• Nenhum resultado encontrado

O testemunho como método: considerações sobre O fio da memória, de Eduardo Coutinho

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O testemunho como método: considerações sobre O fio da memória, de Eduardo Coutinho"

Copied!
11
0
0

Texto

(1)

O testemunho como método:

considerações sobre “O fio da memória”, de Eduardo Coutinho

Mariane Tavares (Unicamp)1 (maryannets@gmail.com) Resumo: Este artigo desenvolve uma breve reflexão sobre o documentário “O fio da memória” (1991), de Eduardo Coutinho, que apresenta o cruzamento de vários relatos acerca dos 100 anos da Abolição da Escravatura no Brasil. A partir das entrevistas – forma privilegiada e escolhida pelo cineasta na construção de seus filmes –, analisamos como a teoria da narrativa e do testemunho se configura como um método. Com base nas ideias de AGAMBEN (2008) e RICOUER (2012), pontuamos o que se configura como testemunho: uma narrativa autobiográfica autenticada de um acontecimento passado, asserção da realidade factual do acontecimento relatado, autenticação da declaração pela experiência de seu autor, o que se chama de confiabilidade por parte de quem ouve ou lê o relato. Além disso, aproximamos a obra do cineasta brasileiro da vertente do “cinema-verdade”, cujo principal objetivo era produzir filmes-manifesto com a intenção de dar voz àqueles que são marginalizados pela sociedade. A metodologia utilizada é explicativa, se apoia em um levantamento bibliográfico sobre o objeto analisado e os resultados parciais comprovam que as estratégias discursivas utilizadas por Eduardo Coutinho – seja o ambiente confortável que favorece à fala do entrevistado ou as imagens que aparecem somadas a algumas narrações – cooperam para dar um testemunho histórico sobre o que ainda resta da escravidão no presente. Palavras-chave: testemunho; memória; cinema; Eduardo Coutinho

Abstract: This article develops a brief reflection on the documentary “The thread of memory” (1991), by Eduardo Coutinho, which presents the crossing of several reports about the 100 years of the Abolition of Slavery in Brazil. Based on the interviews - a privileged way chosen by the filmmaker in the construction of his films -, we analyze how the theory of narrative and testimony is configured as a method. Based on the ideas of AGAMBEN (2008) and RICOUER (2012), we point out what constitutes testimony: an authenticated autobiographical narrative of a past event, assertion of the factual reality of the reported event, authentication of the declaration by the experience of its author, the which is called reliability on the part of those who hear or read the story. In addition, we bring the work of the Brazilian filmmaker closer to the “cinema-truth” aspect, whose main objective was to produce manifesto films with the intention of giving voice to those who are marginalized by society. The methodology used is explanatory, based on a bibliographic survey on the object analyzed and the partial results prove that the discursive strategies used by Eduardo Coutinho - be it the comfortable environment that favors the interviewee's speech or the images that appear added to some narrations - cooperate to give historical testimony about what remains of slavery today.

Keywords: testimony; memory; movie; Eduardo Coutinho

1 Bolsista do Cnpq, processo 169088/2017-0. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História

(2)

Eduardo Coutinho, um dos principais documentaristas do Brasil e do mundo, desenvolveu para sua obra um método peculiar baseado na contação de histórias. Mais que incluir arquivos e pesquisas de campo, os documentários de Eduardo Coutinho tinham como premissa a conversa entre entrevistador e entrevistado. Seus personagens contavam, na maioria das vezes – se não todas –, suas histórias, rememorando diante das câmeras o que significa ser “eu” frente a um “outro” que tem um interesse particular em sua história. Retratar e dar voz aos que não têm voz foi o fio condutor para os documentários de Coutinho. Nessa relação entre a história de seus personagens, narrada pelos mesmos, e a memória está o testemunho – que tem sido cada vez mais estudado a partir do século XX, com o advento da Segunda Guerra Mundial.

