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A concepção de crime passional e as teses sobre tais delitos na doutrina brasileira

2 CRIME PASSIONAL, DIGNIDADE HUMANA E RESPONSABILIZAÇÃO

2.1 A concepção de crime passional e as teses sobre tais delitos na doutrina brasileira

O crime passional remonta ao início da humanidade, principalmente com a formação da sociedade, e possivelmente persistirá ao longo dos tempos, uma vez que não está ligado essencialmente a padrões culturais. Tratando-se também de uma questão subjetiva que envolve a paixão, em geral, perturbadora.

A afirmação de que o Direito evolui conforme evolui o homem e a sociedade, revela- se pertinente neste ponto, pois de forma evolutiva a punibilidade do crime passional anda atrelada aos preceitos sociais e culturais de cada época. Assim, percebemos na obra de Eluf (2003) uma espécie de “evolução” no jus puniendi dos crimes passionais, onde o crime cometido, justificado e por vezes absolvido, pela honra desde o início do século no Brasil, passa a ceder lugar à um jus puniendi altamente influenciado pelos movimentos feministas das décadas de 1970.

Segundo Eluf (2003), no Brasil colonial, havia disposição em sentido permissivo para que o marido traído matasse a esposa, permissivo este mantido até o Código de 1830. Já o Código de 1890, não permitia o crime como defesa da honra de forma explícita porém abarcava a possibilidade do perdão judicial, caso o crime passional fosse cometido pelo marido que surpreendia a mulher em adultério, justificando o perdão pelo fato de o agressor ter seus sentidos perturbados diante de tal situação. Já o atual Código Penal, trouxe a figura do homicídio privilegiado no art. 121 e também em suas qualificadoras quando associado ao

motivo torpe e fútil, por traição ou emboscada. Ressalta a autora, que a legítima defesa da honra ainda foi fundamento de absolvição até meados dos anos 1970, período em que despontam os movimentos feministas.

Mais recentemente, a Lei Maria da Penha regulamenta os procedimentos atinentes a tais delitos, de modo a abarcar de forma especial situações onde exista o liame afetivo/sexual e as formas de subordinação que não são mais aceitas após o evento da Declaração dos Direitos Humanos e da promulgação da Constituição Brasileira de 1988, imprimindo um procedimento diferenciado conforme veremos adiante neste trabalho.

Atualmente, tem-se a promulgação da Lei do Feminicídio que qualifica os crimes de homicídios cometidos contra mulheres com base no gênero. A referida lei altera o artigo 121 do Código Penal, acrescentando uma qualificadora e o incluindo na lista de crimes hediondos. Em entrevista recente, Eluf (2017)12 destaca, que o uso do termo passional encobre o criminoso, e mascara a gravidade deste tipo de crime, mais, refere que socialmente deve haver uma movimentação para que o ciúme, elemento nato da paixão, seja visto como inaceitável nas relações bem como inaceitável enquanto motivo de cometimento de crimes.

Diante do exposto, ainda que se observe a prevalência do homem como autor de tais crimes, há mulheres que os cometem, porém poucos são os casos relatados nos tribunais. Segundo Eluf (2007), tal comportamento se deve, em grande parte, à sociedade e educação patriarcal associada as duras penas a que as mulheres foram submetidas pelo cometimento do adultério.

Neste sentido, Dias (2010, p. 18), esclarece que, a responsabilidade pela violência não está exclusivamente no agressor, mas também na “[...] sociedade que cultiva valores que incentivam a violência.” Haja visto que ao longo da história brasileira é comum verificar-se a tentativa de encontrar desculpas para a prática de crimes passionais, seja pelo argumento da “defesa da honra”, seja pela cultura machista segundo a qual a mulher é propriedade do homem.

Na realidade, os movimentos de mulheres foram os que trouxeram à tona as questões

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https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2017/12/11/por-que-e-preciso-parar-de-tratar-feminicidio-como- crime-passional.htm.

relativas à violência doméstica sob a ótica de violação dos direitos humanos, e assim abriram espaços para discussões e debates sobre as situações de injustiça, desigualdades e, principalmente, de violência dentro das relações familiares, buscando terminar com o predomínio masculino nos espaços públicos e privados [...]” (DIEHL, 2011), fazendo eclodir uma repulsa ao crimes de gênero sem, contudo, acabar com os crimes passionais.

