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PERFORMANCE, IDENTIDADE E AUTO-IMAGEM

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Academic year: 2021

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PERFORMANCE, IDENTIDADE E AUTO-IMAGEM

STRATICO, Fernando A. Universidade Estadual de Londrina

Departamento de Música/Teatro fernando.str@hotmail.com Este artigo é resultado das pesquisas realizadas no projeto Identidade, Jogo Cênico e o

Objeto/Imagem - Departamento de Música e Teatro – UEL -, e apresenta uma análise a

respeito dos processos de construção da imagem performática presentes no decorrer do século XX. Busca-se demonstrar os modos pelos quais homens e mulheres construíram imagens de si em situação cênica ou performática. A partir da análise de fotografias, relatos, depoimentos e manifestos, apresentamos perfis e auto-imagens de artistas que, por meio de processos cênicos e performáticos, definem e articulam identidades para si e para o outro. O foco desta análise recai, assim, sobre experiências performáticas que revelam um jogo cênico em seu interior que é marcado pela presentificação do performer. Este teatraliza o eu e o presentifica no momento da performance. Exemplos das experiências da Body Art assim como de vários outros momentos da história da performance - em especial as proposições de Lygia Clark - caracterizam um estado em que a identidade da(o) artista se fragmenta para ser reconstruída posteriormente pelas imagens de seu ato performático. A fotografia é articulada, deste modo, não somente como mero registro, mas como parte de um todo (discursos lingüísticos, manifestos, ações) que articulam o fluxo de identidades e auto-imagens.

PALAVRAS – CHAVES: Performance; Identidade; Auto-imagem.

A palavra inglesa performance tem designado, ao longo das últimas três décadas, não somente o desempenho de máquinas, motores, operários, médicos, músicos, atores e diretores de empresas, mas também o desempenho daqueles cujo comportamento possui uma conotação teatral ou espetacular. Refere-se, assim, àqueles comportamentos realizados para serem vistos ou contemplados por alguém. Neste sentido, o termo passou, ao longo do tempo, a ser usado para designar uma área de estudo destes comportamentos espetaculares. Assim, os estudos da perfomance têm se voltado para a investigação científica de ritos tribais, de rituais religiosos, além de muitas outras manifestações cujas características básicas se assentam sobre o que Richard Schechner chama de comportamento restaurado (SCHECHNER, 1995, p 205). Como área de estudo, sua abordagem geralmente tem um cunho antropológico, e é com base neste prisma que muitos fenômenos performáticos são estudados. Muito significativa é a

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teoria da performance de Schechnner, e a teoria da performance social e do comportamento cotidiano de Irving Goffman.

Mas performance não se refere somente a esta área. Sua referência mais comum, diz respeito a manifestações artísticas que, nas últimas três décadas, têm se situado como uma linguagem específica: é quando a performance torna-se arte. Para alguns, a performance-arte é um tipo de teatro, para outros é uma linguagem que possui seus próprios elementos, os quais incluem a teatralidade. Performance, como manifestação artística, possui uma história e área de estudos específicas. Sua história, postulam alguns autores (GOLDBERG, 1993), inicia-se com as incursões dadaístas e futuristas pelo campo da encenação no início do século XX. Outras manifestações marcaram esta história, tais como o happening, a body-art dos anos sessenta e setenta. E assim, a performance chega até nossos dias como uma forma artística, que ora se mostra polêmica, ora incompreensível, seja pelo seu aspecto obscuro, ou pela recusa em se definir como teatro ou música, ou ainda como artes plásticas.

Se é preciso defini-la, podemos caracterizá-la por ações presentificadas do artista-performer, que se apresenta para um público espectador. Esta presentificação pode acontecer pela apresentação de si mesmo como pessoa e agente da performance, onde há a recusa em interpretar personagens ou deixar de ser quem o artista é, ou ainda pela presença e articulação de elementos pessoais, tais como a história pessoal, ou simplesmente pela incorporação de elementos presentes, tais como o espaço urbano. Esta definição cobre uma gama enorme de atividades performáticas das últimas décadas e ainda explica muitas obras contemporâneas; no entanto, o conceito ainda necessita ser ampliado, pois performance hoje se aproxima muito de outras linguagens, tais como o teatro e a dança.

