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MULHERES NEGRAS, MÃES E ESCRAVIZADAS NA FREGUESIA NOSSA SENHORA DAS NEVES/PARAÍBA: FAMÍLIA E RELAÇÕES DE COMPADRIO,

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SENHORA DAS NEVES/PARAÍBA: FAMÍLIA E RELAÇÕES DE COMPADRIO, 1851-1854

SOLANGE MOUZINHO ALVES (UFPB) Solange-mouzinho@hotmail.com SOLANGE P. DA ROCHA (DH-PPGH/UFPB) banto20@gmail.com

Theodora, “criola”, em 24 de fevereiro de 1851 levou para receber o sacramento do batismo a sua filha natural, também identificada como “criola”, Raymunda com apenas um mês de nascida. Quase dois anos depois, em 16 de janeiro de 1853, Theodora volta à Igreja para batizar a sua filha natural de um mês de idade, a recém- nascida Maria, “criola”, todas escravizadas do Doutor Francisco Ignacio Peixoto Flores

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. A preta Manoela também levou seus dois filhos naturais para serem batizados na Igreja. Luis,

“criolo” com três meses, recebeu os santos óleos e água benta em 11 de julho de 1851 e Feliciana, parda com um pouco mais de um ano, foi batizada em 10 de setembro de 1854, todos escravizados do José Luis Pereira Lima

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. A experiência dessas duas mulheres negras e escravizadas, Theodora e Manoela, demonstram as vivências de muitas outras mulheres de mesma condição que viveram na Paraíba, na Freguesia Nossa Senhora das Neves no século XIX.

Ao pesquisarmos no Arquivo Eclesiástico da Paraíba/ AEPB

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, especificamente nos Livros de registro de batismo nos foi possível obter várias informações sobre a população escravizada e, neste sentido, destacamos neste trabalho a experiência das mulheres negras e escravizadas da Freguesia Nossa Senhora das Neves.

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Uma das informações anotadas se refere ao tipo de filiação e entre os/as escravizados/as, identificamos que os casamentos legitimados pela Igreja foram poucos, a filiação natural,

1 Ver Livro de registro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-60, AEPB, folhas 23 e 101.

2 Ver Livro de registro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-60, AEPB, folhas 38 e 168.

3 Destacamos que este artigo é resultado do Projeto PIBIC, cuja vigência foi entre o período de agosto de 2010 e julho de 2011, intitulado “Gente negra na Paraíba oitocentista: redes sociais e arranjos familiares”, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Solange Pereira da Rocha e vinculado às discussões do Grupo de Pesquisa

“Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista”.

4 Na pesquisa realizada no Livro de registro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves entre os anos 1851-54 coletamos 1.603 assentos com diversas informações as quais foram repassadas para um banco de dados o que nos permitiu trabalhar com dados quantitativos. Todavia, para este artigo, devido a limitação de páginas, optamos por fazer uma análise qualitativa, destacando as experiências das mulheres negras e escravizadas.

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ou seja, em que aparece somente um dos genitores da criança e neste caso predomina a indicação das mães, que são registradas, como observamos na experiência de Theodora e Manoela, são os que representam maior registro.

Referente aos números, observamos que entre a população escravizada foram 119 ou 7,42% de filiação natural e nesta estão incluídas o caso das mães Theodora e Manoela;

apenas 7 ou 0,44% filiações foram legítimas, ou seja, o pai e a mãe são declarados como casados pela Igreja. No que concerne à filiação natural, indica que o pai e a mãe são solteiros e, neste caso, geralmente nos registros eram notificados, apenas, os nomes das mães.

Como vimos, entre os anos de 1851-54 foram registrados sete casais de condição escrava. Dentre estes destacamos a experiência do casal Benício e Ângela que levou, em 10 de junho de 1851, o recém-nascido José, cabra, com um mês para receber o sacramento do batismo, estes escravizados pertenciam ao Mosteiro de São Bento.

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Em 04 de outubro de 1853 foi a vez do casal Felix e Felismina levar o seu filho, Felisberto, pardo, com menos de trinta dias de nascido, para ser batizado; estes eram escravizados da Florinda Teixeira de Albuquerque.

