• Nenhum resultado encontrado

Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas"

Copied!
7
0
0

Texto

(1)

CONHECIMENTO DE GRAMÁTICA E PRODUÇÃO TEXTUAL

José Gaston HILGERT1

RESUMO - Para o ensino da língua materna o professor acolhe alunos que já sabem a língua. O objetivo do ensino é, então, levar os alunos a conhecerem a língua que falam e a dominarem o manejo dela para as diferentes finalidades em que ela é usada na vida. Manejá-la significa explorar os seus recursos, as suas potencialidades nas mais variadas instâncias dos indivíduos em interação. E explorar os recursos implica, antes, identificá-los, conhecê-identificá-los, o que remete ao domínio das regras que comandam o uso da língua, em suma, à gramática. Há quem se volte – com um certo furor às vezes - contra o ensino da gramática, o que até se justifica quando ele divorcia a gramática da língua em uso. Mas esse ensino é absolutamente imprescindível quando se pensa a gramática do ponto de vista de seu uso na produção de sentidos nos textos. Pretende-se mostrar, nesta comunicação, o quanto a adoção de certas estratégias de enunciação e a percepção de seus efeitos de sentido nos textos dependem de conhecimentos gramaticais seguros. Faz-se referência específica aqui à pessoa, ao tempo e ao espaço, que são as três grandes categorias da enunciação. Quem enuncia é sempre um eu que o faz num tempo agora e num espaço aqui. A partir dessa instância de princípio de todo ato enunciativo, abrem-se amplas e complexas possibilidades de manipulação dos recursos gramaticais de pessoa, tempo e espaço na enunciação, visando à produção de múltiplos efeitos de sentido. Como só manipula com eficiência esses recursos quem muito bem os conhece, fica estabelecido que um sólido conhecimento da gramática da língua constitui um saber indispensável para uma produção discursiva competente.

PALAVRAS-CHAVE: enunciação; ensino; gramática; língua; texto.

Considerações iniciais

Há quem se volte – com um certo furor às vezes - contra o ensino da gramática,

o que até se justifica quando ele divorcia a gramática da língua em uso. Mas esse

ensino é imprescindível quando se pensa a gramática do ponto de vista da produção da

recepção de sentidos nos textos. Pretende-se destacar, nesta fala, o quanto a adoção de

1

Universidade Presbiteriana Mackenzie/São Paulo-SP, Centro de Comunicação e Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras. Rua Piauí, 143, 2º. Andar, Pós-Graduação em Letras, Bairro Higienópolis, CEP – 01241-001 São Paulo-SP, Brasil. Endereço eletrônico: gastonh@uol.com.br .

(2)

certas estratégias de enunciação e a percepção de seus efeitos de sentido nos textos

dependem de conhecimentos gramaticais seguros.

A gramática na produção e recepção de sentidos nos textos

As crianças, quando começam a estudar a língua materna na escola, já sabem sua

língua. Isso quer dizer que a falam com a competência necessária para as interações que

constituem suas práticas sociais e que dominam, com grande discernimento, a

adequação dos usos linguísticos às variadas situações em que se realiza a comunicação

por meio da linguagem verbal. Em síntese, sabem a língua porque sabem usá-la tanto do

ponto de vista linguístico quanto do pragmático. Acrescente-se ainda que esse saber em

fase pré-escolar se revela, em geral, no uso falado da língua, pois raramente crianças

têm maior desenvoltura na escrita e na leitura antes de irem para a escola.

Qual é então o objetivo do ensino da língua para as crianças quando chegam à

escola? Em síntese, deve-se admitir que esse objetivo é ampliar a competência do

manejo linguístico da criança, por outros meios (que não só os da prática linguística

cotidiana) e para novos fins (que não somente os que movem a rotina). Afinal, a escola

não pode ser “uma outra pracinha ou banco de esquina” (FRANCHI, 1991: 35).

No uso linguístico, os fins determinam os meios, isto é, configuramos esse uso

aos perfis das instâncias de vida em que as comunicações linguísticas se realizam. A

escola, na medida em que abre novos palcos de realização humana – e nisso consiste seu

papel formador e educativo –, promove e mostra novos contextos e novas formas de

interação que, por sua vez, exigem novas competências e desenvolturas linguísticas,

dentre as quais têm particular destaque as relacionadas ao domínio da escrita e da

leitura. O ensino da língua na escola consiste, então, em habilitar as crianças ao manejo

(3)

em estreita sintonia com a ação educativa. Em outras palavras, o ensino da língua

precisa se inserir num lúcido projeto de educação, do qual se alimenta e para cujo

desenvolvimento concorre.