No decorrer das últimas décadas as manifestações artísticas performáticas perderam o seu caráter enfático das ações ou desempenho físico destacados do cotidiano, passando a se aproximar das formas de teatro convencionais. Assim, a performance contemporânea se confunde com o teatro, com a dança e a música. Na verdade o que tem acontecido é que artistas provindos destas áreas específicas incorporaram em seus trabalhos elementos da performance, ou elementos performáticos. Nesta perspectiva, os trabalhos performáticos contemporâneos utilizam de todo o aparato teatral, mas ao mesmo tempo, presentificam o ator/atriz performer. Esta presentificação é expressa pela concentração - já comum para nós - dos elementos da linguagem teatral. Ou seja, o performer muitas vezes concentra em si a articulação da dramaturgia, da cenografia, figurinos, etc. e principalmente da relação com o espectador, o que resulta, geralmente em apresentações solos. O solo exemplifica bem este trânsito na direção da performance promovido por artistas de teatro. O solo, que é muito

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encontrado hoje em dia, não poderia ser chamado de monólogo, porque suas características dizem respeito a um outro tipo de atuação, que é, antes de tudo, muito pessoal. E neste solo, a presença pessoal do ator é destacada e ampliada.

A relação entre a performance-arte e a fotografia é bastante antiga. Desde as incursões futuristas, a produção fotográfica tem sido de grande valia para o registro das manifestações performáticas de artistas e também de público. São estes registros que hoje nos dão idéia de como eram tais ações. Sem as imagens fotográficas que hoje nos chegam, nossa visão sobre a experiência real performática seria bem mais limitada. Assim, em seus primórdios, a arte da performance dependeu da elaboração da imagem fotográfica, que em seu universo próprio, como linguagem artística, inaugurou e construiu uma realidade imagética específica.

Discute-se se em algum momento, nos primórdios da performance, a fotografia foi apenas registro, ou se já em sua simbiose performática inicial não foi ela parte imprescindível da elaboração e execução da obra performática. A partir da legitimação da performance como linguagem artística – presente em galerias de arte, escolas, universidades e museus – a imagem fotográfica assume mais claramente seu papel de extensão da obra performática. É bem verdade que muitas obras deste gênero permaneceram sem a sua construção fotográfica, mas nem por isso, deixaram de ser performances, e neste caso, evidenciaram ainda mais sua absoluta efemeridade. Por outro lado, o grande número de imagens de obras disponíveis hoje em dia atesta o quanto esta relação se fundamenta numa interdependência cujo centro é a ação performática.

Assim como nas imagens posadas cotidianas em que as pessoas se apresentam e constroem uma determinada imagem de si mesmos, com um determinado fim, as imagens performáticas artísticas elaboram, do mesmo modo, auto-imagens que são apresentadas e negociadas com o seu público. Fotos de aniversários e casamentos articulam identidades que são forjadas por meio dos vários recursos disponíveis para a imagem: vestuário, maquiagem, gestualidade, luminosidade, cenário, etc. Cada elemento articula uma noção e conceito de si que se projeta além dos limites da própria imagem. Configura-se assim, uma identidade para si e também para quem apreende a imagem. No campo fugidio das realidades contemporâneas, em que os meios de comunicação de massa promovem uma avalanche de imagens e identidades, quase sempre distantes do real, a imagem performática diz respeito a perfis, a pensamentos, a visões de mundo que não escapam do fluxo das construções imagéticas presentes nos discursos escritos e em outros tipos de vozes.

As manifestações performáticas que se revestem de abordagens estéticas articulam a construção de identidades fundamentadas na presentificação e teatralização do eu. Se por um

