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Máscaras de Dioniso no Banquete de Platão

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Academic year: 2023

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Fernando Santor

* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor de Programa do Collège International de Philosophie e Coordenador do Laboratório OUSIA de Estudos em Filosofia Clássica.

Resumo

As personagens do Banquete de Platão são faces de gêneros literários, isto é assente.

Mais do que isso, também são máscaras de gêneros sapienciais tradicionais ou inovadores acerca do amor. Platão os dispõe num mútuo desafio entre amigos, convivial e filosófico. Além do mais, no Banquete, como diz Sócrates, celebra-se não apenas Eros e Afrodite, mas também Dioniso (177e). Quais são as máscaras de Dioniso no Banquete de Platão? O discurso de Aristófanes é um discurso cosmogônico, segundo um modelo de teogonia de inspiração órfica, encontrável na comédia As Aves, do Aristófanes real. Ele introduz uma lição de hermenêutica dos mitos, primeira etapa do rito dionisíaco. O discurso de Diotima, sob a máscara dialética e ascética da filosofia, pretende iniciar aos mistérios. Segundo passo do rito, que faz saltar do particular para o universal. O discurso confessional de Alcibíades, que desmascara-se e desmascara Sócrates, é uma revelação epóptica para iniciados ou então a profanação de um mistério. Terceira etapa que traz a verdade profunda que só se diz tomado pela loucura ou embriaguez do amor. Cosmogonia, iniciação e revelação do mistério erótico de Dioniso.

Résumé

Les personnages du Banquet de Platon sont les masques de plusieurs genres littéraires et, en plus, de diverses lignées de discours de sagesse, soit traditionnels soit innovateurs, concernant l’amour. Platon les met en dialogue dans une joute amicale, conviviale, philosophique. D’autre part, dans le Banquet, selon le dire de Socrate, on ne fait pas seulement hommage à Eros et Aphrodite, mais aussi

1 Este artigo é fruto de pesquisa realizada no âmbito do acordo de cooperação Capes/Cofecub

“As Origens da Linguagem Filosófica: Estratégias retóricas e poéticas da sabedoria antiga.” Esta pesquisa recebe apoio da Faperj e da Capes.

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à Dionysos (177e). Quels seraient les masques de Dionysos dans cet hommage à l’intérieur du Banquet de Platon? Le discours du personnage Aristophane, dans le masque du comique, est un discours anthropogonique, selon un modèle de théogonie d’inspiration orphique déjà présent dans les Oiseaux, comédie du vrai Aristophane.

Il introduit aussi une leçon d’herméneutique des mythes, première étape du rite dionysiaque. Le discours de Diotime, sous le masque dialectique et ascétique de la philosophie, nous apprend l’initiation aux mystères, c’est un second pas du rite, qui fait sauter du particulier vers l’universel. Le discours confessionnel d’Alcibiade, qui se démasque et qui démasque Socrate, est ou bien une révélation époptique à des initiés ou bien la profanation d’un mystère. Ce troisième pas du rite apporte la profonde vérité qui ne se laisse dire que par ceux qui ont atteint la folie de l’ivresse et de l’amour. Cosmogonie, initiation, et révélation du mystère érotique de Dionysos.

Graças ao delírio, surgiram os ritos catárticos e iniciáticos, pon- do o que neles participa ao abrigo dos males, tanto do presente quanto do futuro, e fazendo com que os homens, animados de espírito profético, encontrem o meio de proteger-se contra aqueles males.

Platão, Fedro 244e

Há pelo menos três personagens decisivas no Banquete, por cuja presença ou- vimos vozes de Dioniso: Aristófanes, o comediógrafo; Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia e Alcíbiades, o exímio estratego. Em nossa leitura, através de cada uma dessas personagens, reconhecemos as três etapas de uma iniciação órfica: primeiro a interpretação simbólica, em seguida, a ascese contemplativa e, por fim a revelação epóptica. Deste modo, veremos que Platão constrói a cena do banquete não apenas como uma festa convivial mas, entre tantas leituras possíveis, também como um rito telético, iniciático.

O aspecto teológico do Banquete não é ignorado: os discursos dos con- vivas são encômios a Eros. Em cada personagem, Eros assume um aspecto diferente, análogo aos campos de ação e conhecimento de cada um. Em Só- crates, Eros torna-se determinante para a definição de filósofo e de filosofia.

Mas Eros e Afrodite não são os únicos deuses celebrados no Banquete. Como se sabe, sympósion é o ato de beber em conjunto. Beber vinho. Por isso, todo

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simpósio é uma celebração a Dioniso, e o deus não é esquecido no diálogo.

A filosofia é uma atividade de busca erótica, como nos mostra Sócrates no Banquete, é também uma atividade de decifração apolínea, como o mesmo Sócrates nos mostra na Apologia. Poderíamos dizer, junto com Platão, que a filosofia é também uma atividade delirante, telética, dionisíaca?