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Os pequenos José e Felisberto foram poucos entre as crianças escravas que tiveram seus pais casados, tendo assim, o modelo “padrão” colocado pela Igreja de um “ideal” do que é uma família: a figura do pai, da mãe e dos filhos e/ou filhas.

Contudo, a proposta deste artigo é justamente analisar outros tipos de arranjos familiares estabelecidos pela população negra e escravizada. Assim, não devemos tomar como único “padrão familiar” os casamentos legitimados pela Igreja, pois conforme nos chama a atenção a autora Isabel Reis:

[...] para além da análise da família nuclear e legítima, os historiadores têm observado, em alguma medida, o extenso relacionamento entre os escravos, a partir da análise das relações de parentesco ampliado e de compadrio, sugerindo que foi possível a disseminação de padrões de vida familiar e redes de parentesco diversificados no seio das comunidades negras no contexto escravista (REIS, 2001, p. 29).

Tal ideia de “parentesco ampliado” ocorreu devido à própria determinação da Igreja, pois conforme a Legislação eclesiástica de 1707 as pessoas envolvidas no ritual do batismo, pais, mães, crianças, padrinhos e madrinhas tornavam-se parentes:

5 Ver Livro de registro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-60, AEPB, folha 35.

6 Ver Livro de registro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-60, AEPB, folha 133.

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[...] o Sacerdote, que baptizar, declare [...] aos ditos padrinhos, como ficão sendo fiadores para com Deos pela perseverança do baptizado na Fé, e como por serem seus pais espirituais, tem obrigação de lhes ensinar a Doutrina Christã, e bons costumes. Também lhes declare o parentesco espiritual, que contrahirão [...] o qual parentesco conforme disposição do Sagrado [...] Concílio Tridentino, se contrahe somente entre os padrinhos, e o baptizado, e seu pai, e mãi; e entre o que baptiza, e o baptizado, e seu pai, e mãi; e o não contrahem os padrinhos entre si, nem o que baptiza com elles, nem se estende a outra alguma pessoa além das sobreditas (CONSTITUIÇÕES DO ARCEBISPADO DA BAHIA, Livro primeiro, Título XVIII, p. 26-27). Grifos nossos.

Observamos que a relação estabelecida entre o/a batizando/a, o pai, a mãe, o padrinho e madrinha é uma relação de parentesco espiritual, conforme determinação da própria Igreja.

Padrinhos e madrinhas se comprometem perante o próprio “Deos” de serem responsáveis pela educação religiosa e dos “bons costumes” das crianças, ou seja, tornam-se “seus pais espirituais”. Tais determinações não se diferenciavam para a população cativa, ao contrário, a legislação eclesiástica (1707) afirma que esta merece uma atenção especial, pois “são os mais necessitados desta instrução pela sua rudeza”. Por isso, deveriam ser mandados por seus “amos e senhores” à Igreja para que obtivessem educação religiosa.

Isto significa dizer que a população cativa deveria participar dos rituais da Igreja como de fato participaram como é o caso dos /as escravizados/as da Freguesia Nossa Senhora das Neves, os/as quais escolheram padrinhos e madrinhas para seus filhos e filhas, estabelecendo o parentesco espiritual. Por se tratar de um parentesco espiritual, Stuart Schwartz (2001) menciona que o compadrio faz parte das pesquisas relacionadas à família.

Sobre os laços estabelecidos neste ritual, Gudeman e Schwartz (1988) destacam que não se restringia ao âmbito social da Igreja, “uma dimensão peculiar do compadrio é que ele é produzido na Igreja entre indivíduos que o carregam para fora da instituição formal. O compadrio é projetado para dentro do ambiente social” (GUDEMAN;

SCHWARTZ, 1988, p. 37). Estas informações são importantes para levantarmos alguns

questionamentos. Se a escolha de padrinhos e madrinhas era empreendida pelo pai e pela

mãe e como no caso dos/as escravizados/as as mães foram as que mais presenciaram o

ritual, quem essa mãe negra e de condição escrava escolheu para apadrinhar seus filhos e

suas filhas? Eram pessoas de sua mesma condição social, eram livres, libertas/forras? Será

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que os vários sujeitos sociais (livres, libertos e escravizados) formavam grupos fechados ou se relacionavam entre si?

