste conflito três elementos humanos que necessitam de restauração de suas relações sociais. Por óbvio que é impossível, tampouco desejável, em alguns casos, o

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retorno ao exato status quo ante6, porém necessário é perceber com maior profundidade que além do conflito inter partes vigora um conflito intra parte, ou seja, além do que é visível ou perceptível a olho nu, há algo mais profundo e subjetivo que são os conflitos internos da vítima e do criminoso, e mais, criam-se micro conflitos entre estes últimos e o grupo social que integram.

A justiça restaurativa busca, sobretudo, com base no acordo e no diálogo, atender as necessidades das pessoas envolvidas, possibilitando que esses indivíduos identifiquem o que de fato aconteceu, de modo a tomar consciência sobre seus atos e os efeitos que causaram, e a partir dessa percepção, possam construir soluções de reparação.

Por meio da justiça restaurativa se busca assegurar um espaço de diálogo qualificado onde as pessoas possam expor seus sentimentos e necessidades oriundas do conflito em questão, assumindo as devidas responsabilidades pelos atos danosos, de forma que consigam encerrar os episódios desastrosos de suas vidas, mudando suas posições de vítimas e infratores (ZEHR, 2008). Assim, no caso da vítima, o trabalho da justiça restaurativa é voltado ao empoderamento, o qual se acontece por meio da fala e das manifestações da dor que sente; por meio do qual ocorre o resgate da dignidade e a igualdade rompida com a violência sofrida e, na medida do possível, procura reparar o dano sofrido. Já no caso do ofensor, busca-se, a medida em que este tem a oportunidade de ouvir a vítima, que tome consciência dos reflexos de seu ato na vida dela, bem como assegurar um processo de autorresponsabilização, sempre como sujeito e não mero objeto do processo. O foco da justiça restaurativa está na restauração das pessoas e suas relações, permitindo que os envolvidos tenham uma nova visão do outro e também de si.

Considerando-se esta condição, abre-se tópico para breve análise, com caráter situacional, das percepções e micro conflitos da vítima e do autor, e destes em relação aos seus grupos sociais, por considerar relevante a análise de tais situações conflitantes pois, via de regra, desconsideradas no tratamento judicial de conflitos vigente.

6

Quando os defensores da Justiça Restaurativa falam em “restaurar as relações sociais”, não obstante, têm em mente um objetivo mais complexo do que repor o status quo ante. A razão óbvia é que a situação anterior ao ato que produziu o dano pode ser, ela mesma, injusta. (ROLIN, 2006, p. 14).

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1.2 Os “sujeitos” do “processo”: considerando o que não é considerado

Academicamente falando, poderia se comparar o título deste tópico a títulos e subtítulos de doutrinas de processo civil e processo penal. Em que pese neste tipo de obra, os sujeitos envolvidos no conflito terem nomes diferenciados, como autor e réu, exequente e executado, vítima e acusado, dentre incontáveis nomenclaturas [por certo, necessárias em sede de jurisdição, e bastante criativas], basicamente as pessoas envolvidas no conflito participam do procedimento através de depoimentos e nos autos do processo, aparecem como nomes, números de RG e CPF, através da qualificação.

Ainda, na resolução do conflito, sua intervenção acaba sendo suprimida pelo Estado e representantes legais, conduzindo a um procedimento de caráter essencialmente instrumental e metodológico, com verdades formais e reais, e em sede de direito penal, de avaliação de conduta típica seguida de punição. Pretensamente busca-se a justiça para as partes com objetivo de pacificação social, porém de forma impositiva e violenta, extirpando do sujeito o seu poder de decisão, sua liberdade de escolha no tocante a resolver tal situação.

Por certo que aqui cabe aduzir a perda da capacidade de diálogo, intensificando a individualização, que enfrenta o mundo pós-moderno, como bem retrata Bauman7, e que é altamente contributiva para o desenvolvimento do conflito. E, finalmente, porém não menos importante, a manipulação midiática em massa8, criando padrões comportamentais e culturais, em questão de horas, utilizando-se negligentemente do poder de informação para criar estereótipos, tipificar condutas, criar modelos e moldes aplicáveis indiscriminadamente na busca incessante do famigerado sucesso pessoal/profissional.

