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A judicialização da violência doméstica no Brasil: dinâmicas entre operadores do direito e as partes em conflito 1

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A judicialização da violência doméstica no Brasil: dinâmicas entre

operadores do direito e as partes em conflito

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Miguel Antonio dos Santos Filho (UnB)

Resumo

Esse trabalho analisa a aplicação da Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha para refletir sobre algumas tensões surgidas nas dinâmicas entre as partes em conflito e os operadores do direito. Aponto que essas tensões se relacionam: ao funcionamento idiossincrático do sistema de justiça brasileiro; e à dificuldade do sistema em justiça perceber a construção relacional dos conflitos de violência doméstica. Sugiro no texto as potencialidades que essas dinâmicas têm para a composição de processos de subjetivação e de composição das experiências das partes em conflito. Essa discussão foi elaborada com base na leitura de etnografias produzidas em contexto brasileiro, as quais elencam diferentes aspectos e situações empíricas de Varas e Juizados brasileiros que passam pelo filtro de questões teóricas que apresento sob as categorias/conceitos de reconhecimento, modernização e subjetivação.

Considerações Iniciais

Os processos que têm resultado na adoção de medidas judiciais de equacionamento de conflitos de caráter interpessoal, chamados de judicialização, têm se apresentado enquanto tendência global de legitimação de pautas políticas, especialmente na luta por garantia de direitos dos sujeitos (RIFIOTIS, 2008, 2014, 2017). No Brasil a judicialização dos conflitos enquadrados enquanto violência doméstica são enquadrados pela lei 11.340/06, popularmente conhecida como lei Maria da Penha. Neste texto busco refletir sobre a adoção desta medida judicial, recuperando um histórico de demandas baseadas no reconhecimento (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2008) de que estes conflitos teriam uma existência peculiar enquanto expressões da violência baseada no gênero. Ao observar o manuseio desta lei, na prática dos operadores do direito, temos diante de nós alguns instrumentos que parecem contribuir para processos particulares de subjetivação, isto é, processos de objetivação do sujeito

1 Texto apresentado no 44º Anual da ANPOCS no Grupo de Trabalho 029 - Nas Malhas da Judicialização da

"Violência de Gênero" contra as Mulheres: Etnografias, Afetos, Avanços e Retrocessos em contexto Sul-Americano.

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2 (FOUCAULT, 1995). A objetivação do sujeito, seu “tornar-se efetivo, real” é entendido como um percurso ao longo da vida, permeado por relações de poder com pessoas e instituições. Argumento que o tipo de sujeito que se pretende produzir – no funcionamento do judiciário, munido pelo aparato da lei 11.340/06 – é aquele exemplar de uma leitura moderna (DUMONT, 1985) de interpretação e de ação no mundo, o qual se baseia na autonomia, na individualidade e nos direitos individuais.

O artigo busca refletir se e como as experiências das partes envolvidas nos conflitos de violência doméstica (em especial as mulheres) podem ser alvo de ações de caráter subjetivador, intentando a modificação de suas formas de agir e pensar; ainda, como o sistema judiciário tem ou não traduzido as questões demandadas pelos movimentos de mulheres nas práticas de seus operadores; e, finalmente, como a esfera prática de ação dos magistrados pode funcionar como motor de processos modernizadores. As tensões entre partes e operadores, que são, também, objeto de bastante atenção no texto, evidenciam outra dimensão central neste universo: o aspecto relacional que constitui os conflitos, as pessoas e suas relações, o qual encontra dificuldades em ser percebido pelo sistema de justiça e por seus operadores, que se baseiam numa leitura individualizada e atomizada das relações, tomadas como partes.

Percursos e dinâmicas da judicialização da violência doméstica no Brasil

A promulgação da Lei Maria da Penha em 2006 foi precedida por décadas de articulações e pressões de movimentos de mulheres que cobravam do Estado políticas públicas para responder adequadamente e (tentar) coibir os casos de violência doméstica na esfera judicial brasileira. O início desse processo remete à criação da primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) em São Paulo, em 1985, como efeito de público reconhecimento de que as mulheres eram as principais afetadas pelas agressões ocorridas nas relações conjugais e domésticas (PASINATO, 2004; DEBERT, 2006). A criação das DDM é frequentemente retratada como uma maneira de tratar com maior especificidade a situação das mulheres que sofriam violências de seus parceiros, permitindo que o atendimento a elas fosse diferente daquele ofertado pelas delegacias regulares (DEBERT, 2006, p. 16).

