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LOUCURA E MORTE EM SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

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LOUCURA E MORTE EM “SORÔCO,

SUA MÃE, SUA FILHA”,

DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Fábio Roberto Rodrigues Belo1

Universidade Federal de Minas Gerais

Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco significaria ser louco de um outro tipo de loucura

(Pascal . Pensées) Cada um é doido de sua banda.

(J. Guimarães Rosa . O Recado do Morro)

presente trabalho tem como objetivo analisar os temas da loucura e da morte, no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa. A narrativa mostra duas mulheres, a mãe e a filha de Sorôco, que vão ser levadas em um trem que acaba de chegar à cidade. O trem se destina ao hospício de Barbacena. As duas mulheres cantam uma cantiga ininteligível, que depois é imitada por Sorôco e pelas pessoas que ali se encontram observando a cena.

Logo no primeiro parágrafo, o narrador faz a descrição do vagão de trem que levará as duas mulheres para o hospício. Esta descrição é feita negativamente, isto é, dizendo-se o que o vagão não é:

Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais

vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos.

O

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A descrição negativa parece não ser devida ao acaso. O fato de o vagão não ser um vagão “comum de passageiros” evoca a idéia de exclusão: o vagão era para passageiros que não eram comuns. Já se anuncia que tipo de passageiros deveriam ser transportados ali, feito presos, como nos sugerem as janelas “enxequetadas de grades” (p. 20). Logo após, sabe-se que as duas mulheres serão levadas “para longe, para sempre”. A descrição da cena termina pontuando-se o horário de partida do trem: 12h45m.

Dentre os sujeitos das orações no primeiro parágrafo, “a gente” aparece duas vezes. O tom impessoal deste sujeito-muitos-e-ninguém é fixado no início do segundo parágrafo: “as muitas pessoas” que estavam ali “para esperar”. O primado da descrição não tem lugar só no primeiro parágrafo, mas em todo o conto. Desta maneira, o narrador continua a descrever as muitas pessoas presen-tes: “As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conver-savam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas.”

Esta descrição mostra o que está por ser revelado: as duas mulheres são loucas. Loucura esta contraposta ao falar com sensatez das pessoas que, ali, a tudo assistem. Como diz o narrador, cada uma delas “porfiando”. O verbo porfiar possui vários significados. Dentre eles, o que mais caberia naquela oração seria o de “empenhar-se em”. No entanto, sua origem etimológica está ligada a perfidia, que significa deslealdade, traição. O pérfido é aquele que mente à fé jurada, é um infiel. Lembremos Foucault:

Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade; na comédia em que todos enganam aos outros e iludem a si próprios, ele é a comédia em segundo grau, o engano do engano. 2

Se tomarmos então o verbo nestes dois sentidos, “empenhar-se em” e “mentir”, a ambigüidade é inevitável. Ao mesmo tempo, as pessoas tentam falar com sensatez e mentem ao fazê-lo. Esta

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ambigüidade, engano do engano, veremos, é o prenúncio do que irá acontecer ao final do conto, isto é, a adesão, por parte das pessoas, ao canto das duas loucas.

O terceiro parágrafo traz um dado importante, que diz respeito ao povo que assistia à partida das duas mulheres: “(...) o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro.” 3

O fato de ser uma árvore de cedro parece não ser aleatório. Esta madeira é um símbolo digno de nota. Chevalier (1994) nos explica:

Por causa do tamanho considerável da mais conhecida de suas variedades – o cedro do Líbano –, fez-se dessa árvore um emblema da grandeza, da nobreza, da força e da perenidade. Entretanto, em virtude de suas propriedades naturais, ela é, acima de tudo, um símbolo de

incorruptibilidade. (...) fazer de cedro as vigas de nossas moradas é

preservar a alma da corrupção. 4

O povo “caçava jeito” de preservar suas almas da corrupção da loucura. Loucura esta que, de uma estranha maneira, seduz o povo. Afinal, estão todos ali, observando a partida das duas insanas. Corrupção e sedução: a origem etimológica das duas palavras nos traz um dado importante. Corruptela, -ae, significa corrupção, devas-sidão, sedução. Seduco, -ere, significa desviar, afastar, dividir. Em suma: a loucura aparece neste conto como elemento sedutor que, de alguma forma, corrompe aquele que escuta seu canto. Aliás, a metáfora do canto será utilizada pelo narrador. Antes de examinar-mos o ‘canto das loucas’, deveexaminar-mos voltar, porém, à última citação, aquela onde o cedro aparece. Esta madeira, muito resistente, é usada também para fabricar embarcações. Este dado é, no mínimo, curio-so, se confrontado com a descrição do carro que levaria a mãe e a filha de Sorôco:

3 ROSA, 1988, p. 18.

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O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo de telhadinho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém.5

