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Em plena luz do dia : direito à cidade e práticas nos espaços de Belém-PA por pessoas trans 1

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Academic year: 2021

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“Em plena luz do dia”: direito à cidade e práticas nos espaços de

Belém-PA por pessoas trans

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Gleidson Wirllen Bezerra Gomes (PPGSA-UFPA)

Resumo

Este trabalho tem como objetivo central analisar as ações da Rede Paraense de Pessoas Trans (REPPAT) para garantir o “direto à cidade” (LEFEBVRE, 2001) para pessoas trans de Belém-PA. Essa luta tem a ver com as práticas nos espaços (CERTEAU, 2014) da capital paraense, principalmente os espaços públicos, como a praça. As práticas nos espaços da cidade, porém, devem ser “em plena luz do dia”, como afirma Rafael Carmo, um dos coordenadores da REPPAT, e não apenas durante à noite e nas esquinas (NOGUEIRA, 2015; REIDEL, 2017), principalmente mulheres trans e travestis, quase sempre associadas a prostituição.

Palavras-chave: Transexualidades; práticas do espaço; direito à cidade.

Introdução

Este paper integra minha pesquisa de doutoramento, que tem como objetivo investigar a relação entre a construção das “identidades de gênero” de pessoas trans em Belém-PA com as práticas dos espaços da cidade. Inicialmente, eu tinha como objetivo pesquisar sobre as interações digitais entre youtubers gays do sul e sudeste com seus seguidores em Belém-Pará2, visando identificar as formas de representação das homossexualidades no contexto da cibercultura. Como o desenvolvimento desta proposta dependia da minha entrada em campo, ao tentar contato com os youtubers não obtive retorno, o que me fez pensar em outras possibilidades de construção da pesquisa.

No mês de outubro de 2018 assisti a uma roda de conversa nas dependências da Universidade Federal do Pará, que tinha entre os palestrantes um jovem homem trans negro, chamado Rafael Carmo. As falas de Rafael chamaram-me a atenção ao ponto de, no final do evento, eu procura-lo para conversar e falar sobre a minha pesquisa. Desde esse primeiro momento Rafael mostrou-se solícito, dispondo-se a contribuir com a pesquisa. Ainda neste mesmo dia procurei Rafael nas redes sociais digitais e, daí em diante, passamos a dialogar.

1 Trabalho apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS, SPG44 - Sexualidade e Gênero: conservadorismos,

resistências e direitos.

2 O projeto tinha como título: “Homossexualidades e corpos em rede: exibição da intimidade, representações e

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Rafael, na época, tinha 26 anos e era um dos fundadores e coordenadores da ONG Rede Paraense de Pessoas Trans (REPPAT), uma ONG criada em 2016 por incentivo de outra ONG nacional, a Rede Trans Brasil. Atualmente a Rede paraense congrega aproximadamente 30 jovens trans, entre homens e mulheres. A “visibilidade” nos espaços públicos é apenas uma das bandeiras de luta da REPPAT, além das questões ligadas ao direito de alteração de nome e cirurgias plásticas via Sistema Único de Saúde.

No período em que conheci Rafael ele, como um dos coordenadores da REPPAT, estava organizando uma Semana de Visibilidade Trans a ser realizada em 2019, em alusão ao Dia da Visibilidade Trans, comemorado no dia 29 de janeiro. Ao longo dessas atividades, Rafael foi me apresentando a outros integrantes da Rede e eu comecei a conhecer um pouco do debate sobre as vivências de pessoas trans em Belém.

É preciso dizer que, até antes de conhecer Rafael e a REPPAT, eu pouco ou nada sabia sobre as discussões em torno das transexualidades. Esse primeiro contato com o campo significou para mim a descoberta de uma nova temática de pesquisa sobre a qual, no máximo, eu tinha pré-noções. Destaco a presença de Rafael porque encaro ele como um interlocutor fundamental que me introduziu em campo, permitindo-me acompanhar as ações da REPPAT e orientando-me sobre as questões relacionadas a transexualidade.