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lado o eu – que se traduz em quem sou e como sou – é tornado presente no espaço da teatralização ou ficção, por outro, este mesmo eu é teatralizado, recebendo assim uma aura de artificialidade e encenação. Para os artistas da performance este sempre foi o centro de interesse: a dinâmica de seu jogo cênico se situa entre realidade e ficção, entre ser ou não ser verdadeiro, entre ser ou não ser falso. A ação performática presentificada foge da teatralização encontrada no teatro, embora utilize da mesma espetacularização. A identidade apresentada assim se faz e é reconhecida por meio de ações específicas. Os futuristas estiveram num palco em suas seratas, mas não representaram teatro no sentido tradicional. Os dadaístas, do mesmo modo, estiveram no centro de um cabaret, mas não estavam preocupados em apresentar peças, narrativas ou personagens; ao contrário, estavam voltados para a elaboração de uma suposta

anti-arte. Artistas da body art, igualmente, desempenharam ações, que em sua grande maioria

não estavam voltadas para a apresentação de cenas no sentido teatral. Seu jogo era feito de ações, nas quais o atuante era reconhecido, e reconhecido em sua identidade pessoal.

Tudo indica que a invenção da arte da performance, no decorrer do século XX, utilizou e lançou mão do mesmo jogo que a fotografia há muito inaugurara. Jogar com a lente é jogar com a performatividade do corpo e da imagem. Este é o jogo do como se mostrar ao outro. Irmanada com a performance, a fotografia ofereceu à performance a possibilidade de jogar com as imagens de si. Por outro lado, rica em sua poética, a fotografia imprimiu elementos que apelaram para os sentidos, para as emoções.

A extensão fotográfica dos trabalhos de performance-arte está presente no fluxo de processos de significação de identidades em performance que ocorrem em alguns domínios básicos: no domínio da ideologia, na relação com a público, nas abordagens sobre o corpo e também no domínio do discurso lingüístico. A articulação individual de cada um destes domínios – ideologia, espectador, corpo e discurso lingüístico formam um sistema discursivo que, em última instância, revela os conceitos que delineiam o eu, a auto-imagem e identidades.

Primeiramente, não podemos esquecer que toda prática de artistas performáticos é intrinsecamente conectada a um espaço anterior de outras práticas e outras idéias sobre o eu e a identidade, assim como sobre a própria performance. Assim, vozes múltiplas são manifestas nas obras performáticas, apresentando conceitos sobre a identidade articulados em momentos anteriores à apresentação artística performática. Assim, os artistas da performance, de uma maneira ou outra, dialogam com a multiplicidade dos discursos do passado, de modo a definir seus próprios perfis. Ao agirem com seus próprios corpos em performance, e ao performarem a obra da performance, estes artistas definem sua corporalidade em relação aos conceitos

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presentes no discurso geral da performance. Assim, seu discurso define quem eles são do ponto de vista corporal tanto para a prática como para as teorias da performance. Mas há aí, um diálogo que se estabelece com as práticas anteriores e, portanto, com as muitas imagens destas práticas. Os dadaístas, por exemplo, em suas primeiras manifestações performáticas, inevitavelmente estabeleciam um diálogo ou resposta às incursões performativas futuristas italianas, principalmente.

Outro aspecto importante dos processos de significação de identidades e auto-imagens diz respeito ao diálogo que artistas performáticos estabelecem com seu público. O público - seja ele a platéia, ou o aquele que vê as imagens da cena performática - representa um ‘outro’, que é definido na medida da necessidade de se auto-definir como artistas. Há sempre um ‘outro’ que habita o discurso e práticas da performance-arte. A imagem fotográfica das obras de performance alcançam um outro, além de seu próprio tempo e espaço.

Do mesmo modo, os artistas da performance estabelecem um diálogo com definições prévias sobre o eu, que são reforçadas ou rejeitadas pelo discurso e prática. Questões políticas e objetivos políticos caracterizam um tipo específico de discurso em performance arte. Ao longo da história da performance-arte, encontramos perfis muito variados, que vão desde o comprometimento político com causas sociais, como é o caso de Marina Abramoviç, até a experiência do humor, do lúdico, como na obra performativa de Guto Lacaz.

Muitos artistas performáticos estiveram e estão voltados para a afirmação explícita de identidades. Tais artistas desejam afirmar seus modos de ser, sua cultura e suas idéias (GILROY, 1995, p 12-33). No contexto das artes contemporâneas, que apelam para a diferença, jovens artistas em particular, têm levantado seu próprio posicionamento concernente à exata localização de suas identidades na sociedade. Asserções explícitas de identidades podem assumir formatos diferentes. Basicamente, elas dependem de um processo de identificação no qual os perfórmeres e o público compartilham as mesmas crenças e modos de ser. Discursos alternativos podem ser desenvolvidos neste processo de identificação, e um certo poder político pode ser erigido na afirmação de individualidades e identidades de minorias. A manifestação de identidades pode também ocorrer nos limites da performance que funciona como um lugar seguro para a existência de diferenças culturais e sexuais. O evento performático funciona como um laboratório em que as propriedades culturais podem ser experienciadas e evocadas livremente.