Gostaria, como preliminar, de apontar alguns aspectos gerais da filosofia platônica que certamente aproximam-na de uma sabedoria e atividade da seara de Dioniso. Um aspecto diz respeito à forma cênica dos diálogos, que faz de Platão um filósofo dramático. Nos diálogos falam as personagens de Platão, este porém fica nas coxias, como costuma fazer um dramaturgo. As- sim, ele pertence à mesma corte dionisíaca dos poetas escritores de comédia e tragédia, por mais que não se dispense de submetê-los às mais duras criticas.

O teatro das ideias o faz adotar uma das principais características de Dioniso:

o uso da máscara, das muitas máscaras que anulam ou escondem a presença subjetiva do autor. Resta, no rastro desta anulação, o jogo agônico da dialé- tica: o pensamento que não se deixa prender nem à opinião nem à doutrina, que pode transitar por diversas perspectivas e que somente vigora no trânsito, ou mesmo no transe, poderíamos dizer.

Outro aspecto é justamente a valorização do transe e do delírio, como testemunhamos no Fedro, onde os delírios catárticos e iniciáticos são citados entre os dons favoráveis que os deuses nos reservam. Não é por ser Sócrates o exemplo da prudência e da temperança filosófica, que a principal persona- gem de Platão deixará de delirar sobre as origens dos nomes no Crátilo2, ou sobre o percurso das almas na República e no Fedro. Ademais, há o interesse ético e político do vinho e do ato de beber em conjunto, que aparece não apenas no Simpósio, mas também nas Leis.

Nietzsche incita um preconceito com relação ao Sócrates de Platão: o de que este representa a decadência da filosofia trágica entre os gregos3. Quero contribuir um pouco mais com a superação, ou pelo menos com a proble- matização deste preconceito, apresentando três máscaras dionisíacas no Sim- pósio, dispostas de um modo tal que por elas podemos acompanhar os três momentos de uma iniciação ritual aos mistérios dionisíacos.

2 Cf. Buarque, L. (2011).

3 Cf. Nietzsche, F. O Crepúsculo dos ídolos, cap. “O problema de Sócrates”.

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Aristófanes

O Aristófanes construído por Platão não apenas tem uma referência real docu- mentada, como esta nos fornece textualmente um estilo de discurso, e mais ainda, um gênero discursivo. Temos assim a possibilidade de comparar o discurso e as ações da personagem construída por Platão com a obra da personalidade histórica.

Aristófanes é apresentado como alguém cuja ocupação vital é toda de- dicada em torno de Dioniso e de Afrodite (177e). Permito-me uma leitura literal: Aristófanes ocupa-se de questões que envolvem os deuses Dioniso e Afrodite, do ponto de vista efetivamente teológico, para os gregos: ponto de vista dos poetas. Ele indica a sua perspectiva teológica desde o início, quando recrimina os homens de “não terem sido sensíveis à potência de Eros, pois se a percebessem, erigir-lhe-iam os maiores templos e altares e far-lhe-iam os maiores sacrifícios”.4

O discurso de Aristófanes, como veremos, provém de um fundo de sabe- doria órfico-dionisíaca. Deste fundo também se originam os espetáculos tea- trais como a comédia e a tragédia, por isso não surpreende encontrarmos no seu discurso elementos cômicos e trágicos. Aristófanes é a primeira máscara dionisíaca que se pronuncia no Banquete de Platão.

O mito cosmogônico que narra a origem da raça humana (189d – 191d) é provavelmente uma origem do que será entre nós uma concepção muito difundida do amor: a atração pela “cara metade”. Aristófanes anuncia que para elogiar os poderes de Eros é preciso “aprenderdes acerca da natureza humana e suas afecções” (189d). O seu mito narra uma genealogia da raça humana, de enredo trágico como o de Prometeu. Primeiro os homens viviam numa condição primordial idílica, poderosa e autossuficiente, eram fortes e rápidos em dobro porque eram o dobro do que hoje somos: quatro pernas, quatro braços, duas faces numa cabeça, quatro orelhas, dois sexos... A sua forma era esférica e perfazia um todo inteiro. Não eram dois os gêneros, mas três: o masculino, filho do Sol; o feminino, filho da Terra; e o andrógino, filho da Lua, este com características do macho e da fêmea. Como fossem muito poderosos e se bastassem em si mesmos, voltaram-se arrogantemente contra os deuses. Zeus castiga esta hýbris partindo-os ao meio. Mas a descrição dos homens-bola e da cirurgia de corte e costura empreendida por Zeus e Apo- lo é obrada toda com as figuras e o vocabulário da comédia, com direito a

4 189c. ἐμοὶ γὰρ δοκοῦσιν ἅνθρωποι παντάπασι τὴν τοῦ ἔρωτος δύναμιν οὐκ ᾐσθῆσθαι, ἐπεὶ αἰσθανόμενοί γε μέγιστ’ ἂν αὐτοῦ ἱερὰ κατασκευάσαι καὶ βωμούς, καὶ θυσίας ἂν ποιεῖν μεγίστας