Com base nessas primeiras considerações, a linguagem e seu domínio são

focalizados do ponto de vista de seu uso nas interações humanas. As crianças aprendem

a falar, a dominar a língua, na medida em que vão crescendo no convívio com os outros.

E o desenvolvimento da língua continua pela vida afora por força das práticas sociais

dos indivíduos (BAKHTIN, 1979), que são determinadas pela interação. Nessa

perspectiva, a linguagem, ao mesmo tempo em que viabiliza as práticas sociais, é

instituída por elas. Decorre daí que dominar a língua é saber manejar os seus recursos

para maximizar a qualidade das interações nas práticas sociais. Por essa visão

preconiza-se que todo e qualquer trabalho sistemático de aprendizado linguístico – e

aqui a referência é ao ensino da língua na escola - deva voltar-se ao desenvolvimento da

competência comunicativa, tanto nas interações faladas, quanto nas que se realizam por

meio de textos escritos. Como a comunicação só acontece por meio de enunciados e não

por palavras e frases (BAKHTIN, 2003), entende-se que, na escola, o tempo deve ser

usado para o trabalho com o texto (que se situaria no âmbito dos enunciados) e não

ocupado para o ensino da gramática (que focalizaria as palavras e a frases).

É indiscutivelmente verdadeiro que as aulas de língua portuguesa devem ter

como fim último o desenvolvimento da competência de uso da língua, que se manifesta

na perfórmance textual dos alunos, seja como autores, seja como leitores. O ensino da

língua deve partir do texto e levar para ele. Trata-se da formação pelo e para o texto, no

dizer de Irandé Antunes (2005). Nenhuma atividade destinada à formação linguística

(4)

Mas, por paradoxal que possa parecer, é precisamente nessa perspectiva que o

ensino da gramática se impõe, já que entendemos por esse ensino, aqui, o conjunto de

ações que levam o aluno a tomar consciência dos mecanismos de funcionamento da

língua na produção e na percepção de sentidos nos textos.

Quando se considera, então, a gramática do ponto de vista de seu uso na

produção de sentidos nos textos e quando se ponderam os conhecimentos gramaticais

necessários para uma leitura competente, pensamos ser o seu ensino absolutamente

imprescindível. Nessa perspectiva, queremos aqui focalizar alguns aspectos da

enunciação, destacando o quanto a adoção de certas estratégias de enunciação –

particularmente marcadas pelo manejo de recursos gramaticais - e a percepção de seus

efeitos de sentido nos textos dependem de conhecimentos gramaticais seguros.

Sabemos que enunciação é o ato de um sujeito-destinador (o enunciador)

interagir, em situação de comunicação, com um sujeito-destinatário (o enunciatário).

Nessa interação cabe ao enunciador, em sentido amplo, um fazer persuasivo e ao

enunciatário um fazer interpretativo. O produto da enunciação é o texto. Nele estão

projetadas as estratégias enunciativas acionadas, consciente ou inconscientemente, pelo

sujeito da enunciação2. Quem enuncia é sempre um eu que o faz num tempo agora e

num espaço aqui. A pessoa, o tempo e o espaço são, então, as três grandes categorias da

enunciação. Na construção do texto, o enunciador, em interação com um enunciatário,

maneja essas categorias, às vezes de forma astuciosa, para produzir os mais variados

efeitos de sentido e, assim, alcançar seus propósitos persuasivos. Ora, essas três

categorias da enunciação envolvem três grandes campos dos estudos gramaticais: a

pessoa (pronomes), o tempo (verbos) e o espaço (advérbios). Isso significa que o

2

(5)

enunciador, quando projeta seus propósitos no enunciado, manipulando as categorias da

enunciação, na verdade manipula as variadas expressões gramaticais em que essas

categorias se realizam.

No que respeita à pessoa, por exemplo, o enunciador, quando se instala no

enunciado como um narrador em primeira pessoa, produz o efeito de sentido de

proximidade com o leitor, dando assim a seu discurso um caráter subjetivo, pessoal,

parcial, eventualmente de cumplicidade. E quando ainda, no texto, faz referência ao

leitor, ao tu da interlocução, cria a ilusão de informalidade, de diálogo. Esse

procedimento muitas vezes inscreve, como efeito de sentido, a oralidade das interações

face a face no texto escrito. E se o enunciador quiser produzir efeitos contrários a esses,

isto é, se seu objetivo é manter distância do leitor, produzindo um discurso formal,

objetivo, imparcial, impessoal, esconderá as marcas de subjetividade do eu e optará por

um narrador em terceira pessoa.

Se estendermos essas considerações sobre a pessoa nos textos aos procedimentos

de embreagem actancial, lembramos que Fiorin (1996) relaciona vinte possibilidades de

usar uma forma de pessoa pelo valor de outra, implicando cada subversão efeito de

sentido específico.