Ao longo deste período inicial da pesquisa de campo, do segundo semestre de 2018 até o início de 2020, além de acompanhar as ações da Rede, busquei a literatura sobre o tema da transexualidade, procurando refletir com os dados etnográficos elaborados a partir das entrevistas e das descrições dos encontros que tive com as pessoas trans da Rede. Os primeiros direcionamentos da pesquisa partiram de uma entrevista que realizei com Rafael ainda em 2018, na qual meu interesse estava voltado para a relação das pessoas trans com as tecnologias de comunicação, enquanto produtoras de subjetividades (ESCOBAR, [1994] 2016; GUATTARI, [1992] 2012) e as práticas dos espaços da cidade (CERTEAU, 2016) por essas pessoas. A narrativa de Rafael apontava tanto para a uso das tecnologias de comunicação na busca de informações sobre a transexualidade, daí constituindo os processos de transição de gênero, quanto a necessidade de pessoas trans serem vistas “em plena luz do dia”, e não apenas enquanto seres da noite e das esquinas (principalmente mulheres trans e travestis, quase sempre associadas a prostituição).

Na observação das reuniões da Rede, passei a dialogar com outras pessoas trans, homens e mulheres, que apontavam as questões semelhantes as descritas por Rafael. O uso das tecnologias de comunicação era uma constante nos processos iniciais de transição de gênero, e havia uma demanda das pessoas trans (inclusive enquanto pauta de luta política do movimento)

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pela ocupação dos espaços públicos da capital, praças, ruas, durante o dia, como um “direto à cidade” (LEFEBVRE, 2001).

O ser visto “em plena luz do dia”, como afirma Rafael Carmo, também tem a ver com uma necessidade de lutar contra as violências, por vezes físicas e fatais, que atravessam as vivências de pessoas trans. Ainda em campo, tive acesso a um Dossiê3 produzido pela Rede Trans Brasil, que aponta o país como o que mais mata trans e travestis no mundo.

O dossiê contabiliza 167 mortes em 2017, e 150 em 2018. Desses assassinatos ocorridos em 2018, a maioria são de mulheres trans (27 casos) e travestis (102 casos), seguidos dos homens trans (três mortes), com idade entre 21 e 25 anos, em sua maioria negra (27%). Além disso, 38 casos eram de profissionais do sexo e em 59,33% dos casos, a violência ocorreu em vias públicas.

No ranking da violência, o Nordeste lidera em primeiro lugar, seguido do Sudeste e do Centro-Oeste. A região Norte figura em quarto lugar, com 11% dos casos, isto é, 16 vítimas. O Pará registrou sete casos, três deles na capital, Belém. A cidade e a rua, assim, estão no mapa da violência contra pessoas trans.

Identidades de gênero e práticas nos espaços de Belém-PA

No diálogo com as pessoas trans da Rede Paraense de Pessoas Trans, pelo menos quatro categorias chamaram-me a atenção e serão aqui abordadas como dados etnográficos para a elaboração de uma reflexão dentro de nossa disciplina. É preciso esclarecer que estas noções não são utilizadas exclusivamente pelas pessoas trans de Belém, antes constituem um repertório comum aos transexuais e, em alguns casos, mais especificamente o movimento de trans e travestis. O que me parece característico dos interlocutores desta pesquisa é a necessidade de visibilidade à luz do dia, a ocupação dos espaços públicos da cidade, sendo este meu argumento central.

Talvez a categoria mais evidente seja a de “identidade de gênero”, seguida de “visibilidade”, “cisgeneridade” e “transfobia”. Todas elas estão correlacionadas e dizem respeito as vivências de pessoas de trans, suas transições de gênero e trânsitos no cotidiano. Acredito que estas categorias servem para pensar temas relevantes dentro da Antropologia que

3 REDE TRANS BRASIL. Diálogos Sobre Viver Trans – Monitoramento: Assassinatos e Violação de Direitos

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se dedica ao mundo urbano. Destaco, ainda, que o contexto do campo diz respeito às vivências de pessoas trans jovens, entre 20 e 30 anos, e militantes de uma ONG, a REPPAT. Essas informações são importantes na medida em que, no meu entendimento, constituem as subjetividades dessas pessoas.