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cambalhotas, saltos pernetas, repuxos de pele, umbigos remendados, pregas e rebites. Finda a operação, a quantidade de homens foi dobrada, mas seu poder enfraquecido à metade e, o principal, deixaram de ser autossuficientes, ganharam a condição humana atual de seres carentes, que precisam correr atrás do que os satisfaz; não são mais todos inteiros, mas seres a que falta parte. Metades dispersadas, corriam para se enlaçar com as metades partidas e quando se uniam não se desgarravam, e de inércia e inanição sucumbiam inseparáveis. Os Deuses novamente tomaram providências: mudam os sexos dos humanos para frente, fazem com que da união dos sexos se dê a gera- ção da prole e, o principal, fazem com que daquela união surja o gozo e a satisfação de modo a permitir que os amantes se separem e possam voltar a levar os outros afazeres da vida. Sagacidade aristofânica: o prazer não é o que atrai os amantes, mas aquilo que permite que, saciados, possam separar-se!

O prazer é um fim como extremo, que consuma e encerra o movimento do desejo, é o fim escatológico do desejo. O amor portador de gozo é o que cura a indigência da cisão primordial e ao mesmo tempo o que permite uma vida harmoniosa a cada uma das metades humanas. Esta união amorosa ganha o significativo nome de sýmbolon. A téssera de cerâmica que os amigos quebram em duas, em sinal de amizade e hospitalidade. Cada amigo é portador do que completa o outro. Assim ele fornece a chave interpretativa do mito, que vai se consumar na sua definição do amor: “Portanto é ao desejo e procura do todo que se dá o nome de Eros.” (193a)

Eis o núcleo do que chamamos de sabedoria dionisíaca: o eterno retorno – a desagregação em partes como falta, a procura do todo, a resolução catártica no todo. Comparemo-lo ao mito cosmogônico proferido pelo coro das Aves de Aristófanes, neste caso o autor real e não a personagem de Platão.

Não há como não suspeitar de que esse texto tenha orientado Platão na composição do discurso ficcional. Trata-se de uma cosmogonia, sob a pers- pectiva das aves, em que o elemento primordial gerador é um ovo posto pela noite e as divindades são todas aladas. Aristófanes explora a imagem ovípara de modo cômico, mas a expressão de cosmogonias com imagens de ovo e de deuses alados, particularmente o amor, não é nova. Já nos poemas de Empé- docles5 encontramos uma crítica a esse tipo de figuração dos deuses, o que supõe que fazia parte de uma linhagem tradicional de teogonias6. Vejamos o coro da comédia:

5 Cf. Fragmento 134 DK.

6 Cf. Ramnoux, Clémence. La Nuit et les enfants de la Nuit, Paris, Flammarion, 1986, p. 177 ss.

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Aves 693-702 (fr. 1 Kern)

No princípio só havia Caos e Noite, negro Érebo, e Tártaro profundo, nem Terra nem Ar nem céu existiam; no seio infinito de Érebo, A Noite de asas escuras pôs um ovo oco primordial,

do qual, ao longo de várias eras, nasceu o Amor ardoroso,

com asas de ouro resplendendo no dorso, como o vendaval de um turbilhão.

Este, unindo-se de noite nas profundezas do Tártaro ao Caos alado, aninhou a nossa raça, a primeira que veio à luz.

A raça dos Imortais não existia, antes de o Amor misturar todas as coisas,

mas ao misturá-las umas às outras, surgiram o Céu, o Oceano e a Terra e a raça indestrutível dos deuses bem-aventurados. Veja como somos

muito mais antigos que os deuses. Somos filhos do Amor,

com toda evidência, nós voamos e como ele entrelaçamos amantes.7 Diferente do mito contado no Banquete, não se trata da origem dos homens mas da origem dos deuses desde as divindades primordiais. Todavia, temos já elementos órfico-dionisíacos análogos aos do Banquete. Primeiro, a imagem de uma esfera primordial, o ovo cósmico semelhante aos primeiros homens esféricos e inteiros. Esses homens, no mito do Banquete, são filhos diretos de entidades cósmicas: o sol, a terra, a lua; por isso são circulares como es- tes. A esfera e o ciclo são imagens recorrentes da sabedoria dionisíaca. Além disso, temos a presença de Eros com seu poder responsável por misturar to- das as coisas e entrelaçar os amantes. Esse modelo de teogonia cosmogônica

7 Χάος ἦν καὶ Νὺξ Ἔρεβός τε μέλαν πρῶτον καὶ Τάρταρος εὐρύς·

γῆ δ’ οὐδ’ ἀὴρ οὐδ’ οὐρανὸς ἦν· Ἐρέβους δ’ ἐν ἀπείροσι κόλποις τίκτει πρώτιστον ὑπηνέμιον Νὺξ ἡ μελανόπτερος ᾠόν, ἐξ οὗ περιτελλομέναις ὥραις ἔβλαστεν Ἔρως ὁ ποθεινός, στίλβων νῶτον πτερύγοιν χρυσαῖν, εἰκὼς ἀνεμώκεσι δίναις.