Esta semelhança entre o vagão e o navio nos remete imedia-tamente à nau dos loucos, imagem que Michel Foucault nos mostrou estar indissociável na construção do conceito de loucura, ao longo da história. O filósofo nos diz que a Narrenschiff é uma composição literária, mas que teve existência real no século XV. Ele comenta: “E é possível que essas naus de loucos, que assombram a imaginação de toda a primeira parte da Renascença, tenham sido naus de peregri-nação, navios altamente simbólicos de insanos em busca da razão (...)” 6

De qualquer maneira, o navio evoca, assim como o trem, a idéia de viagem. A estação do trem, assim como o abismo, está num lugar elevado e descoberto de onde se tem boa perspectiva: “aquilo quase no fim da esplanada”.7

As duas mulheres, enquanto caminhavam para o trem, cantavam; sua “chirimia”, como nos diz o narrador em sua lingua-gem típica, é descrita assim:

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava; que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois. 8

O substantivo “acorçôo” e o verbo “avocava” corroboram a tese da sedução/corrupção. Acorçôo, segundo o Dicionário Aurélio, vem do verbo acoroçoar, isto é, alentar, excitar, induzir, instigar. E

5 ROSA, 1988, p. 18-9.

6 FOUCAULT, 1993 (1972), p. 10. 7 ROSA, 1988, p. 18.

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o verbo avocar, vem do latim avocare, que significa chamar, atrair,

fazer tornar, despertar. Apesar de estes verbos conotarem intenção do agente sobre o objeto ao qual se refere, no conto isto não acontece. Em outras palavras, as duas mulheres não têm intenção alguma em seduzir ou corromper quem quer que seja. Na verdade, quem parece ser o agente destas ações é a própria loucura.

As duas ‘loucas’ estão ali porque já foram corrompidas, sedu-zidas. Elas parecem funcionar como um chamariz, um veículo que carrega algo presente em todos, basta que nos deixemos corromper. Uma parte da citação acima demonstra isso: “era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente”.9 A

identificação do povo com as duas faz surgir a dor, que, certamente, é mais que piedade; é um sentimento que carece de sentido e localização exata: “sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois”.

Agora podemos entender com mais clareza o que dizíamos há pouco, sobre a ambigüidade do verbo porfiar. Ao mesmo tempo empenhar-se e mentir. Não se pode evitar a loucura que está pre-sente em um de nossos lados.

Não só a loucura, mas também a morte se faz presente constantemente. No conto isto se explicita, pois, se por um lado a moça ou a filha de Sorôco pode ser vista como a imagem do Louco, por outro, a velha, a mãe de Sorôco, é a imagem da Morte, ou da mãe enlutada. A descrição da personagem é reveladora: “A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, se assemelhavam.” 10

Sorôco, lembremo-nos, aparece vindo da Rua de Baixo, entre as duas – a morte e a loucura. Dois substantivos femininos, duas mulheres. Dois males sempre próximos. O último se pode evitar. O primeiro é inexorável. É impossível não lembrar Foucault: “a loucura

9 ROSA, 1988, p. 20. 10 ROSA, 1988, p. 19.

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é o já-está-aí da morte”.11 A imagem da loucura e da morte geram

no povo sentimentos estranhos:

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as

vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. (p. 19, grifos nossos)

A ambigüidade é evidente: casório e enterro. Casório de quem? Das duas, a velha escolhe ficar com a neta. Enterro de quem? Das duas, que são expulsas da comunidade, como nas tragédias gregas, e condenadas ao hospício. Afinal, sem poder afirmar as vistas, nos engraçados despropósitos, o povo não queria fazer “pouco caso” de algo que era sério para Sorôco. Como na Idade Média, a loucura fica nesse entre-lugar: ameaça e zombaria. Lembra-nos Foucault: “A loucura e o louco tornam-se personagens maiores em sua ambigüidade: ameaça e irrisão, vertiginoso desatino do mundo e medíocre ridículo dos homens.” 12

De qualquer maneira, tudo é insuportável – a cena, as mulheres, o canto: “Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.” 13

O tempo parece não passar. O canto das duas, a “chirimia”, torna-o ainda mais lento. A lentidão do tempo parece se esclarecer quando lembramos que Foucault se refere à loucura como um traço de caráter do aevum, isto é, traço do tempo mesmo. Sabemos que o que é assustador, o que provoca medo, provoca uma sensação de lentidão temporal. Esta sensação parece advir sempre nos momentos onde está presente o sentimento do estranho, no sentido que Freud

11 FOUCAULT, 1993 (1972), p. 16. 12 FOUCAULT, 1993 (1972), p. 16. 13 ROSA, 1988, p. 20 (grifos nossos).

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(1919) dá a ele, isto é, “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” 14

Freud esclarece ainda mais o conceito do Umheimlich, quando cita a definição de Schelling, onde “Umheimilich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio a luz.” 15

Não é exatamente isto o que perpassa no conto, quando a loucura, assim como o estranho, vem à luz, mas deveria ter perma-necido secreto? Quando o povo porfiava no falar com sensatez não tentavam manter em segredo sua loucura? A angústia suscitada pela cena estranhamente familiar não demonstra que havia nas loucas algo que se refletia no povo?