Assim, analisar o crime passional como um todo é difícil, pois cada caso tem suas particularidades, circunstâncias e motivos próprios, além de peculiaridades pessoais das pessoas envolvidas. Acima de tudo, tais crimes são reflexo de vivências humanas, com forte cunho psicológico, do qual não incumbe ao direito análise pormenorizada, mas que invariavelmente são determinantes nas condutas humanas. Deste modo, os conceitos de crime passional semeados jurisprudencial e doutrinariamente, limitam-se a certas características e pontos que são comuns a todos os crimes passionais, sendo possível caracterizá-lo e identificar alguns de seus fatores motivadores, de modo a ensejar conceituações jurídicas acerca do que é o crime passional.

Observa-se que na doutrina brasileira, há certo consenso em denominar o crime passional como crime derivado da paixão, do amor, do ciúme, e sentimento de posse sobre outrem, caracterizando uma espécie de vingança privada, em que há um liame afetivo ou sexual (ELUF, 2003).

Mirabete (2005) explica que a paixão é uma profunda e duradoura crise psicológica que ofende a integridade do espírito e do corpo, o que pode arrastar muitas vezes o sujeito ao crime. Ainda conforme o entendimento deste doutrinador, são paixões: o amor, o ódio, a avareza, o ciúme, a cupidez, o patriotismo, a piedade, etc. Disciplina que enquanto a emoção é aguda e de curta duração, a paixão é crônica e de existência mais estável.

Sobre emoção e paixão, Fernando Capez afirma que:

Difere a emoção da paixão, pois enquanto a primeira se resume a uma transitória perturbação da afetividade, a paixão é a emoção em estado crônico, ou seja, é o estado contínuo de perturbação afetiva em torno de uma idéia fixa, de um pensamento obsidente. A emoção se dá e passa; a paixão permanece, incubando-se. A ira momentânea configura emoção. O ódio recalcado, o ciúme deformado em possessão doentia e a inveja em estado crônico retratam a paixão (CAPEZ, 2011, p. 56).

Mirabete (2005, p. 218) salienta que a emoção “[...] é um estado afetivo que, sob uma impressão atual, produz repentina e violenta perturbação do equilíbrio psíquico”. Assim a violenta emoção é aquela que se corrobora de forma abrupta, provocando um choque emocional. Não se pode olvidar que o art. 28, I, do Código Penal rege que não excluem a imputabilidade penal a emoção ou a paixão. Posta assim a questão, é de se dizer que os indivíduos que cometem crime sob violenta emoção ou paixão não têm sua capacidade de entendimento e autodeterminação anulados por tais sentimentos.

Eluf (2003) em seu livro “A paixão no banco dos réus” define o crime passional como sendo aquele decorrente de uma paixão embasada no ódio, no ciúme desprezível, na vingança, na possessividade, no sentimento de frustração aliado à prepotência, na mistura de desejo sexual frustrado com rancor. Para a autora, a paixão desvairada transforma a mente humana, o que torna o crime passional um delito de natureza psicológica.

Gaia (2009) define o criminoso passional como um indivíduo capaz de prejudicar a si e aos outros, possuidor de sentimentos extremamente exagerados. A autora segue seu pensamento lembrando que o impulso de matar desses criminosos explode quando eles têm sua honra ofendida ou seu amor contrariado, reagem de maneira brusca às emoções, tem um temperamento nervoso com emotividade exagerada.

Eluf (2003, p. 112), porém, entende que:

A paixão não basta para produzir o crime. Esse sentimento é comum aos seres humanos, que, em variáveis medidas, já o sentiram ou sentirão em suas vidas. Nem por isso praticaram a violência ou suprimiram a existência de outra pessoa. (...) A paixão não pode ser usada para perdoar o assassino, senão para explicá-lo. É possível entrever os motivos que levam um ser dominado por emoções violentas e contraditórias a matar alguém, destruindo não apenas a vida da vítima mas, muitas vezes, sua própria vida, no sentido físico ou psicológico. Sua conduta, porém, não perde a característica criminosa e abjeta, não recebe a aceitação social.