Na arena performativa das idéias políticas explícitas, pouco espaço é encontrado para habilidades artísticas ou para o esteticismo. As idéias, neste caso, são mais importantes para identidades e para os artistas que estão ávidos pela comunicação com o outro. Assim, é por

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meio da argumentação, e, principalmente, por meio das explanações escritas e faladas, que os perfórmeres afirmam quem eles são, o que pensam e o que almejam com seu trabalho. O papel da literatura acadêmica neste processo de articulação de idéias que afirmam identidades é crucial.

Outras identidades são, não obstante, implicitamente afirmadas em performances. No teatro tradicional, as identidades são articuladas de maneira implícita por meio da elaboração de signos que conectam o inconsciente do artista à audiência. Algumas performances, contudo, possuem um acesso mais direto a elementos que possam vir a significar individualidades. Estas performances rejeitam afirmações racionais sobre as identidades e demonstram mais afinidade com a subjetividade.

As identidades implícitas são manifestas por meio de processos inconscientes, que envolvem uma exposição de mecanismos de significação não evidente. Isto pode ocorrer por meio de um comprometimento com certos temas, e também por meio da tentativa de quebrar as convenções e a racionalidade. A exposição de processos de significação não evidente pode também ocorrer por meio da evocação de elementos alegóricos.

Os processos de significação não evidente presentes nas performances teatrais representam processos inconscientes de significação que estão relacionados a um sujeito

falante. Aqui uma distinção é necessária: os processos que são desconectados dos discursos

lingüísticos lógicos estão mais comprometidos com a ordem semiótica. Na visão de Kristeva, o semiótico e o simbólico são duas modalidades básicas de significação, e é a dialética entre estas modalidades que articula discursos específicos. O semiótico, como Kristeva apresenta, refere-se a propriedades psicanalíticas do discurso – sua marca, traço, índice, signo precursor, figuração. O semiótico refere-se à articulação de significados que escapam à significação lingüística, mas que estão ainda presentes nela, operando fora da linguagem. O simbólico refere-se à ordem dos signos lingüísticos que são articulados de acordo com a ordem e lógica lingüísticas (KRISTEVA, 1993, p 34-35).

Os processos de significação de identidades envolvem um compromisso mais evidente com as propriedades lingüísticas do discurso. A política de identidades torna mais evidente o que também é articulado na forma de necessidades, desejos e expectativas - uma ligação com a lógica dos signos move-se no fluxo dos discursos destas abordagens. Contudo, o semiótico fica mais evidente, na medida em que esta análise torna visíveis camadas mais profundas. A articulação do semiótico é mais clara na articulação de atitudes políticas implícitas, e em asserções implícitas a respeito do eu. Nelas, alegorias e fantasias tornam-se preponderantes.

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O eu que é configurado situa-se, portanto, entre duas ordens de significação. Isto quer dizer que artistas performáticos definem a si próprios por meio de um discurso ideológico que é evocado, mas que ao mesmo tempo descreve e apresenta uma articulação de elementos semióticos, os quais significam o que escapa ao sistema lingüístico. Apresentadas como estão, suas práticas definem o eu, a auto-imagem e identidade no nível simbólico, mas ao mesmo tempo apontam na direção de estruturas mais profundas da formação deste eu.

