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GARRA NO MEIO DO NADA

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Academic year: 2021

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GARRA NO MEIO DO NADA

Peça teatral

Ato único/Cena única

2018

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GARRA (MULHER) RASGO (HOMEM)

GARRA [Abre os olhos] Eu abri os olhos como se estivesse abrindo pela primeira vez, como se eu estivesse acordando de um sono muito profundo, do sono que a gente sonha antes de nascer e depois de morrer, é assim que eu abro os olhos, como se eu nascesse, como se eu deixasse de morrer, eu abro os olhos pra vida, pra descobrir que eu ainda estou viva, eu abro os olhos pra adiar a morte. Eu não sei o que eu sinto sobre isso, eu não sei se é bom ainda estar viva, eu não lembro de quando eu ainda não estava viva, eu só me lembro que eu abri os olhos, meus olhos de carne, meus olhos de carne e de água, meus olhos crus, a carne que em mim é o que vê, a carne e a água com que eu vejo o que de resto também é de carne. Eu abri os olhos e na minha frente tinha um pedaço de carne. Eu olhei o pedaço de carne na minha frente e não pensei nada. Eu não posso pensar nada, na frente de um pedaço de carne não existe nada pra pensar, não existe nada pra conhecer, não existe nada que possa ser elaborado num sistema, nada que possa ser considerado num contexto, nada que possa ser ponderado, nada que possa ser posto em perspectiva, nada que possa gerar conforto, conhecimento ou crença. E me veio uma sensação, eu senti alguma coisa. Eu pensei uma coisa e aí eu senti essa coisa num outro lugar, diferente do lugar em que eu pensei. É isso que eu quero dizer quando digo que me veio uma sensação.

A minha sensação foi a de que essa sensação que eu tive tinha uma identidade. E eu podia descrever essa identidade dela. Eu podia falar dela. Eu podia construir conhecimento em volta dela. E aí eu podia habitar essa nuvem de conhecimento que eu construí em volta dela de uma maneira diferente que eu habitava o ar em volta do meu corpo, porque a nuvem de conhecimento que eu construí em volta das minhas

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sensações era mais densa do que o ar em volta do meu corpo, que não fui eu quem construí, que já estava aí, construído, desde sempre, que eu não sei nem se alguém construiu, talvez alguém tenha construído, talvez não, eu não sei. Eu tô fazendo sentido? Eu abri os olhos e vi um pedaço de carne: isso foi uma situação. A coisa toda era uma situação. As situações são que nem as máquinas: ou você entende o funcionamento delas, ou não entende – de um jeito ou de outro elas continuam funcionando. Toda máquina traz dentro de si a possibilidade de que se construa conhecimento em volta dela, porque afinal ela só é uma máquina porque alguém construiu essa máquina, alguém colocou conhecimento dentro dessa máquina pra construir ela. Eu quero dizer que toda máquina construída com conhecimento carrega consigo a possibilidade de ser desconstruída e reduzida de novo ao estado de puro conhecimento a partir do qual ela foi construída em primeiro lugar. Eu quero dizer com isso que as coisas têm um começo, e que esse começo nem sempre está necessariamente no começo do processo. Quer dizer, é exatamente isso aí que eu disse. O que eu disse é exatamente o que eu disse, por isso eu disse “exatamente”.

Acontece que as coisas vão muito além disso, dessa sensação que eu tinha, que era uma sensação de que alguma coisa tinha sido introduzida bem no meio do mecanismo desta máquina, daquela situação. A primeira imagem que me veio à cabeça foi a de uma chave de fenda enfiada numa engrenagem. Uma daquelas chaves que se usa para apertar e soltar parafusos, enfiada, quer dizer introduzida com violência, de maneira incisiva, numa engrenagem, quer dizer, numa daquelas rodas dentadas que são responsáveis pelo movimento e pelo bom funcionamento de qualquer estrutura mecânica, quer dizer, uma máquina, uma situação. E que foi esse processo de introdução violenta de alguma coisa no interior do mecanismo desta máquina que produziu, paradoxalmente, a situação em que a gente se encontrava, quer dizer, foi o

