• Nenhum resultado encontrado

A justiça e as práticas restaurativas: a questão dos operadores do direito e da rede

As práticas restaurativas, assim com o sistema jurisdicional, por si só, não podem subsistir sem que se instale efetiva rede de apoio, com profissionais das variadas áreas, metodicamente preparados e selecionados para atuar em um campo desta magnitude subjetiva. Dentro deste contexto, podemos inserir a multidisciplinariedade da justiça restaurativa, que de forma ampla, abrange também a necessidade de adequação da cultura jurídica ínsita nos operadores do direito, criando um novo paradigma de justiça, alicerçado em quesitos bastante diversos dos habituais e amplamente conhecidos pelos profissionais da área jurídica. Isto posto, importa analisar este dois pontos mais especificamente, o que se passa a fazer nos próximos tópicos.

1.5.1 Dos operadores do direito

Percebe-se nos juristas, de um modo geral, a tendência de inserir a justiça restaurativa em algum ponto do procedimento judiciário existente, mas é evidente que o cunho de tal atividade extrajudicial não pode ser considerado dentro do âmbito judiciário, tal como o sistema em vigor. A justiça restaurativa é essencialmente voluntária e consensual, e a justiça tradicional é em grande parte impositiva e contenciosa, sendo contrapontos de um mesmo

processo humano. Porém é interessante o novo ângulo de observação do conflito que é proposto pela justiça restaurativa, num enfoque mais subjetivo, com abordagem dos sentimentos e necessidades dos indivíduos envolvidos, onde deixam de ser objetos para tornarem-se sujeitos dentro do processo.

No que concerne aos operadores do direito, por óbvio que se faz necessária a adoção de uma atitude mais sensível dos mesmos e a capacitação direcionada para atuarem nas práticas restaurativas, pois ainda estão ligados à uma formação jurídica de cunho normativista, extremamente baseados em seus estatutos funcionais.

Deverá haver uma mudança de hábitos e perspectivas, caminhando rumo à uma justiça plural, onde são compartilhadas as decisões com as partes e a comunidade envolvidas no conflito, que em verdade, são os verdadeiros donos do conflito. É necessária uma mudança de opinião, de atitudes, de conceitos, e ao mesmo tempo em que não podem descuidar dos conhecimentos técnicos como garantia à subsistência jurídica do procedimento e dos atos desse procedimento.

Tem-se esta ideia de mudança postural e cultural reforçada na concepção de Carlos Eduardo de Vasconcelos (2008, p. 17):

A OAB e outros Conselhos Profissionais tem papel importante a desempenhar no desenvolvimento de uma nova cultura entre os operadores de direito. Devem ser estimuladas a formação de profissionais e a organização de instituições que aliem o conhecimento jurídico à capacidade de identificação das reais necessidades das pessoas em conflito.

Cabe aqui considerar alguns pontos relevantes que os operadores do direito e outras autoridades afins devem observar quando da execução da justiça restaurativa. O primeiro dos referidos pontos é o fato de que este tipo de procedimento não tem previsão legal expressa, no entanto está regulamentada e é orientada por um conjunto de princípios expressos na Resolução nº 225 do CNJ, como já mencionado anteriormente neste estudo, a exemplo do devido processo legal, reforçando a ideia de um procedimento de livre aceitação, descaracterizando o processo restaurativo se o mesmo for imposto. Ademais, as partes deverão ser cientificadas claramente acerca desta ser uma ferramenta alternativa de aceitação voluntária, da qual cabe revogação a qualquer tempo.

A capacitação dos mediadores e facilitadores é ponto crucial para o sucesso do procedimento, devendo, para tanto, haver prévio treinamento e preparo direcionado aos fins específicos a que objetiva a justiça restaurativa. Não há impedimentos de que pessoas da própria comunidade executem tal função, mesmo porque, é possível imaginar que o uso da mesma linguagem entre os envolvidos no conflito e os mediadores e facilitadores, além da aproximação promovida pelo meio, favorecerá o processo restaurativo.

Para que o procedimento restaurativo transcorra da melhor maneira possível, o local onde será executado deve ter estrutura compatível com os objetivos, e ao mesmo tempo, ser informal, seguro e que transmita tranquilidade. Observadas estas premissas, recomenda-se que o procedimento seja suspenso percebendo o mediador ou facilitador, animosidades no processo que possam desencadear agressividade ou mesmo nova vitimização, tanto do ofendido como do ofensor.

O desequilíbrio econômico, psicossocial e cultural dos envolvidos, em um país como o Brasil, é outra questão sensível, devendo ser rigorosamente observado como forma de garantir a isonomia entre as partes, evitando que sejam construídos acordos que constituam afronta ética aos princípios da justiça restaurativa. Acerca do disposto até aqui, Vasconcelos (2008, p. 130) sintetiza:

Como diretriz institucional, um programa de Justiça Restaurativa deve ter como meta institucional o aperfeiçoamento da ordem da justiça, a ser aferido pelo grau de satisfação das partes e seu reconhecimento pelos operadores do direito, o que pode contribuir para a mudança na percepção da sociedade sobre a justiça. Como diretriz político-criminal, um programa de Justiça Restaurativa deve ter como meta político- criminal a redução do controle penal formal (política moderada).[...] essa redução de controle penal formal deve estar associada a duas condições: que a redução das garantias penais institucionais não implique a imposição de um gravame maior aos interessados e que essa redução de garantias penais e processuais não corresponda à uma política criminal que implique a perpetuação de desigualdades sociais.