Uma década mais tarde somou-se ao funcionamento das DDM o empenho dos Juizados Especiais Criminais (JECrim), instituídos pela Lei n° 9099/95, que processavam os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher através de acordos e conciliações entre as partes em conflito. Isso se devia a dois fatores combinados: a competência dos

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3 juizados de administrarem casos cujas penas máximas previstas em lei não ultrapassassem um ano de detenção, considerados como sendo de “menor potencial ofensivo” (o que era o caso da maior parte dos casos de violência contra a mulher, enquadrados como lesão corporal leve e ameaça) e a missão de aumentar o acesso à justiça de maneira célere por meio deste tipo de instituição despenalizadora (BRASIL, 1995; PASINATO, 2004; DEBERT; OLIVEIRA, 2007).

A atuação dos operadores do direito à frente dos juizados – assim como a própria lógica de funcionamento dos JECrim – foi alvo de consistentes críticas produzidas por movimentos de mulheres que questionavam, sobretudo, a não atenção adequada às situações das vítimas e a produção de penalizações aos acusados que não estariam à altura da gravidade dos casos (DEBERT; OLIVEIRA, 2007). Outro fator que gerava desconforto era a retórica conciliatória operante nas audiências, considerada responsável pela manutenção do ambiente familiar ao fixar mulheres e homens em papeis sociais (mães e esposas/pais e maridos) e não por posições de sujeitos cujos direitos foram violados ou cujas ações foram violadoras (Ibid.). Refletindo a partir dessas críticas seria possível argumentar que os Juizados mantinham os conflitos na esfera doméstica, indo na contramão das expectativas de que a violência contra a mulher recebesse atenção do Estado. A demonstração do sentimento de insatisfação por parte dos movimentos de mulheres à época figurava como resposta a um ato

de desconsideração (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2008), dirigido à violência contra a mulher

enquanto um fenômeno que não estava recebendo a atenção e os cuidados devidos segundo as expectativas daqueles movimentos sociais. À medida que se buscava preservar a relação e o arranjo familiar deixava-se de focar na mulher enquanto sujeito de direitos (DEBERT; OLIVEIRA, 2007. p. 328), ou seja, estaria em curso a desconsideração institucionalizada dos direitos das mulheres e das situações de vulnerabilidade em que elas poderiam se enredadar.

Com a intensificação de debates públicos sobre a violência contra a mulher, as pressões dos movimentos sociais e o engajamento de organizações transnacionais criou-se condições para que fosse promulgada, em 2006, a Lei Maria da Penha. As penalidades cabíveis aos, agora crimes de violência doméstica, abrangem a pena privativa de liberdade de ate três anos, com possibilidade de prisão em flagrante e a retomada do inquérito policial. A lei institui a atenção multisetorial às vítimas, estimula a criação de campanhas de prevenção, o deferimento emergencial de medidas protetivas, a instauração de Varas e Juizados de

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4 Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a suspensão da possibilidade de retirada de queixa pela requerente2 e a proibição da aplicação de penas pecuniárias (BRASIL, 2006).

As dinâmicas de implementação da lei Maria da Penha no judiciário levantam uma série de debates: mesmo que institua novos espaços como os juizados e varas de atenção especial à violência doméstica e familiar contra a mulher e mecanismos como as equipes de atendimento multidisciplinar, o cotidiano de equacionamento destes conflitos evidenciam desafios impostos pela judicialização, os quais estão relacionados a características estruturais do sistema de justiça e do funcionamento das instituições no Brasil e às próprias dinâmicas que constituem o tipo de conflito que se tenta administrar e, no limite, erradicar (SIMIÃO, 2015).