A obra performática de Gina Pane apresenta uma fragmentação da identidade exposta por meio de ações de auto-mutilação. Pane alcança o espaço semiótico da não significação por meio da corrupção do comportamento cênico tido como “normal”, de modo a rejeitar a norma da linguagem e seu poder legitimador. As convenções do teatro ou da dança perfazem sistemas e signos que o público comunga. Ao apresentar a dor física como ação física para ser vista por um público, Pane altera e corrompe o sistema cênico e suas convenções. Não mais a lâmina falsa, não mais o sangue falso, não mais a dor falsa. Tudo é real, tudo é intenso e vívido na moldura teatral criada em torno do evento. A convenção da linguagem literária dá lugar, do mesmo modo, à linguagem poética, que é fugidia, simbólica, metonímica, que apela para os sentidos e para uma energia intensa. A ordenação das palavras escritas e faladas, assim como as ações cênicas seguem uma outra economia: a linguagem agora desestrutura a norma e a sintaxe cotidiana do verbo, para dar lugar, como na obra Ação Sentimental (1974) a uma ordem plena de metáforas, de ritmos e de encantamento:

Projeção de um espaço “intra”, no qual a relação entre duas mulheres é intercalada pela história mágica de mãe e filha, que a morte simboliza. O espaço “intra” é manifesto por um circuito fechado de troca e espelho: relações entre Mulher/Mulheres, identificando a si mesma no fenômeno emotivo primário – mãe/filha, uma relação simbiótica que pode descortinar soluções emocionais diferentes para os nossos próprios conflitos de introjeção (PANE, 2000, p 197, tradução nossa).

E ainda:

Meu corpo é uma substância condutora num movimento de “encontrar o retorno”, voltando ao ponto de partida por meio de uma imagem primária de deconstrução (quebra-cabeças mental): rosa vermelha, flor mística, flor erótica, transformada em uma vagina por meio de uma reconstrução no seu estado mais presente, o estado da dor (PANE, 2000, p 197, tradução nossa).

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Com o passar dos anos e décadas, as imagens resultantes desta ação performativa não deixam de se ligar aos claros propósitos de Pane, no re-encontro com a relação materna, em que vida e morte se combinam e impulsionam uma a outra. O buquê de rosas claras sobre a vagina, o corpo estendido, ferido por pequenos pregos; ou quando está sentada, o corpo abaixado, cabeça sobre as pernas, remetem ao estado de morte evocado pela ação. A auto-mutilação revela o caráter suicida inerente à relação de perda do corpo materno. As ações de Pane, não tendo passado ou futuro, agora nos chegam, e encontram o “outro” que ela talvez vislumbrasse, como um futuro longínquo, e nos deparamos com imagens fortes, em preto-e-branco que revelam não somente esta relação dolorosa entre mãe e filha, e não somente a relação morte/vida, como nos apresenta o Teatro da Crueldade, de Antonin Artaud. Há nas imagens um vácuo que lhe é necessário, que a destitui de seu tempo e espaço, e as localiza, num terreno vago e diáfano, como a própria poesia de Pane evoca. A cor negra envolve a figura de Pane, como um espaço infinito que engole o ser. Este entrega-se brilhante e branco à uma treva doméstica, cotidiana, expressa pelo ladrilho. Trata-se do espaço instintivo, das energias potentes, como matar ou morrer, ou como o desejo do sexo, no qual não há razão ou sentido claro. Como argumenta Kristeva, este é o espaço da não significação em que não há regulação ou norma. As imagens mais do que registrar o evento passado de Pane, fazem expandir tal evento, recriando uma nova interferência. Desta vez arrebatando-nos para o seu estado fúnebre, da perda, do retorno, do mergulho no que antecede a significação. As imagens articulam assim, uma identidade construída a partir do reconhecimento deste espaço da abjeção, do inaceitável, do absurdo e condenável.

A obra de Lygia Clark, por outro lado, claramente acompanha a fragmentação do discurso lingüístico que se assume cada vez mais poético. Como na obra de Gina Pane, que é guiada pela metáfora e realidade da dor, a obra de Clark também apresenta uma fragmentação poética que busca a morte da própria imagem. As palavras quebram a rigidez do discurso e da linguagem para fazer vir à tona uma energia instintiva e poderosa:

Penso e vivo a morte. Sinto a multidão que cria em cima do meu corpo, minha boca tem gosto de terra. Faço o meu mausoléu com caixas de fósforos, saio para a vida, redescobrindo sons com uma agudeza impressionante. A vida estava se abrindo como uma afirmação de vida mas vivida ainda como morte, vazio total. Raros momentos de integração em bruto com a realidade. Encostada num tronco curvo de árvore me sinto como se fosse o próprio tronco. Passando a mão em volta de uma estátua, viro a

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prega do seu manto. O quotidiano, o niilismo, a imobilidade, penso na morte como solução CLARK, 1975, p 2).