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Para responder a tais questionamentos podemos começar a analisar as experiências das duas mulheres negras e escravizadas que iniciaram este artigo, Theodora e Manoela. A primeira levou duas filhas para o recebimento do sacramento do batismo, Raymunda e Maria. Um dado que nos chamou a atenção foi o fato da Theodora em 1851 não ter escolhido nenhum padrinho para a pequena Raymunda, apenas a madrinha que foi Nossa Senhora das Neves. A documentação não nos permite saber o porquê da inexistência do padrinho, mas podemos levantar algumas hipóteses. Provavelmente Theodora neste momento não teria nenhuma interação social efetiva com alguma pessoa que de fato pudesse apadrinhar sua filha, por talvez estar residindo na citada Freguesia a pouco tempo.

Lembremos que se trata de uma mulher negra e escravizada e se de fato era uma recém- chegada tornava-se mais difícil estabelecer relações sociais com outras pessoas, por isso só lhe restou como opção optar pela proteção da Santa. Em 16 de janeiro de 1853 a história foi diferente, sua filha Maria teve como padrinho Manoel Camillo do Nascimento, não foi notificado sua condição jurídica, mas acreditamos que seja um homem livre, pois quando se tratavam de pessoas escravizadas o nome do proprietário ou proprietária deveria constar.

Manoela também levou seus dois filhos para receberem os santos óleos e água benta. O pequeno Luis foi batizado em 11 de julho de 1851, seu padrinho foi Eduardo José Barboza e madrinha Nossa Senhora das Neves. Em 10 de setembro de 1854 foi à vez da Feliciana, esta teve como padrinho o seu proprietário e também negociante, José Luis Pereira Lima. Foram raras as experiências em que os proprietários apadrinhavam seus escravos. No caso da Feliciana foi um caso emergencial, pois a menina foi batizada em perigo de vida (ou morte) na Capela Nossa Senhora da Graça, propriedade do José Luis Pereira Lima, consta na documentação que a criança foi batizada “privadamente pelo mesmo senhor que assistiu aos exorcismos”. Ou seja, a criança deveria estar em “vias de morte” e, por isso, o proprietário terminou por apadrinhar a criança.

Todavia, o que queremos ressaltar nas experiências de Theodora e Manoela, dessas mulheres negras e escravizadas, a busca por padrinhos de condição livre. Vimos que ambas buscaram estabelecer o compadrio com pessoas livres. Mas, nem sempre as mães escravizadas estabeleceram o parentesco espiritual com pessoas livres, foi o que aconteceu

7 O resultado de nossa pesquisa apontou para a interação social dos/as escravizados com pessoas de sua mesma condição, livre e liberta. Contudo, neste artigo, destacaremos algumas interações entre os próprios cativos e destes com os livres.

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com Cosma, preta, que teve duas filhas naturais: Lourença, três meses de idade, não foi informada a cor; e Catharina, dois meses de nascida, “criola”. Lourença foi batizada em 19 de setembro de 1852 e teve como padrinho o escravizado Manoel Antonio do Nascimento, não foi informado o nome do proprietário do padrinho

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. Em 11 de junho de 1854, Catharina recebeu os santos óleos e água benta. Esta teve como protetor espiritual o Antonio, escravizado do Padre Mestre Frei Fructuozo da Solidade Sigismundo, a madrinha foi Nossa Senhora do Rozário.

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Cosma e suas duas filhas, Lourença e Catharina eram escravizadas de Manoel Marques Camacho.

A partir das experiências de Theodora, Manoela e Cosma, percebemos que essas mulheres negras e escravizadas estabeleceram o compadrio com pessoas livres e com pessoas de sua mesma condição. De forma semelhante, a autora Silvia Brügger (2007) ao pesquisar sobre o compadrio em São João del Rei (Minas Gerais) entre os anos de 1736 e 1850 verificou que a população escravizada estabeleceu redes de compadrio tanto com pessoas de sua mesma condição, ou seja, escravizadas, como pessoas livres. Para Brügger esta ação de escolha, e concordamos com ela, não eram aleatórias, existia uma lógica e um sentido, vejamos na citação abaixo:

Para as escravas, a escolha dos padrinhos parecia oscilar, preferencialmente, entre os dois extremos sociais: padrinhos livres, visando provavelmente a possibilidades de ganhos, para seus filhos ou para si, ou cativos, para reforçar as teias sociais estabelecidas na própria comunidade escrava (BRÜGGER, 2007, p. 319).