Para Pego (2007), existem duas espécies de paixão: as paixões sociais e as paixões anti sociais. No seu entendimento as paixões sociais são o amor, a honra, o patriotismo, o afeto materno; são paixões antissociais o ódio, a vingança, a cólera, a ferocidade, a cobiça, a inveja. Assim, o crime passional pode ser consequência de paixão social ou de paixão antissocial, porém, apenas o crime que tivesse base na paixão social isentaria de qualquer penalidade o agente, pois o delito, embasado em uma paixão social, era justificável, era aceito. Já aquele

que se apoia na paixão antissocial para cometer um crime passional, é repugnado, porém, o delito não deixa de ser passional.

Pego (2007), exemplifica o crime baseado na paixão social como aquele em que o homem prefere ver morta a mulher que ama, e que supostamente também o amava, do que não poder tê-la pelo fato de que ela já tem compromisso com outro. O autor diz que, nesse caso, não houve ferocidade, vingança ou ódio, o motivo foi somente o amor, pois o homicídio passional é aquele cometido pela privação dos sentidos e da inteligência, frente à paixão. A paixão é uma força incontrolável que leva os indivíduos a cometerem o delito passional.

Sobre este aspecto, Eluf (2003) diverge, e explica que o amor e a paixão são sentimentos independentes e diferentes, os quais não devem ser confundidos, apesar de muitas vezes serem utilizados como sinônimos. Juridicamente, ficou convencionado que passional refere-se a todo crime cometido em razão de relacionamentos que estiveram embasados numa relação que envolva sentimentos amorosos e /ou sexuais. A paixão que move, que provoca e que alimenta a conduta criminosa não tem origem no amor, mas sim, no sentimento de ódio, o qual nasce e se desenvolve por não ter o seu amado, e assim sentir-se rejeitado.

Bitencourt (2006, p. 451) recomenda que:

Os estados emocionais ou passionais só poderão servir como modificadores da culpabilidade se forem sintomas de uma doença mental, isto é, se forem estados emocionais patológicos. Mas, nessas circunstâncias, já não se tratará de emoção ou paixão, restritamente falando, e pertencerá à anormalidade psíquica.

Desse modo, mesmo reconhecendo-se que paixão e emoção, sejam fortes e levem a atos impensados e terríveis, o Código Penal brasileiro deixa claro em seu art. 28, I, que “não excluem a imputabilidade penal a emoção ou a paixão”. Sendo assim, é possível conseguir a diminuição da pena no homicídio doloso alegando a emoção, mas não a inimputabilidade do agente. Já a paixão por si só costuma ser irrelevante para efeitos penais, a não ser que pelos meios, modos ou motivos, dê causa às qualificadoras descritas no § 2º do artigo 121 do Código Penal, ou se seu estágio for tão doentio, apresentando-se como doença mental, excluindo então a imputabilidade do sujeito ativo do delito.

O indivíduo que comete crime sob o domínio de violenta emoção não tem anulada sua capacidade de entendimento e de autodeterminação, já que tanto a emoção quanto a paixão são sentimentos inerentes ao homem comum, que não se enquadram, na maioria das vezes, em quadro clínico patológico. Não substituição ou abolição da consciência, ao contrário do que se verifica nas doenças mentais (CAPEZ, 2011, p. 57).

De modo que, evidencia-se que a tese de homicídio passional privilegiado pela violenta emoção seguida da injusta provocação da vítima ganhou força ao longo dos anos, principalmente após o texto do artigo 5º da Constituição Federal, e é a tese mais ocorrente nos tribunais, apesar de ser de difícil aplicabilidade por ter que cumprir os requisitos exigidos para que seja o delito enquadrado no tipo penal (emoção violenta, provocação injusta da vítima, reação imediata e o domínio pela emoção), pois não coloca em dúvida a violação de nenhum preceito constitucional.

Por todo o exposto, percebe-se a clara influência dos aspectos sociais, culturais, humanos e psicológicos nos crimes desta natureza, passional. E que apesar da legislação buscar abarcar todos estes aspectos, a sociedade e tais conceitos evoluem constantemente e forma rápida o que dificulta a adequação da norma em tempo real aos acontecimentos. Houve evolução, isto é fato evidente, mas uma questão permanece, a evolução não foi suficiente e abrangente a ponto de reduzir o número de crimes desta natureza, abrindo precedente para que que seja questionada a eficácia do sistema retributivo em atingir o objetivo da pacificação social, lacuna que pode ser preenchida de forma contributiva pela justiça restaurativa.