Nossa hipótese, que é evidente a cada documentário – desde Cabra marcado para

morrer (1964/1984) até As canções (2011), seu último documentário – é que o testemunho

ocupa um lugar central nas obras de Coutinho, especialmente em O fio da memória (1991), por basear-se essencialmente em relatos que têm como fundamento a relação da história com a memória. Consideramos o testemunho como principal método desenvolvido por Coutinho não apenas pelos relatos, mas por outras escolhas como a rejeição da voz over e da ausência de sons como trilha sonora, entre outros recursos técnicos que dizem respeito à linguagem audiovisual. Ainda que tenha uma formação como cineasta, a recusa do diretor reduz os documentários a fala de seus personagens e valorizando suas narrativas em primeiro plano e colocando-as no centro das obras. Dessa maneira, o testemunho – fruto das entrevistas – é o que direciona e dá vida a cada documentário, sendo que sem o mesmo, a obra de Coutinho perderia sua característica principal.

Segundo Paul Ricoeur, o testemunho é “uma narrativa autobiográfica autenticada de um acontecimento passado” (2012, p. 174). A amplitude dessa definição permite aproximarmos as histórias contadas pelos personagens de Coutinho do testemunho porque todas as narrativas contêm características pessoais que lhe conferem uma relação com a autobiografia. O testemunho, de acordo com Ricoeur, é, ainda, uma relação baseada no diálogo e que é identificada por seis elementos, cujo primeiro trata da “asserção da realidade factual do acontecimento relatado” e da “autenticação da declaração pela experiência de seu autor, o que chamamos sua confiabilidade presumida” (2012, p. 174). Portanto, o testemunho tem como um de seus fundamentos o relato de alguém que conta sua experiência e é a partir dessa experiência que sua autoridade se configura, essa perspectiva se aproxima da asserção de que o fato realmente ocorreu.

(3)

O segundo elemento que identifica o testemunho, e que dialoga com o primeiro, é a autodeclaração que concede ao testemunho um estatuto de verdade. A pessoa que conta a história esteve no local, participou do fato que narra, viu tudo que conta e quando o compartilha, faz uso da primeira pessoa do singular, do tempo verbal no passado e distingue lugares e pessoas como aqui/lá e eu/outro. Em seu O que resta de Auschwitz Agamben, ao teorizar sobre o testemunho, recorre à teoria da enunciação de Benveniste para aprofundar o modus operandi da língua quando tem a função de testemunhar. De acordo com Agamben (2008):

o testemunho é um ato da ordem do discurso, ou seja, o meio pelo qual a língua é exercida e atualizada. A língua só adquire existência efetiva no discurso. A estrutura do testemunho consiste justamente no emprego da primeira pessoa representada pelo pronome “eu”, acompanhada do verbo flexionado e dos advérbios que remetem ao espaço/tempo. (p. 139).

Com base em Benveniste, Agamben afirma que todo testemunho é formado por um “eu” relacionado com um “tu”, em forma de diálogo, a testemunha conta sua história para outro que tem o interesse de ouvi-lo e que legitima seu discurso ao acreditar que o que lhe é contado é real, ainda que não seja. Agamben, tal como Ricouer ressalta que o testemunho sempre se dá em situação dialógica, aquele que fala quer que seu ouvinte acredite no fato narrado e a testemunha – ainda que inconscientemente – faz uso de recursos linguísticos que autentique seu relato. Outro ponto que Ricouer ressalta é que quanto mais verídico o testemunho parece ser, maior é sua perduração ao longo do tempo e menor é a possibilidade que o mesmo seja questionado.

A partir dessas definições, o trabalho de Eduardo Coutinho é exatamente o de ocupar o lugar do “tu” que acredita nas histórias de seus personagens, demonstrando confiança, independente da comprovação que de os fatos narrados são verdadeiros ou não. O que importa para Coutinho não é a verdade, mas a forma como essas histórias são narradas, para o diretor de cinema não importa se ele acredita ou não, o que importa é se o próprio narrador acredita nas histórias que conta, se ele acreditar, isso legitimará seu discurso e fará com que os outros acreditem também e esse é o papel da testemunha.