Sobre o significado de tais relações, Brügger (2007) comenta que o compadrio estabelecido entre os/as escravizados/as serviam para reforçar as relações sociais já existentes entre os cativos. Para exemplificar, vejamos quem é o compadre de Cosma, o primeiro é registrado como Manoel Antonio Nascimento e no segundo registro, apenas Antonio. Acreditamos que se trata da mesma pessoa em ambos os registros, o Antonio certamente era uma pessoa que possuía laços estreitos com Cosma, o que reforça a ideia do fortalecimento dos laços já existentes entre os/as escravizados/as.

E nas experiências de Theodora e Manoela que tiveram como parentes espirituais pessoas de condição livre. Qual o significado dessas relações para essas mulheres? Segundo Brügger (2007), o estabelecimento do compadrio com pessoas livres para o escravizado teria a possibilidade de obter ganhos. E que ganhos seriam esses?

8 Ver Livro de registro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-60, AEPB, folha 85

9 Ver Livro de registro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-60, AEPB, folha 159.

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Segundo o autor Flávio Gomes (2003) ao estudar os escravizados fugitivos a partir dos anúncios de jornais no Rio de Janeiro no século XIX, ter um padrinho livre era muito importante, pois o escravizado fugitivo quando recapturado, por exemplo, poderia recorrer ao seu padrinho para intervir junto ao seu proprietário ou proprietária para amenizar o seu castigo. Mas, este é apenas um exemplo, pois um padrinho livre também poderia fornecer a carta de liberdade/alforria para o seu afilhado ou afilhada, entre outros ganhos que poderiam ser obtidos.

E de fato identificamos algumas experiências de mães que conseguiram que seus filhos e/ou filhas obtivessem a carta de liberdade comprada por seus padrinhos.

Vejamos as transcrições abaixo:

Aos onze de julho de mil oitocentos e sincoenta e dois [1852], na Matriz desta Cidade de minha licença o Reverendo Coadjutor Antonio de Mello Muniz Maia, baptizou solenemente a parvula Anna, parda, forra, com dois mezes e vinte dias de nascida, filha natural de Maria escrava de D.

Fermina Rodrigues de Mello; digo que a parvula – Anna = he forra porque a mesma Dona Fermina Rodrigues de Mello disse na minha presença e nas das testemunhas abaixo assignadas que havia forrado a dita parvula Anna, pella quantia de cem mil reis; e que como havia recebido esta quantia da mão de João Antonio Marques, podia a referida parvula = Anna = gozar em todo tempo de sua liberdade, e que, para em todo tempo constar comigo assignaria, este termo = forão padrinhos João Antonio Marques e N. S. das Neves, do que para constar foi escrever este assento que assignei (Livro de Batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-54, AEPB, verso da folha 79) Grifos nossos.

Aos onze de julho de mil oitocentos e sincoenta e dois [1852], na Matriz desta Cidade, de minha licença o padre Coadjuntor Antonio de Mello Muniz Maia baptizou solenemente ao parvulo = Vicente = criolo, forro, nascido no primeiro de dezembro do ano de mil oitocentos e sincoenta e um, filho natural de Catharina, criola escrava de Dona Joaquina d’Oliveira; digo que o parvulo Vicente é forro que a mesma dona Anna Joaquina d’Oliveira disse na minha presença e na das testemunhas abaixo assinadas que havia forrado o dito parvulo = Vicente = pela quantia de setenta e cinco mil reis, a que, como havia recebido esta quantia da mão de João Pereira [danificado], podia o referido parvulo Vicente gozar em todo tempo de sua liberdade [...].

Forão padrinhos João Pereira Rabello Braga e Dona Umbelina Candida de Barros [...] (Livro de Batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-54, AEPB, verso da folha 78). Grifos nossos.

Aos vinte três de dezembro de mil oitocentos e sincoenta e três [1853], na

Matriz desta Cidade de minha licença o padre Joaquim Antonio Leitão,

baptizou solenemente a Virgilia, parda, forra por seu padrinho,

nascida aos vinte seis de junho deste ano, filha natural da parda

Benedicta, escrava de Francisco Ferreira de Novaes, branco, casado, foi

padrinho o Doutor Antonio Carlos de Almeida e Albuquerque, do

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que para constar fiz escrever este assento que assignei (Livro de Batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-54, AEPB, verso da folha 140). Grifos nossos.

