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CONSCIÊNCIA E VIOLÊNCIA JUDICIAL: Solidão decisória, reflexões sobre o Novo Código de Processo Civil e a Procedimentalidade Democrática

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SENSO CRÍTICO, Pedro Leopoldo, ano II, v. III, n. 3, p. 126-146, jan-jun 2017

CONSCIÊNCIA E VIOLÊNCIA JUDICIAL:

Solidão decisória, reflexões sobre o Novo Código de Processo Civil e a Procedimentalidade Democrática

Tiago Henrique Torres27

Sumário: 1. Introdução; 2. Decisão:

consciência ou

construção?; 3. Violência institucionalizada: conclusões de Derrida e segurança jurídica; 4. Legitimação democrática vs. Solidão decisória: A Processualidade Democrática como fuga à violência e obscurantismo da consciência; 5. Busca legislativa ordinária pela atenção à garantia constitucional; 6. Conclusões ao lume do Estado Democrático de Direito; 7. Referências

1. Introdução

O poder é tentador – um fato. A legitimação pelo poder traz uma carga de historicidade que remonta a muitas gerações anteriores a esta – também um fato. A influência da Democracia no Direito tende (ou pretende) a reduzir a carga de legitimação das decisões pelo simples uso da força (ou autoridade) pelo seu prolator, mas esbarra, incontestavelmente, na consciência própria deste no ato “soberano” de julgar.

Estas pequenas conjecturas (ou inferências) iniciais, embora pareçam, não foram simplesmente alçadas ao questionamento vão, com intuito meramente crítico (de julgamento), mas sim buscando demonstrar uma conclusão que, produto de reflexões críticas (avaliação minuciosa) ao longo dos séculos, se torna quase um verdadeiro dogma: a consciência do decisor lhe tolhe a carga de legitimidade para decidir.

Embora deveras temerária a afirmação supra, sobretudo ao início de uma reflexão crítica, se trata de uma necessária problematização a ser enfrentada, em busca de novos e mais agudos escopos, com o objetivo de, cada vez mais, aclarar o obscurantismo que permeia o ato de decidir. A isenção do decisor é, decididamente, uma grande incógnita a ser perquirida, já que todo e qualquer ser humano se

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Mestrando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC), Bacharel em Direito pela Fundação Pedro Leopoldo (FPL). Advogado militante.

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encontra, inegavelmente, à mercê de fatos históricos, que, a serviço de uma verdadeira ideologização do indivíduo, formam juízos que balizarão todos os atos da vida a que carecerem de sua atuação.

A atual concepção de processo nos dá um norte importante a seguir, porquanto a sua inserção nos ditames do Estado Democrático de Direito não possibilita análises que fujam do respeito às garantias fundamentais constitucionais, aqui entendidas como a Democracia propriamente dita, e a participação de todos na construção de provimentos. É importante buscar saídas ao solipsismo de muitos julgadores que, investidos do poder decisório, fazem de sua atividade um verdadeiro império, de regramento, decisões uniformes (invariáveis) e desrespeito às particularidades.

É preciso realizar a busca de controle dos abusos decisórios, fruto da judicialização exacerbada que, direta e indiretamente, acaba por fazer com que apenas a decisão judicial, proferida pela autoridade única, seja legítima de ser seguida. Neste prisma, o Novel Código de Processo Civil (Lei 13.105/2.015) estatuiu em seus procedimentos regras a balizarem a atividade judicial, sobretudo no que concerne à justificação fundamentada de todos os seus atos, seja de cunho positivo ou negativo às partes.

Contudo, é preciso se conceber em mente que a violência das decisões judiciais pode ser fruto da mais simples e inocente aferição de juízos valorativos, que, colocando à margem a procedimentalidade democrática, tornam o conteúdo decisório maculado e em total descompasso com o que realmente toca às garantias fundamentais.

2. Decisão: consciência ou construção?

A questão principal que se apresenta é delinear o que faz com que uma decisão judicial se torne um “fruto” possível às partes, de forma a que os envolvidos possam vislumbrar a sua realidade no que estarão prestes a tocar. Traduzindo a metáfora, é preciso esclarecer aos envolvidos sobre o fundamento decisório, de modo a que a decisão proferida seja palpável a todos, do ponto de vista material. Os envolvidos devem perceber que, seja através de um conteúdo positivo ou negativo

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às suas pretensões, a decisão judicial deve passar pelo conteúdo disposto e discutido pelas partes.

Contudo, o julgador não é mero espectador ao jogo dialético das partes. Ao julgador é possibilitada a ampla participação e intervenção no feito, e, a atividade das partes se presta ao seu convencimento, tendo este julgador como verdadeiro destinatário do Direito, como, a nosso sentir, sentenciou José Alfredo Baracho28. Mas, o convencimento judicial se confunde ao próprio poder discricionário do julgador, através do qual pode exercer o poder lhe garantido pelo cargo ao qual se encontra investido.

No prisma destas premissas iniciais, como conceber discussão processual das partes, com intuito de auxiliar o juízo na formação de sua decisão? A decisão é do juízo? Como obter conteúdo democrático frente ao poder discricionário do decisor?

Obviamente, como não se trata de uma ciência exata, o Direito comporta em si múltiplas interpretações e entendimentos, o que deve ser feito dentro dos limites da demanda posta e da legislação vigente. O limite entre interpretação e discricionariedade é tênue e bastante perigoso, e a linha que os separa é a própria consciência do julgador.