A aplicação da lei Maria da Penha nas práticas do judiciário brasileiro

Carolina Medeiros (2015), ao retratar o cotidiano de audiências de uma Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – VVDFM em Recife, Pernambuco, apresenta dinâmicas entre os operadores do direito e as requerentes dos processos, indicando que aquele espaço combina esforços (ideais) de produção de justiça e garantia de direitos à irrupção constante de tensões. Parte significativa dos novos conflitos que surgem na referida VVDFM se devem às interações entre as operadoras do direito e as mulheres vitimadas que, nas audiências, adotam posturas desmobilizadoras a fim de não colaborar com os ritos processuais que poderiam incriminar seus companheiros/ex-companheiros acusados nos casos (MEDEIROS, 2015).

Os arquivos da referida Vara recifense indicavam que entre fevereiro e dezembro de 2014 haviam sido extintos 43,5% dos processos que lá transcorreram, o que se justificava tanto pela solicitação formal das vítimas quanto pelas inconsistências entre os depoimentos dados no momento do registro das queixas e aqueles firmados nas audiências. Em situações nas quais as requerentes não colaboravam para a culpabilização dos requeridos – justificados comumente pelos vínculos existentes entre eles – se abalavam as relações com as operadoras do direito. Era frequente que as mulheres prestassem, nas audiências, informações divergentes daquelas fornecidas no momento da denúncia, dizendo não se lembrar dos fatos ocorridos no dia das agressões ou se esforçando para falar sobre outras coisas que não aquelas consideradas como relevantes para apuração dos autos (Ibid.).

2 Exceto em audiência perante o juiz marcadas com tal finalidade e antes da realização da denúncia pelo

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5 Outras mulheres chegavam mesmo a não comparecer às audiências, acreditando, com isso, poder interromper o curso do processo. Tais posturas eram respondidas com rispidez e ameaças de condução coercitiva (MEDEIROS, 2015. p. 127-128) como demonstram os trechos abaixo, narrados pela autora.

Antes das deliberações finais, a Juíza perguntou se o acusado ainda tinha contato com a esposa, a fim de saber o porquê de sua falta. [...] Quanto ao paradeiro da mulher, afirmou que quando ligou para saber se ela havia recebido o “papel” da audiência, ela lhe informou que não iria à Vara porque não queria prejudicá-lo. Apontando para o irmão, que também estava na audiência, complementou: “ela disse a mesma coisa pro meu irmão”. O irmão do acusado, então, tomou a palavra e disse que recentemente havia conversado com ela (moram em ruas vizinhas): “ela me disse que não ia depor contra meu irmão não, Doutora, e que se chegasse um papel por lá ela ia rasgar”. A juíza, por fim, respondeu, em tons mais ríspidos que o de costume, ‘pois diga a ela que isso não existe não e que da próxima vez ela venha [...], que, se ela não vier, a polícia vai buscar’. (MEDEIROS, 2015, p. 113).

Em etnografia produzida no Juizado de Violência Doméstica e Familiar do Núcleo Bandeirante, Distrito Federal, Krislane Matias (2015) narra as experiências e percepções de mulheres em suas interações com operadores do direito. O tipo de interação mantida por elas com os com agentes – policiais, delegados e juízes – eram fundamentais para que avaliassem suas experiências com a lei Maria da Penha como satisfatórias ou não. As posturas destes agentes ocupavam posições centrais nas narrativas das mulheres ao avaliarem o desfecho de seus casos, de modo que mesmo as ameaças ou “duras” dos juízes nos acusados, eram componentes das avaliações das requerentes com as experiências no sistema de justiça (Ibid.). Do mesmo modo, a eficiência ou não dos instrumentos legais eram medidos por sua sensação de impunidade ou de não reparação adequada, frente a desfechos que não coibissem os atos dos agressores.