Sim. E ainda mais. O estranho aparece na cena da loucura porque diz respeito ao fenômeno do ‘duplo’. Originalmente, explica-nos Freud, o duplo era uma segurança contra a destruição do ego, e, ao parafrasear Rank, fala que o duplo é uma enérgica negação da morte. A alma, provavelmente, foi o primeiro ‘duplo’ do corpo. A evo-lução do conceito inverte seu aspecto: “depois de haver sido uma garan-tia de imortalidade, transforma-se em estranho anunciador da morte”.16

Já vimos que a presença da velha cumpre este papel de evocar a morte, com seus trajes negros. Infelizmente, não podemos nos alongar sobre este tema do duplo. O que nos resta concluir é que, as duas mulheres, uma lembrando a loucura, a outra lembrando a morte, nos trazem ansiedade porque estas duas questões dizem respeito também a nós. Loucura e morte nos são familiares, mas, a todo custo, porfiamos em torná-las estranhas. Não podemos deixar de lembrar que no século XV, numa adesão imaginária a si mesmo, o homem faz surgir sua loucura como uma miragem:

14 FREUD, 1919, p. 277. 15 FREUD, 1919, p. 282. 16 FREUD, 1919, p. 294.

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O símbolo da loucura será doravante este espelho que, nada refletindo de real, refletirá secretamente, para aquele que nele se contempla, o sonho de sua presunção. A loucura não diz tanto respeito à verdade e ao mundo quanto ao homem e à verdade de si mesmo que ele acredita distinguir.17

Devemos agora abordar a problemática do nome do persona-gem principal, Sorôco. Este nome pode ser interpretado de várias formas dentro do contexto no qual ele foi criado. A primeira hipótese é a homofonia “Sorôco / sou louco” e “Sorôco / Sô louco”. A semelhança fônica pode ser um dado importante para decifrar também o final do conto, onde Sorôco canta, como as duas loucas. Uma segunda hipótese é a formação por aglutinação de subs-tantivos, no caso, os mais prováveis são: só e oco. Esta idéia é reforçada por um parágrafo onde, sem nenhuma outra palavra, figura o nome “Sorôco”.18 Além disto, se lembrarmos do número da

carta do tarô, o Louco, que é zero, podemos notar a semelhança entre o zero e o oco.

Uma terceira e última hipótese sobre o nome de Sorôco pode ser aventada se atentarmos aos vocábulos que, no dicionário, se assemelham a esta palavra. Um, em especial, chama-nos a atenção: sorocó. Este é o nome de uma árvore também chamada soroca ou sororoca. Soroca, além de um nome de árvore também denota: 1) covil de onça; 2) desagregamento de terras, por infiltração de água no subsolo. Já sororoca, significa, entre nome de uma planta e um peixe, o rumor produzido pela voz dos moribundos. O verbo soro-rocar é o mesmo que estertorar em agonia.

Estas três hipóteses sobre a semântica do nome Sorôco formam uma rede de significantes dele indissociável. Rede esta que enlaça outros significantes, como veremos na continuidade da análise. Pedimos, então, que o leitor mantenha em mente estas três hipóteses, a fim de observar como elas se desenvolvem até o desfecho do conto.

17 FOUCAULT, 1993 (1972), p. 25. 18 ROSA, 1988, p.20.

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Com o partir do trem, o alívio que havia sido previsto, não acontece, dando lugar a uma cena surpreendente, descrita cinemato-graficamente, nos cinco últimos parágrafos. O que primeiro é obser-vado é o estado psicológico em que se encontra Sorôco:

Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. (...) O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. 19

Oco, sem beiras, Sorôco se vê jogado no vazio, e permanece calado. Debaixo do peso do olhar do Outro – “lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que, anterior e exterior ao sujeito, não obstante o determina”20 – que o reverencia:

“Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.” 21

A identificação do povo com Sorôco é mais que respeito. Adianta-nos Almeida (1991):

(...) é o lamento da cantiga sem palavras, entoada pelas duas mulheres loucas, que desperta a solidariedade das outras personagens. O Louco peregrino, nessa passagem, começa a formular-se corpo vivo e parte integrada da totalidade vital e natural (...) por esse motivo, todos se irmanam a Sorôco, na cantiga desatinada. Em um hiato iluminador, entoam a música secreta da regeneração enigmática que pulsiona a vida contra a melancolia do desamparo. 22

O desamparo de Sorôco é tão evidente que chega a se assemelhar aos das duas mulheres, ironicamente “amparadas somente pelo Governo”. A semelhança está que tanto elas quanto Sorôco vão para longe, sempre, desamparados, desgovernados: “Ele se sacudiu de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s’embora.

