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Autotradução e autotradutores: breve histórico

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Academic year: 2021

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Autotradução e autotradutores:

breve histórico

Maria Alice G. Antunes

Professora Assistente, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Introdução

Em artigo intitulado “As pesquisas historiográficas em tradução” (2001), Adriana Pagano, pesquisadora da tradução, escreve que “o campo da historiografia da tradução constitui uma área incipiente e pouco explorada dentro de uma disciplina igualmente incipiente e em vias de consolidação como é os Estudos da Tradução” (p. 117). Mauri Furlan (2001) também aponta para o fato de que “a tradutologia ainda está se articulando para a constituição de uma história do pensamento sobre a tradução” (p. 11). Se as pesquisas historiográficas em tradução, entendida de maneira geral como uma operação – executada por um tradutor – que envolve a transferência de um texto de uma língua para outra, se encontram no começo, a história da autotradução, ou da tradução de um texto pelo próprio autor, é praticamente inexistente. Neste trabalho1 pretendemos

contribuir para a construção, em um primeiro momento, de um registro de autores que exerceram tal atividade

Resumo

Neste artigo, traçamos um relato inicial acerca da história da autotradução para promover a construção de um registro inicial de dados. Ressaltamos, também, a principal característica das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas sobre o tema e apontamos aquela que consideramos uma carência dos estudos até agora: a análise das pressões de natureza sistêmica que afetam o trabalho de autotradutores. Em seguida, discutimos brevemente o caso dos escritores belgas, catalães e escoceses e os casos de Milan Kundera e João Ubaldo Ribeiro, ressaltando o papel de agentes culturais na publicação dos romances autotraduzidos pelos dois autores. Finalmente, apontamos questões que se apresentam para investigações futuras.

Palavras-chave: autotradução, história, autotradutores

Abstract

In this article we aim at presenting a historical account of self-translation. Also, we discuss the fundamental characteristic of research in this area, pointing at what we consider to be an issue that has been neglected so far: the pressures of systemic natures that influence self-translators’ work. In addition, we analyse the cases of Belgian, Catalan and Scottish writers and the work of Milan Kundera and João Ubaldo Ribeiro, outlining cultural agents’ role in the translation processes of these two contemporary authors. Finally, we include questions which need to be answered by possible future research on the phenomenon.

Keywords: self-translation, history, self-translators.

através dos séculos, e durante os séculos XX e XXI em especial, para em seguida apontar possíveis caminhos de investigações acerca do tema.

É importante ressaltar que a quase inexistência de pesquisas historiográficas em autotradução nos força, inicialmente, à construção de uma história de dados, “um registro de nomes e fatos” (Pagano, 2001: 127) e nos distancia, em princípio, de uma análise crítica mais profunda do contexto social e histórico em que a atividade esteve ou está inserida. Entretanto, ainda que estejamos no momento preocupados com o levantamento de dados que possam servir de base a investigações futuras, não pretendemos apresentar um relato isento de considerações acerca do contexto sócio-histórico em que a autotradução tem se inserido. Pelo contrário, pois os dados coletados até o momento sugerem que o contexto é um agente fundamental. Não pretendemos sugerir tampouco que o sujeito que trabalha na construção de “um registro de nomes e fatos” é um mero observador, já que acreditamos que o “historiador

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desempenha um papel de filtro e agente de produção de um relato determinado [...] partícipe na construção da narrativa que está sendo gerada” (p. 120).

Na tentativa de possibilitar a construção de um histórico da autotradução, o presente artigo está dividido em três partes. Em primeiro lugar, apresentaremos um resumo da história da autotradução desde Flavius Josephus (século I) até o século XIX mostrando, de forma especial e principal, as considerações do estudioso Julio Cesar Santoyo (2002: 27-32) sobre o tema. Em seguida, apresentaremos um registro dos autotradutores dos séculos XX e XXI, foco de nossa pesquisa atual sobre o caso do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro, da qual este trabalho é parte integrante. Finalmente, apontaremos conclusões e possíveis questões para uma análise futura mais elaborada.