Em trabalho que analisou justamente estas nuances, pontuou de forma bastante interessante Fernando Vieira Luz, mencionando o jurista gaúcho Lênio Luiz Streck:

O sujeito solipsista da modernidade – tendo por base as formulações de Descartes e Kant – é o protótipo do juiz atual. O solipsismo ocorre, aberta ou veladamente, de várias formas, possuindo, em comum, o fato de relegar a decisão à consciência ou à convicção pessoal do julgador. Conforme sintetiza Streck, no âmbito do Direito, o solipsismo aparece pela: a) Interpretação como fruto do ato de vontade do juiz ou no adágio “sentença como sentire”; b) Interpretação como produto da subjetividade do julgador; c) Interpretação como produto da consciência do julgador; d) Crença de que o juiz deve fazer a “ponderação de valores” a partir de seus valores; e) Razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato voluntarista do julgador; f) Crença de que “os casos difíceises resolvem discricionariamente”; g) Cisão estrutural entre regras e 28

A função jurisdicional coloca os juízes unicamente submetidos à lei. A independência judicial, em qualquer de seus aspectos, tem como destinatário o juiz, como administrador da justiça, que exercendo o poder jurisdicional ou a função jurisdicional, aplica a norma ao caso concreto, condição básica da imparcialidade judicial, que vai orientar a objetividade da sentença, constituindo uma garantia essencial para os jurisdicionados. (2008, p. 216)

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princípios, em que estes proporciona(ria)m uma “abertura de sentido” que deverá ser preenchida e/ou produzida pelo intérprete. (2013, 54) Como mencionado pelo jurista, e em linhas gerais, a discricionariedade retira do Direito, de forma abusiva, toda a sua carga de sentido, como se, praticamente, lhe tolhesse a razão de ser. Afinal, o Direito nas concepções atuais é justamente o produto da atuação democrática, e não apenas produto do entendimento solitário do decisor, exclusivamente pelo cargo que exerça. Assim, concluiu Rosemiro Pereira Leal:

O cuidado que se impõe ao falar numa decisão democrática é exatamente identifica-la dentro da estrutura do devido processo constitucional, por suas expansividades judiciais, legislativas e administrativas, como provimento de todos os sujeitos do processo e não do ato humano monocrático ou colegiado decorrente de um dos sujeitos do processo como função ou órgão protetor da estrutura procedimental processualizada que, a rigor democrático, dispensa qualquer forma volitiva de tutela ou cobertura judicial cortesã, porque é na estrutura processual, como espaço jurídico-pluralístico-discursivo, que se legitima toda atividade estatal normativa no paradigma jurídico da democracia. (2002, p. 130)

Afinal, em não raras situações, a discricionariedade tão somente retira das partes a possibilidade de dar ao caso concreto o desfecho que conceba a instrução processual, mas, diversamente, dá o desfecho conforme o entendimento pré-concebido pelo magistrado, conforme valoração que este atribui de acordo com a sua consciência.

Em outras palavras, é o que direciona o já mencionado Lênio Luiz Streck: Na matriz teórica aqui defendida, fica claro que há paradigmas distintos sendo trabalhados. Neste contexto, exsurge uma questão que não pode ser ignorada, ou seja, a de que a dogmática jurídica (entendo dogmática jurídica – nos moldes em que é dominante em terrae brasilis – como um conjunto de discursos prévio de fundamentação que dispensam o mundo prático, buscando dar todas as respostas antes das perguntas) permanece aferrada a um paradigma estruturado, de segundo nível, que se assemelha, muito grosseiramente, aquilo que foi produzido pela filosofia analítica e suas adjacências. Não é, pois, um vetor de racionalidade estruturante, de primeiro nível, como é o caso da filosofia hermenêutica ou da hermenêutica filosófica. (2013, p. 40)

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Importante registrar que a adoção de decisões no ponto de vista ora criticado é fruto de uma concepção pragmática e instrumental do processo29, que coloca o julgador em posição verdadeiramente divina e digna da fé do jurisdicionado (2013, p.43), única a trazer a possibilidade de crença por aquele que careça de amparo legal. Uma visão totalitarista e contrária ao que se afigura como preceito democrático.

Curial observar que preceitos democráticos não se ligam a uma concepção de Democracia meramente representativa, tal como vemos na prática, mas sim uma ampla e irrestrita participação do povo. Povo não é meramente um conjunto de pessoas, ou uma denominação que exprime ausência de valor, mas sim a representação do quantum numérico de cidadãos de determinado território. O povo é instituidor e destinatário de normas, legitimador e legitimado das decisões estatais. Em termos mais comuns, o povo é realmente quem detém o poder dentro da Democracia, exercendo sempre em prol da coletividade, dentro do que prescreve a Constituição da República de 1988, que nada mais é do que a expressão legislada de sua vontade e anseio por dignidade.

Interessante o que entende Felipe Bley Folly, dentro da temática que se apresenta:

E entende assim que a Constituição não é a mera projeção de uma decisão histórica ou uma filosofia de valores, mas sim possuidora de pressupostos essenciais ao que chama de uma “gramática democrática”, indisponíveis para o próprio exercício da Democracia. A Constituição teria uma função de garantir a participação democrática e não de limitá-la. E aqui podemos citar como exemplos as condições de liberdade e participação nas decisões, o livre e igual acesso às deliberações públicas, a paridade entre partes e a possibilidade de livre expressão de ideias. São limites a poderes autocráticos e parciais, e mesmo aos poderes constituídos (Executivo, Legislativo, Judiciário), que garante os Direitos da comunidade política, ou seja, aqueles Direitos criados com a contribuição desta, no sentido de uma autolegislação (garantias que nos autorizam a não nos subordinarmos a normas de cujo processo de criação não tenhamos participado). A ideia de Constituição