19 ROSA, 1988, p. 21 (grifos nossos). 20 CHEMAMA, 1995, p. 156.

21 ROSA, 1988, p. 21. 22 ALMEIDA, 1991, p. 143.

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Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.” 23

Desacontecido, Sorôco faz o que ninguém esperava. Junta-se às loucas no seu canto. “Sou louco”: ele foi o primeiro a se encantar, a ser seduzido. A reação popular, a princípio é de total espanto:

Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar

de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuado. 24

Sem razão, Sorôco se desagrega – como as terras, por infiltração de água no subsolo – de tal maneira que é excesso de espírito. O excesso, elemento central na análise que Heloisa Araujo (1998) faz do conto, parece corroborar o que dizíamos acerca da dupla morte / loucura:

Parecia que teríamos, no caso de Sorôco, este êxtase, este excessus mentis, este delírio, que ele adquire da mãe e da filha, ambas em delírio, loucas, fora de si, saídas do juízo, descentradas. E teríamos, também, a morte, a saída da vida, o excessus vitae, o abandono do tempo, pois a viagem de trem não terá volta.

O canto da loucura se confunde com o rumor produzido pela voz dos moribundos – os que estão à beira da morte. O povo frente a este excesso de Sorôco, tem uma reação instantânea:

A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! 25

A dó, por mais que tente o narrador nos convencer, não parece ser o motivo principal que faz o povo cantar. É mais que isso. A “chirimia” não é uma cantiga qualquer. O canto sem razão, ainda de

23 ROSA, 1988, p. 21.

24 ROSA, 1988, p. 21 (grifos nossos). 25 ROSA, 1988, p. 21 (grifos nossos).

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acordo com Araujo (1998), é “a música da loucura, do excesso, do êxtase, que ultrapassa os contrários refletidos da vida temporal, os extremos, o passado e o futuro, numa saída para a eternidade.”26 Esta

canção de fato indica um caminho; ela faz com que as pessoas errem (no sentido de serem errantes): “A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.”27

Lugar impossível, este o objetivado pela cantiga da loucura e da morte. Não se sabe o que há depois destas passagens, não se sabe o que há depois do precipício que o louco, displicente, pula ao iniciar sua travessia.

Acreditamos que a hipótese acerca da loucura que pudemos elaborar neste trabalho sobre o conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” não se restrinja somente a este conto. Não seria ousado dizer que esta construção da loucura como sendo parte integrante da vida humana perpassa por toda elaboração dos personagens “loucos” de Guimarães Rosa.

Além desta característica, a loucura está indissociavelmente ligada à morte e é susceptível, assim como esta última, de nos atacar a todos. Isto, sem dúvida, nos dá ensejo de trabalharmos uma das possíveis intertextualidades dentro do conto: a Narrenschiff, isto é, a Nau dos Loucos, pintada por Hieronymus, ou Jerome, Bosch.

Lembramos que a descrição do vagão, quando comparado a um navio, é elemento mais que suficiente para sugerir esta intertextualidade. Não bastasse isto, a tela de Bosch deixa claro, assim como no conto de Rosa, que qualquer um é passível de ser levado pela Nau.

A adesão à “chirimia” das loucas não demonstra isso? Para Guimarães Rosa, pelo menos no conto analisado, assim como para Bosch em sua tela Narrenschiff, a loucura nos lembra de nossa condição. A Nau dos Loucos não é sobre outras pessoas, é sobre nós.

26 ARAUJO, 1998, p. 67. 27 ROSA, 1988, p. 21.

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Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Ana Maria de. A demanda da santa escritura. Tese de doutoramento: FALE, UFMG, 1991.

ARAUJO, Heloisa Vilhena. O espelho: contribuições ao estudo de Guimarães Rosa. São Paulo: Mandarim, 1998.

CHEMAMA, Roland (Org.) Dicionário de psicanálise. Tradução de Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. CHEVALIER, Jean (et al). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos...

Tradução de Vera da Costa e Silva (et al.) 8.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

FOUCAULT, Michel. História da loucura. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1993 (1972). (Estudos, 61)

FREUD, Sigmund. O estranho. In.: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XVII, p. 275-318

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo analisar os temas da loucura e da morte, no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa.

Abstract

This work has the aim to analyse the subjects of madness and death, in the tale “Sorôco, sua mãe, sua filha”, by João Guimarães Rosa’s book Primeiras Histórias.

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