No que respeita à categoria enunciativa tempo, o enunciador explorará

especialmente os recursos dos modos, tempos e aspectos verbais da língua.

Manejando-os, ele encontrará um amplo campo de criatividade na produção de sentidManejando-os, podendo

até subverter a anterioridade, a simultaneidade e a posterioridade do tempo cronológico

na construção das verdades discursivas. Poderá trazer, assim, o passado para o presente,

produzindo, no efeito de presentificação, a ilusão de que o outrora é atual, de que o

(6)

documentos e textos históricos. Por outro lado, o hoje também poderá ser projetado no

futuro ou situado no passado, criando, dessa forma, poderosos efeitos de ironia e crítica,

tão frequentes na ficção.

De forma semelhante poderá ele também manipular os recursos apresentados

pelos dêiticos espaciais. O aqui e o lá poderão ser criativamente manipulados para

produzir efeitos de discurso que reforçam verdades e criam outras.

O desconhecimento da gramática da língua não só impede a exploração das

potencialidades de sentido das formas e estruturas gramaticais na produção dos textos,

mas também inviabiliza, na leitura, a percepção de muitos sentidos os quais o uso

criativo das expressões gramaticais imprime nos textos.

Há um momento, então, na formação escolar, na vida acadêmica e profissional,

em que o discernimento gramatical da língua se impõe para um desempenho

linguístico-discursivo competente, particularmente no âmbito da produção e da interpretação de

textos. Seguindo esse raciocínio, tem de se admitir que a ausência de um ensino

produtivo da gramática na escola priva os alunos das condições necessárias para

apreciarem, com competência e proveito, até mesmo o acervo literário expresso em sua

língua.

Por fim, é preciso acrescentar que, sem um bom domínio da gramática nem

sequer é possível infringir com competência as normas gramaticais para produzir efeitos

de sentido. A esse propósito, valendo-me bastante livremente de um dos seus mais belos

poemas, evoco aqui o poeta brasileiro Manoel de Barros: muitas vezes é nos desvios

que se encontram as melhores surpresas e os ariticuns maduros. “Há que apenas saber

errar bem o seu idioma”. E termina o poema, referindo-se ao Padre Ezequiel, que fora

(7)

“Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática”. Portanto, o ensino

da gramática também é necessário para o domínio da agramática.

Um pensamento conclusivo

Como pensamento conclusivo, lembramos que, na medida em que se considera o

texto como produto da enunciação, abrem-se amplas e complexas possibilidades de

manejo dos recursos gramaticais de pessoa, tempo e espaço na enunciação, visando à

produção de múltiplos efeitos de sentido. Como só maneja com eficiência esses recursos

quem muito bem os conhece, compreende-se por que um sólido conhecimento da

gramática da língua constitui um saber indispensável para uma produção discursiva

competente.

Referências bibliográficas

ANTUNES, Irandé. 2005. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola. BAKHTIN, Mikhail. 1979. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec. BAKHTIN, Mikhail. 2003. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 87. FIORIN, J.L. 1996. As astúcias da enunciação. São Paulo, Ática.

FIORIN, J.L. 2003. Pragmática. In: J.L. FIORIN (org.). Introdução à linguística: princípios de análise. São Paulo, Contexto, v. 2, p. 161-185.

Referências

Documentos relacionados

Hoje nós crentes temos a presença de Jesus em nossas vidas, o Espírito Santo está conosco e esta presença deve também mudar os que estão a nossa volta, o mundo hoje precisa da

O híbrido Jetstream com coeficiente de regressão linear não diferente de um, desvio de regressão não significativo, elevado coeficiente de determinação e média superior

Com a discussão do acento como fator condicionante do truncamento de sílabas no processo de aquisição da fonologia do PB, foi possível trazerem-se evidências da

Com base na Morfologia Autossegmental, podemos fornecer a seguinte interpretação para os dados em análise: a última posição de V do sufixo reduplicativo VCV, a

Schneider – Visto que o adicional de periculosidade ou de insalubridade não é um direito adquirido (Súmula/TST), quando há mudança de regime jurídico de trabalho (de

É possível visualizar as relações entre o ambiente geográfico e a difusão e distribuição espacial dos fenômenos linguísticos, verificando-se a norma diatópica da localidade. É

A partir do exame dos atlas, elaboramos um quadro, em que constam as respostas dos sujeitos à questão acima, distribuídas por trabalho e em ordem decrescente

Esta comunicação tem por objectivo analisar as unidades lexicais do português integradas na Língua Kiyombe 2 , bem como a sua dicionarização, contribuindo, desta