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Meu encontro com mestre Caiçaras

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Academic year: 2021

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Meu encontro com mestre Caiçaras

Mas nem tudo era "academicismo" entre os mestres mais

reconhecidos de Salvador. É verdade que os "valentões" e

os "disordeiros", os "bambas da era de 1922", tinham sido

desbancados pelos "educadores" como mestre Bimba,

seguido de vários outros, entre os quais o famoso mestre

Pastinha.

Mas os disordeiros não partiram sem deixar herdeiros que

eram encontrados nas ruas, no Mercado Modelo, etc. O

mais famoso entre eles era Mestre Caiçaras (Antonio

Conceição Moraes, 1923-1997), "o dono da capoeira de

rua", com sua impressionante voz, grave e profunda.

O vozeirão de Caiçaras ressoava como o dos possantes

cantores de ópera; tanto pelo volume, quanto pela afinação,

e também por um natural e sadio exibicionismo.

Na música brasileira, seria o equivalente de um Orlando

Silva - "o cantor das multidões" -, um Cauby Peixoto, ou um

Nelson Gonçalves, que dominaram o cenário da música e

do rádio com seus vozeirões, até aproximadamente 1960,

quando foram finalmente destronados pela Bossa Nova com

seus cantores de voz baixinha, suave e "intimista" como João

Gilberto, Nara Leão, Tom Jobin, Vinicius de Moraes, etc. -,

todos influencidos pelo jazz norte-americano e seus cantores

cool, tipo Chet Baker.

Mas Caiçaras não era apenas um falastrão cheio de

presepadas e (o que soava como) lorotas (aos ouvidos do

iniciante): levantava sua camisa e mostrava a marca dos

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tiros, das facadas, das navalhadas; cada uma com sua

história, que ele contava de bom grado se o convidassem

para beber uma cerveja gelada acompanhada de cachaça e

tira-gosto.

Alem disso, no candomblé não se brincava com ele. As

múltiplas e vistosas guias que adornavam seu pescoço taurino

não estavam ali apenas para fazer bonito.

Quando o conheci - eu, um iniciante de 23 anos de

idade; ele, um homem maduro e mestre renomado de 46

anos -, após inúmeras cervejas super-geladas (algo que não é

sempre fácil de achar em Salvador) e tiragostos variados,

estávamos sentados numa área de má reputação, do lado

de fora de um botequim pé-sujo - ele, sentado, balançando

para a frente e para trás como se numa cadeira-de-balanço;

eu, num banquinho -, quando subitamente uma patrulhinha

da polícia brecou no meio da rua e dela desceu um sargento

tamanho geladeira que, a passos largos, se encaminhou

cheio de decisão na nossa direção.

Eu trinquei.

Fiquei mais gelado que a meia dúzia de louras que

havíamos consumido.

É que havia um pequeno problema. Aliás, pequeno não:

mestre Caiçaras segurava displicentemente, na mão repleta

de anéis, um itaba di ungira de fazer inveja a qualquer charuto

cubano de Fidel Castro. Rapidamente, por entre os vapores

alcoólicos - tínhamos temperado a cerveja com algumas

bem servidas doses de cachaça -, e o fumacê da cannabis

sativa, vislumbrei meu futuro próximo: ver o sol nascer

quadrado por entre as grades de uma janelinha da

penitenciária soteropolitana.

Olhei rápido para mestre Caiçaras e me preparei para o

que desse e viesse.

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Será que ele, com seu passado de rufião, ia dar testa aos

homens da lei?

Ele continuava impávido no seu balanço na cadeira do

bar, e a única atitude radical que tomou foi dar mais um

profundo trago no charo, empestando mais ainda o odorífico

do ambiente.

O sargento chegou, parou em frente a Caiçaras, tocou

um joelho no chão, traçou uns pontos riscados no chão,

osculou a mão do mestre e pediu:

- Sua benção, meu pai.

Caiçaras, bateu a cinza do charuto e traçou, com a

mesma mão enfumaçada, alguns sinais cabalísticos sobre a

cabeça do sargento enquanto murmurava algumas frases em

nagô.

O sargento levantou-se, agradeceu, entrou na

patrulhinha, e partiu.