Οὗτος δὲ Χάει πτερόεντι μιγεὶς νύχιος κατὰ Τάρταρον εὐρὺν ἐνεόττευσεν γένος ἡμέτερον, καὶ πρῶτον ἀνήγαγεν εἰς φῶς.

Πρότερον δ’ οὐκ ἦν γένος ἀθανάτων, πρὶν Ἔρως ξυνέμειξεν ἅπαντα·

ξυμμειγνυμένων δ› ἑτέρων ἑτέροις γένετ› οὐρανὸς ὠκεανός τε καὶ γῆ πάντων τε θεῶν μακάρων γένος ἄφθιτον. Ὧδε μέν ἐσμεν πολὺ πρεσβύτατοι πάντων μακάρων ἡμεῖς. Ὡς δ› ἐσμὲν Ἔρωτος πολλοῖς δῆλον· πετόμεσθά <τε> γὰρ καὶ τοῖσιν ἐρῶσι σύνεσμεν 695

700

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remonta às teogonias órficas como a de Protógonos (séc. VI a.C.8), divinda- de original que reaparecerá nos Hinos Órficos9 (séc. III-IV) com as mesmas imagens de ovo primordial e potencias aladas. Protógonos (o primeiro a ser gerado) aparece também como epíteto de Eros em Eurípides (Hypsipyle, fr.

2 Kern) e, indiretamente, também no Banquete, na citação que Fedro faz de Parmênides (178b).

A construção do mito cosmogônico das Aves segue em forma de paródia a cosmogonia presente nos mitos órficos, aproveitando as imagens, as enti- dades cósmicas e o fundo de sabedoria dionisíaca sobre uma felicidade no todo esférico originário. Para mimetizar Aristófanes, Platão não escolheu re- produzir algum texto do comediógrafo, mas teria utilizado o mesmo método de parodiar comicamente a partir de fontes de mesma linhagem. Não copiou Aristófanes, mas como bom dramaturgo, colocou-se na sua perspectiva de composição poética. Assim, acreditamos que o mito antropogônico contado pelo Aristófanes do Banquete é construído a partir dos mitos antropogônicos órficos, assim como o mito cosmogônico das Aves é feito a partir dos seus mitos cosmogônicos.

O mito antropogônico órfico por excelência é o mito do esquartejamento de Dioniso. Dioniso é o elo cósmico entre as divindades imortais e os entes mortais. Dioniso é a Vida que se renova nos ciclos da natureza: as estações, o revezamento de gerações. Nele a morte não é o acabamento mas o retorno ao ponto de partida para um novo início. É este mito do esquartejamento e da ressureição de Dioniso que está latente no mito dos humanos nascidos do corte em duas metades, contado pelo Aristófanes do Banquete, com a mesma trama trágica e seus elementos significantes, ainda que às vezes remisturados.

Nós não temos todos os elementos e a trama do mito da morte e ressurreição de Dioniso Zagreu reunidos em uma mesma fonte. O texto da teogonia origi- nal não chegou integro até nós, apenas vestígios em referências e citações. A passagem mais completa é posterior a Platão, encontramos no Protréptico de Clemente de Alexandria, apologeta cristão do séc. II-III que a cita para dar exemplo da selvageria pagã e pontua a narrativa com comentários de censura

8 Cf. Ramnoux, op. cit. e adiante n.10.

9 Cfr. fr. 87 Kern.

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e escárnio10. Todavia, conjectura-se11 que os conteúdos aos quais Clemente teve acesso, sob o título de Iniciação (Telete) remontam a uma tradição que possivelmente foi reunida em texto por Onomácrito, conselheiro de Pisís- trato, no séc. VI a.C. De todo modo, as fontes textuais posteriores a Platão, mesmo que tenham sido influenciadas pelos seus diálogos, como o foi toda a tradição do pitagorismo neo-platônico, revelam-nos os principais elementos que eles mesmos reconheciam como provenientes dos mitos e dos ritos órfi- cos. Para o nosso argumento, não requisitamos as fontes antigas e seu enredo preciso; é-nos suficiente descobrir os elementos que Platão e Aristófanes reco- nheceriam como órfico-dionisíacos e utilizaram em suas obras.

No mito órfico de Iniciação (a Telete), a morte e o renascimento de Dioniso Zagreu precedem imediatamente o surgimento dos homens. Os Titãs despe- daçam, cozinham, assam e comem Dioniso, menos o coração recolhido por Atena (ou Hermes) e os restos, que são sepultados por Apolo. Zeus fulmina os Titãs. De suas cinzas ou mais provavelmente da fuligem, nascem os homens.