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mal-funcionamento da máquina que gerou o atual funcionamento dela, quer dizer, dela, esta situação, porque a máquina é esta situação, quer dizer, exatamente, como eu disse, exatamente. Eu achava que a gente já estava quase no fim. Eu abri os olhos e aí agora eu quis abrir as janelas, eu senti agora uma vontade de ver o mundo, quer dizer o que tem lá fora. Antes tinha um mundo lá fora. Tinha um mundo colorido. Cheio de gente. Era um mundo habitado por um número relativamente grande de gente, cada uma com uma cor, elas tinhas cores e elas moravam nesse mundo. Esse mundo tinha histórias. Eu mesma fazia parte das histórias desse mundo. Quer dizer, eu, esta pessoa aqui, se é que se pode falar assim, fazia parte de um mundo que existia antes, quer dizer num tempo que não é mais agora, lá fora, quer dizer num espaço que não é mais aqui dentro. Agora eu não sei mais de nada. Mas eu acho que ficou melhor assim. Depois que aquele mundo foi substituído por este. Por este mundo mínimo.

Por esse mundo pequeno dentro do qual só cabe uma situação. Antes, lá fora, tinha postos de gasolina. Tinha cachorros nas coleiras. Tinha pontes sendo construídas.

Tinha dinheiro. Tinha churrascarias. Tinha garçons nas churrascarias. Tinha gente comendo lá. Tinha animais sendo comidos por outros animais, na presença de outros animais da mesma espécie, em uma espécie de celebração sinistra que de alguma maneira era um ritual para que todos se lembrassem de que aquele mundo era real, de que eles também eram mortais, eram feitos de carne, da matéria mais pobre do universo que é a carne, da única matéria viva do universo, eles eram o centro do universo. Ficou melhor depois que tiraram as churrascarias. Às vezes uma coisa nasce no meio de outra coisa. Às vezes uma coisa nasce depois de outra coisa. Às vezes uma coisa nasce no meio depois de outra coisa. Me dá vergonha pensar em tudo o que já foi dito antes de mim. Em tudo o que todas as pessoas daquele mundo que não existe mais disseram antes de mim. E em tudo o que eu disse antes de mim.

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Me dá vergonha, eu quero dizer que eu sinto uma sensação desconfortável quando eu penso em escutar tudo isso. Eu quero dizer que as minhas entranhas ficam geladas. Eu quero dizer que eu sinto vergonha. Porque eu tinha um motivo pra ter vindo aqui. Eu tinha um motivo mas aí alguma coisa aconteceu que me deixou sem motivo, alguma coisa aconteceu e eu fechei os olhos, num reflexo, eu virei o rosto e fechei os olhos. Quer dizer: não, não é isso. Alguma coisa deixou de acontecer, porque se alguma coisa tivesse acontecido eu ainda teria o meu motivo porque ele teria sido realizado, concretizado, por isso, por esse acontecimento, que teria acontecido, que teria justificado esse meu motivo. Se alguma coisa tivesse acontecido eu não estaria aqui parada na sua frente sem motivo nenhum. E não me parece ter nada acontecendo aqui. Eu não sei se eu acredito nisso. Eu estava insinuando que talvez a gente pudesse avançar um pouco, falta um tempo considerável ainda e eu nem vi se escureceu direito. A gente também tem um motivo pra estar aqui. Eu quero dizer eu senti uma oportunidade sendo aberta de talvez recuperar esse meu motivo, quer dizer o motivo que era meu antes de eu vir até aqui e que quando eu cheguei aqui e nada aconteceu deixou de ser meu, quer dizer foi tomado de mim à força por esse nada que não aconteceu. Quer dizer eu pensei que como não está acontecendo nada neste momento a gente poderia aproveitar pra conversar melhor sobre essa situação, porque até agora, por enquanto, só eu tô falando, e as portas e as janelas ficam trancadas. Naquele mundo eu tinha sonhos. Aquele mundo era uma sucessão de situações e eu saltava de uma situação pra outra, eu tinha uma função. Eu me realizava nos meus sonhos e nas minhas funções. Hoje essa palavra não quer dizer mais nada pra mim. Como é que eu fico, depois que nada aconteceu, eu não sei. No meio do que acontece eu sei quem eu sou: eu sou aquela que tá no meio do que acontece. Eu era. Agora eu sou aquela que tá no meio entre duas coisas que