A autotradução através dos séculos

Segundo Helena Tanqueiro (2002), autora de tese recente sobre a autotradução, a atividade instituiu-se como prática de escrita quando Flavius Josephus escreveu em aramaico e traduziu (ele mesmo) para o grego sua narrativa sobre a destruição de Jerusalém e do Templo pelos romanos no século I (p. 38). Seu objetivo ao traduzir o texto de sua autoria, aparentemente, foi a difusão da informação, pois “o grego era a língua mais usada no Império” (ibidem). Em um extenso registro de autores que exerceram a atividade de tradução do próprio original, Julio César Santoyo (2002) relata, além do feito de Josephus, nomes de autores judeus, ingleses e catalães que traduziram seus próprios textos durante toda a Idade Média (p. 28). Em tal relato uma característica despertou, de imediato, nossa atenção: todos os textos mencionados pelo pesquisador têm em comum o fato de que eram textos técnicos2. Entre os

textos autotraduzidos de então, vemos tratados sobre matemática e, principalmente, sobre religião.

Santoyo afirma ainda que “a versão da própria obra a outro idioma floresceu de forma particular no século XV na península ibérica”3 (ibidem) quando a

tradução pelo próprio autor do original de textos tidos como literários foi bastante freqüente. Segundo Santoyo, a autotradução explodiu, especialmente na tradução do latim – a língua da cultura – para as línguas vernáculas, nos séculos XVI e XVII (2002: 29). O pesquisador descreve como o continente europeu encheu-se de textos únicos no final da Idade Média e durante o Renascimento: uma mesma obra, escritas em duas línguas distintas, pelo mesmo autor (ibidem). Também Antoine Berman (2002) já havia relatado que, no mesmo período, “os poetas

europeus eram freqüentemente plurilíngües. Eles escreviam em várias línguas e para um público que também era poliglota. Não menos freqüentemente, eles se autotraduziam [grifo do autor]” (p.13).

Santoyo (2002: 29) segue demonstrando como a autotradução continuou a ser exercida durante os séculos XVIII e XIX até os dias atuais, contrariando assim a informação geralmente apresentada em dicionários e enciclopédias que tendem a classificar a atividade como uma prática pouco comum, ou ainda como uma atividade específica de algum século da história. Segundo a

Routledge Encyclopedia of Translation Studies

(Baker, 1998: 18), por exemplo, a autotradução era prática bastante comum entre autores europeus do século XVI, que escreviam seus textos em latim, a língua da literatura na Europa de então, e, em seguida, os traduziam para exercitar a habilidade de escrever textos literários. Em outras palavras, destacamos que a função propedêutica da autotradução é implicitamente apontada como fator essencial e, por que não dizer, estimulante, para os poetas da época.

De fato, a lista de autotradutores apresentada por Santoyo (2002) sugere que não temos até hoje nem mesmo um registro confiável de autotradutores e autotraduções. Não podemos negar, portanto, que o referido artigo, que demonstra claramente que o número de autotradutores e autotraduções é maior do que aquilo que normalmente pensamos, é um material importante como ponto de partida para uma pesquisa historiográfica sobre a autotradução. Entretanto, uma pesquisa mais extensa será necessária para que saibamos, em primeiro lugar, quem foram os autores que traduziram seus próprios textos, quais textos foram traduzidos por seus autores ou as razões que os levaram a exercer a tarefa. Consideramos que uma das principais conseqüência dessa falta de conhecimento é que ainda são poucos os estudos sobre o tema e neles as indagações acerca da autotradução tendem a repetir o foco na individualidade do autor de ambos os textos – original e tradução –, deixando de lado, por exemplo, pressões de natureza sistêmica (Filippakopoulou, 2002: 24-25).

Após relatarmos rapidamente como a autotradução foi uma atividade freqüente desde o século I até os séculos XVIII e XIX, pretendemos agora apresentar um relato acerca da autotradução desde o século XX até os dias atuais. Sendo esse o foco deste trabalho, demonstraremos como pressões de natureza sistêmica afetam o trabalho dos autotradutores contemporâneos Milan Kundera e João Ubaldo Ribeiro.