As versões diferem, mas o resultado da punição dos Titãs por parte de Zeus é sempre o surgimento da humanidade. Dion Crysóstomo, no séc. I, refere-se ao mito dizendo que todos os homens provêm do sangue dos Titãs.12 Mas é somente a partir de Olimpiodoro, filósofo neoplatônico do séc. VI d.C., em seu comentário ao Fédon de Platão, que teremos uma referência textual mais completa do elo entre o crime perpetrado contra Dioniso infante, os Titãs que o sacrificaram, e o surgimento da humanidade. Em todas as versões trata-se de uma antropogonia, como a que descreve o Aristófanes do Banquete.

Suponho que Platão constrói o mito contado no Banquete do mesmo modo como o próprio Aristófanes construiu o mito teogônico no coro das Aves: como uma paródia de trechos da Telete. O procedimento é o mesmo, a diferença está nos trechos tomados para a paródia. Aristófanes escolhe o inicio da teogonia, que mostra as divindades primordiais Protógonos e Eros.

Platão escolhe a parte que trata da última geração de poder divino segundo a narrativa órfica, no trecho que relata o esquartejamento de Dioniso Zagreu perpetrado pelos Titãs, de cujas cinzas surgiram os homens. Por que escolhe este modelo? Certamente porque o Aristófanes de Platão é um dos porta- -vozes de Dioniso no Banquete. Na celebração dionisíaca prepara-se o corpo

10 Para uma análise das referências a Dioniso no Protréptico de Clemente de Alexandria, cf.

Jourdan (2006).

11 Ellinger (1993) p.147; Détienne (1977, 19982) p.165.

12 Carta XXX.

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com o alimento e a bebida, faz-se a iniciação com os discursos encantatórios elogiando um deus cosmogônico primordial, até chegar a hora da revelação reservada aos iniciados, no final da fala de Diotima e nas indiscrições de Alcibíades. Aristófanes tem uma função introdutória no andamento do rito, vestindo a máscara dionisíaca do discurso antropogônico.

Última observação da relação entre o mito Aristofânico do Banquete e a Telete: o nome que o próprio Aristófanes dá a sua imagem do amor como atra- ção entre duas metades de um todo: symbolon. A palavra, além da imagem da téssera partida que já mencionamos, evoca evidentemente também o desem- penho simbólico das imagens. Função primordial dos mitos teogônicos nos ritos órficos de iniciação. Uma parte importante da iniciação é a aprendizagem da hermenêutica, para compreensão do significado dos símbolos do rito.

Diotima

Diotima, mesmo se for uma ficção, a única presença feminina no Banquete (as dançarinas e flautistas foram dispensadas no início das conversas13), é quem trará o discurso sobre Eros reputado pela tradição como a verdadeira teoria do amor platônico. Este discurso compõe-se de várias estratégias retóricas:

começa por uma refutação (elénkhos), segue por uma narrativa teogônica, a qual é interpretada por uma teoria cosmogônica baseada em um modelo de procriação, para enfim terminar pela prescrição de uma ascese iniciática que culmina em uma contemplação transcendente. A ascese é o segundo momen- to da Telete, Diotima seria assim a segunda máscara de Dioniso. Em muitos aspectos, o discurso se aproxima das tradições textuais das teogonias e dos hi- nos órficos, de uma sacerdotisa cuja sabedoria em assuntos femininos trans- parece pelo modelo erótico baseado nos processos de concepção, gestação e parturição14. A presença feminina é outro traço da religiosidade dionisíaca, cercada pelos cultos ctônicos à Gaia, Demeter e Perséfone.

Depois da refutação inicial, Diotima apresentará uma teoria do ‘interme- diário’ (metáxy), cujo primeiro exemplo é o intermediário entre a ‘sabedoria’

(sophía) e a ‘ignorância’ (amathía), chamado por ela de ‘o opinar corretamente’

13 Symp. 176e.

14 Cf. Acker, Clara, (2008); (2002) p.228.

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(tò orthà doxázein)15. Em seguida, esta teoria é aplicada à determinação es- sencial de Eros, não como um deus, mas como uma divindade intermediária entre um deus, perfeito e belo, e um mortal, carente de tudo. Eros, nem belo nem feio, nem deus nem mortal, é um grande dêmone (daímon), que faz a in- termediação entre homens e deuses, que vela por súplicas e sacrifícios de uns, e traz ordens e recompensas dos outros. O intermediário da teoria de Diotima é um mediador, o que fica mais claro na explicação do dêmone. Um mediador que não é nem isso nem não isso, mas permite o comércio e a comunicação entre isso e não isso.

Segundo a narrativa teogônica de Diotima, Eros é concebido na festa de nascimento de Afrodite, tendo como pais Póros (recurso) e Penía (carência).

Novamente, o discurso é construído a partir de uma dialética da negação, que se repete aos pares “nem não isso nem isso”: “nem imortal é a sua natureza nem mortal”, mas dessa vez não temos apenas o terceiro incluso mas também a simultaneidade (no intervalo de um dia) dos contrários.