A categoria da “identidade de gênero” aparece entre as pessoas trans como uma questão fundamental em suas vivências. Ser transexual, de um modo geral, é não se identificar com o gênero atribuído no nascimento (registro civil). “Assumir” a “identidade de gênero” significa construir uma subjetividade/corpo – ou seja, fazer a “transição de gênero”4 – de acordo com o gênero com o qual se identifica, ou seja, essa “identidade” refere-se diretamente a noção de transexualidade como um conflito de gênero, e com os processos de transição de gênero decorrentes desse conflito. Nas palavras de Rafael, por exemplo, a pessoa trans “vai ter a todo momento que enfrentar esses padrões, esses papeis de gênero que a sociedade vai jogar em cima dela” (Rafael Carmo, 2018).

No campo teórico, a transexualidade é entendida por Bento (2008, p. 18), como “conflito com as normas de gênero”, ou, como propõe Jaqueline de Jesus (2012, p. 14), “pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento”. A “identidade gênero”, assim, torna-se, na maioria das vezes, uma luta das pessoas trans por serem reconhecidas pelo gênero com o qual se identificam. Mesmo que isso signifique não possuir uma “passabilidade”5 muita alta. Essa

construção, entretanto, não é nada simples, pois, como afirma Isabella, mulher trans interlocutora nesta pesquisa: “Tem que ter muita coragem de assumir a sua identidade de gênero nessa sociedade que ainda é muito preconceituosa; num país onde mais se mata pessoas trans no mundo, então, acredito que transexualidade é isso, é você simplesmente ter a coragem de assumir a sua identidade de gênero num país que é muito preconceituoso” (Isabella Santorinne, 2019).

Uma parte da luta do movimento de pessoas trans no Brasil, e em Belém-PA, dá-se pelo reconhecimento e “visibilidade” da identidade de gênero das pessoas trans (CARVALHO, 2013; GOMES, 2019). Não basta para essa pessoas “construírem” suas identidades, como

4 De acordo com o Conselho Federal de Medicina: “A afirmação de gênero é o procedimento terapêutico

multidisciplinar que, por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias, permite à pessoa adequar seu corpo à sua

identidade de gênero”. Disponível em:

http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28561:2020-01-09-15-52-08&catid=3. Acesso em 19 fev. 2020.

5 Refere-se às pessoas trans que conseguem modificar o corpo e serem lidas socialmente de acordo com o gênero

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afirma Isabella, é preciso ter “coragem”, pois em nosso país, uma das primeiras formas de desrespeito com as vivências trans é o não reconhecimento da identidade, por vezes expressado em não chamar a pessoa pelo nome correto, do gênero que ela se apresenta. A “visibilidade” entra nesse contexto, principalmente na luta política do movimento, como uma maneira de garantir a existência dessas pessoas na sociedade, tanto de um modo geral, quanto dentro do próprio movimento LGBTQIA+.

Desde as pesquisas iniciais de MacRae (2018) nos anos 1980, até os dias atuais, os “afeminados”, travestis e mulheres trans são vistos com desprezo dentro do próprio movimento. A letra “T” da sigla (significando travestis e transexuais), na perspectiva das pessoas trans, é invisibilizada dentro movimento geral. A “visibilidade”, porém, deve ser positivada, pois, não basta mostrar que pessoas trans e travestis existem, ou que existem apenas como seres da noite, da prostituição (NOGUEIRA, 2015; REIDEL, 2017). É preciso “visibilizar” as vivências trans “em plena luz do dia”, no cotidiano da cidade.