Identificamos poucas experiências, mas observamos nos exemplos acima que as mães Maria, Catharina e Benedicta conseguiram que os padrinhos comprassem a alforria de seus filhos e filhas e no caso da pequena Virgília, filha natural da parda Benedicta, o seu pai espiritual era um homem distinto socialmente, o Doutor Antonio Carlos de Almeida e Albuquerque. Sobre esse homem da elite paraibana, temos informações de que ele era proprietário de engenhos na cidade de Mamanguape, com atuação política no Partido Conservador. Na capital, Cidade da Parahyba, foi deputado provincial, 1850-51 e 1852-57, atuou como Juiz Municipal, na capital e em Mamanguape e, em 1860, recebeu o título de cavaleiro da Ordem de Cristo e, na Faculdade de Direito de Olinda, integrou a turma que se formou em 1849.

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No caso das crianças que foram batizadas na condição escrava, como foi o caso dos filhos e filhas de Theodora e Manoela, mas com padrinhos e madrinhas livres, a estratégia por parte dessas mulheres poderia ser no futuro obter a alforria de seus filhos e/ou filhas, pois esses padrinhos tinham melhores condições se comparado com os de condição cativa

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.

Desta maneira, podemos identificar através destas experiências a ação dessas mulheres negras e escravizadas neste processo de escolha de padrinhos. E esta ação deve ser ressaltada, pois por muito tempo vigorou na historiografia a percepção do/a escravo/a como “coisas”, sempre percebidos como submissos e conformados com sua situação escrava. Sua “humanidade” era apenas reconhecida quando se revoltavam contra o sistema conforme o exemplo de Zumbi de Palmares. As relações do compadrio, por sua vez, demonstram que os/as escravizados/as possuíam uma lógica e interesses próprios. As alianças estabelecidas, sobretudo, com pessoas livres e/ou com distinções sociais, como foi o caso do Doutor Antonio Carlos de Almeida e Albuquerque que comprou a liberdade de sua afilhada Virgília, filha da parda Benedicta, são evidências da busca de melhores condições de sobrevivência, o que nos faz entender que de forma alguma havia

10 Conforme LEITÃO, Deusdedit. Bacharéis paraibanos pela Faculdade de Olinda, 1832-1853. João Pessoa: A União, 1989, p. 75.

11 Contudo, não foram somente pais e padrinhos que se empenharam a comprar a alforria dos/as batizandos/as. As mães também se esforçavam neste sentido, como foi o caso da escravizada [Benvinda?], parda, que comprou a liberdade da sua filha, Florentina, parda, batizada em 08/12/1851, por cem mil réis, conforme, Livro de registro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-60, folha 80, no AEPB.

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conformação com sua situação escrava. Vimos ao longo deste artigo algumas experiências de pessoas livres, Doutores, estabelecendo o compadrio com pessoas negras e escravizadas e algumas delas receberam a carta de liberdade comprada por seus padrinhos, como foi citado anteriormente.

Contudo, as relações de compadrio não possuíam apenas a “lógica escrava”, como nos chama a atenção a autora Silvia Brügger (2007):

O compadrio estabelecia um vínculo de mão dupla. Tanto os padrinhos podiam beneficiar-se dos trabalhos, dos préstimos e da fidelidade dos afilhados quanto estes esperavam contar com o cuidado, a proteção e o reconhecimento daqueles. [...], é importante frisar mais uma vez que as relações de compadrio não eram homogêneas. [...]. Assim, um mesmo homem de boa posição social poderia apadrinhar um filho de uma escrava e outro de uma família de prestígio. As relações que se estabeleceriam entre o padrinho e seus dois afilhados seriam, com certeza, de natureza distinta (BRÜGGER, 2007, p. 338).

Neste caso, chamamos a atenção do significado do estabelecimento do compadrio de uma pessoa livre para com um/a escravizado/a. Como ressalta Brügger (2007), as relações, de fato, poderiam ser diferentes entre um afilhado de condição escrava e outro de condição livre. Mas, no geral, a expectativa em ambas as partes era de ajuda mútua, desigual é evidente, mas um padrinho ou madrinha livre poderia contar com os favores de seus afilhados e afilhadas de condição cativa e estes com o cuidado e proteção de seus pais e mães espirituais.