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No mesmo sentido, Cândido Rangel Dinamarco – que inaugurou com sua tese de Cátedra a corrente chamada Instrumentalidade do Processo, que influenciou e continua influenciando gerações de juristas – afirma, sem ressalvas, que o juiz é o canal privilegiado de captação dos valores sociais, devendo estes aparecerem assimilados na sentença. Nas palavras do autor: “o juiz é o legítimo canal através de que o universo axiológico da sociedade impõe as suas pressões destinada a definir e precisar o sentido dos textos, a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar a evolução do conteúdo substancial das normas constitucionais” (cit. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 12.ed. São Paulo: Malheiros, p. 47) (STRECK, 2013, p. 43)

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patrocina a Democracia. Para Palombella, inclusive, o constitucionalismo “...trabaja a su vez como motor interno de la democracia, protegendo sus caracteres esenciales y garantizando la „gramatica‟ del linguaje de la voluntad popular”. (2011, p. 233)

Importante é vislumbrar que, além da força do povo dentro destas estruturas, é o ideal de Democracia arraigando-se nas próprias bases de sustentação da concepção de Estado, que modernamente tem, ainda que de forma filosófica e teórica, buscado a inserção do povo em sua gênese. Afinal, se vivemos em uma sociedade pautada no princípio da Legalidade e também no princípio da Democracia, nada mais sensato que a participação popular se dar realmente de forma efetiva.

O Processo, em seu sentido lato, e não meramente jurídico, é o instrumento através do qual os preceitos do Estado de Direito Democrático podem ser identificados e concretizados, notadamente a participação do povo, legitimadora dos atos estatais juntamente com os preceitos legais postos, sobretudo constitucionais. Isto, com intuito precípuo de garantir que a Democracia não seja mera forma de representatividade popular, como apregoou Friedrich Muller em célebre obra:

Nem a todos os cidadãos é permitido votar. Nem todos os eleitores votam efetivamente. E por meio de quê deve legitimar a minoria, sempre vencida pelo voto da maioria nas eleições e em posteriores atos legislativos? E que “povo” – se esconde atrás dos efeitos informais sobre a formação da opinião pública e da vontade política “do povo” – efeitos que por exemplo as pesquisas de opinião ou todas as atividades individuais e sobretudo as atividades associativas e corporativas podem produzir na política? (2011, p. 46) O mesmo Muller (2011, p. 51) já disse que “o povo atua como sujeito de dominação”. Dominação esta que não é exercida através da violência propriamente dita, corporal ou psicológica, mas sim da violência ideológica que se encontra facilmente e historicamente arraigada nos textos legislativos. A violência que, não apenas dizima o povo e o seu ideal de democracia, mas, sobretudo a legitimidade procedimental.

3. Violência institucionalizada: conclusões de Derrida e a segurança jurídica

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Soa com certo arroubo pensar que poderia haver alguma forma de violência institucionalizada, sobretudo em um Estado que se diga Democrático de Direito. No entanto, a violência aqui descrita não se trata de mero uso desproporcional de força física, tortura psicológica ou diminuição do indivíduo pela ação ostensiva de outrem.

Trata-se de violência intrínseca a atos tidos como legítimos, seja em razão da carga de legitimidade obtida pela posição que ocupa aquele indivíduo que pratique o ato, seja pela investidura em poder constituído por força da legislação, ou mesmo pela própria força da tradição ou do carisma (WEBER, 2008).

Esta violência dita como institucionalizada nos parece (e aparece) como uma consequência lógica a todo o anseio do homem à garantia de sua segurança, bem como da consecução de seus objetivos materiais. A busca que se apresenta é, desde sempre, justamente por “teorias que melhor servissem ao homem em seus propósitos de vida, liberdade, dignidade” (LEAL, 2010, p. 37), onde se apresenta como alternativa mais simples e objetiva a sua obtenção através da imagem do Judiciário, como entidade forte e constituída de legitimidade suficiente para garantir segurança e os almejados benefícios materiais.

Exemplo de tudo isto é a forma através da qual é concebida uma Lei, olhando-se, especificamente, ao ordenamento jurídico brasileiro. Como cediço, a adotada tripartição de funções do Estado, erigida por Montesquieu (2000), atribui tal

múnus aos parlamentos do “Poder” Legislativo, através dos quais a legislação é

gestada e sob a alegada legitimação popular, na medida em que a verificada Democracia Representativa30 faz com que qualquer parlamentar se transfigure em representante daquele que lhe concedeu a opção nos procedimentos eletivos. Contudo, é preciso registrar que esta não é a carga de Democracia almejada para fazer com que um texto legislativo seja plenamente legítimo. É o que já mencionou Rosemiro Pereira Leal:

O fato de uma lei ser produzida num parlamento não torna democrático o direito dela derivado, mesmo que se trate de um Estado constitucional e declaradamente democrático. É que regimes de dominação estratégica em variáveis e engenhosas normatividades adotam rótulos constitucionais de ênfase retórico-democrática como formas patrióticas (cívicas) de gerir o

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“[...] o povo, no plano jurídico, continua sendo soberano e, no plano político, para suas decisões, tem à sua disposição no Parlamento uma instituição provida constitucionalmente de todos os poderes desejáveis, visto sob um prisma democrático. Por isso coloca-se a questão de se a participação dos cidadãos na vida política pode ter ainda hoje uma verdadeira função, por mais que já não a tenha no presente momento. ” (HABERMAS, 1983, p. 386)

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povo icônico numa cadeia de razões infinitamente messiânicas. (Grifo do autor) (2010, p. 97)

Em outras palavras, busca o mencionado jurista inferir que a lei não se torna legítima por ser gestada por órgão ou instituição (instituição pela visão da Teoria Neoinstitucionalista31), considerando que os parlamentos carregam em si total carga de violência, com expresso interesse na dominação popular (considerado como representado pelos atores políticos – legisladores), travestida de uma pretensa constitucionalidade. Através da positivação de leis, interesses são satisfeitos e é preservado o conteúdo teleológico que mantém fiel o povo ao agente político: a proteção e garantia da segurança.