Marina Reidel (2017) e Luma Nogueira (2015), ambas mulheres trans, acentuam que as trans e travestis são sempre associadas à noite, tendo suas territorialidades limitadas. Assim, visibilidade na luz do dia é também uma parte da luta trans:

Hoje essa territorialidade não tem limite na figura das travestis e transexuais e acredito que nunca teve. Viver na marginalização da noite, nas ruas e nas esquinas, como mariposas, de salto ou em guetos, pois eram proibidas de sair durante o dia, fez com que essas pessoas construíssem outro espaço geográfico possível de viver e sobreviver (REIDEL, 2017, p. 118-119)

Nogueira (2015, p. 13), na pesquisa que realizou sobre as experiências de travestis no ambiente escolar, considera que as jovens travestis em comparação com as adultas rompem com estereótipos (prostituição), trazendo “formas de travestilidades diversas”. Porém, essas travestis que migram da esquina para a escola, da margem para o centro, sofrem com “estereótipos do passado”, vistas como “sinônimo de marginal e atentado ao pudor, uma espécie de afronta à moral e aos bons costumes” (NOGUEIRA, 2015, p. 14). A autora, apesar de reconhecer a importância, critica as várias etnografias sobre as travestis que focam principalmente a prostituição. A proposta de Nogueira (2015, p. 15), então, é ir contra a esse “lugar de destino”, e “desmistificar” a ideia de que “toda travesti se constrói na prostituição”.

Mais recentemente, Butler (2018, p. 40), operando com a noção de “precariedade”, tem chamado a atenção para a relação entre a performatividade de gênero e a rua. Para a autora, ao

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pensar sobre a ocupação dos espaços públicos pelos marginalizados socialmente, a precariedade é uma constante. Para ela:

A “precariedade” designa a situação politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoios sociais e econômicas mais do que outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte (BUTLER, 2018, p. 40)

Para Butler (2018, p. 41), assim, a precariedade está diretamente ligada às normas de gênero, visto que “[...] sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de modos inteligíveis estão expostos a um risco mais elevado de assédio, patologização e violência. As normas de gênero têm tudo a ver com como e de que modo podemos aparecer no espaço público”.

Paralela a noção de transexualidade, está a de “cisgeneridade”, ou simplesmente “cis”, isto é, “as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento” (JESUS, 2012, p. 10). Dentro do movimento de pessoas trans, há diversos intelectuais pensando a sociedade a partir da perspectiva dessas pessoas. A “cisgeneridade” faria parte de uma estrutura maior, entendida por Vergueiro (2016) como um “Cistema-mundo”6, um modo de organizar a sociedade com base na cis-heteronormatividade. A

sociedade, e a cidade, seriam organizados de uma forma em que as vivências trans e travestis são excluídas, negadas, apagadas e, em muitos casos, destruídas, mortas.

“Transfobia” é o nome dado aos atos de preconceito e violência contra as pessoas trans s travestis. Como define Jesus (2012, p. 29), transfobia significa: “Preconceito e/ou discriminação em função da identidade de gênero de pessoas transexuais ou travestis. Não confundir com homofobia”. Ao lado da luta pelo reconhecimento da identidade de gênero e por uma visibilidade positiva das vivências trans e travestis, dentro de uma sociedade estruturada pela cisgeneridade, as pessoas trans e travestis lutam também contra as diversas formas de transfobia sofridas no cotidiano e, no caso de Belém, principalmente nas suas práticas dos espaços da cidade.

Direito à cidade: Semana de Visibilidade Trans 2019 e II Piquenique Trans 2020

6 “‘Cistema-mundo’, uso-a enquanto referência a Grosfoguel (2012, 339), que caracteriza um “[c]istema-mundo

ocidentalizado/cristianocêntrico moderno/colonial capitalista/patriarcal” que produz “hierarquias epistêmicas” em que – na leitura específica desta dissertação – perspectivas não cisgêneras são excluídas, minimizadas, ou silenciadas. A corruptela ‘cistema’, entre outras corruptelas do tipo, têm o objetivo de enfatizar o caráter estrutural e institucional – ‘cistêmico’ – de perspectivas cis+sexistas, para além do paradigma individualizante do conceito de ‘transfobia’” (VERGUEIRO, 2016, p. 15)

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Quando conheci Rafael Carmo, e estabelecemos nossos primeiros contatos pelas redes digitais e telefone, ele estava, enquanto um dos coordenadores da REPPAT, organizando a Semana de Visibilidade Trans 2019. Rafael então permitiu que eu acompanhasse as reuniões de organização da Semana e, em seguida, estivesse presente nas atividades que ocorreram entre os dias 21 e 30 de janeiro de 2019. Ao longo das ações dessa Semana eu pude conhecer um pouco dos debates da comunidade trans em Belém, além de aproximar-me das pessoas trans com as quais eu dialogo neste trabalho. Aqui interessa-me destacar alguns pontos importantes que observei durante este primeiro momento em campo.

