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Possibilidades e benefícios da aplicação da justiça restaurativa em crimes passionais

2 CRIME PASSIONAL, DIGNIDADE HUMANA E RESPONSABILIZAÇÃO

2.3 Possibilidades e benefícios da aplicação da justiça restaurativa em crimes passionais

Hodiernamente, o crime passional, via de regra ocorre no âmbito doméstico sendo regulado juridicamente através da lei Maria de Penha. Impende ressaltar que as particularidades este tipo de crime/criminoso, possibilitam e ensejam a aplicação de uma justiça para além de um olhar essencialmente punitivo.

Normalmente este tipo de criminoso não é reincidente contumaz e não necessariamente seja um agressor de longa data, mas possui o elemento paixão como centro das suas motivações, sendo portanto uma espécie de criminoso com características sui generis, o que aponta a possibilidade/necessidade de aplicação de uma justiça diferenciada, de maior amplitude ressignificativa para todos os sujeitos envolvidos.

Ademais, a que se ressaltar que a justiça restaurativa não prevê essencialmente a restauração da relação entre a vítima e o opressor, mas sim uma ressignificação da relação e do crime em ambos, de modo que tais atitudes agressivas não sejam reproduzidas em novos relacionamentos, atuando em caráter preventivo/curativo e atingindo vítima e opressor na mesma proporção. Deste modo, o objetivo é produzir resultados a curto e longo prazo na redução das distâncias entre os gêneros, estabelecendo um processo de compreensão e responsabilidade para consigo e com o outro de modo a refletir socialmente ensejando uma espécie de cura social.

O procedimento regulado pela Lei Maria da Penha, está alicerçado sobre o tripé prevenção, atendimento à vítima e responsabilização do agressor e já prevê a inserção de uma rede de apoio aos envolvidos no conflito, de modo que o procedimento preconizado que agora é citado é per si, instrumento capaz de possibilitar a aplicação da justiça restaurativa de forma contributiva ao processo.

Neste sentido é o entendimento recente do CNJ13, após promover pesquisas movidas pela insatisfação de magistrados e vítimas acerca da efetividade das medidas punitivas da precitada legislação em coibir novos crimes, e ressalta que nesse aspecto o documento indica,

[...] em sua conclusão, a necessidade de discussão das possibilidades da justiça restaurativa como contribuição na solução dos traumas da violência doméstica. Na visão da coordenadora do estudo, esse debate vai ganhar visibilidade por passar a considerar, também, o comprometimento emocional e afetivo dos envolvidos nos atos de violência. (CNJ, 2018).

Em que pese o modo tímido em que se pretende inserir a justiça restaurativa no âmbito da violência doméstica, se faz necessário perceber a incapacidade do encarceramento e produzir efeitos positivos sobre a prevenção de tais crimes, além de estimular a rivalização entre os gêneros.

Cumpre salientar, neste ponto, que diante dos problemas que se pode elencar enfrentados nos presídios brasileiros: as superlotações, rebeliões, tráfico de drogas, acesso a celulares dentre outras irregularidades notórias, na verdade, o que se observa é que o sistema carcerário, por vezes, considerado como preventivo, possui inúmeras falhas, e é ineficaz em oferecer condições de ressocialização. Não se pode negar que a finalidade da aplicação da pena, mais precisamente, sua eficácia, não corresponde aos anseios da sociedade, qual seja o resguardo da segurança individual e pública.

Os presídios do país apresentam números alarmantes de reincidência, sendo a mesma considerada um dos grandes problemas a serem resolvidos nesse sistema. Neste sentido, a justiça restaurativa se mostra um importante recurso voltado a trabalhar o infrator de um modo que ele não venha a reincidir no ato delituoso, evitando assim seu retorno ao sistema

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É necessário incluir a justiça restaurativa para tratamento das consequências da violência doméstica. Essa é uma das conclusões do estudo “Justiça Pesquisa – direitos e garantias fundamentais, entre práticas retributivas e restaurativas: a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário” elaborado pela Universidade Católica de Pernambuco, em trabalho encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).(CNJ, 2018).

carcerário.

O modo restaurativo de fazer justiça outorga grande valor ao fato de vítima e infrator se encontrarem pessoalmente, na presença de um supervisor ou agente facilitador, quando isso não é possível, pode-se promover aproximação por meio de carta, fita gravada, mensagens entregues por um portador. Essa possibilidade de contato entre as partes sem que seja no processo judicial normal, considerando que os crimes passionais em sua maioria ocorrem entre pessoas que tem uma relação entre si, abre um leque de possibilidades e benefícios para os envolvidos.

Fazer justiça da ótica restaurativa refere-se à resposta sistemática às infrações e a suas consequências, dando ênfase à cura das feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou reputação, destacando a dor, a mágoa, o dano, a ofensa, o agravo causados pelo malfeito, contando para isso com a participação de todos os envolvidos, tanto vítima, quanto infrator, e ainda a comunidade, na resolução dos conflitos oriundos dos incidentes. Práticas de justiça com objetivos restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relação convencional com sistema de Justiça.

No entanto, encontros em si e tão-somente não bastam para dar a um procedimento características restaurativas, que se conformam através da convergência de cinco elementos (reunião, relato, emoção, entendimento, acordo) cada qual contribuindo decisivamente para fortalecer e dar sentido restaurativo ao encontro (SCURO NETO, ([s.d]).