Todo este prospecto atrai ao próprio conteúdo das leis uma carga de violência em sua instituição, na medida em que aquele que as gesta (legislador) já carrega em si uma carga mítica de sacralidade, envolta na legitimação, que causa dominação, atribuída pela própria lei. É um ciclo vicioso, alimentado sobretudo pelo pragmatismo positivista, e seu constante anseio de “definir o direito em função da coação, no sentido que vê nesta última um elemento essencial e típico do direito” (BOBBIO, 1995, p. 147). Isto nos faz pensar, inclusive, que o princípio da Legalidade carrega em si uma carga indelével de contradição e retórica, dada a arbitrariedade inserida no conteúdo de um princípio considerado como basilar, questionando-se, inclusive, a segurança jurídica que pode ser atribuída por um conteúdo legislativo erigido nestas concepções.

Tais questionamentos já permeavam o raciocínio do jusfilósofo Jacques Derrida, que buscou compreender como se diferenciar Direito e Justiça, com intuito de obtenção de justiça e aplicação da lei destituídas de qualquer violência, ou, ao menos, uma força que não detenha violência. Da mesma forma, questiona de onde surge o Direito, e o fundamento para existência de uma autoridade que o aplique. A compreensão de Derrida sobre a temática que ora se encarta no presente estudo, permitida aqui a licença crítico-investigativa, poderia, inclusive, ser resumida em um trecho, no qual questiona o filósofo Essai Montagne:

Ora, as leis se mantêm em crédito, não porque elas são justas, mas porque são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não têm outro. Quem a elas obedece porque são justas não lhes obedece

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LEAL, Rosemiro Pereira. A Teoria Neoinstitucionalista do Processo: uma trajetória conjectural.

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justamente pelo que deve. (...) visivelmente, Montaigne distingue aqui as leis, isto é, o direito e a justiça, A justiça do direito, a justiça como direito não é a justiça. As leis não são justas como leis. Não obedecemos a elas porque são justas, mas porque têm autoridade. A palavra “crédito” porta toda a carca de proposição e justifica a alusão ao caráter “místico” da autoridade. A autoridade das leis repousa apenas no crédito que lhes concedemos. Nelas acreditamos, eis seu único fundamento. Esse ato de fé não é um fundamento ontológico ou racional. E ainda resta pensar no que significa crer. (2010, p. 21) Em outras palavras, poderia ser válida e legítima uma lei que tem como base a crença em uma autoridade? Ao que nos parece, significaria dizer que o princípio da legalidade, nestes termos é a adoção tácita (ou expressa) da violência como legitimadora. Transpondo à aplicação da lei, por um judiciário que em si já carrega a mesma carga de sacralidade descrita, duplamente utilizada a violência na apreciação de demandas postas. Inexistiria uma processualidade democrática neste prisma.

Não se acata o bom ou o ruim, o agressivo ou brando, mas sim a lei posta, porquanto pressupõe-se que a mesma foi erigida democraticamente, com instituição de quórum próprio e estrita observância de regimentos das casas legislativas. É uma conjectura que faz, inclusive, Rosemiro Pereira Leal afirmar que se trata de uma “sociedade pressuposta”, exclusivamente interessada na realização dos direitos materiais (2010, p. 43), que acata e reproduz a opressão legislativa, desde sua gestação.

Esta violência, legitimadora e ínsita do Direito (e à Lei), é apresentada pelo filósofo Walter Benjamin, que, inclusive, mereceu especial trato de Derrida em seu trabalho sobre a “Força da Lei”. As concepções tratadas por Benjamin dão como certo o uso da violência na aplicação do Direito, posto que se tratam de objetos praticamente inseparáveis. As suas constatações dão conta de que seria impossível a possibilidade teórica de um direito tido como democrático, dada a impossibilidade de destituição da união entre justiça e poder, violência e direito (LEAL, 2010, p. 106).

Benjamin afirma que “a violência que mantém o Direito é uma violência que ameaça” (2011, p. 133), como forma de sustentar a tida como de impossível separação, coloca de forma categórica:

Toda violência como meio é ou instauradora ou mantenedora do direito. Se não pode reivindicar nenhum desses predicados, ela renuncia por si só a qualquer validade. Daí resulta que toda violência como meio, mesmo no caso mais favorável, participa da problemática do direito em geral. (...) Quando se apaga a consciência

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da presença latente da violência numa instituição de direito, esta entra em decadência. Um exemplo disto, na época atual, são os parlamentos. Eles proporcionam o lamentável espetáculo que se conhece porque perderam a consciência das forças revolucionárias às quais devem sua existência. (...) Falta a estes o senso para a violência instauradora do direito, que neles está representada: assim, não é de estranhar que consigam tomar decisões que sejam dignas dessa violência, mas cultivem, com a prática de compromissos, uma maneira supostamente não violenta de tratar assuntos políticos. (2011, p. 136-137)