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A autotradução nos séculos XX e XXI Santoyo (2002) afirma que “o certo é que a autotradução não é ‘característica da configuração lingüística e cultural da Europa do Renascimento’, mas sim característica, em pleno séculos XX e XXI, de Canadá e Estados Unidos, da Índia, Espanha, Rússia e África do Sul, e também característica de qualquer outro tempo, desde a Idade Média até os primeiros meses do ano de 20024 (p. 28)”. O estudioso segue citando nomes

de autores contemporâneos que traduziram suas próprias obras, entre eles Vladimir Nabokov e Samuel Beckett, que são também aqueles que têm merecido maior atenção de acadêmicos, especialmente aqueles intessados na área de Literatura Comparada além de alguns estudiosos da tradução. Entre os autotradutores citados por Santoyo estão ainda Raymond Federman, Manuel Puig, Ariel Dorfman, Cabrera Infante, Julien Green, Elsa Triolet, Nancy Huston, Karen Blixen, Rabindranath Tagore, Isaac B. Singer, Czeslaw Milosz e Joseph Brodsky (pp. 29-30). Entretanto, da lista de Santoyo ficam de fora autores como Milan Kundera, apontado por Lawrence Venuti (2002) e Tanqueiro (2002) como autotradutor, o brasileiro João Ubaldo Ribeiro, tradutor de dois romances de sua autoria para o inglês, os belgas Roger Avermaete e Marnix Gijsen (Baker, 1998) e os poetas escoceses Meg Bateman e Aonghas MacNeacail (Whyte, 2002: 67). Em outras palavras, cremos que já extenso registro pode ser aumentado. Observamos ainda que os autotradutores citados acima podem ser divididos em dois grupos. No primeiro, incluímos autores vistos como canônicos em seus polissistemas literários de origem e também no sistema estrangeiro, tais como Cabrera Infante, Rabindranath Tagore, Joseph Brodsky, Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Milan Kundera. João Ubaldo Ribeiro, escritor prestigiado no Brasil e cujas obras constam de listas de bestsellers em seu país de origem, não alcançou o mesmo impacto no exterior, como ele mesmo aponta (Cadernos de Literatura Brasileira, 1999: 41). No segundo grupo, incluímos autores que vivem em locais que apresentam questões político-geográficas de tensão, tais como os escritores belgas, catalães e escoceses. Consideramos, contudo, que os dois grupos se encontram unidos por um objetivo comum: o desejo de atingir um número significativo de leitores. Como o próprio João Ubaldo Ribeiro (1990) comenta em artigo sobre o trabalho de autotradução, ele só aceitou o “desafio” porque isso permitiria o alcance de um vastíssimo público-leitor, que ele não poderia atingir se sua obra não fosse traduzida (p. 4). Mas, vejamos

como a autotradução vem acontecendo nos séculos XX e XXI. Destacaremos, especialmente, os casos dos escritores belgas, catalães e escoceses, além dos de Milan Kundera e João Ubaldo Ribeiro. Nossa escolha se deve ao fato de que esses são os casos menos estudados até agora.

De acordo com a Routledge Encyclopedia of

Translation Studies (Baker, 1998), a Bélgica produziu,

recentemente, um grupo de autores bilíngües e é importante apontar as circunstâncias que envolveram o surgimento de tais autores. A Bélgica é um país em que pelo menos duas línguas distintas têm convivido ao longo dos anos, já que o francês e o flamengo são línguas oficiais, além do alemão, nesse país desde 1963, quando a fronteira lingüística foi delimitada depois de anos de uma alternância de hegemonia entre os dois idiomas. Dois grupos de autotradutores se destacam no país, mas há uma distinção marcante entre eles. Os escritores mais idosos, como Roger Avermaete, escrevem seus originais em francês para depois traduzi-los para o flamengo, enquanto um grupo de escritores mais jovens, como Marnix Gijsen, percorre o caminho oposto: escreve o original em sua língua materna – o flamengo – para depois traduzi-lo para o francês. A mudança de mão da autotradução pode ser atribuída às transformações políticas ocorridas nesse período. Conforme afirmamos anteriormente, a fronteira lingüística só foi estabelecida em 1963. Ou seja, escrever na língua materna, portadora, por assim dizer, de uma identidade própria é uma questão importante para os jovens escritores belgas e, assim, é esperado que tais autores estejam preocupados com a produção de textos cuja língua original seja o flamengo. A tradução para uma língua que seus leitores potenciais entendem – o francês – pode ser explicada pela vontade de marcar tal língua (o francês) como língua estrangeira (ou aquela que em que não conseguimos expressar quem somos) e ainda pela necessidade de atingir um público-leitor maior.