Como a implementação da justiça restaurativa envolve gestão concernente à administração da Justiça, nada além a esperar do que o respeito ao princípio constitucional da eficiência disposto no artigo 37 da Carta Constitucional (BRASIL, 1988), proporcionando que os facilitadores sejam realmente capacitados, responsáveis e sensíveis na condução de tal trabalho, respeitando os princípios, valores e procedimentos do processo restaurativo.

1.5.2 Da rede de apoio

Hodiernamente, não há como executar um procedimento restaurativo comprometido com a inclusão social, se não há integração com a rede social de assistência ou o apoio dos órgãos governamentais, empresas e ONGs. Isto porque as vítimas devem ser encaminhadas para os programas que o acordo restaurativo indica, e para efetuar essa atividade os núcleos de justiça restaurativa devem estar conectados com aqueles órgãos mencionados, e a própria sociedade deve participar desta rede. Dentro do aqui exposto, aduz-se trecho do Relatório sobre Justiça Restaurativa em Caxias do Sul (BRANCHER, 2013, p. 28):

O objetivo do Núcleo é desenvolver uma política pública de pacificação social através de um conjunto de ações desencadeadas pelos órgãos públicos na prevenção e no controle da violência, notadamente os que atuam nas áreas da Justiça, Segurança, Assistência, Educação e Saúde, em colaboração com organizações da sociedade civil.

Segundo justificado no projeto que lhe deu origem, a intenção é “oferecer reações sociais curativas, sistemáticas e continuadas para enfrentar situações disruptivas mediante o reatamento dos laços sociais rompidos, promover o coesionamento do tecido social e (re) construção do senso de pertencimento e de comunidade, como forma de interrupção das espirais conflitivas, objetivando prevenir e reverter as cadeias de propagação da violência”.

Na criação e, posteriormente, na validação do acordo restaurativo deve prevalecer um caráter crítico em contraposição ao normativismo e a Escola de Exegese, que até agora influenciaram os procedimentos jurídicos. A Justiça Restaurativa tem cunho voluntário, é mediada e deve permitir que as partes se apoderem do conflito e construam de forma compartilhada uma solução. O papel do mediador com as partes, através do diálogo, constrói de forma argumentativa um esboço de acordo, baseado nas normas em que se fundamenta a conciliação, num ambiente em que coabitam as falas de todos os envolvidos, que devem ter assegurado o direito ao questionamento, participação, expressão e defesa de suas opiniões. Não deverá existir qualquer espécie de constrangimento ou coação no exercício desses direitos.

[...] esse novo modelo de composição dos conflitos possui base no direito fraterno, centrado na criação de regras de compartilhamento e de convivência mútua que vão além dos litígios judiciais, determinando formas de inclusão de proteção dos direitos fundamentais. Existem outros mecanismos de tratamento das demandas, podendo-se citar a conciliação, a arbitragem e a mediação. Trata-se de elementos que possuem como ponto comum o fato de serem diferentes, porém não estranhos ao Judiciário, operando na busca da “face” perdida dos litigantes numa relação de cooperação pactuada e convencionada, definindo uma “justiça de proximidade e, sobretudo, uma filosofia de justiça do tipo restaurativa que envolve modelos de composição e gestão

do conflito menos autoritariamente decisórios.” (MORAIS; SPENGLER, 2008, p. 75 apud KONZEN; LOPES, 2015).

Nos tempos atuais deve-se buscar a coexistência pacífica entre as partes, com o estímulo do diálogo e participação das partes como protagonistas do conflito preservando as relações e humanizando o conflito. Cabe aqui uma reflexão de Chalita ([s.d]):

Aristóteles, Tomás de Aquino, Rousseau, Jacques Maritain se defrontaram com esses caminhos e conflitos da consciência para deixar aos que viessem depois deles a teoria do bem comum. O ser humano é essencialmente bom, mas às vezes deixa essa essência cair no esquecimento. Perde, por momentos, a consciência de sua bondade essencial e, com isso, parece abandonar suas origens, perder a humanidade, transformar-se em coisa.

Dentro deste contexto a mediação tem inegável contribuição para o processo, mas para sua efetiva aplicação, este deverá sofrer uma releitura, para que atinja os seus objetivos especialmente o fim de pacificação social. Enfim, uma mudança na cultura jurídica e mesmo extrajurídica, capaz de dar conta desta releitura de conceitos e absorção de novas práticas.

Diante da base exposta até este ponto, no que tange a justiça restaurativa, percebe-se que esta se amolda perfeitamente às necessidades de evolução da justiça retributiva. O caráter mais humano e abrangente que este tipo de procedimento confere à busca da pacificação social e, de modo organizado em havendo disposição legal, suscita ao procedimento atual utilizado na justiça retributiva maior coerência e celeridade aos julgados e os envolvidos no conflito. Percebe-se esta como uma forma digna e humana de pacificação de conflitos, de reinserção e principalmente de restauração de vínculos sociais, afetivos e de convivência comunitária.

Tendo como referência os conhecimentos e compreensões em torno do tema da Justiça Restaurativa até aqui descritos, passa-se, no segundo capítulo, a discutir a evolução do crime passional, abordando a questão da dignidade da pessoa humana, sobretudo, nas relações de gênero, considerando a vítima e ofensor enquanto sujeitos de direito, para finalmente averiguar a possibilidade e os quesitos necessários para aplicação da justiça restaurativa nesta seara e, bem como, a possível aplicabilidade e benefícios de instituir-se o uso da justiça restaurativa nos crimes passionais de forma contributiva ao modelo judiciário penal atual.

2 CRIME PASSIONAL, DIGNIDADE HUMANA E RESPONSABILIZAÇÃO