Ora, a lei é abstrata e o conflito é concreto. Assim, como generalizar por meio da

7“E assim o espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas. Ele falha em desempenhar seu antigo papel de lugar de encontro e diálogo para problemas privados e questões públicas. No lado receptor das pressões individualizantes, os indivíduos foram, gradual, mas consistentemente, despidos de sua armadura protetora de cidadania e tiveram seus interesses e suas habilidades de cidadãos expropriados. Como resultado, a possibilidade de que o indivíduo de jure algum dia se torne um indivíduo de facto (isto é, que comande os recursos indispensáveis para a genuína autodeterminação) fica mais e mais remota.”.(BAUMAN, 2008, p.141)

8A exemplo do referido, o desabafo de um Ministro do STJ: “

O ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça, criticou nesta sexta-feira (19/8) a pressão que a imprensa faz para que o Judiciário condene pessoas sem garantias e respeito ao devido processo legal. Na opinião do ministro, isso faz com que muitas vezes os juízes se tornem reféns da mídia não só em relação às matérias que julgam, mas também a respeito da sua própria visão de julgador. “Pobre do país que tem sua magistratura refém da mídia”, disse, durante evento no Conselho da Justiça Federal, em Brasília, que debate direito constitucional e administrativo.”. (GALLI, 2016).

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normatização todas peculiaridades do fato conflitivo? Mesmo na produção das provas, na composição do inquérito, cada passo é “terceirizado”9

obrigatoriamente pelo tipo de procedimento adotado na justiça retributiva. E o “eu”, a parte do “eu” que está envolvida no conflito, a família, filhos, amigos, emprego? E o amor próprio, o medo, a insegurança, a vergonha? E o estigma, as falas maliciosas, o preconceito e solidão? Para que seja verdadeira, a justiça deve ser humana, e para ser humana, a justiça deve restaurar, reconstruir, perceber o humano, o que há de mais sagrado o “eu”, sem o qual não existe o bem maior protegido juridicamente que é a vida.

Nesse sentido, de forma clara e concisa, Howard Zehr (2008), aborda os aspectos subjetivos do conflito na pessoa da vítima e do criminoso. Aduz o autor, que a justiça retributiva desconsidera tais aspectos, voltando-se essencialmente a aplicação da lei sem, contudo, ocupar-se dos verdadeiros danos provocados pela situação conflitiva. Tal forma de justiça, redunda em punir a violência ilícita com a violência na forma lícita, ou seja, o sujeito comete um crime violento e pressupõe-se coagi-lo a não mais o fazer através de violência. Isso é no mínimo um contrassenso.

Em sua obra, “Trocando as lentes”, o autor criteriosamente, estuda a vítima e o criminoso, suas emoções, seus anseios, suas perdas, suas percepções. Analisa quais as faces do crime para tais sujeitos, quais as consequências físicas, psicológicas, morais e sociais deixadas pelo conflito. E mais, analisa as relações interpessoais pregressas ao delito, quando existentes, e a correlação destas ao fato, evidenciando que a contrario sensu, o conflito é composto de um antes, um durante e um depois, e que não é possível desta forma, através de simples ato ou fato típico punível, reconstruir tamanha desconstrução. (ZEHR, 2008).

A vítima, por certo terá sequelas, independente de qual natureza, física, psicológica, moral, social, econômica, pois o conflito por si só, cria uma nova situação, um novo status, que invariavelmente não fora desejado ou almejado pelo sujeito em conflito. A questão é, como falar em justiça quando a prisão de alguém ou algum proveito econômico não lhe trarão o filho de volta, o sono, a tranquilidade, ou um membro do corpo. Independente de qual seja o tipo de reparação que ofereça a justiça retributiva, este sujeito terá sua vida violentamente

9

Os dados iniciais acerca do fato são colhidos e transcritos sofrendo a interferência de um terceiro, o oficial escrevente, ou o policial, enfim, daquele que faz a oitiva inicial da vítima, ou ainda, do relato de um terceiro que informa o crime anonimamente, por isso falamos em terceirização.