Novamente, voltando à gestação legislativa, tal como vemos atualmente, a posição do jurista é a de que a violência aniquila o direito, posto que, se não existente a coercibilidade (violência), perderia a razão de ser o próprio direito. A menção feita à Benjamin por Derrida em seu ensaio é justamente para demonstrar como pode ser repulsiva e condenável a ideia de conceber como legitimadora do Direito a violência, criticando tal posição. E justifica:

Em suas últimas linhas, antes de assinar, Benjamin usa, aliás, a palavra “bastardo”. É, em suma, a definição do mito, portanto, da violência fundadora do direito. O direito mítico, poderíamos dizer, a ficção jurídica, é uma violência que teria “abastardado” (bastardierte) as “formas eternas da violência divina pura”. O mito abastardou a violência divina com o direito (mit dem Recht). Mau casamento, genealogia impura: não a mistura dos sangues, mas a bastardia, que afinal terá criado um direito que faz correr sangue e pagar com o sangue. (2007, 131).

A legitimação pela violência, como se vê, é algo que, embora pensemos se tratar de totalmente alheia ao Direito e à Lei, é, contrariamente, íntima e quase inseparável, sobretudo ao vislumbrarmos a forma de gestação dos conteúdos normativos hodiernamente posta. Razão disto é que a gestação normativa deve preceder de plena e irrestrita “fiscalidade pelos legitimados ao processo, sobretudo daqueles direitos constitucionalizados” (LEAL, 2014, p. 31), concebidos na Constituição da República como cláusulas pétreas.

Embora ainda não concebamos atualmente a fiscalidade na gestação normativa, tida como ideal, seja pela legitimação democrática da sociedade ao conteúdo legislativo criado, seja pela redução ou erradicação dos níveis de violência, certo é que a segurança jurídica resta abalada e desprovida da própria segurança, na medida em que não se poderia admitir como status seguro uma decisão legitimada na violência legislativa ou aplicativa do Direito.

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A violência, neste sentido, colocaria em cheque a segurança jurídica tanto no aspecto objetivo (este entendido como proteção ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e à coisa julgada), quanto no aspecto subjetivo (que se refere à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação), já que, atuando diretamente no núcleo gestativo das normas, colocaria em cheque a própria validade destas. A partir destas informações, torna-se desnecessário procurar conceituar segurança jurídica sob o aspecto ventilado, na medida que o agir violento estaria arraigado tanto na criação quanto aplicação da lei32.

Neste sentido, a redução dos níveis de violência e insegurança jurídica passa pela dicotomia entre o atuar solitário da autoridade e a necessária democratização procedimental, de forma a garantir a legitimação dos atos do Estado através da participação dos legitimados ao processo, ou seja, do povo.

4. Legitimação democrática vs. solidão decisória: A Processualidade Democrática como fuga à violência e obscurantismo da consciência

Como visto, a violência travestida de legitimidade em razão do agir da autoridade, devidamente investida do poder decisório, é ínsita à maioria dos provimentos mandamentais e do próprio agir do Estado. Obedece-se em razão da coerção, e não da justeza da imposição que se apresenta. Mas, considerando principalmente que a maioria dos textos legislativos advém de períodos em que imperava o domínio pelo uso da força, parece de dificulta solução o obscuro e sombrio vulto do agir autoritário.

Em razão disto, e sob o pálio da democracia efetiva e processualizada, através da qual os legitimados ao processo33 podem fazer com que os atos estatais

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“A segurança jurídica é um mandamento nuclear do sistema processual revelado pelo binômio:

certeza do direito e proibição do arbítrio. ” (Grifos da autora) (MESSA, 2007, p.48) 33

Aqui, o que se pretende ressaltar é a total inocuidade de um discurso constitucional, quanto a direitos porventura ali assegurados, se não considerados como conteúdos de um sistema lingüístico permanentemente aberto a uma textualização por todos os integrantes de uma comunidade jurídica como conjunto total de legitimados ao processo e processo como o locus (interpretante) teórico-jurídico do exercício intertextual do discurso da constitucionalidade segundo princípios autocríticos (contraditório, ampla defesa, isonomia) como direitos fundamentais de desconstrução de sentidos (argumentação) ao controle proposicional da normatividade à fundação de uma Sociedade

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tenham efetiva legitimidade, decorrente de uma participação altamente profícua desde a gestação normativa ao provimento final, o professor Rosemiro Pereira Leal estruturou justamente uma forma de retirar da autoridade o arbítrio decisório. E, se assim se permitisse resumir, tal trecho de suas concepções ilustraria de forma clara:

A principiologia do Processo na teoria Neoinstitucionalista exige o pressuposto jurídico-discursivo-autocrítico de exercício continuado de autoilustração e de fiscalidade incessante pelos sujeitos de direito (legitimados ao processo-Povo) sobre os fundamentos do sistema jurídico adotado como destinatários, autores e coautores, da construção (efetivação) de uma sociedade política a partir do recinto (âmbito teórico-conjectural) de uma linguisticidade (texto) processualmente constitucionalizada. Caracteriza-se assim um paradigma teórico-linguístico de compartilhamento na produção do sentido democratizante da normatividade expressa em possibilidades juridificantes de uma existência jurídica não posta por realidades

sociais autopoiéticas nas bases instituinte, constituinte e constituída

dos direitos legislados. (LEAL, 2013, p. 51)

A partir desta premissa, o professor Rosemiro busca incutir a ideia de que apenas a processualidade democrática é capaz de eliminar ou, ao menos, minorar o problema das decisões teratológicas e imprevisíveis, fruto do desrespeito à atuação das partes na construção do provimento. Não se trata de mero argumento retórico quando se aborda em ponto de vista democrático, ou participativo das partes, mas plenamente objetivo e estruturante, pois, em se tratando de Estado Democrático de Direito, é impossível desassociar a estrita atuação das partes ao conteúdo final de uma lide, trazendo para o campo jurídico.