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acontecem. Que é uma maneira de dizer que eu sou aquela que está no meio do que não acontece. Eu sou aquela que está no meio do nada, no meio seco do nada, o meio poeirento de uma estrada no meio do nada, onde nada acontece, onde a memória das coisas ainda guarda a lembrança do último acontecimento e cultiva a esperança do próximo acontecimento, e onde eu e as coisas agonizamos no vácuo impuro da espera. Tudo o que acontece acontece à carne, só o que tem carne acontece. Eu tinha carne. Hoje isso não quer dizer nada pra mim. Eu gostava muito de ter carne, e eu gostava principalmente de comer carne, e eu desejava secretamente que eu pudesse um dia comer a carne que eu tinha pra tornar o que era meu mais meu ainda, pra deixar de ter o que eu era e passar a ser o que eu tinha. Eu tinha comido carne a minha vida inteira. Eu abri os olhos e vi um pedaço de carne na minha frente. Eu achei muito estranho; eu achei muito estranho que aquele pedaço imbecil de carne ali na minha frente tinha sido, um dia, um boi, uma porra de uma vaca pastando numa porra de um pasto na porra do Mato Grosso, e agora ele não era mais um boi, ou uma vaca, pastando, ele era um pedaço de carne, na minha frente, um pedaço de carne morta ali à minha disposição, quer dizer ao meu alcance, quer dizer morta, como eu, à disposição de tudo que é o que quer dizer estar morta, quer dizer estar à disposição do mundo, que é a mesma coisa que quer dizer estar viva. Porque as coisas são assim. Quê que eu sei? Eu pensava isso e eu reprimia isso. Toda vez que eu pensava isso, que, talvez, aquele pedaço de carne ali tivesse alguma semelhança com a carne que eu carregava em baixo da minha própria pele, eu enfiava aquela carne dentro da boca o mais rápido possível. Era o que eu fazia. Eu misturava as nossas carnes: a minha e a da carne. E eu me dissolvia nessa mistura. Eu e o boi éramos um só, uma matéria homogênea flutuando abstrata, desconectada da terra, do pasto, daquela conversa, do mundo, das situações, dos acontecimentos, dos

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postos de gasolina e das churrascarias. Eu não tinha filosofia nenhuma. Quer dizer eu me desloquei da minha casa, do lugar onde eu vivia, por meio desta estrada no meio do nada, e cheguei neste lugar, nesta construção no meio do nada, e abri a porta, e dentro deste lugar tinha um boi, vivo, meio morto, e eu olhei o boi, e o boi me olhou de volta, com os olhos que ele não tinha mais, e eu senti que ele quis me dizer alguma coisa, com a boca que ele também não tinha mais, eu senti que ele quis falar, com a vontade que ele nunca teve, e aí eu virei o rosto e fechei os olhos e fiquei aqui. Dentro deste lugar. Com as portas e as janelas fechadas, no meio do nada. Abrindo e fechando os olhos. Sempre pela primeira vez, sempre pela última vez. E fui esquecendo aos poucos daquele mundo, eu fui me consumindo na espera de que as portas e as janelas se abrissem, e o tempo passou e ele morreu e a carne dele morreu, e nada mais aconteceu, e foi bem no meio desse nada que eu esqueci da roda gigante, da roda morta, da ciranda dos telejornais, das florestas derrubadas para salvar o planeta da fome, das agências bancárias e dos dois ministérios queimados, isso tudo foram as primeiras e as últimas coisas que eu esqueci, tudo o que foi dito antes de mim se consumiu na lembrança das chamas dos dois ministérios queimados durante uma manifestação política contra eu já não sei mais o quê. Eu me esqueci de tudo isso, quer dizer eu me diluí completamente diante de tudo isso, eu quero dizer com isso que na frente de todos esses acontecimentos que arranharam a superfície do mundo eu já não existo mais. Tudo o que não existe tem o frescor de ainda estar pra acontecer. Que é uma maneira de dizer que eu ainda estou fresca. Que é uma maneira de dizer que a minha carne não apodrece, porque na encruzilhada em que as coisas que ainda não aconteceram ficam, tudo conserva pra sempre um frescor. A carne morre, mas não apodrece, porque apodrecer é algo que acontece à carne, e morrer é a carne deixar de acontecer. O que morre esteve vivo; o que apodrece não. Aqui, tudo