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modificada, sendo por vezes, impossível retomá-la. Reforça tal entendimento Rolim (2006, p. 15):

Na verdade, a dor infligida ao infrator não produzirá bem à vítima, nem lhe trará garantias. Em alguns casos, especialmente em crimes graves praticados com violência, o sofrimento do infrator pode oferecer algum tipo de “conforto” à vítima. Nos EUA, por exemplo, familiares de pessoas que foram assassinadas possuem o direito de assistir à execução dos condenados à morte. Nesse ponto, o que devemos nos perguntar é se esse sentimento de conforto moral não é exatamente o mesmo que vingança e se, por decorrência, uma sociedade que permite que seus instrumentos de justiça sejam identificados com a vingança pode produzir, de alguma forma, Justiça. Na verdade, o que as punições produzidas pela Justiça Criminal permitem é que ambos, infrator e vítima, fiquem piores.

Em contraponto, o criminoso também incorrerá em várias destas sequelas, perdendo muito mais do que a liberdade pela segregação, mas também a família, amigos, filhos, carreira, enfim, a vida lhe é retirada de muitas formas, num contexto de violência absurdamente legitimada pela sociedade que trata este sujeito-perigo como um câncer que deve ser extirpado, um infecto que deve ser isolado, em prol do bem comum.

Zehr (2008), analisa a vida de ambos, vítima e criminoso, tanto pregressa, quanto factual e posterior ao evento conflitivo, e conclui, nenhum dos envolvidos conseguirá através do procedimento punitivo entender, aceitar e continuar a vida de forma incólume, tampouco poderá através de tal método perceber o “eu” que há no outro ou ainda encontrar uma maneira de evitar que tal fato ou ato se repita [desconhecendo como o outro se sente, não posso mensurar as consequências dos atos, se a punição da violência se dá com violência, percebo-a como forma afirmativa de empoderamento e única possibilidade de resolução de um conflito], assim, como esperar que o conflito termine pelo trânsito em julgado de uma decisão judicial, ou com o cumprimento de uma sentença, ou ainda como desejar inexistir reincidência. Analisa com precisão este tema Marcos Rolin (2006, p. 15-16):

Quando contornamos a necessidade de encarar a dor dos infratores terminamos por lhes assegurar o caminho mais simples para que sigam não reconhecendo a dor experimentada pelos demais. Por sua compreensão, se ninguém se importa com eles, não há razão para que eles se importem com alguém. A chance que temos de fazer com que eles sintam o drama dos que os cercam pressupõe o reconhecimento dos seus próprios sentimentos como algo que importa à Justiça. Particularmente o isolamento social e a estigmatização lhes oferecem uma experiência de sofrimento que ainda não foi adequadamente estudada. Ora, se toda a dimensão de seus atos aparece apenas como culpa, então o que há de indesejável e/ou perverso na sua conduta é uma construção social pela qual os vínculos dessa pessoa com sua comunidade e com as relações em sua própria história desaparecem.

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Pelo exposto, percebe-se a necessidade, não de uma justiça que retribua violência com violência, mas, uma justiça que restaure as relações sociais além do status quo ante dos sujeitos afetos, incidindo de forma ampla sobre a situação conflitiva. É necessária uma justiça verdadeira, entre “joãos e marias”, com identidade, necessidades, medos e capacidade de decidir, dialogando, suas próprias vidas, sendo ao se que propõe, verdadeiramente, a justiça restaurativa.

Esta forma de justiça, de caráter essencialmente voluntário, consensual, e de abrangência múltipla, necessita seja seguido um procedimento específico para que os objetivos a que se propõe sejam alcançados na integralidade, é o tema que se aborda na sequência.

1.3 A justiça e as práticas restaurativas: o procedimento e questões correlatas

A justiça restaurativa é procedimento consensual, do qual fazem parte a vítima e o infrator como sujeitos centrais e, por vezes, outros membros da comunidade afetados pelo delito. Tais sujeitos participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a restauração dos traumas e perdas causados pelo crime. É um processo, até certo ponto, informal, mas essencialmente voluntário, que sofre a intervenção de mediadores ou facilitadores, operado sob três formas básicas que são: mediação restaurativa entre a vítima e o infrator, reuniões em que participam familiares e pessoas da comunidade, e os círculos restaurativos.