Meu encontro com mestre Canjiquinha

Mestre Canjiquinha era conhecido por estar sempre de bom humor; era exímio contador de piadas com as quais recheava suas apresentações de capoeira, fazendo

sucesso entre turistas e gringos. Mas isto despertava a ira (e inveja) de seus colegas, e o desprezo do estudioso purista; achavam que um mestre devia se enquadrar num "molde" de seriedade.

Seus alunos, no entanto, o adoravam e apelidaram-no "a alegria da capoeira".

Waldeloir Rego, ao descrever as qualidades de cada mestre no Capoeira Angola (um livro de 1968 que marcou época, inaugurou uma nova fase dos estudo sobre

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atuavam, ensinavam, e faziam apresentações para turistas, em Salvador na década de 1960 -, ressalta que Canjiquinha era jogador e ensinava "porém seu maior destaque é no canto e no toque".

Aliás, isto é um detalhe importante que vale a pena resaltar mais uma vez: em pleno 1968, quando o Grupo Senzala ja estava bombando no Rio; e as academias de Acordeon, Suassuna, Paulo Gomes e outros já estavam entupidas de alunos em São Paulo; Waldeloir cita apenas uma dúzia de mestres em atividade em Salvador e, destes, apenas mestre Bimba tinha alunos suficientes para (sobre) viver exclusivamente de capoeira - daí, a grande disputa para ser o mestre convidado a dar apresentações (pagas) pelo orgão oficial de turismo soteropolitano.

Salvador é a "terra-mãe" da capoeira mas nunca deu mole para seus ilustres filhos que se tornaram mestres: para sobreviver exclusivamente de capoeira, são obrigados a viajar no Brasil ou exterior. E, mesmo hoje, não existe um só mestre em Salvador que tenha mais de 10 alunos baianos pagando mensalidades - e, daí, a disputa pelos alunos visitantes, brasileiros e gringos, que querem conhecer a "verdadeira capoeira baiana".

É difícil para o capoeirista de nossos dias avaliar o peso e a importância que mestre Canjiquinha teve nas décadas de 1950, 1960 e 1970, na capoeira de Salvador e do Brasil: sua imagem, após sua morte, foi eclipsada pela luz de

Bimba e Pastinha. Porque?

Seus alunos não perpetuaram seu nome - não por

descaso, mas pela própria natureza daquela rapaziada, em grande parte ligada ao mundo das ruas -,algo que também aconteceu com Waldemar e Caiçaras. Mas o currículo de Canjiquinha é revelador:

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Canjiquinha nasceu em 1925 no Maciel de Baixo, zona de malandragem e prostituição; era, portanto, 36 anos mais novo que Pastinha, e 25 anos mais novo que Bimba. Ou seja, uma diferença semelhante à minha com meus filhos.

Começou capoeira com Aberrê em 1935, aos 10 anos de idade. Em 1951, com 26 anos, era contramestre e dava aulas na academia de Pastinha.

Foi goleiro do Ipiranga Futebol Clube (o preto-e-amarelo, cores que Pastinha escolheu para sua academia); foi cantor de gafieira; durante muitos anos, foi o responsável pelos shows de capoeira do orgão oficial de turismo de Salvador; organizou e participou das cenas e rodas de capoeira dos filmes "Barravento" (dir.: Glauber Rocha); e "Pagador de Promessas" (dir.: Anselmo Duarte), que gannhou a "Palma de Ouro" do prestigiado Festival de Cinema de Cannes (França).

Estas participações, em filmes que se tornaram clássicos do cinema brasileiro, muitas vezes é lida rapidamente sem que o leitor se dê conta do peso que isto tinha nos 1950s/ 1960s.

A televisão ainda engatinhava e o "cinema novo" era o ti-ti-ti de artistas, intelectuais, jornalistas, e do próprio governo que via o Brasil ser aclamado no badaladíssimo Festival Internacional de Cannes (depois do "Pagador de

Promessas", o Brasil nunca mais foi vencedor em Cannes, na França; nem tampouco no Oscar de Hollywood).