Nessa linha de raciocínio, Rosemiro, novamente, estatui (2002, p. 150): É que, quando escrevemos, em direito democrático, sobre cidadania como conteúdo e processualização ensejadora de legitimidade decisória, o que se sobreleva é o nivelamento de todos os componentes da comunidade jurídica para, individual ou

grupalmente, instaurarem procedimentos processualizados à correição (fiscalização) intercorrente da produção e atuação do direito positivado como modo de auto-inclusão do legislador-político- originário (o cidadão legitimado ao devido processo legal) na dinâmica testificadora da validade, eficácia, criação e recriação do ordenamento jurídico caracterizador e concretizador do tipo teórico da estabilidade constitucionalizada.

Político-Democrática. (LEAL, _____, p. 3) (Disponível: http://www.fmd.pucminas.br/Virtuajus/1_2006/Docentes/pdf/Rosemiro.pdf ).

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Não há nada mais magistral do que conceber ao legitimado ao processo, ao povo, segundo a concepção trazida por Rosemiro, a nosso ver, totalmente acertada e dentro do que prescreve o Estado Democrático de Direito. Consequentemente, dentro do que se apregoa como ideal na Constituição Federal, dando a esta a efetiva aplicação e colocando o povo como verdadeiro criador e destinatário das normas, como se pressupõe de uma Democracia, instituída igualmente pela Constituição Federal34. A processualização democrática coloca nas mãos do povo, como legitimado, a real possibilidade de alteração de qualquer obscuridade a que esteja inserido, notadamente aquelas em que se observa a proteção institucional, travestindo de legalidade e legitimidade os atos totalmente eivados de vícios e violência, na forma já descrita. Vai muito além da mera representatividade, que, neste caso, se desloca ao segundo plano. É a existência de atuação estrita do legitimado na Democracia, como ator principal dos atos da vida e da sociedade civil como um todo.

Demonstrando a importância da atuação estrita do legitimado na Democracia, igualmente importante, é o entendimento do jurista André Del Negri sobre o tema (2011, p. 90):

Nessa linha de cogitação, o direito-de-ação já positivado na Constituição de 1988 que, encerrando em seu texto o discurso jurídico-democrático, garante por meio do devido processo constitucional o controle irrestrito de todo e qualquer procedimento (legislativo, administrativo e judicial). A identificação do direito-de-ação como expressão da soberania popular (cidadania), não é retórica ou mítica, pois assegurado está na escritura constitucional e à disposição de todos em movimentar a jurisdição, a fim de ensejar no plano processual-discursivo-constitucional (plano de proteção dos direitos fundamentais) de formação da vontade democrática e correições cabíveis.

É interessante observar que, a atuação do legitimado ao processo (povo), seja no momento gestativo da norma, na qualidade de fiscalizador de sua instituição, seja no momento da aplicação do direito, através do uso do direito de ação a favor de um interesse particular, culminam em irrestrita obtenção do ideal democrático, fomentando a legitimação de provimentos estatais unicamente por tal modalidade e garantindo que o protagonismo judicial seja cada vez menos observado, ainda, e 34

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)

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principalmente, quando estejamos diante de lacunas legislativas35, que, como forma devida de solução, devem respeitar a necessária observação da legislação do conteúdo omisso36. Da forma que temos atualmente, via Mandado de Injunção.

Em que pese todo o arcabouço construído doutrinariamente, o legislador ainda busca soluções superficiais, chegando ao ponto de positivar, infra constitucionalmente, direitos e garantias que já se encontram inseridos na Constituição Federal, como se não a existissem, ou como se fosse um breve recado de que os legitimados ao processo, e os operadores do direito, desconhecem efetivamente a auto-executoriedade das garantias constitucionais.

5. Busca legislativa ordinária pela atenção à garantia constitucional

Vigente desde o dia 18 de março de 2016 (smj., considerando as divergências doutrinárias sobre o fim da vacatio legis e início da vigência), o Novo Código de Processo Civil – NCPC – (Lei 13.105/2015), concebeu como alguns de seus pilares estruturantes o contraditório dinâmico e a necessária fundamentação racional e legítima das decisões judiciais. Tais concepções, tão guerreadas pelos juristas e operadores do direito Brasil afora, principalmente o gaúcho Lênio Luiz Streck37, outrora adstritas tão somente ao arbítrio da autoridade judicial, encontram-se expressamente inencontram-seridas no mencionado texto legislativo, encontram-sendo o contraditório constante principalmente do artigo 1038, e o princípio da fundamentação inserido, principalmente, no artigo 48939.

35

“Diante do fracasso da atuação e das omissões do Legislativo e do Executivo, cabe ao Judiciário assumir o papel de autoridade realmente preocupada em concretizar os direitos fundamentais consagrados na Constituição. (BECATTINI, 2013, 62).

36

“Portanto, os que entendem ainda a lacuna da lei ou a defesa de sua completude como problema que, nas decisões, tem de ser dogmaticamente resolvido pelo juiz, desconhecem que, nas democracias, nenhuma norma é exigível se seu destinatário não é o seu próprio autor. Daí, se o povo real não legislou, o direito não existe para ninguém. Não há indagar se o que não é proibido é permitido, se o sistema é aberto ou fechado, mas, no direito democrático, o que não é provido pelo devido processo legislativo fiscalizável processualmente por todos (devido processo legal) não é juridicamente existente. (LEAL, 2002, p. 39).