A mediação10 penal entre vítima e infrator, consiste em proporcionar às partes a possibilidade de diálogo sobre as origens e consequências do conflito, almejando a construção de um acordo e um planejamento de cunho restaurativo, tudo isso em um ambiente adequado e com a participação de um mediador. Nas reuniões coletivas e círculos restaurativos, o procedimento é basicamente o mesmo, porém, o alcance é mais amplo atingindo a coletividade em torno do conflito e de forma integrada à comunidade. A Resolução 2002/12 da ONU em seus primeiros artigos esclarece vários pontos como bem lembra Neemias

10

A Mediação Penal é todo processo que permite ao ofendido e ao ofensor participar ativamente, se o consentem livremente, da solução das di※culdades resultantes do delito, com a ajuda de um terceiro independente, o mediador. (Recomendación (99)19del Comité de Ministros delConsejo de Europa – União Européia). (ALMEIDA, 2016, (sic))

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Prudente (2008):

A Resolução 2002/12 da Organização das Nações Unidas define a justiça restaurativa como qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) ou círculos decisórios (sentencing circles). Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo, que incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem como assim promover a integração da vítima e do ofensor.

Há neste tipo de procedimento restaurativo a abertura de oportunidade para que os indivíduos envolvidos no conflito encontrem uma maneira de reintegrarem-se a sociedade, restaurando a paz social de forma objetiva, responsável e honesta com um caráter mais humano a todos os envolvidos.

Essa reintegração à comunidade é essencial ao sentido de pertencimento do infrator enquanto parte de um todo, parte de um grupo. Esse pertencimento, oriundo de uma lógica antagônica de existência de “bom” e “mau”, de um preconceito cultuado por gerações, imprime àquele que tem a conduta criminosa uma necessária exclusão, que por vezes, não é consequência e sim causa do fato criminoso. Nesse sentido, sobre a necessidade das reuniões com familiares e comunidade em busca da restauração do diálogo e da reinserção dos envolvidos ao grupo social, Yazbek aborda o tema com precisão cirúrgica, sendo relevantes suas observações (YAZBEK, 2016):

Nos sentimos “de dentro”, “fazendo parte”, “nós”. Os grupos dos quais nos afastamos constituem o exterior, um espaço que não é “nós”, que não é o que acreditamos e nem o que pensamos como bom. Temos uma tendência a evitar aqueles que são diferentes, especialmente quando parecem antagônicos ao nosso modo de vida, evitamos o convívio, o encontro e a conversa. Proferimos nossos julgamentos, nos posicionamos como íntegros e desquali※camos o outro e o alienamos. Ao encontrar defeitos nos outros, criamos distância e construímos um muro entre nós, sem assumirmos a responsabilidade relacional que fundamenta o diálogo transformador.

É necessário, em um procedimento de cunho voluntário como este, a disponibilidade, psicológica e emocional dos envolvidos, pois serão reconduzidos ao momento do ilícito, trazendo à tona os mesmo sentimentos e experiências então vividas, no que difere de forma explícita do procedimento processual normal do judiciário. Segundo Wachtel (1997), “em

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uma reunião restaurativa, ocorre uma progressão natural de emoções negativas para emoções positivas, favorecidas pela livre expressão”. Nesse sentido, o procedimento utilizado na justiça restaurativa é justamente voltado à fala, à expressão do que foi vivido e sentido, para que ambos possam entender o fato delituoso, seus porquês e suas soluções, de modo a restaurar a vida em sociedade possibilitando que os danos sejam revertidos ao mínimo.

A mediadora Yazbek (2016) aduz em seu artigo, “Mediação transformativa e Justiça restaurativa”, que o panorama atual é marcado pelas diferenças de pertencimento social, e segue citando Gergen (1999), “[...] se é pelo diálogo que se constroem as relações descritas, deveria ser o diálogo a nossa melhor opção para tratar as realidades con‼itantes.”