Outro dado que podemos destacar sobre essas relações de compadrio estabelecidas entre livres e escravizados é para a complexidade da sociedade escravista.

Citamos aqui pessoas de condição cativa efetivando relações com vários sujeitos sociais:

com os de sua mesma condição e com pessoas livres, por exemplo. Foi o que aconteceu

com Theodora e Manoela que estabeleceram o parentesco espiritual com pessoas livres. O

que queremos chamar a atenção e isso responde um dos questionamentos levantados no

início deste texto é que não existia o “mundo dos/as escravizados/as” e o “mundo dos/as

livres” fechados entre si, vimos que em vários momentos esses “mundos” interagiram a

partir do compadrio. É evidente que não queremos afirmar com isso que o sistema

escravista não era violento, que não era socialmente hierarquizado. Pelo contrário, as

relações sociais baseavam-se na violência e em hierarquias. Mas, vimos que em alguns

momentos os/as escravizados/as conseguiram “driblar” esta violência e hierarquização

social tornando-se parentes espirituais de pessoas livres.

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Entretanto, não devemos analisar essas relações de parentesco espiritual de forma tão mecânica. Não temos dúvidas que essas alianças tinham interesses e expectativas. As mães Maria, Catharina e Benedicta, mulheres negras e escravizadas, por exemplo, conseguiram a alforria para seus filhos, vimos três exemplos neste sentido. Os padrinhos e madrinhas, por sua vez, certamente esperavam obter favores de seus afilhados e afilhadas, inclusive os de condição cativa. Contudo, o que queremos chamar a atenção é para o que está por trás dessas “trocas de favores”. Devemos pensar que essas alianças estabelecidas pelo compadrio certamente passavam por questões de afetividade, não somente entre o compadrio estabelecido entre os/as escravizados/as que eram importantes, pois reforçavam os laços de solidariedade, mas destes com os de condição livre. Por que não? Qual a motivação de Maria, escravizada de D. Fermina Rodrigues de Mello, escolher como padrinho de sua filha, Anna, o João Antonio Marques? E o que faria o João Antonio Marques pagar cem mil reis pela liberdade da sua afilhada em 11 de novembro de 1852?

Provavelmente as relações de amizade estabelecida entre a mãe da pequena Anna, Maria e o padrinho, João Antonio Marques.

A questão da afetividade foi muito bem lembrada pela historiadora Isabel Reis (2001) ao estudar a vida familiar e afetiva dos/as escravizados/as na Bahia no século XIX.

Identificar os sentimentos da população escravizada questiona a identificação do/a escravo/a como coisa, ao contrário, ressalta a sua humanidade. Sendo que a autora pesquisou as “afetividades” entre os/as escravizados/as: na relação homem-mulher ou vice- versa; entre pai e filhos/as e mães e filhos/as ou pai e mãe com seus filhos e filhas; e na relação entre familiares, a partir da análise de anúncios de jornais, testamentos, ações de liberdades, entre outras fontes. Contudo, em nossa pesquisa nos foi possível identificar que essas relações afetivas, dos/as escravizados/as, que perpassavam pelo compadrio se estendiam também para o “universo” dos livres, demonstrando mais uma vez a interação dos vários sujeitos sociais no sistema escravista, inclusive, entre livres e escravizados/as.

Destacamos desta maneira, algumas histórias, entre tantas outras existentes na

Freguesia Nossa Senhora das Neves entre os anos de 1851-54, de mulheres negras,

escravizadas e mães que tiveram seus filhos e filhas naturais e que buscaram para estes a

partir das relações de compadrio melhores condições de sobrevivência no sistema

escravista, algumas delas, como vimos, obtiveram até mesmo a carta de liberdade de seus

filhos e/ou filhas. Percebemos, assim, que estas mulheres conseguiram criar uma rede de

proteção através do parentesco espiritual, o compadrio.

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Referências

FONTES MANUSCRITAS

ARQUIVO ECLESIÁSTICO DA PARAÍBA (AEPB)

Livro de batismo da Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-54.

OUTRAS FONTES

CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1707. São Paulo:

Typografia de Antonio Louzada Antunes, 1853.

BIBLIOGRAFIA

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