Assim o discurso teogônico supera a dupla negação dos atributos, que havia no discurso refutativo (nem mortal nem imortal), por uma espécie de síntese cíclica (no mesmo dia germina, morre e de novo ressuscita). A solução pelo retorno cíclico, evidenciado pela ressureição (anabiósis) no intervalo de um dia, ou melhor, a cada dia, aponta para um tipo de sabedoria órfica, dio- nisíaca. O Eros do mito de Diotima, nasce, morre e renasce como o Dioniso das teogonias órficas ou ainda como a Noite e todos os astros.

A teogonia de Diotima será interpretada por ela mesma como cosmogo- nia. Não no sentido de uma gênese do cosmo, mas sim de uma teoria cósmica da gênese. Assim, a definição da natureza de Eros leva a uma teoria do amor como impulso universal de procriação em toda a Natureza. Desta forma, o ciclo erótico de germinação, morte e ressurreição é ampliado a todos os seres vivos. A procriação é interpretada como resultante do amor dos mortais pelo que é imortal e como uma forma de fazer com que os mortais de certo modo participem da imortalidade.

A concepção de temporalidade cíclica implicada na ideia de geração como aquilo que possibilita que o mortal seja de algum modo perpétuo (aeigenes,

15 202a Ἦ καὶ ἂν μὴ σοφόν, ἀμαθές; ἢ οὐκ ᾔσθησαι ὅτι ἔστιν τι μεταξὺ σοφίας καὶ ἀμαθίας; Τί τοῦτο; Τὸ ὀρθὰ δοξάζειν καὶ ἄνευ τοῦ ἔχειν λόγον δοῦναι οὐκ οἶσθ’, ἔφη, ὅτι οὔτε ἐπίστασθαί ἐστιν – ἄλογον γὰρ πρᾶγμα πῶς ἂν εἴη ἐπιστήμη; – οὔτε ἀμαθία – τὸ γὰρ τοῦ ὄντος τυγχάνον πῶς ἂν εἴη ἀμαθία; – ἔστι δὲ δήπου τοιοῦτον ἡ ὀρθὴ δόξα, μεταξὺ φρονήσεως καὶ ἀμαθίας.

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literalmente “sempre gerado”) e imortal16faz ressoar o ciclo da sabedoria das máscaras. O tempo é o que não conserva os atributos, nele nada cessa e tudo passa. Pelo tempo tudo escorre, mas os vivos, mesmo sendo mortais, tentam conservar-se: “no perpassar intérmino do tempo.”17

No mesmo transcurso do devir estão todas as coisas vivas e mortais, sejam elas coisas corpóreas ou coisas psíquicas. Corpo e alma dos mortais nascem e morrem e são preservados pela procriação e reposição do velho que se vai pelo novo que advém. O amor pelo que é belo e imortal fecunda os seres vivos e os faz superar a mortalidade individual, gerando crianças com os corpos, poe- mas e leis com as almas. Rebentos que vão perdurar um tempo mais que seus genitores. A vida dos mortais atravessará o contínuo perpassar dos tempos en- quanto a procriação mesma voltar a se repetir. Assim, Diotima descreve como o que é imortal se torna imanente em todo o devir da Natureza. Mas não termina aí. Poderia ter concluído como uma sábia naturalista, mas não teria iniciado Sócrates e nós mesmos nos mais altos mistérios do amor. Resta mostrar-nos a ascese erótica em vista da contemplação do mais alto grau da beleza.

Diotima chama a última etapa iniciática dos assuntos eróticos de epóptica, termo que designa a etapa final de revelação dos mistérios de Eleusis. A pala- vra designa os procedimentos relativos à epópsis: uma visão (ópsis) em cima ou para cima (epi), que portanto pode observar o mundo abaixo de forma privilegiada e global, como também pode observar de mais perto as coisas em cima. É exatamente o que faz a Sacerdotisa: primeiro recapitula de cima todas as etapas de iniciação amorosa como os degraus de uma longa escalada que vai do amor particular de um belo corpo até a beleza em si mesma. Depois contempla a beleza em si mesma que está em cima.

A escalada iniciática é o segundo modelo ou esquema de dialética nega- tiva que encontramos no discurso de Diotima. Aqui não se trata de negar os opostos em pares “nem isso nem não isso”, mas de negar uma posição por outra que será negada pela seguinte sucessivamente: “isso; mas não isso, aquilo; mas não aquilo, outro; mas não outro, e assim por diante”.

As etapas são sempre fugazes: como as figuras vivas de Dioniso, apenas se conserva a vitalidade do trânsito.

16 ὅτι ἀειγενές ἐστι καὶ ἀθάνατον ὡς θνητῷ ἡ γέννησις.

17 208e Como belamente traduz Carlos Alberto Nunes (2001, p.73) a expressão platônica:

χρόνον πάντα ποριζόμενοι.

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Diotima explica em detalhe cada etapa da ascese amorosa e como ultra- passá-la para a seguinte, a superação de cada degrau implica em alcançar um maior grau de universalidade e beleza, de modo que as etapas anteriores são subsumidas pelas posteriores. São sete graus de iniciação amorosa, número que exprime o valor pitagórico da harmonia. Amor de um corpo, e depois de todos os corpos, segue-os o amor das almas, e dos belos ofícios, das leis, das ciências, até chegar na mais alta ciência amorosa, aquela que contempla o belo em si mesmo por si mesmo.