As testemunhas de Coutinho contam suas histórias de vida, de acordo com suas experiências, independente se são fantasiosas ou não, não há importância, pois Coutinho ao estabelecer uma relação de confiança e certa intimidade faz com que as pessoas deixem de ser pessoas para tornarem-se personagens. Em uma entrevista concedida a Cléber Eduardo, Eduardo Valente e Ruy Gardnier, Coutinho diz: “a pessoa não interessa. Só me interessa para

(4)

não ser prejudicada depois. Personagem é que interessa. [...] Você ao mesmo tempo tem de respeitar o retrato delas como pessoa, mas mais do que como pessoa, você tem que respeitar o personagem que ela construiu.”2.

Desse modo, o que interessa ao documentarista é o que resultará do encontro entre ele, à equipe e a testemunha, pois o fruto desse encontro é o que gera o documentário. As histórias compartilhadas e as histórias que derivam dessa troca dialógica não são como são antes do momento do filme, o que a relação entrevistador entrevistado gera – ainda que Coutinho seja bem objetivo e fale pouco – é o que importa no documentário: o personagem. Isso não significa que a preocupação com a pessoa deixa de existir, ela permanece por razões éticas no uso do testemunho e das imagens. Na mesma entrevista Coutinho diz: “Eu não filmo senão esse encontro, filmo uma relação. Aí eles dizem, ‘Não, aquela personagem é maravilhosa!’. Ela não existe enquanto personagem maravilhosa! Existe enquanto, na interação comigo, nessa interação, se permitiu que ela se transformasse em maravilhosa, e eu com ela, quer dizer, é um negócio que não é meu nem dela, já não é mais, entendeu?”.

A distinção que Eduardo Coutinho faz entre pessoa e personagem se aproxima da distinção entre o testemunho – quando ocorre o encontro e o diálogo “eu-tu” – e a distancia que há entre enunciado e emissor. O testemunho implica sempre uma relação do passado com o presente, consequentemente dá uma forma à memória, reelaborando um relato sobre o passado. Essa narrativa, que é fruto do ato de contar, tem como característica o descolamento dela e do narrador, como aponta Ricoeur. A teoria da enunciação também apresenta essa característica do testemunho: o fato de que pode haver um distanciamento entre emissor e enunciado, e, dependendo do que fala essa testemunha, certamente o distanciamento irá ocorrer porque algumas experiências são indizíveis.

O testemunho, a partir do século XX, como dito anteriormente, ganhou uma ascensão na segunda metade do século devido à experiência da Shoah. O desejo de saber a respeito do genocídio judeu foi e é do interesse de muitos pesquisadores e artistas. A relação do testemunho com a memória tornou-se fundamental nesse sentido, mas é preciso diferenciar as várias formas de testemunho, pois com o tempo a questão ganhou novas perspectivas e um caráter historiográfico. De todo modo, sobre o testemunho e o cinema, Coutinho, em uma entrevista concedida a Luciana Penna, Silvia Boschi e Willian Condé, fala sobre o documentário Shoah, de Claude Lazmann (1985) – um dos principais documentários sobre o tema:

2 Entrevista realizada em 2002, acessada em: 07/08/2020. Disponível em:

(5)

Mas o mais extraordinário filme sobre o campo de concentração se chama Shoah, dura nove horas, e o que é? Só gente falando. E falando pra câmera. Agora, porque é extraordinário? O filme tem nove horas, sobre o Holocausto, e não tem imagem de arquivo. Um pouco o que eu penso, os filmes são feitos no presente!3

A declaração de Coutinho apenas reforça o que o documentarista pensa sobre documentário e como ele procurou construir sua obra a partir de histórias orais, na maioria das vezes imbricadas a memória, resultantes do diálogo entre ele e o outro. Também, fruto do testemunho, houve um aumento no número e no sucesso das narrativas (auto)biográficas e junto com o aumento das publicações veio o aumento dos estudos da memória relacionados a essas obras. No cinema também houve uma repercussão grande desse tipo de narrativa, que valoriza os personagens e coloca o diálogo no centro do documentário. Os documentários de Eduardo Coutinho se enquadram nesse movimento, inclinam-se às (auto)biografias, dialogam com o cinema interativo e privilegiam as histórias fundamentadas no testemunho como forma que valoriza a memória.