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morre. Aqui, onde tudo morre, nada termina de morrer. A cabeça morta do boi me encara, os olhos mortos ainda molhados, pra sempre molhados, onde hoje passa a estrada por onde nada passa, esses olhos mortos nessa cabeça macia de veludo morto ainda molhados me encaram, vazios. Há muito tempo a matéria que tinha dentro da cabeça dele desapareceu. Ainda isso não foi um acontecimento. As coisas que escorriam da cabeça dele desapareceram sem que isso acontecesse, sem que isso tivesse acontecido... quer dizer as coisas que escorriam pelo ouvido e pela boca e pelos olhos dele... quer dizer a matéria modorrenta que vazava do crânio dele... quer dizer que nascia dentro do crânio dele e enchia o crânio dele por dentro e vazava pelos buracos do crânio dele... quer dizer do crânio dele pro mundo, uma torrente incessante de lama... quer dizer de terra aguada... quer dizer de carne podre... quer dizer de carne que esteve tempo demais debaixo da terra e se tornou indistinguível da terra. É tudo muito... tranquilo... aqui embaixo... Eu não posso te ajudar. É o que eu falo sempre quando a pessoa me pede ajuda. E hoje, em meio às ruínas, em meio à cidade destruída pela guerra, a gente vê muito isso de a pessoa vir pedir ajuda. Não adianta: não dá pra ajudar as pessoas. Porque elas gritam. Quando você chega perto pra ajudar as pessoas, elas gritam, mais do que tudo as pessoas gritam, elas berram.

Elas berram quando as crianças delas morrem e elas berram quando as crianças delas nascem, e quando elas berram elas não berram pra ninguém, e quando todas elas berram elas berram ao mesmo tempo, todas elas berram no mesmo instante, e quando todas elas berram só existe um berro, que é o único berro, o único grito que é o mesmo grito que sai de um jeito eterno, eu imagino assim uma coisa eterna, como um grito que sai, que fica saindo, que nunca não foi gritado, e que quando grita faz colidir o céu com a terra e encerra tudo e inaugura o silêncio de tudo.

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[Pausa longa.]

RASGO Eu não posso dizer que eu entendo muito bem dessas coisas, quer dizer eu não tenho as terminações nervosas necessárias pra entender essas coisas, eu não formo imagens claras na cabeça, eu vejo tudo aos pedaços, como peças desencontradas de um quebra-cabeças que o tempo desgastou, quer dizer os encaixes, os dentes e as bocas dessas peças, foram desgastados pelo tempo. A areia e a poeira no ar decantaram, antes estava tudo disperso, agora tudo concreto, agora tudo decantado, tudo posto junto à força. E embaixo disso tudo, eu. Eu como uma forma, como um desenho no ar, eu como um contorno feito de nada, que a poeira cobre e que a areia e a fuligem e o concreto e os pedaços de tudo o que cai desenham no ar. Nesse desenho arbitrário de restos de matéria destruída eu começo a discernir os traços da minha personalidade, se é que se pode falar assim, o que eu queria ser e o que eu não posso deixar de ser, o que eu sou e o que eu não sou, e o acaso completo de eu ser isso, e não pensar ser isso, e não querer ser isso e querer não ser outra coisa, acima de tudo querer não ser outra coisa e poder não ser o que eu quiser.

Não ser ninguém e ter uma história. Uma história, quer dizer uma sucessão de eventos importantes para a constituição de um sujeito, quer dizer um indivíduo que abriu os olhos, quer dizer um indivíduo que acordou de um sono profundo, que não era um sono, era o contrário de um sono, era uma insônia, uma insônia à força, os olhos mantidos abertos à força por uma força estranha e forte que rasgava a carne uniforme do rosto antes dele ser rosto e abria nela os buracos do rosto, quer dizer os olhos, a boca, quer dizer os buracos do rosto que são o que fazem o rosto ser o rosto, quer dizer o nada que é a matéria humana no rosto das coisas. Eu queria ser um nada rasgado na carne do lombo de qualquer coisa, ser um nada e ter uma história, quer