37

“Não se pode olvidar a „tendência‟ contemporânea (brasileira) de apostar no protagonismo judicial como uma das formas de concretizar direitos. Esse „incentivo‟ doutrinário decorre de uma equivocada recepção daquilo que ocorreu na Alemanha pós-segunda guerra a partir do que se convencionou a chamar de Jurisprudência dos Valores. (STRECK, 2013, p. 20).

38

Art. 10 - O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

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É curial observar, de antemão, que a busca legislativa foi por dar à lei ordinária a efetivação de preceitos já inseridos na Constituição Federal, argumento maior dos defensores da tese de que o Código de Processo Civil necessitava inserir expressamente tal conteúdo. Esta necessidade decorre, a nosso sentir, da falta de cuidado da autoridade em efetivar direitos e garantias fundamentais, notadamente processuais, como já pontuado. Esta ausência de menção expressa na Lei Processual tornava o processo altamente frágil do ponto de vista democrático, colocando “com as duas mãos” o destino do processo ao livre alvedrio da autoridade. Inclusive, é o que já descreve boa parte dos juristas nacionais (2015, p. 46-47):

O Novo CPC evidencia essa tendência (conceber princípios como normas) ao conferir grande importância aos princípios fundamentais do processo, característica visível não apenas nos primeiros artigos, mas, na verdade, em todo o texto, especialmente quando se percebe que o conteúdo destes princípios servirá de premissa interpretativa de todas as técnicas trazidas na nova legislação. Assim, a nova lei institui um verdadeiro sistema de princípios que se soma às regras instituídas e, mais do que isso, lhes determina uma certa leitura, qual seja, uma leitura constitucional do processo (ou embasada no processo constitucional democrático), tendo como grandes vetores o modelo constitucional de processo e seus corolários, devido processo legal (formal e substantivo), o contraditório – em uma versão dinâmica (art. 10, Novo CPC), a ampla defesa e uma renovada fundamentação estruturada e legítima das decisões judiciais (art. 489, Novo CPC).

Dentro dessas premissas, a nova ordem processual que se apresenta, tenta se adequar ao máximo aos preceitos do Estado Democrático de Direito, sobretudo ao vislumbramos que o até então vigente Código de Processo Civil de 1973, estruturado por Alfredo Buzaid, que calcou o seu trabalho estritamente no raciocínio do jurista italiano Enrico Tullio Liebman, não se adequava a tal paradigma, mas sim à uma realidade que colocava o processo tão somente como mero efetivador de direitos materiais40.

39

Art. 489 - São elementos essenciais da sentença: (...)

§ 1º - Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...)

40

“Ora, diante da necessidade da análise hipotética do direito material deduzido em juízo pela parte para se verificar as condições da ação, percebe-se que Liebman vinculou o direito de ação à existência (mesmo que em tese) do direito material, sendo certo que tal vinculação representa um retrocesso diante do paradigma do Estado Democrático de Direito, no qual se considera o direito de ação como garantia constitucional incondicionada, direito político mesmo, pois referido instituto consubstancia a participação do cidadão no processo de formação de uma manifestação estatal – dizer e aplicar o direito.” (CAMARA, MACHADO, SILVA, 2004, p. 241)

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Em que pese a tentativa de instituir como novidade a inserção de tal conteúdo na lei processual, é importante ressaltar que a Constituição Federal já contemplava previsão do Contraditório41 e necessária Fundamentação das Decisões Judiciais42 em seu conteúdo. Trata-se de uma forma quase que primária de chamar atenção do operador e aplicador do Direito ao que prescreve a sua chamada “Lei Magna”, que, aparentemente, demonstra tão somente deter ideal, e não balizar a prática jurídica. Apesar disto, é louvável e importante a intenção do legislador ao fazer constar expressamente como verdadeiros corolários constitucionais no direito processual. Afinal, o operador do direito pátrio precisa fazer com que a Constituição da República seja mais que mero arcabouço de ideais, e sim uma fonte prática de direitos que prescinde a qualquer conhecimento de seu conteúdo, como pontua Rosemiro Pereira Leal (2005, p. 26):

Os direitos postos por uma vontade processualmente demarcada, ao se enunciarem constitucionalmente fundamentais, pertencem a um bloco de direitos líquidos (autoexecutivos) e certos (infungíveis) de cumprimento insuscetível de novas reconfigurações provimentais e, por conseguinte, só passíveis de lesões ou ameaças após efetivamente concretizados ex-officio pela Administração Governativa ou por via das ações constitucionais (devido processo legal) a serem manejados por todos indistintamente ao exercício da auto-inclusão auferidora dos direitos fundamentais criados e garantidos no nível constituinte da normatividade indeclinável. (Grifos do autor)

Neste sentido, busca o insigne pesquisador demonstrar que certos direitos, tidos como fundamentais e indeléveis na Constituição, e necessários à concepção democrática, não carecem de maiores discussões ou divagações, posto que já são, em sua gênese, executáveis e indiscutíveis. A sua aplicação não carece de investigação alguma, na medida em que se pressuporia a atuação democrática em sua instituição, já na ordem Constitucional.

41

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

42

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...)

IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

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Embora ainda não tenhamos caminhado o suficiente para fazer com que tais garantias processuais-constitucionais se tornem plenamente indiscutíveis nas demandas que se apresentam ao arbítrio da autoridade, os aspectos abordados aqui sobre o Novo Código de Processo Civil demonstram avanço para uma concepção de processo cada vez mais democrática e participativa na construção dos provimentos judiciais. O modelo existente de Judiciário autocrático, cujas decisões se tornam verdadeiros adágios imutáveis, tal como dogmas religiosos, precisa ceder espaço à legitimação constante da ação democrática dos legitimados ao processo, como forma de garantir que a própria atividade estatal de julgar não se torne um ordenamento de juízos de valor, ou aposição de pré-conceitos ao que se apresenta na dinâmica que o Contraditório e Ampla Defesa devem instituir em uma instrução procedimental.

De forma semelhante, é o que concluem Dierle Nunes e Ludmila Teixeira (2013, 90-91):

Em outras palavras, se o sistema de justiça não funcionar de modo a revitalizar o modelo democrático constitucional, se ele não favorecer a dinamicidade com que a periferia e os centros de poder se alternam, se retirar do alcance do cidadão a oportunidade de influir na estruturação das normas e decisões que lhe vinculam, não fará sentido prosseguir com a pesquisa sobre as formas de aprofundamento do acesso à justiça, eis que nem o mais generoso orçamento, nem o mais responsável e numeroso quadro de profissionais será capaz de dotar o sujeito de poderes de influência na mecânica de formação do consenso, mesmo que provisório. Todas essas tentativas serão inúteis se o Judiciário estiver “engajado em fazer política”, porque esse engajamento quase sempre se traduz na perda de autonomia, de comprometimento com os direitos fundamentais em benefício de fins coletivos ou “razões de Estado”.

Em sintético raciocínio, a lei processual deve realmente avançar, no sentido de incorporar preceitos constitucionais em sua gênese, buscando sempre incutir no operador do direito a ideia de que os provimentos judiciais carecem de prévia construção, e não aposição de juízos valorativos calcados em fins extraprocessuais ou metajurídicos, mas sim na plena cognição do juízo ao que pretendem as partes. É o que se espera de um Estado Democrático de Direito.

6. Conclusão

Como se vê, a aplicação do direito no período em que vislumbramos um paradigma de Estado Democrático de Direito ainda concebe a atuação solitária de

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um decisor, pronto a satisfazer anseios metajurídicos e individuais, deixando à margem a função democrática do processo. Esta democracia no campo jurídico, é, senão, a primeira e mais fácil forma de participação do povo, aqui considerado como legitimado ao (s) processo (s), de efetivar seus direitos e garantias fundamentais, inseridas no conteúdo legislado da Constituição Federal.

Embora a profusão de conteúdo doutrinário assaz carregado de teorização democrática43 , fundamental a uma mudança profunda e eficaz de paradigma, a cultura e verdadeiro prágma gerado pela adoção de uma figura única, como salvador e realizador da paz social, é um verdadeiro entrave à efetivação dos mencionados direitos e garantias constitucionais, notadamente aquelas relacionadas ao processo.

Para a maioria, a concepção de processo e de decisões judiciais que vemos atualmente ainda carrega em si uma carga assistencialista, ínsita ao paradigma de Estado Social, no qual a jurisdição tem como princípio, fundamento e razão de ser a exclusiva efetivação de direitos materiais, como se existisse tão somente se tais direitos materiais fossem claramente existentes. Ao invés do Estado Democrático de Direito pressupor uma materialização da participação Democrática dos legitimados nas decisões, vê-se ainda forte a já antiga e obscura concepção do Direito Romano, de existência de “processo” como uma das caras de uma moeda, que tem como outra face a necessária existência de direito material.

Embora árdua a missão, não faltam teorias e pesquisas com intuito de incutir nos legitimados ao processo, o povo, o seu real papel na Democracia, fugindo da concepção de Democracia paideica (meramente representativa), como pontua sempre em seus escritos o professor Rosemiro Pereira Leal. A adoção dos princípios e garantias constitucionais no processo já remonta ao próprio advento da Constituição de 1988, o que já deveria pressupor um maior preparo dos operadores do direito ao conteúdo da Lei que é considerada por todos como Maior. Este aparente esquecimento nos faz pensar que a Constituição Federal é mero conjunto de conteúdos tidos como puros e de singularidade magistral, que carecem serem “salvados”, em uma verdadeira “arca de Noé” do Direito. Visão parca, que retira da

43

“A percepção democrática do direito rechaça a possibilidade de um sujeito solitário captar a percepção do bem viver em sociedades altamente plurais e complexas e, no âmbito jurídico, a aplicação do direito e/ou o proferimento de provimentos, fazendo-se necessária percepção de uma procedimentalidade na qual todos os interessados possam influenciar na formação das decisões.” (NUNES, 2012, p. 202)

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Constituição a sua aplicabilidade e auto executoriedade, notadamente ao falarmos de garantias consideradas como fundamentais.

A violência arraigada no agir travestido de legitimidade dos atos estatais, personificados na atuação do juiz ativo e realizador do Direito e da paz social, é a prova cabal de que ainda estamos em busca da fuga de pré-conceitos e julgamentos calcados em claro e manifesto historicismo e prágmas culturais-dogmáticos, os quais trazem à ciência jurídica um verdadeiro retrocesso, dada a circularidade de informações verificadas, constantemente reproduzidas. Apenas o agir ostensivo dos já mencionados legitimados é que pode retirar do julgador, solitário, a necessidade de utilização de sua consciência para decidir, posto que a decisão emanará da própria atuação das partes, dando efetiva concretização do que entendemos como Estado Democrático de Direito.

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Recebido em 12/03/2017. Aprovado em 28/03/2017.

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