Sobre a reunião, Pedro Scuro Neto ([s.d]) menciona que importantes autores como Baratta (1990); Bittencourt (1990); Schneider (1991); Zaffaroni (1998) podem contribuir no que se refere às possíveis técnicas e modos de se realizar os encontros de maneira que estes sejam eficazes ao seu propósito restaurativo. Inclusive cita Sá (2001), o qual tem uma visão de que por meio desses procedimentos pode ocorrer o fortalecimento de ambas as partes perante o conflito.

Conforme Field (2005) os defensores dos encontros restaurativos, em geral, mencionam a importância de considerar as necessidades e a perspectiva tanto da vítima como

do infrator. Sendo o foco do trabalho no futuro, mesmo assim, é facilitado (maior segurança) o trabalho com fatos do passado. Considera-se como importante para o infrator a possibilidade de assumir a responsabilidade e de se comprometer a não reincidir no futuro.

O relato é um grande diferencial que se destaca no contato, proveniente da justiça restaurativa, entre as partes e o procedimento judicial costumeiro, é que neste as partes no máximo podem observar de algum modo o que o outro diz a terceiros; enquanto que no padrão restaurativo tanto infrator quanto vítima, podem conversar, relatando com as suas próprias palavras o acontecido, descrevendo como os acontecimentos os afetaram, e contando como encaram o ato infracional e as suas consequências (SCURO NETO, ([s.d]). A fala neste caso tem tanto a função de permitir que o infrator exponha os motivos que o levaram ao ato, como também que demonstre como se sente em relação ao acontecido, lhe possibilitando trabalhar as sensações e assim melhor compreender sua ação de modo a não repeti-la... Por outro lado, por meio da fala, a vítima e demais envolvidos, conseguem expor as consequências que o ato do infrator causou em suas vidas, e como têm lidado com essa situação, de forma a superar o ocorrido.

A emoção também evidencia-se no encontro restaurativo por meio da subjetividade, o interlocutor integral, a emoção favorecida pelo relato e que resulta da própria infração, todos esses são fatores que os procedimentos da Justiça formal, impessoal e racional geralmente reprime, descartando o poder curativo da emoção e da subjetividade.

Outro aspecto do encontro que se destaca é o entendimento que pode ocorrer, o qual tem origem em uma possível empatia, onde cada uma das partes coloca-se no lugar do outro, que, se não faz o interlocutor encarar o outro de um modo positivo, pelo menos leva a considerá-lo de um ângulo mais “natural”, algo mais de acordo com a ordem das coisas, menos traumatizante.

Para Zeher (2008) a verdadeira responsabilidade, inclui a compreensão das consequências ao outro, resultantes dos atos praticados. Quando se impõe sanções a pessoas irresponsáveis, isso tende a torná-los mais irresponsáveis. O autor menciona que algumas instituições começaram a colocar a restituição como parte da sentença, mas, essa acaba por ser vista como uma punição. Para o autor sentenças restitutivas impostas como punição tem

grande probabilidade de não ajudar aos infratores a se tornarem responsáveis. Por esse motivo é que aparecem baixos índices de retorno em alguns programas de restituição. O responsabilizar-se vai muito além de uma imposição feita por forças externas.

Ainda outro fator a ser considerado é o acordo, por meio do qual se estabelece uma base produtiva para o que virá depois desse encontro, dependendo do ponto de vista das partes, das circunstâncias e da vontade de cada um, da convergência de seus interesses e de suas decisões, e não simplesmente da perspectiva dos autos de um processo fundado apenas no contraditório.

Oliveira menciona que pode ser que dos cinco elementos mencionados por Scuro Neto ([s.d])

[...] não resulte a reconciliação, mas todos efetivamente ajudam a elevar a capacidade dos interlocutores verem-se a si mesmos e ao outro como pessoas, respeitarem-se mutuamente, identificar-se em termos de experiências, e quem sabe chegar a um acordo, independentemente das sensações que inicialmente só lhes davam razão para ter medo e sentir hostilidade, inclusive porque não raro a vítima vai além dos limites e passa a ser protagonista do crime, gerando ou programando as coordenadas da própria vitimização. (OLIVEIRA, 2001, p. 17).

É importante destacar que a prática de justiça restaurativa aborda tanto a vítima quanto o infrator, buscando desenvolver um processo que não seja exclusivamente punitivo, mas sim restaurativo. A abordagem enfoca os danos e as necessidades da vítima, bem como as necessidades do infrator sem desconsiderar os aspectos sociais presentes no comportamento criminoso. A justiça restaurativa, de uma forma geral busca possibilitar que a vítima tenha o atendimento adequado e, que o infrator possua condições de fazer uma reparação, se não concreta, pelo menos simbólica.

Dota-se os infratores de poder por meio da participação ativa em um processo reintegrador que não é estigmatizante; · As famílias são fortalecidas por seu envolvimento e focam suas responsabilidades; · Dá-se poder às vítimas através do envolvimento ativo e de possibilidades melhoradas de reparação; · Dá-se poder à comunidade por meio da retomada do controle da resolução de conflitos, que está nas mãos do Estado; · Assim, pode-se dizer que o processo trata o crime com seriedade (FIELD, 2005, p.338).

Destaca-se que neste no caso da justiça restaurativa, as partes principais são a vítima e o infrator e não o Estado e o infrator. A fim de atingir seus objetivos a Justiça Restaurativa se utiliza de diversas práticas que não buscam a exclusão, a estigmatização e o isolamento do

infrator, mas, muito pelo contrário buscam a participação deste, da vítima e da sociedade na busca de soluções restaurativas para o fato ocorrido.

2.4 A aplicação da justiça restaurativa em crimes passionais sob o viés dos direitos