Em meados dos anos ‘80/90, o documentário de Coutinho segue a tendência do modo participativo, sem omitir intervenções de quaisquer aspectos que possam surgir durante a filmagem “a entrevista representa uma das formas mais comuns de encontro entre cineasta e tema” (MORIN, 2008, p. 45-46), elas fazem parte da relação do personagem com o mundo e o espectador. Essa característica do cinema documentário, do tipo direto e intervencionista, teve um grande impacto sociocultural no Brasil, questionando a política e os problemas de sua época, assim, mais do que interessar-se pelo testemunho de um determinado ponto de vista, o cinema documentário interessa-se pelas consequências do passado no momento da filmagem. Essa vertente do cinema se dedicou a temas históricos e polêmicos, desde a luta rural, aos catadores de lixo das grandes metrópoles, para citar questões que o próprio Eduardo Coutinho abordou.

Ao tratar dessa vertente do cinema que se filiaria ao Cinéma-verité, podemos aproximar Eduardo Coutinho de Jean Rouch, que produziu diversos “filmes-manifestos” que são verdadeiras representações da resistência. Apesar da obra de ambos ser distinta em vários aspectos e Coutinho não declarar publicamente alguma relação de sua obra com a de Rouch. Sua tendência a utilizar o cinema como uma intervenção direta, talvez militante, evidenciando sua imagem na tela distancia-se muito da estética observativa e o aproxima do movimento e das escolhas éticas e estéticas encabeçados por Rouch. Apesar de Crônica de um verão (1961) ser considerado o filme de abertura da estética do cinéma-verité, seus documentários anteriores

3 Entrevista realizada em 2004, acessada em 05/09/2020. Disponível em:

(6)

como A pirâmide humana (1959) já discutiam questões que são ignoradas pelas maiorias e que oprimem minorias. Sobre o Cinéma-verité, Morin afirma que segundo Rouch:

Cinéma-verité: isso significa que queríamos eliminar a ficção e nos aproximar

mais da vida. (...) Sem dúvida, a expressão “cinema- verdade” é ousada, é pretensiosa; é claro que existe uma verdade profunda nos trabalhos de ficção, assim como nos mitos. No fim do filme, as dificuldades da verdade que não haviam sido um problema no início, tornaram-se evidentes para mim. Dito de outro modo, pensei que poderíamos partir de uma base da verdade, e que uma verdade ainda maior se desenvolveria dali. O que conseguimos, percebo agora, foi expor o problema da verdade. Queríamos nos afastar do teatro, do mundo do espetáculo, para entrar em contato direto com a vida. Mas a vida é também teatro, é também espetáculo. Ou melhor (ou pior): cada pessoa só pode se expressar através de uma máscara, como na tragédia grega, tanto esconde como revela; ela se torna orador, aquele que fala. Durante os diálogos todas as pessoas conseguiram ser mais verdadeiras do que na vida diária e, ao mesmo tempo, mais falsas. (2008, p. 47)

Tal como caracteriza Rouch, Eduardo Coutinho não propõe soluções para os problemas da verdade que apresenta em seus filmes documentários, ele os apresenta para abrir um debate. Mais que dizer se há certo e errado, ele possibilita que os lados que não são ouvidos, sejam de fato ouvidos. Coutinho tem o interesse de ouvir as histórias daqueles que realmente querem conta-la e que a contam com prazer. Entre os documentários de Coutinho, O fio da memória (1991) reúne todas as pontuações que elencamos sobre história, memória e testemunho e sua relação com o cinema-verdade. Tratando – ainda que por uma perspectiva diferente – assim como Rouch, em A pirâmide humana (1959), anos antes, do tema da relação dos negros com os brancos.

O fio da memória tem uma narrativa cíclica, inicia e termina com a imagem das ondas do

mar indo e vindo, como imagens de uma memória fragmentada em que não se sabe onde começa e onde termina. Essa primeira imagem apresenta toda a construção do filme que não ocorre em um único ambiente e que a cada entrevista dá lugar a uma nova voz que surge sem planejamento, mas que está pronta a testemunhar sobre um mesmo assunto por diferentes ângulos. Além da primeira imagem do documentário, outro sinal de fragmentação é a presença de dois narradores que têm uma única narração “o primeiro (Ferreira Gullar) resulta da vontade de pensar o negro no Brasil, o segundo (Milton Gonçalves) do desejo de deixar que o tema determine o modo de pensar.” (AVELLAR apud OHATA, 2013, p. 530).