O agressor, por certo faz parte de uma comunidade, e o objetivo final em relação a ele, deverá ser sua ressocialização àquela de forma digna e responsável, respeitados à vítima e a própria comunidade. A reunião comunitária tende a diminuir ou eliminar os conflitos remanescentes, e é crucial, neste processo, assim como esta interação agressor-vítima-comunidade, formando uma rede interativa de pessoas conforme Almeida (2016):

Após um momento inicial dedicado primordialmente a cuidar das necessidades da vítima através da utilização de programas dedicados à díade vítima / ofensor (Victim Offender Programs), os projetos baseados no paradigma restaurativo passaram a incluir, cada vez mais, as necessidades do ofensor, assim como as necessidades da comunidade. Vítimas, ofensores e comunidades são considerados stakeholders (integrantes de uma rede interativa de pessoas) dos processos e dos programas de justiça restaurativa.

A devolução do conflito às partes, tende a provocar o empoderamento e a responsabilização subjetiva do conflito e de sua resolução através da retomada do diálogo. É uma espécie de retomada da consciência e da capacidade decisória moralmente correta pelo ser humano pós-moderno, é o que leciona Almeida (2016):

Historicamente podemos identi※car que um dos principais questionamentos aos padrões modernistas é a presença de códigos morais e éticos, elaborados por ※lósofos e legisladores, e construídos pela racionalidade de uma elite intelectual. A crença de que os homens seriam limitados para fazer escolhas racionais e corretas dada a cegueira das emoções, gerou a construção de leis “corretas e universais” – segundo esse ponto de vista – e seu controle exagerado. O homem ※cou assim, privado de seu direito de escolha por ser desacreditado em sua capacidade de tomar decisões morais corretamente. Desse período decorre que, na pós -modernidade, com a ‼exibilização de padrões éticos e morais, nos deparamos sem preparo para nos responsabilizarmos por nossas decisões, deslocando muitas vezes, nossas escolhas e obrigações, para os legisladores.

(32)

Howard Zehr não poderia ter sido mais feliz na escolha do nome de seu livro “Trocando as lentes” (ZEHR, 2008), num período em que o ser humano perdeu a capacidade de ser ético, numa pós-modernidade líquida11, urge resgatar esta capacidade, voltar a pensar, dialogar, questionar, e, principalmente, de forma voluntária reconstruir nossas relações e a nós mesmos.

1.4 A justiça e as práticas restaurativas no âmbito nacional

O procedimento restaurativo, para subsistir juridicamente, não poderá contrariar os princípios e as regras constitucionais e infraconstitucionais, constituindo, em sentido amplo, uma violação ao princípio da legalidade. Devem ser satisfeitas condições para o reconhecimento de sua existência, validade, vigência e eficácia jurídica, para que seus atos não resultem inexistentes, nulos ou ineficazes e, portanto, inaptos a produzir efeitos no mundo jurídico. É o que também dispõe expressamente a cláusula nº 23, de ressalva, da Resolução 2002/12 da ONU (2002), “nada que conste desses princípios básicos deverá afetar quaisquer direitos de um ofensor ou uma vítima que tenham sido estabelecidos no Direito Nacional e Internacional.”

É necessário que os direitos e garantias fundamentais dos envolvidos sejam observados, dos quais podem ser citados o princípio da dignidade humana, o princípio da razoabilidade, também o da proporcionalidade, da adequação e do interesse público, além de princípios fundamentais do direito penal, dentre os quais cita-se o da legalidade, da intervenção mínima, da lesividade, sem descuidar de outros princípios aqui não mencionados e que garantem uma solução do conflito de forma pacífica com isonomia e pautada no respeito.

Quando se trata de justiça restaurativa, a referência é pertinente à um procedimento que combina técnicas de mediação, conciliação e transação previstas na legislação, porém com metodologia restaurativa, onde há participação de forma consensual da vítima e do infrator no processo decisório. O acordo restaurativo, aprovado ou não, deve ser executado de forma fundamentada para que não produza um ato juridicamente inviável ou insustentável.

11

Baumann (2007) em sua obra, Tempos Líquidos, fala da forma liquefeita que assume a pós-modernidade, onde conceitos até então concretos, desfazem-se assumindo forma líquida, modificando sua forma constantemente, conforme mudam as relações e situações que os constroem.

Referências

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