Na região da Catalunha, na Espanha, onde dois idiomas convivem por razões históricas, e onde os falantes, por questões práticas, movem-se entre duas línguas a autotradução sobrevive. Segundo Tanqueiro (2002), na Catalunha muitos autores, tais como Antoni Marí, Carme Riera, Francesc Parecerisas, Lluís Maria Todó e Alfredo Conde, traduziram (e ainda traduzem) seus próprios romances (p. 39). Santoyo (2002: 30) também afirma que a Península Ibérica, “terra de fronteiras lingüísticas e culturais [...] nunca conheceu tamanha proliferação de traduções do próprio autor como no século XX”5. Cremos que mais uma vez a luta

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os escritores na direção da escrita em uma língua portadora de uma identidade pessoal e nacional. Carme Riera, escritora catalã, afirma que traduz seus textos escritos em catalão somente para o castelhano, porque esta é a única língua, além de sua língua nativa, que conhece, mas o castelhano também é a língua na qual Riera não consegue expressar a si mesma, pois não é aquela que adotou como primeira (2002: 12). Por outro lado, os mesmos escritores desejam que seus textos possam atingir um número mais significativo de leitores e, por isso, os traduzem e publicam em castelhano. Riera (2002: 11) afirma que os escritores que traduzem a si mesmos o fazem também porque desejam atingir “a maioria de leitores possível, em todas as línguas possíveis” e porque desejam a afirmação de uma identidade catalã, distinta da espanhola.

Além da Catalunha, Santoyo (2002: 31) menciona o País Basco, terra dos independentistas bascos (o ETA), como local em que as autotraduções proliferam. Também aqui, a luta por uma identidade própria e o desejo de ser lido por uma quantidade maior de leitores podem ajudar a explicar as razões que levam escritores, como o poeta Nicolas Ormaechea-Orixe, à escrita na língua materna, restrita àquela região da Espanha, e à posterior tradução para o castelhano.

A Escócia também é uma região em que a questão lingüística é importante e aparece como causa da poesia escrita em língua “materna” (o gaélico-escocês) e tradução para o inglês. Entretanto, a publicação dos poemas autotraduzidos em edições bilíngües, lado a lado com os poemas originais, apaga, na opinião de Christopher Whyte (2002: 70), a diferença entre original e tradução. Contribui também para que o gaélico-escocês não seja adotado, por assim dizer, como idioma oficial de fato, já que ele não é “necessário”.

Como vimos, a autotradução, tal como praticada atualmente, é apresentada como uma atividade exercida por um grupo de autotradutores, situado geograficamente, que luta por uma identidade própria. Há, porém, autores que não podem ser assim agrupados por não habitarem uma região específica com questões políticas em comum. Entre eles estão aqueles já citados por Santoyo (2002) e também Milan Kundera e João Ubaldo Ribeiro, autores a quem os estudiosos da tradução não haviam se dedicado até recentemente. Vejamos algumas das características dos dois casos.

Nascido em família de classe média alta, filho de um musicólogo e reitor da Universidade de Brno, Milan Kundera escreveu seus primeiros poemas ainda jovem. Durante os anos 50, trabalhou como tradutor, ensaísta e escreveu peças teatrais. Seu primeiro romance, intitulado

A brincadeira (1992), foi publicado em 1967 na antiga

Iugoslávia e, posteriormente, traduzido para vários idiomas. A tradução do texto para o inglês parece ter sido uma das poucas, senão a única, experiência de tradução do próprio texto de Milan Kundera, a julgar pelo resultado de ampla pesquisa bibliográfica. O caso de Kundera era, até a publicação de Translating Milan

Kundera (Woods, 2006), apenas parcialmente

conhecido. O papel da editora de Kundera, Nancy Nicholas da Knopf Publishing Group, por exemplo, não foi levado em conta por estudiosos do caso que tendiam a apresentar análises bastante severas acerca do posicionamento do autor tcheco isoladamente, sem levar em conta a mediação de outros agentes culturais no processo de publicação de um romance. Na verdade, o papel de Nancy Nicholas foi fundamental, já que, segundo Woods, ela alterou o texto traduzido para adequá-lo às expectativas do leitor norte-americano (2006: 25).