O que conduz a narrativa de O fio da memória são as lembranças registradas de Gabriel Joaquim dos Santos, que nasceu após a abolição da escravatura e morreu seis anos antes do lançamento do documentário. Gabriel dos Santos poderia ser um homem comum,

(7)

mas sua história é significativa em vários aspectos, pois conseguiu alfabetizar-se sendo filho de escravos, construiu uma casa da memória que ficou conhecida como “Casa da flor” – reconhecida pela Revista Vogue como uma referência peculiar de arquitetura – e escreveu um diário ou cadernos de assentamentos que continham boa parte da história local, nacional e internacional de sua época.

Gabriel dos Santos ocupa um lugar central no documentário de Coutinho e se multifaceta a cada história narrada, recuperando suas reminiscências que são fragmentárias e pouco hierárquicas, segundo Rodrigues (1999) este personagem ocupa lugar de aprendiz, sujeito e narrador:

Da chamada “história do Brasil”, o Sr. Gabriel foi ao mesmo tempo aprendiz, narrador e sujeito. Foi aprendiz quando relatou que aqui havia portugueses e escravos, que D. Pedro deixou o Brasil para cá e Portugal para lá, que Washington Luís caiu, que as forças brasileiras foram lutar na 2ª Guerra Mundial. Foi narrador quando contou em seus registros pessoais a vida cotidiana de São Pedro da Aldeia; a mulher matou o marido num baile, o fulano se amasiou com beltrana. Foi sujeito quando contou sobre a greve na salina em que trabalhava, em 1946; sobre suas relações com os pais e a família; sobre seu amigo tornado irmão Guilherme e, acima de tudo, sobre a maneira como ele concebeu e realizou a Casa da Flor. (1999, p. 180)

A relação de Gabriel dos Santos com o testemunho é tanto no discurso quanto na ação. Na ação de escrever e de construir a casa da memória que reúne os restos de todos os lugares pelos quais passou o protagonista. A excepcionalidade de Gabriel dos Santos, está na construção de suas reminiscências, pois ele não estabelece juízos de valor, a mesma importância que tem a greve na salina, tem a independência, a morte do marido no baile, entre outras.

Além do fio condutor que é o testemunho de Gabriel dos Santos, o filme perpassa a história de muitos personagens refletindo sobre “a fragmentação que a sociedade brasileira impôs ao negro e a si mesma”. As gravações para o documentário iniciam às treze horas, na avenida Treze de Maio, situada no Rio de Janeiro, no dia 13 de maio de 1988. Na avenida estão treze integrantes da Confraria do Garoto, comemorando o centenário da abolição, ao mesmo tempo ocorre uma segunda festa onde Fátima Ju é coroada como a Rainha do Centenário da Abolição. Em um terceiro plano acontece na igreja do Rosário uma festa consagrada a escrava Anastácia, provedora de milagres, para muitos negros a princesa Isabel apenas assinou a lei, mas foi a escrava Anastácia quem realmente lutou pela libertação. Isso é perceptível quando em um quarto plano, em uma escola, alunos negros são questionados sobre sua história e um deles defende a escrava acreditando na história em que se reconhece.

(8)

Voltando ao plano da coroação de Fátima Ju, uma mulher negra atrai as câmeras ao declarar que a escravidão no Brasil nunca acabou e que Fatima Ju não é negra: é mulata. Nesse subplano um homem branco tenta convencer a negra de que ela está errada, mas sem sucesso o homem insiste até conseguir proferir “Cinquenta e um por cento da população brasileira tem a raça negra. Em qualquer companhia quem tem cinquenta e um por cento das ações controla a empresa. Se o negro não consegue controlar o país é por...” a multidão se revolta com o que poderia ser a frase seguinte e Coutinho corta a imagem.