Em relação à agência dos juízes, destaco a percepção das requerentes de que ela poderia transmitir “autoridade” na medida em que impunha “medo” aos acusados, especialmente porque nas audiências os acusados eram “postos contra a parede”, recebendo “chamadas do juiz” sobre a modificação de seus comportamentos ante a possibilidade de

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6 tomada de “providências maiores” (MATIAS, 2015, p. 132-133). É significativo notar que o sentimento de satisfação com a justiça e com a lei Maria da Penha pode estar relacionado à percepção dessas mulheres em serem ouvidas e de terem espaço para a elaboração simbólica de seus conflitos, principalmente quando seus objetivos com os processos não se restringem à aplicação das penas previstas na legislação concernente (SIMIÃO, 2015; MATIAS 2015).

O sentimento de insatisfação, por outro lado, também era comum e igualmente expressivo do tipo de interação estabelecidas entre operadores do direito e as partes em conflito. Se para algumas mulheres no Juizado pesquisado por Matias (2015) se sentir ouvidas e ver a modificação do comportamento de seus (ex)companheiros compunham uma boa experiência com a judicialização dos casos, para outras, o tratamento ofertado pelo sistema de justiça era a porta de entrada para novas agressões e para a sensação de impunidade:

Krislane: Você se sentiu atendida pela Lei? Lygia: Não.

Krislane: Se fosse necessário você procuraria a Lei novamente? Lygia: Não, porque para mim é como eu te falei... A minha visão é que o jeito é eu me conformar (...). Eu me conformei. Não que eu goste de apanhar, como muita gente já me falou, que eu gosto de apanhar. (MATIAS, 2015, p. 139).

Para mulheres como Lygia, o ressentimento por não atingir seus objetivos com a denúncia, somado a eventuais reincidências de violência físicas ou psicológicas (na forma de pressionamentos, ameaças e zombarias) podem tornar o processo ainda mais constrangedor. A fala de Carolina, outra interlocutora de Krislane Matias, demonstra o tipo de descrença gerado no sistema de justiça quando este falha em atender às expectativas das requerentes.

“Vai para Igreja e ora. Porque se for para a justiça não vai dar em nada. Em nada mesmo. É o que eu estou fazendo. Depois que eu vi que a justiça não ia fazer nada por mim eu fui para a Igreja. Fui procurar ajuda em Deus, conversar com Deus” (MATIAS, 2015, p. 140).

A forma como se tem produzido os desfechos para os casos de violência doméstica aponta aspectos significativos da relação entre o que determina a lei Maria da Penha e o que dizem os operadores do direito sobre as leis e sobre as partes envolvidas nos conflitos. A pesquisa realizada por Rodrigo Azevedo e Mariana Craidy (2011) em um Juizado de

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7 Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Porto Alegre (RS) revela como diferentes juízes se baseiam em leituras da lei e em concepções próprias sobre gênero e hierarquias de poder para orientar sua tomada de decisão. Uma forma de se perceber isso é a adoção, por parte de alguns juízes, das controversas transações penais e das suspensões condicionais dos processos.

Ao mesmo tempo em que empregam esses mecanismos como possibilidade de contradádiva pelo encaminhamento de acusados para o tratamento de dependência química ou alcoolismo, há aqueles que seguem à risca as previsões instituídas pela Lei Maria da Penha no que dizia respeito aos ritos penais (inquérito policial, denúncia pelo ministério público, julgamento e sentenciamento), mesmo que isso contrarie os anseios das requerentes (AZEVEDO; CRAIDY, 2011). Seja dessas maneiras ou por meio de variados estilos de julgar (BRAGAGNOLO; LAGO; RIFIOTIS, 2015), os magistrados, ao se depararem com situações de violência doméstica adotam posturas variadas e que, de maneira significativa, não se limitam a aplicação de instituições da própria lei 11.340/06. Esse contexto chama atenção para a necessidade de se discutir que a possibilidade de gerar desfechos satisfatórios, produzir justiça e reparação, pode estar em perspectiva com o tipo de postura do juiz: se é feminista ou não, se está preocupado com a reparação simbólica para as vítimas ou se adota uma postura arbitral/tutelar (Ibid.), o que reforça a leitura de que a experiência com a lei Maria da Penha e com o próprio sistema de justiça pode estar intimamente ligado ao modo como os magistrados conduzem não apenas os processos, mas suas próprias posturas individuais e idiossincráticas.