O caso de João Ubaldo Ribeiro é semelhante ao de Kundera, pois a autotradução não é uma atividade constante na carreira do escritor brasileiro. Ele é filho de bacharéis em Direito e as biografias publicadas nos

Cadernos de Literatura Brasileira (1999) e na série Perfis do Rio (1998) creditam ao pai do escritor seu

gosto pela leitura. Seu primeiro romance, Setembro não

tem sentido, foi publicado em 1968, mas não obteve

sucesso de vendas ou de crítica. O romance que lançou Ubaldo como escritor no cenário nacional foi Sargento

Getúlio, pulicado em 1971, e que deu a ele o Prêmio

Jabuti na categoria “Revelação de Autor”. Sargento

Getúlio foi também o primeiro romance que o próprio

escritor verteu para o inglês. Viva o povo brasileiro, publicado em 1984, rendeu a ele o Prêmio Jabuti na categoria “Romance”e o Golfinho de Ouro, do governo do Estado do Rio de Janeiro. Além de sucesso de crítica,

Viva o povo brasileiro foi também sucesso de vendas

(ao contrário de Sargento Getúlio), figurou nas listas de bestsellers de vários jornais do país e foi o segundo romance vertido para o inglês pelo próprio autor. João Ubaldo teve ainda o romance O sorriso do lagarto vertido para o inglês pelo tradutor norte-americano Clifford Landers. Os editores norte-americanos exerceram, também no caso do escritor brasileiro, um papel preponderante. Segundo o próprio João Ubaldo, os editores alteravam suas “figuras de linguagem”, seu “estilo” (e-mail: 24/09/2003) na tentativa de aproximar suas autotraduções do leitor estrangeiro. Sendo o público norte-americano pouco afeito à traduções (Landers, 2006), não é surpreendente que os profissionais locais tentassem produzir um texto que proporcionasse uma

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leitura mais fluente. Entretanto, o caso das autotraduções do escritor brasileiro é praticamente desconhecido no cenário acadêmico, como afirmou recentemente João Carlos Teixeira Gomes (2005: 75).

Vemos que nos dois casos o papel dos editores (norte-americanos) foi fundamental, já que a exigência de um texto fluente foi preponderante. Notamos também que a autotradução foi uma atividade aparentemente esporádica nas carreiras de Milan Kundera e João Ubaldo. Outros como Samuel Beckett, Vladimir Nabokov fizeram da tradução dos próprios textos uma atividade constante. Vemos também que a autotradução foi prática comum entre autores bilíngües, exilados, voluntária ou involuntariamente, em países estrangeiros, tais como Beckett, Nabokov e o próprio Kundera, diferentemente de João Ubaldo Ribeiro.

Diante dos dados descritos aqui, passamos agora a relatar as possibilidades que vemos, no momento, para investigações futuras.

Questões para investigação

Como vimos anteriormente, a autotradução é uma atividade bastante freqüente nos países bilíngües, ou naqueles em que existe a busca por uma identidade lingüístico-cultural e política. Assim, a Bélgica, a Espanha, a Escócia e outros países como a Índia e o Canadá, por exemplo, são locais em que possivelmente muitos autores, além daqueles que já conhecemos, fazem da tradução de seus originais uma atividade constante. É um desafio chegar a um registro que inclua a maioria dos fatos.