No filme, a cena da roda de capoeira na frente da igreja de Santa Bárbara, a briga dos capoeiras com a polícia (que não queria que Zé do Burro entrasse na igreja carregando sua cruz), a morte de Zé do Burro e sua entrada na igreja, deitado morto em cima da cruz carregada pelos capoeiras e pelo povo, é o ponto alto do filme e tantalizou os gringos.

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Bimba foi campeão invicto em 1936 e criou e inaugurou a era das academias; Pastinha foi ao Festival de Artes Negras em Dakar; mas foi com Canjiquinha, no filme "Pagador de Promessas", que o mundo, estupefato e fascinado, viu pela primeira vez a capoeira, tanto na sua forma "cultural" e "ritual" de roda, como na sua forma de luta e briga de rua.

Quando Canjiquinha abriu sua própria academia, apesar de ter sido aluno de Aberrê e contramestre de Pastinha, não adotou a "tradicional" (e radical) capoeira angola de Pastinha; e também não aderiu à (radical) regional de

Bimba. Canjiquinha tinha seu estilo próprio: jogava os ritmos lentos, mas preferia um jogo alto e rápido.

Sua postura independente e seu "currículo" - jogador de futebol, crooner de gafieira, mestre de capoeira, profundo conhecedor do candomblé -, somados ao conhecimento da malandragem das ruas e das noitadas soteropolitanas, aliados a sua personalidade que fazia amigos rapidamente, tornou-o popular entre a juventude. E mais que isto: abriu os olhos de toda uma geração baiana mais nova, mostrando que a capoeira não era só Bimba e Pastinha.

Mestre Canjiquinha também teve influência na capoeira paulista, a tal ponto que em 1981, quando Canjiquinha tinha 56 anos, mestre Brasília (São Paulo) criou, com o apoio da Federação Paulista de Capoeira, o Troféu Mestre

Canjiquinha em sua homenagem.

Eu não tive oportunidade de conversar e conhecer mestre Canjiquinha nas primeira vezes que fui a Salvador. Cruzei com ele algumas vezes, mas só fomos bater papo e nos conhecermos melhor em 1984 no Circo Voador, uma famosa casa de espetáculos do Rio de Janeiro, num grande encontro nacional que reuniu vários mestres da velha

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guarda de Salvador (João Pequeno, Waldemar,

Canjiquinha, Atenilo, Onça-Tigre, Paulo dos Anjos, Gato Preto), e também mestres que eram jovens e hoje são uma referência (Acordeon, Itapoã, Camisa - o organizador do encontro -, Moraes, Lua Rasta, o pessoal da Senzala, Mão Branca , Mulatinho, Edna, etc.), e grupos de oito estados - aliás, creio que este foi o último "grande encontro nacional" que reuniu a maioria das "pessoas importantes" da

capoeiragem; depois disso, a capoeira cresceu tanto, e apareceram tantos novos talentos, que se tornou

impraticavel um encontro com os nomes mais significativos. Me lembro que, neste encontro de 1984, Canjiquinha me deu uma entrevista que coloquei no meu segundo livro, Galo Ja Cantou (1985). Canjiquinha comentou que "sou velho (tinha, então, 50 anos) mas não vou escurecer a

verdade, a capoeira melhorou em muitos aspectos". Na sua juventude, os golpes mais temidos eram a rasteira e a

cabeçada; os golpes de pé eram mais lentos que agora, e não faziam muito estrago; mas "uma queixada destas de hoje em dia pode matar um"; em compensação, dizia

Canjiquinha, a rapaziada tinha perdido "na parte da malícia e da visão de jogo".

Deste nosso primeiro bate-papo, felizmente alguém tirou uma foto que também publiquei no livro: sentados na mesa do bar do Circo Voador, Canjiquinha está explicando algum lance de um jogo, e em volta, atentos, estão Gato (da

Senzala), Miguel (do Grupo Cativeiro), eu (que tinha 38 anos de idade semelhante a Gato e Miguel), Cobrinha

Mansa (ainda bem jovem), e João Pequeno. "Bons tempos" diriam alguns, e Canjquinha certamente iria concordar; mas se estivesse vivo, com sua alegria de viver, é certo que diria que "o tempo melhor é agora"

Referências

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