Em uma etnografia com uma equipe multidisciplinar em um juizado de violência doméstica no Distrito Federal, Simião (2015), narra os esforços para que as requerentes recebessem explicações detalhadas sobre todas as etapas dos processos, tendo, ainda, espaço para escuta e orientação em esferas da vida que escapavam às instituições e aos ritos da justiça. No contexto de atenção às partes em conflito, a equipe colaborava para a elucidação dos conflitos ao permitir que tanto as vítimas quanto os acusados tivessem chance para apresentar suas narrativas, sem que se fizesse daquele um espaço de produção de provas. Era no diálogo entre os profissionais e as partes em conflito que se propunham orientações sobre os comportamentos que deveriam ser adotados por estes últimos, por meio de recomendações sobre como se comportar (em relação ao processo e na vida pessoal): quais os tipos de atitudes aceitáveis ou não dentro do relacionamento, reconhecer como formas de violência doméstica atitudes que poderiam não figurar enquanto tais para as partes (ex. xingamentos), se as mulheres deveriam ou não optar pelo arquivamento do processo, se precisariam solicitar

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8 a suspensão do porte de armas do agressor, se seria recomendável o encaminhamento ao atendimento psicossocial, Alcóolicos Anônimos (AA), Narcóticos Anônimos (NA) e Serviço de Atendimento a Famílias em Situação de Violência etc. (SIMIÃO, 2015). Também havia ali um papel formativo nas decisões e posturas adotadas pelas mulheres, inclusive em eventuais recomendações quanto a descontinuidade dos relacionamentos (SIMIÃO, 2015b, p.62), fazendo dos atendimentos, momentos de orientação e de construção de posturas ou posições de sujeito, mesmo que não se baseasse em ritos incriminatórios.

Pensando a judicialização da violência doméstica no contexto do judiciário Brasileiro

O exercício de compreensão do modo como a Lei Maria da Penha vem sendo mobilizada pelos magistrados brasileiros é potencializado ao considerar alguns aspectos estruturais do Direito no Brasil: o caráter inquisitorial, hierárquico e autorregulado das ações dos juízes. Roberto Kant de Lima (2009) bem ressalta a combinação de aspectos dos modelos acusatórios e inquisitoriais quando da formação do modelo processual brasileiro no século XIX. Fatores como a busca pela verdade real, a relevância da confissão e a necessidade das

provas, são elementos que denotariam conexões históricas de práticas atuais de um sistema

judiciário fortemente preocupado em pressupor culpas e suspeições do que em ser reparador ou garantidor de direitos. A figura do juiz concentra em si o processo de produção de justiça, especialmente ao considerarmos que é ele quem decide a verdade dos fatos e que produz o julgamento, excluindo, muitas vezes, as partes dos processos e não tendo de prestar contas sobre as decisões que toma (Ibid.).

Análises de Teixeira Mendes (2008) chamam a atenção para os desdobramentos dessa concentração dos processos de justiça na figura do juiz, indicando que é o seu convencimento o aspecto chave para os desfechos dos casos. São eles os responsáveis por “descobrir a verdade” e “fazer justiça”, fazendo deles os tomadores de decisão sobre conflitos, sobre os sujeitos neles envolvidos e sobre a própria lei (TEIXEIRA MENDES, 2008). A verdade real, determinada pelos juízes recai em ações idiossincráticas como as que foram retratadas na sessão anterior. As idiossincrasias dos juízes associadas à discricionariedade de suas funções revela como suas decisões são tomadas de modo autocentrado, escapando em maior ou menor nível às normatividades que operam (ou deveriam operar) para a administração dos conflitos de violência doméstica.

As experiências narradas anteriormente apontam para a recriação e negociação das próprias medidas legais e suas previsões a partir das percepções, orientações e/ou disposições

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9 dos operadores do direito, indicando um contexto onde o fazer da lei (e talvez do próprio Direito) se faça na prática dos operadores. Como vimos a partir das experiências das requerentes e de suas avaliações sobre a experiência judicial, tal contexto tem a potencialidade para produzir as mais variadas implicações na vida daqueles e daquelas cujos conflitos foram abarcados pelo escopo da lei (11.340/06) e das próprias instituições nas quais atuam os operadores.