Entretanto, acreditamos que não deve ser essa a preocupação maior dos historiadores da autotradução, especialmente porque a inserção de autores em tais grupos não garante o apagamento das muitas diferenças individuais. Recentemente, a revista Quimera (2002) lançou volume especial sobre a autotradução. O volume apresenta relatos de autores catalães acerca da tradução de seus próprios textos, que demonstram opiniões e procedimentos distintos. Enquanto alguns dos autores vêem a tradução, mesmo que feita pelos próprios autores do original, como cópia imperfeita e declaram a impossibilidade da tarefa, outros instruem seus agentes a considerarem, “em suas negociações com editores estrangeiros, a versão espanhola tão original [...] quanto a versão catalã” (Marí, 2002: 15-16).

Acreditamos, portanto, que a visão de tais autores como um grupo que busca uma identidade própria não é suficiente. Para que possamos tentar compreender a autotradução precisaremos de estudos de caso que

focalizem autores específicos e examinem as estratégias e técnicas de tradução empregadas, o contexto em que os autores e obras estão inseridos e a influência que o contexto exerce sobre esses autotradutores. Além disso, será importante contrastar a prática desses autores àquela de tradutores profissionais se desejamos apontar possíveis limites entre as duas atividades – autotradução e tradução. Tal exame poderá responder, por exemplo, se o autotradutor prefere manter a presença de suas tradições e costumes no texto traduzido ou apagar sua própria cultura na tentativa de uma comunicação mais fácil com o leitor a quem a obra traduzida se destina. O cotejo entre o texto original e o texto traduzido permitirá também a investigação acerca do papel do autor quando traduz. Exercerá ele, na maioria das vezes, o papel do autor inserindo modificações costumeiramente negadas ao tradutor? Ou o autor exercerá o papel de tradutor, afirmando a autoridade do texto em detrimento de sua própria autoridade sobre o original?

Vemos ainda autores que não estão inseridos em grupos ou locais específicos, mas que fizeram da tradução de seus próprios textos e de textos de outros autores uma prática constante em suas vidas profissionais. Samuel Beckett e Vladimir Nabokov, por exemplo, traduziram seus próprios textos e textos de outros autores durante toda a vida. Outros autores parecem ter exercido a autotradução esporadicamente, tais como Milan Kundera, por exemplo. Contudo, entre eles há uma característica comum: o exílio, forçado ou voluntário, fora de seus países de origem, além do bilingüismo que o exílio provocou.

Outras questões podem ser acrescentadas. Poderíamos aventar, por exemplo, outros motivos que levam um autor a assumir a empreitada. Seria a sensação de que o original lhe pertence e, por isso, não pode ou não deve ser reescrito ou traduzido por outro que não seja ele mesmo, autor do original? Haveria certo sentimento de desconfiança em relação aos tradutores de maneira geral? Ou ainda, o autor gostaria de traduzir e preferiria ver seu texto traduzido por si mesmo para que suas intenções e escolhas permaneçam intactas? Ou teria o autor motivos mais práticos: ele precisa da tradução, por motivos diversos, sabe os idiomas que a tradução envolve e então resolve enfrentar o desafio? Que outros motivos poderiam existir?

Finalmente, cremos que há ainda a necessidade de uma investigação acerca da localização das obras autotraduzidas no polissistema literário estrangeiro. Uma pesquisa superficial dos paratextos sugere que há certa confusão em relação à definição da atividade do autor que traduz seu próprio texto. Enquanto algumas quarta

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capas trazem a marca “translated by the author”, outras dizem que o texto foi “revised by the author” ou ainda que o texto é uma “augmented translation by the author”. O exame de tais afirmações sugere que o autor é uma figura importante e também que ele exerce uma atividade que é, talvez, diferente de traduzir. É justamente às possíveis distinções entre a tradução e a autotradução que nos dedicaremos futuramente.

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Notas

1Este trabalho é parte da pesquisa realizada na

Universidade de Warwick durante estágio de doutoramento com bolsa concedida pela CAPES.

2Refiro-me aqui, de forma restrita, aos textos que não

“cabem” dentro de um gênero (narrativo, lírico, dramático) ou modo (épico, bucólico, trágico, cômico, satírico) literário.

3 Minha tradução do original em catalão. 4 Minha tradução do original em catalão. 5 Minha tradução do original em catalão.

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