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dizer repetir a si mesmo em si mesmo, nos outros, nas coisas, nos espelhos, nas telas, nas texturas de todas as superfícies, tudo em si mesmo, quer dizer um pouco de si em tudo, quer dizer um sujeito, uma história, um rosto, uma personalidade. Ser teimoso; ser perspicaz; ser determinado; ser hipócrita; qualquer coisa; ser ridículo; ser um exemplo; não ser exemplo de nada; ser autêntico; ser um canalha. Eu daria tudo pra ser canalha. Eu não sou canalha. No mundo existem dois tipos de pessoa, quer dizer bonecos de carne com buracos, quer dizer pessoas, existem dois tipos de pessoa no mundo: os canalhas e os xenófobos, e eu, que nem um nada consigo ser, não sou inteligente o bastante pra ser xenófobo nem canalha o bastante pra ser canalha. Quer dizer, tudo isso são personalidades, traços arbitrários, é tudo sempre muito arbitrário, traços, peças de quebra-cabeça, poeira, ruínas, traços, linhas, curvas que a mão invisível – do quê?, a mão invisível, eu não me lembro do quê – traços que se imprimem sobre as pessoas, quer dizer ossadas ambulantes, pessoas, quer dizer tudo isso não passa de uma série de características arbitrárias e dizer que uma pessoa é isso é muito pouco. A pessoa é a história dela, a história é a pessoa, a pessoa é o animal de estimação da própria história dela, quer dizer, é isso. Por que que eu vim pra cá? O que aconteceu antes comigo, antes de eu vir pra cá, e quem eu aconteci antes disso tudo, e quem me aconteceu de ser antes disso acontecer e eu vir pra cá por causa disso que aconteceu? São perguntas que não saem da minha cabeça. Não importa. Isso que aconteceu eu carreguei ela pra cá, eu peguei esse, aquele, que eu era quando isso me aconteceu e arrastei, quer dizer arrastei, à força, pra cá, junto comigo, dentro de mim, além e antes de mim, eu sentei aqui e pedi um cardápio, eu pedi o rodízio, ela perguntou se eu queria bem passado, eu respondi que queria crua, crua e sangrando, eu tava muito consternado com tudo aquilo de acontecer uma coisa e você ser alguém a quem alguma coisa acontece e o meu primeiro pensamento foi

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sair de casa, entrar no carro, dirigir durante duas horas por uma estrada que não leva a lugar nenhum até uma churrascaria no meio do nada, entrar e pedir um pedaço de carne crua, crua, rosa, sangrando, por algum motivo tudo isso fez sentido pra mim, e eu fiz tudo isso... Eu acabei de pegar a minha mulher me traindo com um cara do ramo da carne. Um cara que vende carne. Um cara que ficou milionário comprando, criando, alimentando, abatendo, cortando, distribuindo, negociando e vendendo bois, vacas, novilhos, bezerros, picanhas, alcatras, maminhas, coxões, mole, duro, contra, pescoço, língua, fígado, leite, queijo, requeijão, manteiga, leite, carne, congelada, fresca, moída, embutida, processada, enlatada, ensacada, gado, enfim, gado, carne.

Essa é a minha história, se você quer mesmo saber. Essa é a história que aconteceu comigo. Ser chifrado por um dono de frigorífico é um pouco de ironia demais, é mais ironia do que eu consigo aguentar, é muito sentido, eu vim aqui entupido de sentido, eu sentei aqui sentindo que absolutamente tudo o que eu fizesse ou dissesse, tudo o que acontecesse comigo ou com qualquer pessoa em volta de mim estaria entupido de sentido, estaria transbordando de sentido, porque nada faz mais sentido do que ter um chifre enfiado no cu por um criador de gado e ir na churrascaria depois comer a carne que provavelmente veio do boi que provavelmente era propriedade do cara que tava na cama comendo a sua mulher. A quem interessa tudo isso? Nada me interessa enquanto não acontece comigo, nada que esteja fora de mim me interessa e não acontece nada a mim que eu não incorpore, quer dizer que eu não abrace, eu me amplio no que acontece mesmo quando o que acontece me destrói, eu me aumento destruído, me estilhaço. Eu estou mentindo. São traços arbitrários e o que eu mais sou é covarde, um covarde corno de carne fraca, não, sem carne, porque só tem carne quem tem carne sobrando, pra dar, não, pra vender, e o pouco de carne que eu tenho eu preciso manter por perto pra não me desfazer. Eu tive que sair dali. Pra manter a