O trecho acima está presente no texto “Da supressão do objeto (Anotações)”, publicado por Navilouca, Rio de Janeiro, em1975, no ano seguinte ao final do período em que Clark esteve realizando as pesquisas de suas proposições na Sorbonne, em Paris (de 1964-74). Neste período Clark realizou várias destas proposições com alunos da Sorbonne, sendo que estes exercícios não estavam propriamente dentro do circuito das galerias de arte, ou sequer eram registrados como eventos artísticos. O registro fotográfico, que temos hoje, nos chega foi provavelmente realizado pela própria Lygia Clark, e sua força e impacto hoje em dia são indiscutíveis. Um mero exercício propositivo, de caráter performativo, envolvendo a participação de estudantes, alcançou um espaço imenso na obra de Clark, e seu significado hoje em dia é dependente em grande parte da força da imagem. Meu argumento é que a obra performativa vive por meio da imagem, sendo que a imagem é ela mesma imbuída de um caráter performativo indelével, e neste caso em seu bojo há uma evocação do espaço negativo, da não significação.

A proposição Baba Antropofágica, realizada com alunos da Sorbonne em 1973,

estende-se na imagem fotográfica que hoje temos acesso. A janela que se nos abre não mostra apenas ações planejadas a partir da instrução oral de Clark, que indica que carretéis de fios de costura são colocados na boca dos participantes, e estes vão retirando os fios continuamente da boca, e deixando-os cair sobre o corpo, o rosto de um outro participante. Como em todas as

proposições Clark faz a instrução lingüística para a ação que deve ser desempenhada

(performada) pelos participantes. Neste caso Clark intenta abordar uma espécie de “perda da substância”:

Tudo começou a partir de um sonho que passou a me perseguir o tempo inteiro. Eu sonhava que abria a boca e tirava sem cessar de dentro dela uma substância, e na medida em que isso ia acontecendo eu sentia que ia perdendo a minha própria substância interna e isso me angustiava muito, principalmente porque não parava de perdê-la (CLARK, 1992, p 139). Como algumas das fotos de Pane em Ação Sentimental, a imagem de Baba

Antropofágica nos mostra um corpo inerte, um homem de olhos fechados, deitado de costas, o

rosto e o peito cobertos por fios (a imagem é disponível a cores e em preto-e-branco). Várias mãos aparecem no plano superior, que é escuro. As mãos se destacam do plano como se flutuassem. Ao contrário de indicar que as mãos derrubam fios embebidos em saliva, as mãos

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parecem querer tocar na pessoa, ou revivê-la. A baba, substância abjeta, saída do interior dos participantes, é recebida de bom grado por aquele que está inerte (e morto) no chão. A baba unge, de certo modo, este corpo, dando-lhe a substância que carece. A vida, neste caso, é dada pela abjeção e pela perda da energia, que sai das bocas.

A imagem construída ajudou a legitimar o trabalho de Clark, e mais do que isso, revela agora o espaço escuro e abjeto que se situa na fronteira entre a vida e a morte. O claro e o escuro. Clark consegue, neste sentido, promover a morte desejada e manifesta no texto acima, mas consegue, por outro lado tornar perene uma imagem dupla que tanto despende a energia (baba) ao outro, como a recupera (pelas mãos). A identidade fragmentada e limite de Clark é recuperada, do mesmo modo na instituição da proposição em jogo, que até hoje perdura como proposta e como ação. Clark está presente como esta identidade propositiva, este perfil de quem propõe, de quem estimula a centelha de vida que busca o seu retorno.