Durante as atividades da Semana de Visibilidade Trans de 2019, e acompanhando as reuniões de organização ou mesmo da própria Rede, a questão da identidade de gênero destaca-se como uma pauta central, em diversas dimensões. A primeira delas, enquanto uma autoidentificação inicial, o “descobrir-se” como pessoas trans, seguido de conflitos com a família e, de modo mais geral, com os padrões de gênero da sociedade. Uma outra dimensão, mas não descolada da primeira, tem a ver com a transformação do próprio corpo no sentido de alcançar a estética necessária para a prática do gênero com o qual a pessoa se identifica. Em outras palavras, a identidade de gênero está ligada a transição de gênero e a uma maior ou menor passabilidade. Nessa dimensão, pelo menos entre os interlocutores desta pesquisa, já não se trata de uma questão apenas individual, mas da organização e luta política pela garantia, junto ao Estado7, do direito aos procedimentos cirúrgicos necessários à transição. Uma terceira e última dimensão estaria ligada a necessidade de visibilidade das vivências trans no cotidiano da cidade. Ou seja, não basta transicionar de gênero, é preciso que a identidade assumida seja vista e respeitada pelo restante da sociedade.

Esse debate sobre “assumir” a identidade de gênero, e as consequências sociais dessa ação, permearam as rodas de conversa da Semana, como a ocorrida no dia 24 de janeiro de 2019, intitulada “Papéis de gênero: Um debate sobre Feminismo, Transmasculinidades, machismo e suas consequências”. O próprio ato-manifesto que a Rede realizou na tarde dia 27 de janeiro de 2019 em frente ao Mercado de São Brás, com o tema “Ser Trans é resistência.

7 A portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema

Único de Saúde (SUS). Entre outras questões, o artigo 14 define que a hormonioterapia que trata esta Portaria será iniciada a partir dos 18 (dezoito) anos de idade do paciente no processo transexualizador; e os procedimentos cirúrgicos de que trata esta Portaria serão iniciados a partir de 21 (vinte e um) anos de idade do paciente no processo transexualizador, desde que tenha indicação específica e acompanhamento prévio de 2 (dois) anos pela equipe multiprofissional que acompanha o usuário(a) no Serviço de Atenção Especializada no Processo Transexualizador.

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Minha identidade é um ato político”, também abordou a questão da identidade de gênero como algo central para as pessoas trans.

Nesses dois momentos que destaquei, um outro tema atravessou a discussão sobre a identidade de gênero: a questão da raça. Na roda de conversa, o tema da raça apareceu de um modo geral, nas falas de uma das participantes, principalmente quanto a experiência das mulheres negras. No ato, a raça ganhou destaque em uma fala política de Rafael Carmo, durante as intervenções que foram feitas ao longo da manifestação. Como eu pontuei em outro trabalho: “Rafael, assim como Isabella, fala em tom crítico sobre a falta de apoio de outros movimentos sociais no ato, como o próprio movimento negro. Diz que, por ser um homem trans negro, sente falta do movimento negro presente nas pautas trans (ele fala visivelmente emocionado)” (GOMES, 2019, p. 67). Na trajetória de Rafael a questão da raça é central, visto que ele, ao transicionar, passa de um corpo do desejo (lido como feminino) para um corpo do perigo (lido como masculino). A história de vida de Rafael, com isso, abre para uma reflexão sobre transexualidade e negritude, preconceito racial e identidade de gênero, como observa-se em sua narrativa:

Enquanto homem trans negro de periferia, eu passei a compreender o quanto meu corpo é visto com um estereótipo pejorativo e perigoso quando percebi que isso era porque as pessoas estavam me lendo enquanto um homem negro, mas antes de ser visto assim, eu era visto como uma mulher negra. Então a experiência era outra, o assédio e invasão ao meu corpo era muito maior. De ambas as formas, nunca senti que tinha algum privilégio (GOMES, SANTORINNE, SOUZA et. al., 2020, p. 139)

O fato de o ato político organizado pela Rede ser em local público e central na cidade de Belém (Mercado de São Brás) está relacionado à luta por “visibilidade”. Como eu afirmei anteriormente, pelo menos entre as pessoas trans militantes da REPPAT, não basta apenas transicionar de gênero, é preciso que essas identidades construídas sejam vistas na cidade e respeitadas. A visibilidade, assim, integra as lutas das pessoas trans, principalmente a que ocorre “em plena luz do dia”, no cotidiano da cidade, nas ruas, em seus espaços públicos. Ser visto quer dizer mostrar que a transexualidade existe e que pessoas trans também querem usufruir da cidade, como qualquer outra pessoa cisgênero. É ser chamado pelo nome correto, poder caminhar pelas ruas sem o medo de sofrer violências transfóbicas (desde os olhares até a agressão física de fato), é poder estar nos espaços públicos sem receio de ser expulsos, apenas por serem trans, é ter direito de usar, usufruir da cidade (LEFEBVRE, 2001).

A visibilidade também foi o centro do II Piquenique Trans, realizado no dia 26 de janeiro de 2020, na Praça da República. Acompanhei uma reunião de organização desse Piquenique,

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realizada na Defensoria Pública, que, inicialmente, estava previsto de ser uma Marcha de pessoas trans pelo centro da cidade. Devido as dificuldades com os órgãos municipais para a liberação do espaço e pela falta de apoio dos órgãos do Estado, a Marcha transformou-se em Piquenique. A escolha da Praça da República no domingo pela manhã era justamente por ser o dia e horário de maior movimento na praça, com famílias, jovens etc. Como pontou Anelyse Freitas, defensora pública parceira da REPPAT e colaboradora na organização do Piquenique: “é importante que famílias, crianças vejam que pessoas trans existem, por isso o domingo na praça”.

O evento na praça ocorreu sem maiores tribulações. Embaixo de uma grande árvore (samaumeira), quase na esquina da Rua Assis de Vasconcelos e da Rua da Paz, próximo ao Teatro do Paz, Rafael e Isabella colocaram uma enorme bandeira trans no chão, que serviu para as pessoas sentarem-se e ali confraternizarem. Quando eu cheguei no evento, por volta das 09h30, estavam ainda apenas os dois. A ideia do Piquenique era que as pessoas trans pudessem estar juntas naquele dia, em alusão ao Dia da Visibilidade Trans (29 de janeiro). Cada pessoa poderia contribuir com algum alimento. Aos poucos as pessoas foram chegando, em sua maioria jovens, casais trans, alguns gays cis. No total, tinha em torno de 30 pessoas sentadas sobre a bandeira trans, conversando, rindo, falando sobre suas vivências.

Em alguns momentos, era visível o olhar questionador ou de estranhamento de algumas pessoas que passavam pela praça. Pais de família com suas crianças e esposas olhavam como que analisando do que se tratava aquele aglutinado de pessoas. Quando pareciam entender o que estava se passando, alguns esboçavam uma expressão de desagrado. Senhoras idosas, mulheres, jovens, todos olhavam para aquela confraternização em plena praça. Muitas pessoas também passavam e não se detinham no grupo. Em dado momento, um fiscal da prefeitura rondou o grupo, olhou, mas foi embora sem fazer nada. Outros grupos de jovens e famílias dividiam o chão da praça com seus piqueniques.