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minha sanidade mental, pra manter a minha integridade e a minha coerência física, pra manter as partículas do meu corpo juntas, pra manter o meu corpo coeso, pra impedir que o meu corpo se desfizesse no ar sem forma e sem sentido. Isso explica muita coisa. Você já tava aqui quando eu cheguei, provavelmente você sempre esteve aqui, mas isso é um preconceito meu, provavelmente você tem a sua vida, os seus sonhos, os seus hobbies, os seus interesses, provavelmente você também tem os seus problemas afetivos, provavelmente você também tem as suas sujeiras, porque quando eu enfiei o pedaço de carne crua que você me trouxe, quando eu abocanhei ele e mordi ele e senti o suco dele encharcando a minha boca e escorrendo pelo meu beiço, você foi lá nos fundos da cozinha e riscou um fósforo pra acender um cigarro e a faísca entrou em contato com o ar e o ar estava cheio de gás que vazou do botijão de gás da cozinha, e o ar virou fogo, o fogo se espalhou pelo ar, e o ar explodiu, e a churrascaria explodiu, e a gente e a carne explodimos junto com o ar, pelos ares. Isso se é que foi isso mesmo que aconteceu. É sempre possível que tenha sido um atentado terrorista, seria possível, seria perfeitamente possível que a explosão tivesse sido causada por um atentado terrorista, a não ser pelo fato de que a gente tá no Brasil, e não tem atentado terrorista no Brasil, nesta terra abençoada, sem neve, sem terremoto e sem atentado terrorista. É muito difícil saber o que você não sabe. E eu não acredito na existência dos brasileiros. O brasileiro é uma mentira muito mal contada. Quem acredita na existência do brasileiro é xenófobo. E só existem dois tipos de pessoa: os xenófobos e os canalhas. Agora, isso requer algum tipo de generalização, pra que se possa falar em “brasileiros” e “brasileiras”, e se isso é ser xenófobo, eu não acho que é preciso ser tão inteligente assim pra ser xenófobo, porque eu não sou assim tão inteligente, e ainda assim eu consigo ter esse tipo de pensamento. O fato é que tudo isso aconteceu por acaso, quer dizer, foi por mero

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acaso que eu vim até aqui, até este lugar, no meio do nada, e encontrei você, que também estava aqui, que da minha perspectiva esteve sempre aqui, desde que o mundo é mundo, e que o dono do frigorífico que criou e matou e embalou e vendeu o bife que eu mordi um segundo antes da explosão estava na cama com a minha mulher e que aquele fato foi exatamente o fato que me motivou a vir até aqui, porque por acaso todos nós somos brasileiros e estamos aqui, neste lugar, isso tudo aconteceu por puro acaso, por uma série absurda de processos absolutamente contingentes sem nenhuma necessidade histórica, e eu me compadeço muito com as vítimas desse processo estúpido, inclusive com você, que pela sua cara deve ser uma dessas vítimas também, eu me compadeço muito com você, quer dizer, eu me compadeceria, não fosse a explosão, não tivesse a churrascaria ido pelos ares e disparado todo tipo de coisa que aconteceu depois disso, que eu não faço a menor ideia do que foi, porque eu fui pelos ares junto com a churrascaria, junto com essa grande churrascaria que era o Brasil e os brasileiros! Foi isso. Eu vou falar muito dos brasileiros ainda, eu vou contar muitas histórias sobre eles. O Brasil, como no caso desta churrascaria aqui, também foi pelos ares, também ficou no passado, pertence ao passado, sempre no passado, sempre uma catástrofe que acabou de acontecer, o Brasil é sempre uma catástrofe que acabou de explodir bem nas nossas caras, e nós, os que tiveram o azar ou a sorte de nascer no Brasil, somos aqueles que sempre vamos pelos ares a cada catástrofe que sempre acabou de acontecer. Eu falei demais do Brasil já. Eu poderia escrever panfletos com tudo isso o que eu falei. Mas eu duvido que alguém se interessaria em ler. Enfim. Todo o meu raciocínio é simples, eu não vou negar. É muito mais simples que o seu. Mas eu sou uma figura muito mais simples que você. Eu nunca vivi aventuras fantásticas como as suas, nunca abri os olhos e pensei as coisas que você pensa, não, a minha existência é perfeitamente ordinária, desde que eu me