Todo fragmentado, sem concluir as ideias para que veio, O fio da memória segue apresentando rituais de candomblé, negros convertidos ao cristianismo, menores infratores com a identidade roubada, menores moradores de rua, a primeira deputada negra eleita no Brasil – Benedita da Silva4 –, o sambista Carlos Cachaça, entre outros. Com todas essas histórias

Coutinho mostra como o preconceito com os negros vai além de uma intolerância, é ignorar a existência dessa raça. Depoimentos como de Aniceto do Império, que relata o desânimo de uma paquera loira ao descobrir que ele era negro ou o depoimento de Benedita da Silva que diz não ter sido reconhecida pela patroa quando estava na câmara dos deputados, são situações que Coutinho apresenta para o expectador decidir o que fazer com isso.

Todavia, é no relato de Gabriel dos Santos que os testemunhos se consolidam. Os registros dele, com datações, apontam para uma veracidade dos fatos e ainda que não fossem, o que importa para Coutinho é a construção do personagem e não a pessoa. Os registros em primeira pessoa, a rememoração do passado no presente, o compromisso que o narrador acredita ter com a verdade legitimam o discurso de Gabriel dos Santos e o tornam uma testemunha verídica, tal como procura Coutinho.

O personagem protagonista do documentário ressignificou coisas que aparentemente não tinham nenhuma serventia ao construir a “Casa da flor”, recolheu e ganhou dos restos a possibilidade de construir um futuro, de ter uma casa independente do lugar que ocupava na sociedade. Essa casa tornou-se um lugar ritualístico, pois lá Gabriel dos Santos apenas escrevia e dormia, comia somente quando sua sobrinha levava comida para ele. Seu desejo era construir um lugar no qual quem entrasse lembrasse dele e jamais se esquecesse do que viu, e os diários ficaram para quem quisesse se aprofundar na história, como uma espécie de museu.

O modo narrativo de Gabriel dos Santos é peculiar e foi escolhido a dedo por Coutinho para representar o que o documentarista queria. Seu intuito não era o de mostrar uma posição inferior que o negro ocupa devido à opressão do branco, mas mostrar ao expectador que é cada um que constrói a história. Quando Gabriel dos Santos diz:

4 Atualmente, Benedita da Silva concorre ao cargo da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, nas eleições

(9)

O Brasil já foi mandado por Portugal. O Brasil já foi uma roça portuguesa. Aqui já foi tudo. Existiu aqui um cativeiro muito perigoso, os portugueses a carregar negros da costa da África pra botar aqui pra trabalhar na enxada. E essas coisas tudo já passou. Aí o português entregou isso. D. Pedro I fez a independência. Botou o Brasil praça e Portugal pra lá. E ficou o Brasil por conta de nós próprio.

Segundo Avellar (1995) a narrativa de Gabriel dos Santos não está errada, talvez gramaticalmente sim, mas é a melhor forma de convidar o expectador a participar do processo criativo do filme “na projeção não apenas testemunhar as imagens registradas, mas dialogar com a estrutura que organiza e dá sentido as imagens.” (p. 535).

Outro dado interessante do documentário é que os personagens apresentam seu testemunho com dignidade, sem inferiorizar-se e com orgulho de quem são – ainda que a experiência de ser negro no Brasil seja traumatizante, mesmo após cem anos de abolição da escravatura. Coutinho entrevista uma senhora que ostenta sua voz contralto e canta tanto como baiana, como na igreja evangélica à qual faz parte; também entrevista Maria, que habita em excelentes comarcas feitas com materiais recicláveis e Aniceto do Império que fica extasiado diante das informações que o entrevistador tem sobre ele enquanto sambista.

Além do relato da rejeição amorosa que sofreu por ser negro, Aniceto fala sobre o samba e suas origens ancestrais e diz que o diretor é “inocente” por não saber completar uma rima. Essa afirmação de Aniceto, entretanto, evidencia a desigualdade do papel de entrevistador e entrevistado, pois por mais que seja medida através da coleta de dados que Coutinho faz antes da entrevista, sempre envolverá muita emoção de um lado e racionalidade do outro.