É interessante pensar que, o que para muitas pessoas cis parece uma ação corriqueira (fazer um piquenique na praça pública), para as pessoas trans ganha um tom de ato político. Como eu afirmei antes, a visibilidade é central enquanto pauta de luta do movimento trans geral, e também da Rede. A Praça da República é um local de grande movimentação de pessoas nos domingos de manhã, ideal para as pessoas trans serem vistas. O ato não teve nenhum ar de manifestação, com microfones ou falas públicas. As pessoas trans estavam apenas lá, comendo, rindo, ouvindo músicas, praticando o espaço da cidade. A proposta era exatamente essa: mostrar

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as vivências trans na praça pública, como algo que compõe o cotidiano da capital. Isso ficou evidente em uma fala de Isabella Santorinne, no início do piquenique:

Então isso que a gente fez é realmente um ato de resistência. De vir para a praça para mostrar que nossos corpos também podem fazer parte desse ambiente. Por que a gente escolheu a Praça da República? Porque é um dia de domingo, têm várias famílias aqui, a gente sabe né?, República e Batista Campos são praças que dia de domingo dá muita família. Então, porque não vir para essa praça, botar o corpo pra chacoalhar, pra mostrar que nós existimos e a gente merece sim estar num local assim como esse, porque é nosso por direito (Isabella Santorinne, 2020)

Além de destacar a importância do piquenique como um “ato de resistência”, Isabella também enfatizou que o evento era aberto, inclusive para pessoas cis.

Então a gente fez esse piquenique com muito carinho, tudo é colaborativo, a comida, lanche, suco. A gente entrou em contato com vocês, não só com vocês, era aberto ao público, não só para pessoas trans, porque eu acho importante pessoas cis participarem também, mas não participar só por participar, mas para vir realmente somar com a gente (Isabella Santorinne, 2020).

O breve relato que fiz dos dois eventos apontam para as questões que atravessam as vivências trans na cidade Belém. Destaca-se a necessidade dessas pessoas em praticar os espaços públicos da capital, ter direito a estar nas ruas e lugares sem serem agredidas ou olhadas como não pertencentes a estes locais. Lefebvre (2001), ao discutir sobre o direito à cidade, à vida urbana, considera que, entre as consequências da industrialização sobre as cidades, está exatamente o não uso dos espaços, ou a restrição dos espaços a locais de consumo (mercadológico). Se a cidade é a “projeção da sociedade sobre um local” (LEFEBVRE, 2001, p. 62), e a sociedade, na perspectiva das pessoas trans e travestis, é “cis-heteronormativa”, as práticas dos espaços da urbe, seus usos sensíveis, caracterizam-se também pela dimensão política desses usos e práticas. Viver na cidade, caminhar pelas ruas, assim, torna-se, para além de um modo de existir, uma forma de resistir.

Considerações parciais

Ao acompanhar as ações da REPPAT é possível perceber o quanto de direitos sociais sãos negados à essas pessoas, desde o ser chamado pelo nome correto, até o acesso aos espaços públicos da cidade. O foco no “direito à cidade” deve-se à importância que ele tem para as pessoas trans de Belém enquanto forma de “visibilidade” das vivências trans, questão que integra parte da luta de movimento trans nacionalmente (CARVALHO; CARRARA, 2013). Em Belém, uma característica observada é a necessidade de as pessoas da Rede serem vistas

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“em plena luz do dia” no cotidiano da cidade, como modo de afirmar suas identidades de gênero. Isso, porém, não impede que, invariavelmente, as pessoas trans passem por situações de transfobia, nas quais são tratadas como se aqueles lugares não lhes pertencessem, principalmente durante o dia. Praticar a cidade, para pessoas trans, assim, torna-se um ato político, uma forma de resistência.

Ao focar nas ações políticas da ONG REPPAT, o trabalho reflete tanto sobre uma forma de “resistência”, quanto sobre os conflitos gerados em torno das identidades de gênero trans. Diante de opressões históricas sofridas por pessoas trans e travestis, investigar suas formas de organização e luta por direitos pode constituir-se, também, como uma forma de contribuir com suas pautas. Assim, ao tentar compreender como essa “resistência’’ ocorre numa cidade amazônica, acredito que o trabalho pode somar com as discussões sobre as transexualidades, ao demonstrar, por meio de um olhar antropológico, um pouco da maneira de agir de uma organização política no Norte do país.

Referências bibliográficas

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VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero

inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade/ Viviane

Referências

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