A meta da escalada não é apenas um último degrau, mas aquilo em vista de que todo o processo se faz desde o início. Por isso, o último grau não é um extremo escatológico mas um princípio teleológico a partir do qual tudo é e também pode ser contemplado. O próprio belo em si mesmo é também o que dá sentido e torna bela cada etapa anterior e cada um dos seus objetos. Apesar de apresentado como o sumamente transcendente, tudo o mais que é belo só o é porque participa desta ideia superior, de modo que ela também só ganha sentido à medida que se perpassa e ultrapassa cada degrau que se lhe subordina. Diotima pede uma compreensão que não se acovarde em face do paradoxal de reunir as ideias opostas de separação (khorismós) e participação (méthexis). Mas para isso ela já nos tinha preparado com sua doutrina da intermediação dos contrários.

No discurso de Diotima, a transcendência ideal só é alcançada pelos ho- mens que perpassaram o correto amor pelos jovens e que cumpriram cada etapa do percurso. Não se oferece um salto sem esforço e sem a experiência dos diversos níveis de amor, não se condena de modo precipitado e ingênuo as etapas que têm de ser vividas para serem superadas. É preciso alcançar cada etapa para poder negá-la. Por isso, tratar a doutrina de Diotima e o amor platônico como um desprezo absoluto pelos níveis inferiores do amor não é considerá-lo em seu todo, mas apenas ter dele uma visão parcial, não epóp- tica – e avessa à própria ideia de transcendência e contemplação. A negação dialética do processo de desenvolvimento integra cada etapa anterior na etapa seguinte, e todas as etapas na última.

A descrição do belo em si mesmo feita por Diotima é encantadora, sedu- tora e narcótica em toda sua sucessão de negativas, e corremos o risco de nos encantar e nos perder com os vinte períodos ritmados de qualificação privati- va antes de perceber a decisiva frase sobre sua positiva universalidade, calcada na participação de tudo que é belo neste belo culminante. É inegável que Dio- tima dá margem e até estimula uma interpretação ascética, que vai predomi- nar em todo o platonismo, quando em seu êxtase transcendente embriaga-se com a contemplação da ideia do “próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes e coisas humanas, de cores e outras ninharias mortais, mas o

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próprio divino belo em sua forma única.”18 Mas essa é a descrição do belo em si mesmo e não de todo o percurso filosófico que se cumpriu para alcançá-lo.

A mais despojada abstração não é a verdade. A verdade é todo o caminho, cuja negação é a roda feminina dionisíaca da dialética que o percorre.

Mas a mais profunda revelação aos iniciados ainda está por vir; a verdadei- ra epópsis, a terceira etapa que fecha o rito telético entra abruptamente pelas portas de Agatão.

Alcibíades

Alcibíades é lido tradicionalmente como a representação de como não deve se portar um homem na condução do amor. Mas Platão é e sempre será filósofo, de modo que também pelos modos destemperados e pela fala embriagada de Alcibíades será dita a verdade19. O próprio Alcibíades desafia Sócrates a interrompê-lo se não a disser. É dita por Alcibíades uma verdade reservada aos iniciados, que só pode ser dita entre quatro paredes. A verdade revelada pela embriaguez do vinho. O que revela Dioniso.

Alcibíades chega bêbedo, em alvoroço, pelos braços da flautista, cingido com uma coroa bacante de hera e violetas, como um sátiro, porta-voz do deus. Senta-se entre Agatão e Sócrates, sem perceber este último. Passa a coroa ao homenageado e leva um susto quando se volta e vê Sócrates ao seu lado. Alcibíades reclama da proximidade entre os outros dois... e Sócrates já previne Agatão do ciúme e da fúria amorosa do general que já foi o mais belo e cobiçado jovem ateniense. A fúria despedaçadora de um bacante.

Alcibíades toma parte das fitas e das flores que pôs sobre Agatão e coroa também Sócrates porque “vence em argumentos todos os homens, não só ontem como tu, mas sempre.”20 Sem saber da contenda de discursos, o recém chegado juiz entrega os prêmios aos vencedores. Não apenas juiz, o varão toma em seguida o cargo de simposiarca, não eleito pelos homens mas desig- nado diretamente pelo deus: “Vós pareceis em plena sobriedade. É o que não

18 211e. αὐτὸ τὸ καλὸν ἰδεῖν εἰλικρινές, καθαρόν, ἄμεικτον, ἀλλὰ μὴ ἀνάπλεων σαρκῶν τε ἀνθρωπίνων καὶ χρωμάτων καὶ ἄλλης πολλῆς φλυαρίας θνητῆς, ἀλλ› αὐτὸ τὸ θεῖον καλὸν δύναιτο μονοειδὲς κατιδεῖν.