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lembro. Eu precisava te contar um negócio que eu vi, um negócio que aconteceu, aconteceu agora, e que eu vi acontecer, agora há pouco, um segundo antes de eu entrar aqui, antes de eu entrar aqui e todo o resto acontecer: aconteceu de um cara ali fora, logo ali fora, ser atingido na cabeça por uma pedra. Mas porra. Não, espera aí. Caralho. Não era qualquer pedra. Não. Porra. Era uma puta de uma pedra grande do caralho, você não tem ideia do que foi isso, o cara tava ali, parado, na dele, fumando um cigarro ali fora, agora, agora há pouco, voou uma pedra do tamanho de um carro em cima dele. Você não ouviu? O cara explodiu debaixo da pedra, não sobrou nada. Aposto que ele nem sentiu dor. É. Deve ter sido tudo de uma só vez, todos os acontecimentos concentrados num só ponto singular, indivisível, infinitesimalmente pequeno, ele não deve ter sentido nada. A não ser que quando uma coisa desse tipo acontece, quando voa uma pedra do tamanho de uma van na cabeça de um cara, talvez quando esse tipo de coisa aconteça o tempo fique assim dilatado, talvez ele fique infinitamente dilatado, talvez quando todos os acontecimentos colapsam sobre um único ponto, todos eles aconteçam permanentemente, eternamente, infinitamente. E aí o cara deve ter sentido muita dor. Porra. Dor pra caralho. Deve tá até agora lá sentindo dor, congelado ali, embaixo da pedra, um segundo antes de ele ser esmilinguido pela pedra, de ter pedaço dele pelo estacionamento inteiro, ali, estático, paralisado sentindo uma dor infinitamente forte e constante. Pode ser. Pode ser tudo isso. Tudo isso é muito importante. Que tudo isso tenha acontecido é muito importante, foi uma coisa que me chamou muito a atenção, na hora, quer dizer eu olhei pra cena e não consegui até agora tirar os olhos daquela cena em que o tempo ficou absolutamente parado porque todos os acontecimentos do mundo aconteceram de uma vez, no mesmo lugar. Porque voou uma pedra na cabeça de um cara, ali fora, agora pouco, antes de eu entrar aqui e imaginar que eu

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era um brasileiro comendo numa churrascaria depois de pegar a minha mulher me traindo com um milionário do ramo de carne, e você era uma garçonete, numa churrascaria no meio de uma estrada, no meio do nada, e eu ter olhado pra você um segundo antes da cena explodir, e dos fragmentos desconexos dessa minha pequena fantasia terem se misturado com os escombros e a poeira da explosão que aniquilou outra vez outro bairro de Aleppo, na Síria, aqui na Síria, aqui neste prédio condenado de Aleppo, entre dois acontecimentos, em Aleppo, entre a explosão da nossa fantasia, da churrascaria que eu nunca conheci, num país pra onde eu nunca vou viajar, e a explosão que se repetiu hoje de manhã em Aleppo, que se repete todos os dias em Aleppo, e pra qual eu já estou ficando sem fantasias, e que estão ameaçando arrebentar o meu corpo, desmembrar as minhas partes que desde que eu me lembro, desde que eu me dou por gente, estão conectadas, os meus braços e as minhas pernas e o meu pescoço e a minha cabeça desde que eu me lembro no mesmo lugar e tudo isso posto em risco todos os dias porque as explosões em Aleppo acontecem todos os dias sempre pela primeira vez, e hoje eu entrei aqui e olhei pra você depois de ter vindo lá de fora, onde tudo isso acontece, e me encontrei num outro corpo, um corpo inteiro, preservado, de um brasileiro que entrou numa churrascaria com muitos problemas, e vi você que era a garçonete, uma garçonete brasileira, completamente diferente de tudo o que existe aqui hoje em Aleppo, e eu peço desculpas por tudo isso, por vir aqui e te dizer tudo isso, eu poderia ter ficado quieto olhando pra você, porque esse tipo de coisa acontece todos os dias e há tanto tempo que já não faz sentido que a gente fique falando sobre, faz mais sentido só ficar em silêncio aqui e olhar pra você e ver você e morrer com você, e não parar nem por um segundo de morrer com você.

[Pausa longa.]

FIM

Referências

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