Por vezes o depoente conta o que quer, sem travar uma interlocução com aquele que o entrevista, pois seu discurso não requer indagações. A memória está lá, elaborada, esperando o momento de encontrar expressão, sem que o roteiro que nós estabelecemos faça algum sentido para o depoente. Somos, na verdade, muito inocentes. (RODRIGUES, 1999, p. 180)

Tal como são as testemunhas que contam suas histórias individuais e coletivas, são as testemunhas que Eduardo Coutinho encontra em O fio da memória. São personagens que além de trazer sua experiência particular compartilham a mesma experiência de grupo como

raça negra. Os descendentes de africanos, em certa medida, deixam a cultura de seus antepassados para viverem uma nova identidade na América. Em qualquer lugar da África muitos negros brasileiros não se reconheceriam, assim como podem não se reconhecer no Brasil também – como a negra que não vê Fátima Ju como negra.

(10)

No documentário, muitos deixaram o candomblé e converteram-se ao cristianismo. O que o negro reconhece é a necessidade de luta pela sobrevivência e isso reforça seu princípio de comunidade, pelo encontro com o outro. Ser negro, sambista, trabalhador informal e praticante do candomblé é cada vez mais raro, mas é o testemunho de um povo que sobrevive a opressão de outro povo.

Enfim, em seu texto intitulado “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade” 5 Eduardo Coutinho diferencia os termos “filmagem da verdade” e “verdade da

filmagem”, como o faz Rouch com o “cinema-verdade” e o “verdade no cinema”. Claramente Coutinho opta pela “verdade das filmagens”, ao trabalhar com um roteiro semi-moldado, construído no decorrer da filmagem, ele estava sempre pronto e sensível a perceber o que o outro queria narrar, sabia como lidar com situações imprevistas e essas ocorrências acontecem com frequência no documentário. Sua habilidade está em lidar com as duas situações.

As memórias de Gabriel dos Santos são a expressão de suas experiências; os restos que formam a “Casa da flor” são a materialização da memória humana que é baseada em fragmentos, portanto, essa casa – mais que um valor artístico – tem um valor simbólico. Assim como os campos de concentração têm um valor simbólico para o judeu e para humanidade sobre o que não deve ser esquecido, também a opressão de uma raça sobre a outra – para recuperar a ideia inicial do testemunho – a “Casa da flor” tem um valor humano que recupera não só a memória do indivíduo Gabriel dos Santos, mas a memória de seu povo.

5 Texto proferido em 1997, acessado em: 10/10/202020. Disponível em:

(11)

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008.

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995. MAGER, Juliana Muylaert. História, memória e testemunho: o método do documentarista Eduardo Coutinho em Jogo de Cena (2007). 2014, p. 193. Dissertação (Mestrado em História, área de concentração: História Social) Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.

MORIN, Edgar. “Crônica de um filme”. In: Crônica de um verão. Direção e roteiro: Jean Rouch, Edgar Morin. Produção: Anatol e Dauman, 1961. 1 DVD. 2008. Encarte, p. 45-46. OHATA, Milton (org.). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2012.

RODRIGUES, Jaime. “Os fios de ‘O fio da memória’”. Revista de História, São Paulo,

n.141 (1999), 179-182. Disponível em:

Referências

Documentos relacionados

PASSO 1 - Identificar o objetivo principal a ser focado pela ME: A ME é um paradigma que contribui principalmente com melhorias nos objetivos qualidade e produtividade (Fernandes

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

6 Consideraremos que a narrativa de Lewis Carroll oscila ficcionalmente entre o maravilhoso e o fantástico, chegando mesmo a sugerir-se com aspectos do estranho,

Com o objetivo de compreender como se efetivou a participação das educadoras - Maria Zuíla e Silva Moraes; Minerva Diaz de Sá Barreto - na criação dos diversos

Na sua qualidade de instituição responsável pela organização do processo de seleção, o Secretariado-Geral do Conselho garante que os dados pessoais são tratados nos termos do

Os elementos caracterizadores da obra são: a presença constante de componentes da tragédia clássica e o fatalismo, onde o destino acompanha todos os momentos das vidas das

Centro Caraívas Rodovia Serra dos Pirineus, Km 10 Zona Rural Chiquinha Bar e Restaurante Rua do Rosário Nº 19 Centro Histórico Codornas Bar e Restaurante Rua Luiz Gonzaga