19 214 e.

20 213 e.

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se deve permitir entre vós, mas beber.”21 Erixímaco intervém: entre homens nobres e livres é preciso mostrar o seu valor na refrega, é preciso que ele tam- bém faça o elogio a Eros!

Alcibíades pondera que não vai disputar de igual para igual, visto que so- mente ele está embriagado, e tenta voltar-se ainda para Sócrates, dizendo que este não permitia que ele louvasse a ninguém mais, seja homem seja deus!

Erixímaco aproveita a deixa e com brilhante ironia propõe que ele então louve Sócrates. Agatão louvou Eros como amado, o erômeno. Sócrates o cor- rigiu, louvando Eros como amante, o erasta. Agora Alcibíades vai louvar o mestre erasta dos banquetes, que foi o seu próprio amante. Vai tirar a máscara dos discursos de perspectiva universal e trazer a contenda para os indivíduos, na intimidade da alcova. Somente aos iniciados é permitido retirar a máscara, mas sob a proteção das paredes. Se o mistério saiu das quatro paredes de Aga- tão não foi por obra de Alcibíades, mas pelos que relataram o que ali se pas- sou de Aristodemo até nós, entre os quais Platão tem maior responsabilidade.

Alcibíades, para elogiar Sócrates, recorre à imagem das estatuetas de Si- leno. Sileno é o sábio sátiro do cortejo de Dioniso, de aparência muito feia, meio homem, meio bode. Aquele que guarda a sabedoria trágica da finitude do mundo e dos homens. As estatuetas de Sileno têm pau oco, e nelas se escondem preciosas imagens de deuses. Que imagem tão reveladora de Sócra- tes, cuja aparência é notoriamente feia, e no discurso esconde maravilhosas belezas! Mesmo os seus discursos começam aparentando ninharias, interro- gando, tratando de oleiros e sapateiros, e acabam por alcançar o êxtase nas mais altas esferas do mundo supraceleste.

Não apenas Sileno, como também Mársias, outro sátiro, o flautista mais en- cantador, mais sedutor, que ousou desafiar o próprio Apolo e por ele foi vencido e esfolado. Sócrates encanta e, como os flautistas, mas sem a flauta, entusiasma e extasia a quem o ouve. Todos ali acabaram de ser testemunhas.22 Um sátiro sábio, que se esgueira, um sátiro poeta que entusiasma, que melhor imagem da ironia dialética e da sedução pederástica de Sócrates? Mas Platão precisou usar a máscara bacante do bêbado despudorado. Alcibíades se abre em confissão:

Muito mais que aos coribantes em seus transportes bate-me o cora- ção, e lágrimas me escorrem sob o efeito de seus discursos [...] A cus- to, então como se me afastasse das sereias, eu cerro os ouvidos e me

21 Idem.

22 Cf. 218 a-b.

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retiro em fuga, a fim de não ficar sentado lá e aos seus pés envelhecer.

[...] eu, é diante deste homem somente que me envergonho. [...] no estado do que foi mordido pela víbora [...] mordido pelos discursos filosóficos que têm mais virulência que a víbora23

Eis a mais perfeita adicção, o homem completamente prostrado à droga que lhe impõe o desejo, que lhe dá prazer, que o alucina e o consome. Alcibíades é totalmente incontinente em sua paixão por Sócrates. Mas aquele homem o desdenha, brinca com seus sentimentos, ironiza. Ele não se curva nem à sua beleza, nem a riquezas ou honrarias. Em seu elogio de amor ferido, as portas da intimidade vão se abrindo uma após outra, os acompanhantes vão sendo despachados um a um, até que em sua confissão chega aos pés do leito com- pletamente a sós com o homem. Alcibíades, quando era o jovem mais belo, mais desejado, mais cortejado, tenta entregar-se; mas depois de conversar, Sócrates simplesmente vai embora. Alcibíades convida-o para a ginástica; mas depois de lutarem, Sócrates vai embora. Por fim, convida-o para jantar “como um amante armando uma cilada ao bem amado”, uma, duas vezes, com as luzes apagadas, totalmente possuído, Alcibíades faz a proposta, que em cada termo segue as regras da pederastia aristocrática, já enunciadas por Pausâ- nias, salvo por um mísero e miserável detalhe. Ele o jovem, que deveria ser o amado e ouvir a proposta, apaixonado, toma a iniciativa e o lugar de amante, erasta, que devia ser desempenhado pelo mais experiente.

Revelação epóptica da vergonha das vergonhas: tendo passado a noite abra- çado com Sócrates, tudo se passou como se tivesse dormido com o próprio pai ou um irmão mais velho... Nisto, os juízes que condenaram Sócrates tinham in- teira razão: ele realmente corrompia a juventude ateniense, transformando os jo- vens de amados em amantes, invertia-lhes o seu papel social – inversão como as que opera Dioniso em todo carnaval. E se ao fim os jovens tornassem-se amantes do saber, então a perversão sincoribante não podia ter sido mais completa.

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