A mesma morte feminina e espaço abjeto identificamos na obra Limpando o Espelho, de 1995 (GOLDBERG, 1997, p 114), de Marina Abramoviç. Nesta performance, a artista passou horas no porão de uma galeria de arte de Nova Iorque, limpando grandes ossos de vacas com uma escova e água. Vestindo uma túnica branca, os cabelos soltos, Abramoviç limpa a carne dos ossos e ao mesmo tempo chora. Esta é uma metáfora para os conflitos étnicos da antiga Iugoslávia, em que a “limpeza étnica” ceifou vidas de um grande número de pessoas. A guerra também deixa a carne nos ossos, e é preciso retirá-la, sendo que a dor continua, por gerações. A imagem fotográfica mostra Abramoviç em sua árdua tarefa de convívio e intimidade com a dor, a putrefação, a morte. Fragmentada entre os cânones artísticos, sua identidade não é emoldurada pela beleza das obras ou pelo prazer. Ao contrário, suas ações contribuem para uma aproximação tênue entre o horror e a loucura. A morte manipulada de Abramoviç aniquila-a enquanto genialidade artística. Ossos, carne, sangue, porão e mal cheiro são realidades incontestáveis do ser humano, mas por séculos a arte tem estetizado e pasteurizado estes elementos. Tal como o espaço da perda do sentido, da falência dos órgãos, ou do vazio da não significação, o porão de Abramoviç é mortífero e fúnebre. Ali só é possível um lamento contínuo, que se entrega à situação precária do fim e da dor, mas que ao mesmo tempo oferece a esperança por meio do trabalho, do ato de limpar. Abramoviç constrói esta imagem arrojada de quem não teme a morte, ou de quem sabe reconhecer a intimidade que o ser humano tem com a morte. Assim como Pane e Clark, a obra de Abramoviç destrói a imagem da artista ao situá-la num espaço obscuro e abjeto. Ao mesmo tempo, Limpando o Espelho faz uma imagem sólida de mulher ser erigida entre escombros.

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As artistas e obras aqui analisadas evidenciam o caráter perene da imagem performativa, que além de serem um registro de ações performáticas, compõem construções imagéticas de vida independente. Tais imagens, inevitavelmente, carregam consigo um vácuo que as liberta da contextualização que nos esforçamos em erigir. Sua força reside no fato de criar uma realidade performática que prescinde até mesmo de sua história e genealogia. A elas queremos e devemos impor e resgatar trajetórias, mas estas imagens evidenciam uma força e potencialidade justamente no seu recuo da história e manifestação de um poder ou energia sub-reptícia. Estas potencialidades ficam evidentes, por exemplo, no alcance que as imagens das proposições tiveram na obra e percurso de Lygia Clark. Sem tais imagens a obra não existiria, e por si mesmas as proposições não ocupariam o lugar de impacto que as imagens ocupam hoje em dia. Por outro lado, não é ao acaso a escolha aqui de três mulheres artistas envolvidas com a ação performativa. De modo geral, as mulheres artistas têm abordado de maneira veemente estas questões nas últimas décadas. A temática da morte, que é explícita nas três obras em questão, possibilita um alcance mais profundo, que é expresso pelas imagens. Trata-se da manifestação do espaço da abjeção e negatividade, ou ainda do lugar onde a significação deixa de existir, e onde os instintos imperam. Esta manifestação torna-se perene por meio das imagens, assim como é perpétuo em nós um estado de vida e de morte.

BIBLIOGRAFIA

CLARK, Lygia. “Da supressão do objeto (Anotações)”. Catálogo da Fundação Antoni Tàpies. trad. e aquivo da A. C. o Mundo de Lygia Clark. Navilouca. Rio de Janeiro, 1975. GOLDBERG, RoseLee. Perfórmance Art - From Futurism to the Present. London:

Thames and Hudson, 1993.

______. Performance – Live Art since de 60´s. London: Thames and Hudson, 1997. GILROY, Paul. There Ain’t No Black in the Union Jack. London: Routledge, 1992. ____. “...To Be Real’ - The dissident forms of black expressive culture.’ In UGWU, Catherine. Let’s Get it On - The Politics of Black Perfórmance. London: Institute of Contemporary Arts/Bay Press, 1995.

KRISTEVA, Julia. Desire in Language - A Semiotic Approach to Literature and Art. Oxford: Blackwell, 1993.

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PANE, Gina. Sentimental Action. In: VERGINE, Lea. Body Art and Performance – The Body as Language. Milano: Skira, 2000.

SCHECHNER, Richard. Restauração do Comportamento. In: BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator – Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p 205-210. 

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