No contexto de aplicação da lei Maria da Penha, os juízes e outros agentes envolvidos nos processos de administração dos conflitos, parecem igualar-se ao próprio Direito – enquanto instituição social – na função de disciplinador, regulador, civilizador e, portanto, potencialmente subjetivador. É preciso notar que com a experiência de judicialização: as requerentes podem tanto ter suas demandas atendidas e alcançarem reparação e seguridade, quanto serem revitimizadas pelos operadores no sistema judicial ou por seus parceiros que não tenham suas condutas reorientadas após o conflito judicial; podem, também, sair do processo de litígio insatisfeitas e descrentes do sistema formal de justiça; os requeridos podem sair punidos, direcionados para serviços de reeducação e ressocialização, ou podem sair do processo não tendo recaídas sobre si quaisquer penalizações formais. Em todas essas possibilidades, afetos são produzidos nas vidas destes indivíduos, afetos que podem impactar mais ou menos no tipo de sujeitos que eles venham a ser, em suas condutas futuras e nas múltiplas relações que eles venham a desempenhar entre si ou com as instituições, sobretudo, no cenário jurídico institucional.

Com a judicialização da violência doméstica cria-se espaço não apenas para o equacionamento de conflitos e produção de justiça, mas também de posições de sujeito e de potenciais efeitos subjetivadores. A centralidade atribuída aos sistemas judiciários e seus aparatos jurídico-burocráticos parece incidir sobre os sujeitos a fim de regular condutas, formas de agir e de perceber o mundo, mesmo que de forma não prevista/esperada pelas próprias agendas políticas que a defendem. Isso tem sido feito de maneira a alcançar tanto requeridos quanto as requerentes dos processos judicializados. A exemplo disso, os desfechos dos casos e as narrativas sobre as interações entre os acusados e os magistrados demonstram como as “duras” dadas pelos juízes poderiam ser responsáveis pela mudança de suas condutas, satisfazendo anseios das vítimas (MATIAS, 2015), ao mesmo tempo que o encaminhamento obrigatório a ambientes como Alcóolicos e Narcóticos Anônimos e grupos reflexivos de gênero seriam imputados como formas de reorientar condutas, especialmente

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10 aquelas consideradas como residuais de uma cultura machista (MARTINEZ-MORENO, 2018).

São simbólicos os conselhos dados às mulheres pelas equipes multidisciplinares que sugerem o prosseguimento ou arquivamento dos casos, a continuidade ou não de relações, e a aceitabilidade ou não de tratamentos dispensados a elas pelos parceiros (SIMIÃO, 2015b). A isso se somam variados constrangimentos vivenciados pelas mulheres no Juizado de Recife, ou pelos estilos dos juízes que podem implicar ou na continuidade forçosa dos casos ou em seu arquivamento diante do perdão judicial. Não apenas os acusados, as próprias mulheres são objeto de reelaboração de condutas e formas de ser e estar no mundo, tendo recaídas sobre si expectativas específicas sobre e agências.

A modelação do individuo (ELIAS, 2011) em curso nos juizados e varas brasileiros, indicam processos que celebram um tipo específico de sujeito, que é autocentrado, individualizado e para o qual deve se preservar a esfera dos direitos individuais. Considerando este como um fenômeno da ideologia moderna (DUMMONT, 1985), parece adequado apontar que se combinam processos de subjetivação e de modernização, através das transformações sociais jurídicas, nas relações, nas individualidades e, não obstante, nos aparatos burocráticos.

Pensar a judicialização como um dispositivo de governo (FOUCAULT, 1979) permite reconhecer que ela busca reorganizar relações (apontando o que é aceitável e o que não é) e produzir sujeitos. A particularidade é que, o tipo de experiência que esses sujeitos terão com as instâncias judiciais podem interferir em suas próprias leituras sobre as instituições de justiça, seus operadores, seus próprios direitos e sua individualidade, resultados que não são, de forma alguma, uniformes (MATIAS, 2015). Os contextos apresentados demonstram que não se trata apenas do Direito ou da Justiça enquanto instituições sociais produtoras de subjetividades, mas sim da potencial produção de subjetividades a partir das condutas dos magistrados (e, em menor medida, de outros agentes envolvidos), suas práticas e posturas, construídas diferentemente e com diversos objetivos, uma vez que os juízes se pautam mais em suas próprias concepções/valores do que na doutrina (TEIXEIRA MENDES, 2008).

A lógica judicial e os desafios na garantia de direitos: considerações finais

As demandas que levaram à judicialização dos conflitos de violência doméstica, conferiram maior reconhecimento institucional a esta expressão da violência baseada no

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11 gênero. A vida social da Lei Maria da Penha, constituída na prática dos operadores do direito, em varas e juizados no país tem levantado questões particulares, devidas, principalmente, a algumas características estruturais do judiciário do país. O cenário ao qual estamos diante, demonstra uma preponderância do direito dos operadores sobre o Direito enquanto doutrina, ou seja, da agência dos magistrados, combinando suas próprias convicções às suas possibilidades de ação (discricionariedade), se sobressaindo aos aspectos legais e, frequentemente, à vontade das próprias partes lesadas nos processos.

É justamente dessa esfera prática de agência dos magistrados que parecem se desenvolver os principais afetamentos, passiveis de compor as experiências de subjetivação das partes envolvidas nos conflitos. Produzindo, entre outras coisas, a fixação das posições dos sujeitos dos conflitos em vítima e agressor, perpetuando uma situação de tutela (DEBERT; OLIVEIRA, 2007; RIFIOTIS, 2008; SIMIÃO, 2015), a proposição de reorganização de suas formas de experienciar relações, contatos com as instituições de justiça e de outros efeitos não previstos, o sistema de justiça brasileiro tende a não traduzir adequadamente (em suas práticas) as demandas originais dos sujeitos políticos que buscavam por justiça, reparação e garantia de direitos. Parece haver, sim, a atuação do sistema judicial como motor da empreitada modernizadora, contribuindo para o enraizamento de um tipo especifico de sujeito individualizado por meio de estratégias que colaboram para processos de subjetivação.

Algo frequentemente desconsiderado nos espaços de produção de justiça é o aspecto relacional que é componente fundamental das relações, ainda que conflitivas e marcadas pelo uso da força. Pensar os conflitos categorizados institucionalmente como sendo de violência

doméstica de maneira relacional é uma abordagem que os considera como emergentes de

relações entre sujeitos, e que, portanto, são construídos a partir dos jogos de expectativas, das assimetrias existentes nessas interações e das dinâmicas de poder negociadas dentro destas (GREGORI, 1993). Situações, narrativas e biografias marcadas por conflitos interpessoais conjugais envolvem, frequentemente, tramas muito complexas para enredar e manter pessoas, as quais são de difícil tradução em um sistema de justiça que afasta essencialmente as partes, tomando-as como essencialmente dissidentes. Posturas como a de mulheres que não têm o objetivo de penalizar os (ex)companheiros e, portanto, agem no sentido de não culpabilizá-los tendem a ser vistas no judiciário como irracionais (MEDEIROS, 2015).

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12 Isso pode estar relacionado, também, a estrutura do direito positivado que constitui o judiciário brasileiro e que toma os sujeitos como indivíduos, mas que acaba por desconsiderar que os conflitos relacionais, ou seja, os de violência doméstica, têm um tipo de constituição de difícil apreensão e de difícil tradução em termos atomizados. A maneira como isso discorrerá segue uma questão em aberto, mas algo que se apresenta já desde os primeiros anos pós implementação da lei Maria da Penha, são os desafios em equalizar as demandas originais de garantir direitos e produzir reparação para mulheres num sistema de justiça caracterizado pelo poder autocentrado dos juízes, que produzem muitas outras coisas que não o simples equacionamento de conflitos.

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14 PASINATO, Wânia. Delegacias de Defesa da Mulher e Juizados Especiais Criminais: mulheres, violência e acesso à justiça. Texto apresentado na Anpocs. 2004.

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Referências

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